quinta-feira, 18 de abril de 2024

Amor e vigília

Ocean Limited, Alex Colville

"Na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo." (Arthur Schopenhauer)

Tenho buscado ficar em silêncio, por várias razões: cansei de me expressar, de dizer o que sinto, de me abrir e receber em troca apenas silêncio. Não quero mais me humilhar, mesmo que sempre acabe voltando e me humilhando. A verdade é que ele dará graças quando eu já não estiver mais de modo algum presente na vida dele. Isso se parece muito com algum tipo de sintoma bordeline, mas eu já estou desacreditado demais de mim mesmo para buscar algum tipo de ajuda. 

Ele esconde de mim seus anseios, e já compartilha apenas aquilo em que, de algum modo, posso ajudar. De certo modo é como todos os outros que só me procuram quando precisam de algo e me jogam fora quando não sou mais útil, e eu mesmo sei que sou bem inútil, portanto não preciso esperar que ele chegue a essa conclusão. Meu amor foi rejeitado, em todas as centenas de declarações, e eu não sou nada além disso, então não há porque falar, senão que me humilharia mais e mais. E se sou incompreendido por ele, do qual me fiz tão próximo, que se dirá dos estranhos que estão ao meu lado, e que me julgam com superioridade de espírito, baseados numa moral kantiana estúpida, me tomando como cristão hipócrita, do alto de suas cátedras de juízes supremos do certo e do errado. 

Sei que fui talvez meio grosseiro e ríspido, mas precisava dizer o que vinha me machucando, porque sendo eu um homem que se expressa de palavras estava já me vendo sufocado por elas, sufocado pelo amor que começou a se acumular no meu peito. Precisava dizer, a você, porque os outros já não significam nada para mim e, muito embora a perspectiva de não significar nada para você continue a me perseguir como fantasma à espreita, como leão que busca a quem devorar, eu senti, naquela hora, que precisava te dizer o que sinto de verdade.

Precisava dizer a você e não tinha intenção de te machucar, assim com você também nunca quis me machucar, mas ainda assim acabamos por ferir um ao outro. Comos chegamos a isso?

O fato é que estou cansado, de ser feito de idiota e desprezado, mesmo quando fui sincero em entregar meu coração. O fato é que prefiro ficar sozinho e esperar pelo meu fim, do que ficar a espera de migalhas enquanto meu fim se aproxima do mesmo modo. Ficaria feliz, genuinamente feliz, se a morte se apresentasse a mim ainda hoje. Onde está tu, ó velha amiga?

"Eu não sabia que o amor requer vigília." (Raduan Nassar)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Controvérsias

Não sei bem o que estou fazendo aqui, de certo modo parece que aceitei uma luta a qual já estava fadado a perder. Eu bem sabia que não podia ter esperanças muito grandes, quando me chamaram para coordenar a liturgia eu sabia dos limites desse cargo e ainda mais da comunidade, mas aceitei mesmo asaim, achando que poderia fazer algo, que poderia melhorar pelo menos um pouco. Mas, quanto mais os dias passam, mais eu vejo que as pessoas estão menos preocupadas em descobrir os desouros divinos presentes nas celebrações, do que expressarem, cada uma, as suas próprias convicções nos formatos mais toscos que elas possam acreditar. 

Até tentei encarar um pouco os estudos e debates ao redor da liturgia pelo Brasil, e muito se fala sobre redescobrir o verdadeiro valor das celebrações, seja por aqueles que buscam trabalhar a formação litúrgica estritamente nos moldes do Concílio Vaticano II ou ainda os que o rejeitam e buscam uma restauração, seja total, agora ainda mais difícil, depois das violentas sanções do Papa Francisco, ou ainda os que tentam dar continuidade ao minguado movimento de "reforma da reforma" de Bento XVI. Mas, os primeiros acabam numa celebração cada vez mais centrada em si mesmos, exemplificada pelos altares cada vez menores ao passo que a assembléia avança cada vez mais para um presbitério dessacralizado, enquanto os segundos caem num formalismo tão vazio quanto os de seus inimigos.

E eu sinceramente não sei o que faço aqui. Até pensei que poderia trabalhar com o pouco que me fosse dado, com uma pequena alteração do sentido do sagrado que se expresasse nas formas atuais do rito romano, mas ao que parece não sou tão bom formador quanto pensava. Ou tratam o que digo como mero formalismo ritual, ou simplesmente ignoram, em nome dos costumes idiotas criados com o propósito de integrar as pessoas na liturgia mas que são apenas expressão de uma mentalidade que já não é mais capaz de Deus, que no máximo se emociona num sentimentalismo barato provocado pela música e a essa emoção dá o nome de Deus. 

Eu sinceramente não sei o que estou fazendo aqui. E enquanto isso multiplicam as crianças vestidas de anjo (?) as músicas bregas e as controvérsias infrutiferas. 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Eu, visões de uma cidade e silêncio

Self-portrait, Hirooki Hatori

De algum modo experimento sim aquela satisfação depois de uma missão difícil. Ver que as exposições estavam prontas dentro do prazo, com o mínimo de problemas, me mostraram que algo no meio de todo aquel esforço deu certo. Passar o dia ao lado de uma amiga querida tornou até mesmo o cansaço mais leve, e eu pude então não pensar muito naquilo que vinha evitando nos últimos dias. 

Consegui, por exemplo, me deixar levar pelo tempo que passei ao lado daquele mocinho que, pela primeira vez, falou comigo, sorriu pra mim de leve e compartilhou alguns pensamentos interessantes, que me fizeram crer que eu poderia sim, viver de algum modo aqui, quem sabe recomeçar de algum modo o meu coração. 

E nesses dias, mesmo quando eu já não podia mais lidar com nenhuma informação à mais, eu ainda me enfiava completamente no que precisava ser feito, me dedicando por completo, ao trabalho e a pastoral, tudo isso para ignorar um fato que se consumou quando li palavras simples, mas que confirmaram que, no meio disso tudo, meus sentimentos são apenas incômodos. 

Passei o dia então me esforçando pra falar inglês, sabendo que falhei miseravelmente algumas vezes mas que me fiz entender e fiz os outros serem entendidos, e isso basta, eu acho. 

Mas eu não quero agora ter que lidar com as pessoas mesquinhas da paróquia, que provavelmente gastaram longo minutos nessa tarde discutindo uma mensagem que eu não enviei e que causou um rebuliço enorme, mas que não conseguem entender o mínimo sobre o que realmente importa. 

E quando vinha embora, de pé no ônibus ou caminhando enquanto uma chuva pesada fustigava as minhas pernas, eu consegui compor linhas belíssimas sobre tudo isso que me aconteceu nos últimos dias, mas agora tudo o que consegui escrever foram essas breves palavras, secas e sem nenhuma poesia. 

Me recordo vagamente de estar muito consciente de mim mesmo ao passar a mão no cabelo olhando meu reflexo na janela, ao observar dois rapazes que provavelmente trocavam olhares cheios de significado num ônibus cheio de gente que só queria ir pra casa depois de um longo dia de trabalho, enquanto a maior parte da cidade pôde dormir ouvindo a chuva que caiu insistentemente o dia todo. 

Pude ficar perto dele, por vários minutos, e isso foi incrivel, ainda que sua personalidade me seja um mistério quase completo. Não pude transpor o muro que havia entre nós por conta da falta de contato, ele nem mesmo sabia que eu era o mesmo cara que sentara na mesma mesa que ele para comer um pedaço gorduroso de pizza numa noite do Festival de Dança de Joinville do ano passado e que, desde aquele dia, ele se tornou uma espécie de sonho meu, ao lado de outras figuras que, sendo reais, passaram a habitar meu pequeno universo onírico, repleto de moços bonitos e carinhosos. 

Pelo menos isso me deu um pouco de distanciamento daquela dor que, embora não tenha passado, cedeu brevemente. Obrigado, ó jovem que não se recordará de mim amanhã e que habita meus sonhos doces, obrigado amiga que me acompanhou em uma taça de vinho. 

Agora que o clarão da luz se apaga e todos dormem cansados, eu preciso então me isolar, não no mundo que vim evitando, mas no meu mundo, naquele onde os personagens encontram o amor nas mais diversas situações, e é nesse mundo, como Madame Bovary sonhava com os romances enquanto vivia no convento, eu vou sonhar com o amor impossível, ao lado de uma taça de vinho rosé e chocolate, deixando meu corpo, coração e mente entrarem lentamente numa atmosfera diferente, onde a dor não existe sem uma solução no próximo episódio e o onde o amor não é apenas mais um problema e amanhã, quando os mais animados talvez possam se unir para um churrasco ou sei lá o que mais o pessoal dessa cidade faz para se divertir, eu vou dormir, profundamente, sob efeito pesado de remédios proibidos. 

E do silêncio dele.

domingo, 14 de abril de 2024

Uma dor que vem de dentro

Preciso conseguir me posicionar, e dizer que não posso mais permitir ser sacrificado desse modo. Dar o meu melhor não significa dar tanto a ponto de não sobrar nada de mim mesmo, e isso precisa ficar claro. Preciso que reste algo, ainda que não muito, para que eu possa dar algo, me doar em algo, me dedicar a algo. É preciso que haja água no jarro que se derrama para lavar os pés do outro. 

E então me encosto num banco antigo de madeira, olho pela janela de grades pretas e o sol brilha forte lá fora, mesmo que tenha amanhecido chovendo e cinza, já chegando com os tênis molhados no trabalho, e as flores parecem respirar fundo um pouco de ar fresco, depois de dias de um calor incômodo. Ou talvez seja eu que esteja respirando fundo, ou suspirando, sentindo o cheiro do café na minha frente misturado com a essência de Peônia Doce que coloquei no ambiente. 

No meu peito aquela resolução que tomei num momento de tristeza profunda ecoa melancólicamente, como um violino que se esqueceu de terminar e prolongou demais as últimas notas de um adagio lamentoso. Eu não quero mais sofrer, mas não sei se tenho forças o bastante para romper com esse ciclo de dor. 

Ontem senti algo que há muito eu achei que não sentiria. Uma dor, igual a daquela em meu período mais obscuro, antes de entrar na depressão profunda, igual a que sentir pouco antes de ser abandonado por meus amigos, a dor que senti quando aquele homem me recusou um abraço e que exigiu que me aproximasse, me desculpasse e fosse como um padrinho para o relacionamento ideal que ele criou com uma mulher que eu sabia que não o queria e que eu sabia que o faria sofrer, não porque eu desejasse isso, mas porque sabia que, entre nós dois, só eu o amava de verdade. E então ele me desprezou, de modo tão desumanamente brutal que eu me fechei de tal que acabei mergulhando no abismo profundo da depressão por anos. 

Antes desse episódio, que hoje é apenas um borrão de meses na minha cabeça, eu sentia essa dor, essa ansiedade extrema, que me deixava sem comer por vários dias inteiros, que me fazia enjoar, que já me dificultava até mesmo fazer as coisas mais elementares que sempre fiz e fazia, e já não conseguia mais dar conta. Era um pesadelo pensar nele, estar com ele, saber que ele ia chegar. O que era um doce sonho se tornou um pesadelo tremendo. 

E essa dor voltou. 

E tem doído tanto, tanto, e parece que não há nada que eu possa fazer, mesmo querendo enfiar as mãos dentro de mim mesmo e arrancar todas as entranhas de modo a tirar também esse sentimento, mas não dá, e eu só fico aqui, sentindo essa dor, horrenda, que não cessa, não diminui e eu não consigo esquecer nem quando penso em outras coisas. 

Apenas dói, e dói, e continua doendo. 

E continua

doendo.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Adaga no Coração

"Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma"
(Fernando Pessoa)

Por alguma razão que talvez se encontre em algum lugar desse oceano profundo, há uma coincidência de momentos que fizeram com que uma amiga me perguntasse algumas cosias justamente quando estou pensando em assuntos desse tipo. Eu nunca tive grandes aspirações, até que me deparei com o ensino, quando percebi que meus amigos pediam que eu explicasse a matéria antes da prova porque conseguia fazer entender melhor que os professores (apenas das matérias humanas, diga-se. Até hoje não sei nem a tabuada nem conto troco no comércio). Isso me deu um indicativo do que seguir, e ainda hoje quando estudo algo ou explico algo pra alguém (de história das séries tailandesas até o Império Romano) é o único momento em que me sinto num caminho.

Afora isso eu sempre me senti, e hoje isso continua me perseguindo, deslocado por não saber o que queria ser. Meus amigos queriam ser policiais, funcionários publicos, eu nunca tive um sonho nem naquela época e já me achava estranho.

E agora me vejo revivendo uma situação em que, já não tendo um sonho, não tenho também um objetivo para prosseguir. Te digo com uma convicção brutal e peço desculpas se isso for um disparador de algo, mas nesse momento eu só estou continuando porque sim. Porque não tenho nenhuma vontade de fazer mais nada, e pior, as coisas que me rodeiam me machucam. e pior ainda: o que mais me machuca é aquilo que talvez deveria me curar, o meu próprio amor. 

Não me refiro a alguém, não é alguém que me machuca, ele não tem culpa disso, mas o que sinto, é o meu próprio coração que se maculou, que cravou em si mesmo uma adaga e que sangrou até que se esvaísse completamente. 

O amor deveria doer tanto assim? Se eu tanto amei, tanto amei, que mais eu podia ter feito para receber senão a indiferença e a distância? Que horror eu posso ter causado para assim ser punido? A quem tanto feri para que meu coração fosse assim ferido?

Uma noite mais eu adormeci profunamente por efeito dos remédios, não queria pensar em mais nada, não queria amar mais nada, não queria sentir mais nada pois, se sinto, é apenas a adaga no meu coração indo mais e mais fundo ao rasgar a minha carne. 

E então, na manhã que segue, chuvosa, cinza e melancólica, consegui um pouco de tão raro silêncio cá por essas bandas. E então decidi me permitir sangrar um pouco mais em palavras, chorar a minha sorte e, quem o sabe, penetrar o solo profundo e renascer verdejante uma vez mais, se possível. 

Decidi que não quero mais essa dor, e que preciso então arrancar as raízes dela que se fecharam ao redor do meu coração como as correntes daquele mestre que aprisiona seus inimigos em seus próprios termos. Preciso arrancar essas raízes, e com elas algumas partes de mim também serão destruídas, mas quem sabe com o aço dessas correntes eu possa forjar algo novo.

Que grande pranto que eu choro,
Meus olhos são água só;
Quem me conforta está longe,
Quem de mim sentia dó;
Meus filhos estão perdidos,
Venceu o forte, o maior...

(Lamentos de Jeremias)

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Aforismos

Plutão, Gustave Doré

"Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido." Ingmar Bergman, O Sétimo Selo

Acho que estou cansado de ser o funcionário responsável que só é recompensado com mais trabalho. Depois de dias estressantes quando espero conseguir descansar, sempre aparece outra emergência, e outra, e outra, e outra. E eu nunca consigo descansar, e as minhas costas nunca param de doer e eu não consigo parar de pensar nele, do outro lado do país, enquanto eu mexo com quadros e me estresso por não conseguir descansar e só queria um abraço apertado dele, que me deixasse encostar em seu ombro, sentir o seu cheiro e chorar baixinho. 

Aquele, o que me traiu com minha melhor amiga, ainda olha minhas coisas todos os dias, será que ele realmente vê, e ainda entende como parecia entender antes, ou é mais como um hábito tosco de tem quem apenas passa publicações sem ler ou ver o que está ali?

(+18)

Gosto da sensação de, ao menos, deixar uma parte do meu corpo mais livre ao usar roupas mais leves. Sem precisar usar nada por baixo também. Posso fantasiar estar de volta com ele ali, anos atrás, e abrir as pernas, deixando aparecer por entre o tecido fino e a minha mão cheia de lascívia, segurando e friccionando meu próprio membro com rapidez, enquanto o observava com olhos famintos, mantendo-o distante com um dos pés apoiado sobre seu peito. A avulsão nívea dando então a ele espaço para que se colocasse entre minha pernas, enquanto me recompunha a respiração ele me puxaria para seu colo e colocaria aquele tecido ainda mais para o lado, antes de me penetrar com raiva e força.

E agora, quando na madrugada não consigo dormir, me consumindo entre solidão e tesão, ninguém nem mesmo responde. Que patrono invocarei diante desse castigo?

X

Preciso de um abraço, necessito na verdade. Não é apenas carência ou a minha habitual expressão de um vazio afetivo, de um locus emocional ou algo assim, trata-se de uma vontade real, premente, profunda e quase palpável, como se o vazio dentro de mim por alguns instantes se tornasse tangível de modo a comprimir meus pulmões, fazendo-me arfar, em suspiros profundos de amor, em ânsias inflamado, como se ele pudesse crescer e aumentar mais e mais até me consumir por completo, até desaparecer comigo, até me fazer sumir num abismo escuro, profundo, frio, distante, vazio. Preciso de um abraço.

Algumas pessoas até percebem que estou cansado, é claro, o semblante está visivelmente abatido, o cansaço já é bem mais do que qualquer outro poderia aguentar. Mas ainda assim elas se recusam a permitir que eu descanse. É como se me dissessem claramente "eu sei que você está no limite, mas preciso que quebre esse limite e continue servindo até que não tenha mais serventia nenhuma." Sério, se elas dissessem isso claramente eu não iria me surpreender. 

E eu queria justamente evitar coisas desse tipo, evitar que elas se acumulassem, evitar que houvesse mais para fazer do que forças para executar. Mas foi em vão. É sempre tudo em vão. Uma amiga disse que talvez eu tenha aprendido a sempre guardar tudo numa bolsa e padecer em doses homeopáticas. Eu já estava muito cansado e já tinha me preparado pra apagar de sono quando ela disse isso então eu não sei se entendi, mas acho que ela tem toda razão. 

X

Às vezes acho que as pessoas têm um certo prazer sádico em me torturar. Elas me vêem nitidamente cansado e abatido, me perguntam e eu digo que estou cansado e abatido e que não aguento mais reuniões e reuniões e comissões e tudo isso, e aí então elas se compadecem, e dizem que preciso me cuidar, que ainda sou novo e não posso me entregar assim e nem viver descontroladamente. E então na frase seguinte elas me chamam para reuniões e comissões e reuniões de emergência e perguntas intermináveis e cobranças onde eu, e apenas eu, vou ficar tão cansado a ponto de qualquer um que me olhar vai dizer que estou cansado e abatido, e por estar cansado e abatido eu sequer tenho forças pra recusar.

"Se todo animal inspira ternura, o que houve então, com os homens?" (João Guimarães Rosa)

X

Ele não parece ter notado muito a minha presença, mas sim meus olhares, e eu admito que o olhei por ser uma figura peculiar. Ao mesmo tempo ele se apresenta uma figura delicada e viril, o que me deixou confuso. Não foram as tatuagens e nem os brincos, tampouco o ar sonolento num dia ou desperto noutro, foi alguma coisa no seu semblante, algo que me fez ter essas duas impressões ao mesmo tempo. Uma figura delicada, sensível, com um olhar feroz, assustador, que me faz desviar sempre que percebe que estou encarando-o. E achei meio mágico poder encostar nele, por uns breves instantes que fossem, e ele não tirou o braço de perto de mim. Apenas logo o ônibs chegou ao terminal e eu rapidamente levantei para descer.  Será um longo dia. 

X

Eu te amo, mesmo que você não dê a mínima pra isso. 

Eu devia ficar quieto quanto a isso. E mesmo que se desculpe, não tendo culpa alguma dos sentimentos que eu projetei em ti, ainda me dói muito. E nem mesmo tempo ou espaço para chorar eu tenho, senão que preciso suportar.

Preciso.

Mas até quando vou suportar?

E então eu encosto a minha cabeça na parede ao lado da minha mesa no escritório, fecho os olhos e me concentro numa parte dos Lamentos do Profeta Jeremias de Lassus, e então sinto o mundo girar, o meu corpo protestar e me sinto enjoado. Está acontecendo de novo, eu não posso acreditar, essa ebriedade maldita de um sentimento tão profundo e que me levou à loucura daquela vez, anos atrás, com aquele homem que ria de mim e que queria que eu fosse amigo da mulher que me machucava. Eu estou sentindo aquela dor, a pior de todas, a que me dilacerou a ponto de desistir de qualquer perspectiva de sonho ou futuro, a que me destruiu de tal modo que já não se pode dizer que sou mais do que uma casca seca, vazia, e se havia algo ainda em mim, agora não há mais. 

agora não há mais.

E vida que segue.

e segue

e segue.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Força e maturidade

Marooned, Howard Pyle

Aos homens mais fortes é dada não a fragilidade do feminino mas a força vital desse espectro. Aliás, sempre estranhei quando as pessoas ao meu redor falavam de mulheres como frágeis sendo que as pessoas que eu conhecia, e conheço e reconheço, como as mais fortes, eram justamente mulheres. Hoje, entendo que essa forma de dizer, que via justamente dos menininhos fracos da escola, era um tipo de compensação pela constatação da própria fraqueza e da força daquelas que, já na nossa idade, eram mais fortes do que nós. Até ao homem mais forte compete-lhe o sentir pelo ser que o gerou. Ainda que hoje renegue e maldiga essa existência, ainda que o ser lhe seja um fardo desagradável, ainda há no homem esse resquício de agradecimento, puro e íntimo, por aquela a quem rasgamos o ventre e viemos a este cenário de dementes. 

Aos poetas, que talvez sob o olhar dos outros homens sejam os mais fracos dentre os homens mesmo, é dado-lhes o sentir, o sofrer, o penar e, quem sabe, talvez participar dessa mesma apreensão íntima e que é compartilhada por todas as mães. Aos homens que choram por aquelas que os gerou, que conseguem sentir um pouco dessa insegurança diante do futuro desconhecido. 

Por isso, que mais posso fazer além de fechar os olhos e súplice oração, e pedir que ao menos se acalme meu coração, tão ferido e machucado, para conseguir terminar esse dia em paz. 

Não consegui dizer mais do que isso. Acho que estou preocupado demais pois, em uma hora, mais ou menos, minha mãe entrará na mesa de cirurgia e, pelo que me recordo, da última vez ela quase não saiu com vida. Por isso aquela apreensão da criança assustada retornam em preces desencontradas porém sinceras, mas também certas daquela resolução profunda que tomei tempos atrás, de que meu fim não poderia se dar antes do dela, mas caso seguisse o curso natural das coisas, eu não faria cerimônia em partir logo depois, visto que já não haveria por aqui ninguém mais a quem devesse a profunda dívida do existir. 

E acho também que fiquei sensível demais, me deixei afetar demais por isso. Acabando ficando meio irritadiço, mas bem, todos têm sua cota de extrapolação não? Ou será que só os outros podem reclamar por pouca coisa? Também eu posso reclamar como um bobo, ou não?

Diante do perigo da morte, o homem encontra então a régua com que pode medir as coisas que de fato importam nessa vida, as ideias dos náufragos como dizia o filósofo. Bom, no momento me encontro à deriva, e bem poucas coisas me tomam o lugar da mente, a maior dela continua sendo a imortalidade da alma, só consigo pensar nessa passagem, que todos chamam morte, que vejo como dizia São Francisco de Assis, como a uma irmã. 

Não espero por um milagre, tampouco espero uma catástrofe, e penso que isso é ser realista. Só o que posso é sentar esperar, passar um café, e torcer para que tudo dê certo, mesmo que ninguém nunca tenha me escutado.

"A velha garota era simplesmente mais uma criatura solitária em um mundo indiferente a todos nós." (Charles Bukowski)

X

"Todo o ouro que se acha sob o Sol não bastaria a dar repouso a uma só destas almas." (Dante Alighieri)

Mais uma vez eu envergonho o próprio caminho que decidi seguir, sei bem que eu é que preciso compreender as situações e ir além, e não exigir do outro que tenha o discernimento adquirido com conhecimento e experiência. Mas é justamente nesses momentos que se prova e se solidifica essa maturidade. É preciso suportar. Eu acho. Mesmo admitindo que nesse momento eu também queria um abraço forte, um colo e um cafuné. Queria, mas é como se desejar isso fosse ganância demais para alguém como eu. Se aos gananciosos é dado lugar especial no quarto círculo do inferno de Dante, a mim é dada a percepção brutal de uma vida solitária.

E por falar em quarto circulo do inferno, percebi a minha ainda imaturidade na ansiedade generalizada desses dias. Esperando por um afeto que não viria, com medo, com raiva, sentimenos simples e pobres mas que tomaram um bocado de espaço da minha atenção, que me fizeram ficar irritadiço, como quem não sabe administrar o básico da vida. Exigi atenção como a um namorado, e me irritei por não ter. E í vieram à tona todos os sentimentos que vinha guardando e reprimindo há muito por não ter tido nem mesmo uma resposta séria até hoje. Esperei maturidade e compreensão no trabalho, onde sabia que não teria. Me vi quase chorando prostrado por ter de conciliar preocupações em âmbitos diversos, quando isso é o mínimo exigido de alguém. 

Isso me mostrou minha infantilidade. Isso me mostrou uma vez mais aquilo que já sabia na teoria mas que preciso conseguir colocar na prática não como quem faz algo conscientemente, mas internalizar esses movimentos da alma, essas reações, como quem automatiza uma atividade antiga, e assim entender que não é possível esperar das pessoas ao meu redor aquilo que eu preciso oferecer. É como se eu quisesse estudar e compreender mais profundamente a alma humana e esperasse que todos estivessem na mesma jornada, dando os mesmos passos. É preciso que eu amadureça, é preciso que eu cresça. 

"A filosofia não é para as almas toscas, mal arranjadas, provisórias e meio submergidas no “inconsciente”. A filosofia pressupõe a maturidade, num sentido muito mais exigente do que a mera adaptação ao entorno imediato que esse termo usualmente designa. A filosofia responde a perguntas que só o indivíduo amadurecido pode fazer a si mesmo e, nesse sentido, ela, radicalmente, não é coisa para crianças, seja no sentido etário do termo, seja no sentido daquele resíduo de puerilismo que parece irremovível da alma da quase totalidade dos nossos contemporâneos." (Olavo de Carvalho)

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Mais uma vez

Non c’è asilo per noi, padre, nel mondo!" (Giaccomo Puccini, Turandot - Act I)

Não quero deixar que lancem sobre mim mais responsabilidades do que posso aguentar. Precisando aprender a dizer "não", a me preservar um pouco que seja. Calma, controle e calma. Uma coisa de cada vez, um dia de cada vez. Sem repetir a loucura que foi essa quaresma, sem repetir o que fizeram comigo, deixando que tudo fosse lançado em cima de mim. Eu preciso aprender a me posicionar, a me preservar. Preciso aprender a dosar o quanto me dou, ou então não sobrará mais nada a se doar. É difícil, afinal tem uma vida inteira que me habituei a agir assim. Por isso a minha insistência em ir pra outra cidade visitar aquele amigo, por isso minha insistência em não abandonar as minhas séries e assistir mesmo quando estou extremamente cansado. Por isso minha insistência em permanecer eu mesmo, já que não posso deixar de ser, como gostaria, já que não é possível voltar ao nada. 

Queria conseguir falar mais alguma coisa, mas eu percebo que nesse momento nada ocupa mais a minha mente do que a imagem dele. Nem mesmo o acólito ocupa minha atenção dessa forma, mesmo com seu sorriso doce, não, nada mais ocupa a minha mente, é como se a luz que irradia dele brilhasse mais que o sol ao meio-dia. É por isso talvez que, mesmo com todos ao meu redor insistindo no mesmo ritmo frenético, eu tenho estado até mesmo irritado com isso, porque ao falarem comigo eles me roubam a imagem dele na minha mente, e isso é imperdoável. 

X

Será que seria possível? Mesmo abstraindo todas as situações que tornariam inviável, aquele olhar do jovem visitante, que me fitava com olhos brilhantes, de um verde escuro e profundo mas vívido, alegre, como quem descobriu um tesouro inestimável. Dedilhou de um jeito tímido as notas da ode to joy, mas ficou feliz de poder tocar um piano de verdade, como tantas vezes imaginou nas aulas. Não lembrava de todas as notas, os braços tremiam, e tremiam as mãos quando veio me cumprimentar, sem saber o que dizer. Poderia ser aquela admiração muda um sentimento nascendo no pequeno coração daquele desconhecido por um outro desconhecido que ele dificilmente tornará a ver? Será que os sentimentos podem surgir assim, tão repentinamente que fariam brilhar os olhos como a uma criança que vê um brinquedo novo e encantador como se fosse o melhor de todos os tesouros? Será que daria poderia nascer um amor?

X

Não há problema em me preocupar não é mesmo? Ou em não me contar nada. Está tudo bem, eu sou sempre aquele que releva, que deixa passar tudo, mesmo quando me machuca. Eu sou sempre o idiota que se magoa pra tentar ajudar os outros, principalmente quem eu amo, e o que sempre recebo em troca? Silêncio, é sempre assim. Eu realmente não sou nada para ninguém. 

Criatura desprezível! Não sou nada! Meu amor é nada! Não importa o quanto tente, o quanto me esforce, o quanto me dedique, o quanto me doe, nada importa. Eu olho ao meu redor e continuo sozinho. Sim, sozinho, isso mesmo, porque todos fazem questão de mostrar que não caminho aos seus lados, tamanho desprezo sentem pela minha presença e minha figura. Já não sou mais homem? Me tornei tão horrendo que a minha presença se tornou motivo de nojo aos outros? É o que parece. As palavras de carinho que me tenho são vazias de significado: é na noite, onde minh'alma busca aquele por quem clama, que percebo que, em verdade, estou sozinho, e tudo que tenho em resposta é o silêncio. Brutal, ensurdecedor e, acima de tudo, 

indiferente. 

É isso que é estar sozinho. 

Sozinho. 

Sozinho!

Entende a força dessa palavra? Mas a quem pergunto isto se estou cá eu mais uma vez, como sempre estive, sozinho?

X

"O que sou eu nos olhos da maioria – uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável – alguém que não tem uma situação na sociedade e que não terá; enfim, um pouco menos que nada." (Vincent van Gogh)

terça-feira, 2 de abril de 2024

Dormindo um pouco

Como é bom poder descansar! Ah, finalmente eu pude me deitar sem me preocupar com o que fazer no dia seguinte, então pude deixar o efeito dos remédios pouco a pouco irem tomando conta de mim. Foi simplesmente maravilhoso e há muitas semanas esperava por isso!

Fiquei o dia todo deitado, dormindo a maior parte do tempo mas, no restante, ouvindo música baixinho, aproveitando o tempo ameno do outono e o silêncio de me manter afastado das redes sociais.

E é claro que poder passar um tempo assim me permitiu também reorganizar alguns pensamentos, como perceber que, em meio aquela loucura das últimas semanas, com o caos do trabalho e as preparações para a semana santa, eu ainda pensava nele, tolamente. E então, deitado sozinho, tive uma vez mais como que uma espécie de revelação, de que o amor não é para mim, e então eu amadiçoei esse sentimento, tão básico, tão falado por todos, tão procurado, tão explorado, mas que não é para mim. 

Até algumas pessoas dizem me amar, mas não é verdade, elas podem admirar algumas coisas em mim, podem admirar o fato de eu responder algumas perguntas ou de as apoiar, mas não me amam, sempre colocam um muro entre elas e eu. Podem me tocar a mão ou me sorrir gentilmente, mas é tão e apenas isso. E até aqueles que conseguem se entregar a estranhos conseguem algum tipo de conexão, enquanto eu contiuo sozinho. Descansando, sim é verdade, mas sozinho. 

Por isso escrevo essas palavras brevemente, registrando um pouco do que sinto, e torno a dormir, aproveitando enquanto posso brevemente descansar. 

Como eu esperava, eles não notaram, nem minha presença e nem minha ausência. O toque breve de nossas mãos, em que senti a delicadeza inesperada daquela pele fria, foi esquecido rapidamente, não foi mais do que isso, como duas pétalas que se tocam ao voarem por aí, levadas sem rumo pelo vento forte. E quanto a ele, bem, nem sequer deu conta de minha presença, tamanho volume de informações na sua mente, não havia ali espaço para mim, para meu amor. 

Nunca há espaço para mim.

E esse já é o terceiro dia em que me encho de remédio para dormir o dia inteiro, e hoje à noite ainda tenho uma reunião, provavelmente sobre alguém que reclamou algo de mim para o padre, é sempre assim. Não estou preocupado, aliás, se me pedissem para sair imediatamente eu faria com alegria. Eu não dou à mínima. 

Poucos minutos depois de o salário ter caído na conta o dinheiro já havia ido todo embora, e é sempre assim, mas a quantidade de trabalho não diminui, pelo contrário, aumenta cada dia mais. De que adianta todo esse trabalho, todo esse esforço se, no fim, não há nenhuma recompensa além de mais trabalho? A vida é esse lixo e ainda querem que a gente fique feliz com elogios sobre nosso esforço e toda essa porcaria. 

É por isso que eu durmo sempre que posso, pelo menos essa é uma recompensa quase gratuita, e quase porque eu ainda preciso trabalhar para ter dias de folga. Do que adianta todo esforço se, no fim de semana, não vou conseguir nem mesmo ir a festa daquele amigo ou comer algo diferente? E querem que a gente fique feliz por essa miséria.

Em casa é a mesma porcaria. Continuam brigando e se enfurecendo por causa daquela criatura espúria. Eu já finjo que não tenho nada com isso, querem continuar na sua cegueira do encarar a verdade que deixá-la ir. Não entendem que isso seria o melhor para todos. E isso me irrita profundamente porque ficamos vivendo tentando equilibrar situações que não são mais sustentáveis. 

Não há amor. 

Não há dinheiro. 

Não há harmonia. 

O que há de errado com todos? 

Queria poder simplesmente sair e me mudar, morar sozinho e não precisar me preocupar com isso, me isentar dessa convicência horrenda. Mas, como dito acima, isso é impensável, eu preciso me controlar para conseguir comprar o que comer durante o mês, mesmo trabalhando tanto, como pensar em morar só? Preciso aguentar essa situação. 

Preciso aguentar essa situação? Não poderia simplesmente dar fim a isso de algum modo? Por qual motivo eles não percebem que nossas vidas seriam mais fáceis se simplesmente desistissem deles? Já desistiram de mim, que diferença faria?

Minha reunião foi cancelada, mas ironicamente descobri que alguém reclamou porque não faço reuniões o suficiente. As pessoas daqui estão afogadas na própria burocracia, tudo precisa ser aprovado, assinado, carimbado em três vias reconhecidas em cartório, tudo é muito complicado. São todos uns idiotas, em intermináveis reuniões sobre o que falaremos nas próximas reuniões. 

Então amanhã eu preciso voltar ao trabalho, inferno, e já não tenho mais dinheiro nenhum, e hoje ainda é o segundo dia do mês. Acho que eu ganho mais se eu voltar a dormir. 

X

"Nunca me senti só. Durante um tempo fiquei numa casa, deprimido, com vontade de me suicidar, mas nunca pensei que uma pessoa podia entrar na casa e curar-me. Nem várias pessoas. A solidão não é coisa que me incomoda porque sempre tive esse terrível desejo de estar só. Sinto solidão quando estou numa festa ou num estádio cheio de gente. Cito uma frase de Ibsen: ‘Os homens mais fortes são os mais solitários’. Viu como pensa a maioria: ‘Pessoal, é noite de sexta, o que vamos fazer? Ficar aqui sentados?’. Eu respondo sim porque não tem nada lá fora. É estupidez. Gente estúpida misturada com gente estúpida. Que se estupidifiquem eles, entre eles. Nunca tive a ansiedade de cair na noite. Me escondia nos bares porque não queria me ocultar em fábricas. Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.” (Charles Bukowski) 

domingo, 31 de março de 2024

Minha breve experiência pascal

Foi uma das quaresmas mais difíceis que já vivi, passei por humilhações extremas e nem sei quantas vezes pedi que desaparecesse, simples assim, sumindo no ar, já que não podia simplesmente desistir, coisa que meu senso de responsabilidade não me permite fazer. E então eu fui, e continuei, e lutei, e insisti, até que não sobrasse mais nem mesmo tempo ou vontade de viver algo mais...

Não nos vemos há várias semanas, cruzamos rápidamente uma ou duas vezes e ele nem sequer notou minha presença mas, hoje, enquanto cantava, eu olhava diretamente pra ele, e era como se aquelas 300 pessoas não estivessem lá, eu só queria que a minha voz o alcançasse, e por isso cantei com todo o restante de força que ainda tinha. Vou dormir, a primeira vez que deito sem me preocupar se conseguiria ou não formar um coral com pessoas que nem mesmo se conheciam e que não queriam cantar juntas umas com as outras... 

Vou dormir, liberto, sonhando que talvez minha voz o tenha alcançado...

... Mas sem esperar mais do que nossa habitual distância.

E qual foia  minha surpresa quando ele se aproximou de mim para me fazer uma pergunta pela segunda vez, e ainda uma terceira, e o sorriso tímido mas genuíno com um sinal discreto entre servidores de altar que eu lançei a ele. Ao ite Missa est, Aleluia, aleluia, eu delicadamente toquei a mão dele, que repousou sobre a minha, fresca, delicada, não parecendo alguém que joga vôlei todas as noites.

O salmista canta que sua "alma tem sede de Deus, e deseja o Deus vivo" no salmo 41 (42)  e mais à frente ele afirma "subirei aos altares do Senhor, Deus da minha alegria." Numa parafráse eu trago essas palavras ao meu coração ferido de amor: a minha alma tem sede daquela presença, subindo ao lado dele eu teria a minha alegria. Essa é minha salmódia, tantas vezes tornada em Lamentações. "Ferida de amor não se cura, senão com a presença e a figura" diz São João da Cruz.

Esses dias foram, é claro, cheio de impressões que eu não podia registrar naqueles momentos. Como ao ouvir as preces pelos batizados na Vigília Pascal. Em nossa comunidade não tivemos batizados, mas nas comunidades vizinhas sim, e minha amiga mandou foto do seu afilhado de quize anos que recebeu o santo Batismo na Noite Santa, e eu me alegrei por ele e ela pois agora somos todos membros do mesmo corpo de Cristo. 

E numa conversa com minha queria amiga Patrícia falávamos sobre como nos portamos, em como nos doamos tanto a ponto de não sobrar mais a nós, e que a virtude da temperança aqui é fundamental para que, ajudando aos outros, eu cosiga manter-me firme nos meus propósitos sem me exaurir. Ela me fez perceber, uma vez mais, o quanto me dei e com isso atrai quem apenas queria me sugar, de modo que , aprendendo o equilíbrio eu devo conseguir encontrar a alegria do dar e do receber. 

E que tem a ver todos esses assuntos? Bom, tudo está interligado. Seja o meu amor, ao cantar olhando para ele que, no fundo da igreja não deve ter me visto, ainda mais com as luzes apagadas. Mas a luz do círio em meio às trevas nos lembra que há esperança, e cantei ao lado daquela luz, silenciosamente em meu coração repetindo a prece do Precônio "O círio que acendeu as nossas velas, possa essa noite inteira fulgurar. Misture sua luz à das estrelas, cintile quando o dia despontar." É uma luz que ilumina as trevas durante a Noite Escura, durante aqueles momentos de maior desesperança, mas que não se limita a isso, ela se une a luz das estrelas, enfinitamente maiores em números, e brilha com vigor quando passa o período de árduo deserto. 

Também a luz do círio não perde ao dividir o seu fulgor, quanto mais velas ele acendia, mais brilhava vivamente, e mais iluminava ao redor, O que me traz de volta ao equilíbrio de doar a minha luz sem perder com isso meu fulgor. E então, quem sabe, animado eu pois pela ressurreição do Cristo, possa vislumbrar mais uma centelha de esperança, simbolizada pelo fato de que não sei se toquei seu coração com minha voz, mas no dia seguinte recebi o toque gentil de nossas mãos...