Preciso ser breve ao registrar isso, pois logo serão três da manhã e eu infelizmente marquei um compromisso e seria chato desmarcar, mas também não posso deixar de falar sobre isso.
Sobre aquele rapaz misterioso que surgiu na minha casa depois da Missa e da procissão do Santíssimo Corpo de Cristo. Ele estava escondido naquela multidão?
Não precisei de mais do que um brevíssimo olhar para notar que tudo nele era perfeito. Guardava em si perfeitas proporções. O formato do rosto, masculino, firme. O cabelo, as mãos, ombros largos e corpo forte, e outras partes que notei, mas que não seria de bom-tom comentar, já que as notei porque ele usava um moletom fino.
Ele voltou outras vezes, e eu sempre o olhava com uma cara de quem era indigno de sequer olhar tal beleza. Por isso sempre desviava logo o olhar, de certo nunca o encarei por mais de cinco segundos. Mesmo ele voltando de novo e de novo, e sendo simpático ao brincar com o bebê, eu nem mesmo me atrevi a perguntar seu nome.
Continua sendo apenas um rapaz misterioso. Um boto cor-de-rosa, um deus disfarçado de homem em visita aos mortais.
Não digo isso como quem está apaixonado. Não me atreveria a isso nem se ele fosse solteiro, nem em meus maiores devaneios. Não. Ele namora uma bela moça, preciso reconhecer, e por isso ela deve tê-lo conquistado. Mas, quando olho para ele e, depois, para mim, não consigo sequer cogitar o fato de sermos da mesma espécie. Será que ele não é um homem, e sim de fato um deus ou um anjo, ou eu é que não sou um homem, mas um monstro? O que é essa linha invisível e, ao mesmo tempo, tão clara que nos separa?
Na verdade, não só dele, mas de todos os outros. Sinto isso até mesmo ao ver o meu reflexo confuso numa porta. Eu encaro os meus colegas trocando de roupa sem preocupação, com seus tanquinhos, corpos perfeitos, as meninas do outro lado, mas todas elas já devem tê-los vistos de modo íntimo ou, se ainda não viram, vão fazê-lo logo em breve. E eu, no meio do caminho, não estou com elas. Não verei nenhum deles na minha cama. Longe deles, não tiro a roupa e nem me atrevo a olhar, seria como olhar diretamente a luz brilhantíssima do sol, ficaria cego ou cairia por voar daquelas alturas.
Por isso já não voo mais. Nem mesmo olho para o céu.
Não quero mais ser como uma cobra que rasteja pelo chão invejando a água que voa no alto céu, sabendo que nunca poderá ser como ela. Minha relação com essa perfeição, ou com essa beleza que transcende e muito a minha, ela é ambígua. Envolve desejo, é verdade, mas também envolve inveja, e tristeza, e um gosto amargo na boca.
É o rapaz misterioso, deus desconhecido de beleza descomunal, e até homens que me rodeiam, cuja beleza me afetam. Não vou aqui cair na mentira de que "cada um deve aceitar seu corpo e que se você está contente com ele assim, que seja." Bem, é verdade, que seja, mas isso não transforma um corpo feio como o meu. Mudar a forma como se chama algo não muda a essência dessa coisa. Continuo sendo criatura disforme, sem nome, caminhando entre deuses e homens, talvez monstro mesmo. Nada mais complicado e simples que isso.
No entanto, como não há nada que eu possa fazer, senão apenas paliativos cansativos demais, eu posso apenas me lamentar, numa esperança demente de que essa vida termine logo. Enquanto isso tomo um café, recordando as palavras:
"Não condenes ninguém a morte antes de tomares o teu café." (Leonard Cohen)
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