segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A Montanha da Verdade I

Transcrição da aula 442 do Seminário de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho, com adaptações e comentários meus (em itálico).

As pessoas, em geral, não conseguem suportar situações que lhes pese a consciência por muito tempo. Ou se acostumam com ela ou lutam contra veementemente, não raras vezes, desenvolvendo neuroses no caminho. Não é difícil notar o ambiente opressivo em que vivemos, das mais diversas formas: a cada esquina alguém aparece com uma fórmula para salvar o mundo. Vivi isso muito recentemente quando, ao ir ao médico e ele apontar algumas deficiências no meu exame de sangue, as recomendações que recebi prontamente foram inúmeras: alguns disseram que eu deveria mudar minha dieta imediatamente e fazer exercício, outros disseram que o tratamento do médico, a reposição pontual daquilo que necessitava, era apenas um paliativo, e que eu devia buscar na medicina chinesa a alternativa natural para tratar todo meu ser. Comecei a tomar várias cápsulas de remédios naturais, na promessa de, equilibrar o organismo. Depois de algum tempo outra pessoa disse que isso não era natural o suficiente e que eu deveria preparar eu mesmo cada dose do que tomaria. E aí eu desisti ou, em pouco tempo, estaria numa fazendo cultuvando meu próprio alimento sem agrotóxicos e, ainda assim, com deficiência de vitaminas.

Bem, essa introdução é, na realidade, uma anotação. Meus estudos sempre foram baseados na minha memória, mas, recentemente, tenho visto um declínio da mesma, e como esse tema me é caro, quis condensar aqui alguns ensinamentos do Prof. Olavo, de modo que, uma vez registrados, possa voltar a eles mais tarde. Com exceção do próprio Professor, nunca ouvi ninguém falar sobre o Monte Veritá. 

Como introdução a esse tema ele indica no livro do Hermann Hesse, "Pequeno Mundo", em que há um conto chamando O Reformador do Mundo, contendo um resumo bastante esquemático da experiência que o próprio autor teve nesse lugar e que, de certo modo, revela também a experiência que muitos tiveram, revelando muito sobre o espírito da época. Não sendo um dos grandes escritos dele, é esquemático demais, dando a impressão de que ele anotou o assunto para retomar depois, servindo como documentação para esse estudo. 

O conto diz respeito de um jovem que se forma na faculdade de Belas Artes com o desejo de se tornar um crítico de arte, e acaba se decepcionando com a vulgaridade do meio que encontrou, sendo que ele desejava ter contato com a alta expressão de valores autênticos. Ao mesmo tempo então em que ele conhece uma moça muito culta e séria com quem tem longas conversas e por quem acaba se apaixonando, ele também toma conhecimento de uma série de comunidades que propõe um novo estilo de vida, estilo esse que se caracteriza pelo vegetarianismo, pela liberdade sexual, por alguns pendores anarquistas e socialistas, tudo junto, e que se distinguem do resto da sociedade por meio de sua indumentária: usam túnicas no estilo romano, sandálias feitas eles mesmos e que tentam voltar a uma espécie de simplicidade natural, ou que lhes parecia natural. 

Essa busca do retorno à natureza é uma coisa que sempre reaparece, como observou muito bem o historiador Martin Green, que todo fim de século retorna esse tema da volta à natureza. Então em 1790, 1890, em 1990 de novo. Por outro lado, a próprio preocupação com o espírito da época é um sinal do espírito da época, porque nós não temos sinal de nenhuma outra época, anterior ao século XVIII, que se preocupasse com o seu próprio espírito: qual é o sentido desta época, para onde nós estamos indo? E, sobretudo, esse hábito de falar em nome da humanidade, usando o, a primeira pessoa do plural: "Nós estamos indo. Nós estamos experimentando isto." "Nós" quer dizer, vagamente, a humanidade inteira, mas não temos o menor sinal de que as pessoas que falam dessa maneira, tenham pesquisado a opinião pública para saber se todos nós pensamos assim. Então, fica no ar a famosa pergunta: "a gente quem, cara pálida?" Uma coisa pode ser boa para você mas o outro pode estar sentindo outra completamente diferente. Portanto esse estilo de avaliar a nossa situação como o espírito da época se torna ele próprio um sinal da época. E isso se repete de tempos em tempos e tem se tornado uma constante cada vez mais intensa. O número de pessoas que falam a respeito do nosso destino, das nossas vidas é cada vez maior.


Curiosamente o Monte Veritá foi uma experiência que condensou praticamente todos os movimentos revolucionários, reformistas de tipo Nova Era do século XX. Apesar de tudo, ele nunca foi objeto de estudo como deveria. Claro que há alguns historiadores se dedicam  a isso mas são poucos. Na maior parte dos casos, costumam olhar isso mais como um treco exótico: como se fossem um bando de malucos. Mas, se você observar as prospostas desse bando de malucos, elas se repetem ao longo do tempo. E até hoje, essas mudanças propostas por eles, continuam recebendo um investimento cada vez maior de poder e de dinheiro por parte de grandes fortunas. Então, parece que os malucos não são tão malucos assim não é? Alguém decidiu levá-los a sério ao menos na sua natureza prática, mas não no aspecto do estudo. Então aquilo que os historiadores desprezam, os grandes donos do poder tipo George Soros, Bill Gates, Bilderberg estão levando muito a sério e investindo muita coisa ali. 

Então, o Monte Verità, a Montanha da Verdade, foi uma comunidade naturista, vegana ocultista, artística, erótico, nudista, revolucionária, fundada em 1900 no topo de uma colina de 300 metros de altura, na modesta Vila de Ascona, Condado de Ticino, Suíça, por Henry Oedenkoven, filho de um industrial Holandês, e sua amante Ida Hofmann. 

Quem primeiro falou ao Professor dessa comunidade foi a célebre astróloga germano-brasileira Emma de Mascheville. Mascheville é o nome francê que ela pegou do marido, originalmente era Emma Brepohl e que, como sobrinha de Ida Hofmann passou ali parte da sua infância, abrilhantada pela convivência com artistas e pensadores, gênios e malucos de toda a sorte, entre os quais, Carl Gustav Jung, Hermann Hesse, Isadora Duncan, o príncipe anarquista Kropotkin, Rudolph Steiner, Max Weber, Rudolf Laban, Gustav Stresemann, que viria a ser o chanceler da Alemanha por 102 dias durante a malfadada República de Weimar, Prêmio Nobel da Paz 1926. E o igualmente malfadado psiquiatra e psicopata, Otto Gross. Otto Gross foi visto durante algum tempo por Freud como o seu sucessor na liderança do movimento psicanalítico, mas depois acabou se metendo em encrencas cada vez mais complicadas, estragando a sua reputação. 

Embora o fenômeno fosse intensamente atraente pelo peso histórico dos personagens envolvidos, poucos se deram conta que ali se concentravam pela primeira vez numa mixórdia esplêndida os germes dos principais estilos artísticos e literários, modas culturais e correntes políticas que viriam marcar a história do ocidente no século XX e continuam a marcar até hoje. Foi como se todas as angústias, todas as insatisfações, todas as correntes da rebelião política, estética, religiosa e sexual, se avolumavam em segredo por baixo da ordem aparente da Europa industrializada e racionalizada, tivessem atraído como por afinidade mágica, se concentrado em um só ponto do globo para dali se espalhar por todos os continentes. Os ventos de mudança que ali convergiam sopravam em todas as direções. Malgrado suas incongruências e incompatibilidades internas, o programa ostentava, em unidade, as suas pretensões como nada menos que a reforma da vida, não se trata de uma reforma política ou de um regime, mas a reforma da vida!

Os moradores da comunidade, e visitantes, já que nem todos moraram mas ali passaram algum tempo,  enxergavam na sua montanha uma das pontas do eixo do mundo, Axis Mundi, o lugar certo para começar uma nova humanidade (ou um novo inferno). O significado profundo desse movimento e a vastidão profunda das consequências que simbolicamente anunciava, não se deixam apreender sem um recuo de muitos séculos: a história do Monte Veritá começa em verdade no tempo das catedrais. 

O Monte Veritá aparece em dois lugares ao mesmo tempo. Por um lado Munique, no sul da Alemanha e capital da Bavária, num movimento intelectual e artistisco muito intenso e foi dali que surgiu a ideia do Monte Verità. Então, pessoas que falavam bonito, trocavam experiências e acabavam indo para o Monte Verità ou comunidades semelhantes, pois houve outras também ali ao redor. Uma delas fundada pelo próprio Bakunin, o líder anarquista. Mas não eram uma comunidade como essa que houve no Brasil, Colônia Cecília, que era formalmente anarquista. Ali era anarquista do sentido muito mais amplo do que o anarquismo político. Era um anarquismo político, religioso, sexual, ético...  

Recuando historicamente, é possível entender como foi possível dentro da evolução histórica europeia, chegar a esta, esta situação. 

Percorrendo as gravuras do livro maravilhoso em que o arquiteto Louis Charbonneau-Lassay colecionou as imagens de animais que, nos templos católicos da Idade Média, representavam a figura do Cristo, temos um vislumbre de uma época para a qual a sentença "os céus e a Terra celebram a glória de Deus", ainda tinha um sentido concreto e presente. Além do bestiário, Charbonneau-Lassay pretendida ainda compor um florilégio e um lapidário, não só os bichos, mas também as flores e as pedras eram a manifestação visível da presença divina.  Essa concepção não era só estética, mas científica, como se vê nas obras de Santo Alberto Magno, por exemplo. 

Só o espírito mesquinho das épocas subsequentes podem ter enxergado na alquimia um antepassado grosseiro da Química moderna, como expediente de falsários empenhados em fabricar ouro. Ela era claro, na verdade, uma ousada tentativa de sondar a ação do espírito na matéria por meio de uma rede intrincada de forças intermediárias, entre as quais, obviamente, as influências dos astros. Santo Tomás de Aquino, seguindo o seu mestre Alberto Magno, afirma resolutamente que Deus move todos os corpos inferiores por meio dos superiores, os quais, agindo sobre o corpo humano, podem conquistar as operações da inteligência e despertar paixões capazes de alterar significativamente a sua conduta. 

Considero um ato de  subserviência intelectual à modernidade a tentativa de C.S. Lewis de revalorizar a estetica e a simbólica medieval, sem nem por um instante admitir que houvesse nela algo mais que uma beleza desprovida de verdade, como está no livro "The Discarded Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature". Não há dúvidas de que, quando ele chamou René Guenon de charlatão, houvesse uma ponta de respeito pela compreensão superior que o escritor francês tinha do simbolismo. René Guenon foi um agente do imperialismo islâmico mas nunca um charlatão. 

O advento do cristianismo não aboliu a antiga visão pagã de um universo cheio de deuses, como chamava Heráclito, apenas reorganizou a sua realidade caótica de forças sutis da natureza num todo sinfônico, em que se ouvia por toda parte sobre formas infinitamente variáveis a mensagem de Deus. Nesse mundo repleto de vozes, o homem da Europa Cristã não se sente apenas ligado ao ambiente material numa rede significados, mas também por um elo vital a todos os outros membros da espécie humana. Johan Huizinga, no clássico "Outono da Idade Média", relata que, nas cidades da Europa medieval, os menores acontecimentos, como uma viagem ou o nascimento de um bebê, davam ocasião a grandes explosões de emoção coletiva. A execução de um delinquente, o carrasco abraçado ao condenado pedia-lhe perdão entre os olhos da multidão que chorava copiosamente. O pecado não era considerado uma anormalidade, mas o destino comum da espécie humana e não convidava ao desprezo, mas a piedade. Era frequente que os pecadores contumazes terminassem sua vida no mosteiro, buscando a redenção pela prece. Separadas pela estratificação social, raças e classes, reunidas pela emoção religiosa, pela submissão aos sacramentos, por atos públicos de subsistência e nas Cruzadas pela solidariedade guerreira entre nobres e plebeus. 

Vários fatores contribuíram para quebrar a unidade do Imaginário Cristão e aprisionaram os homens no mundo banalizado e opressivo no qual algumas almas insatisfeitas viriam buscar refúgio no Monte Veritá. O mais decisivo desses fatores veio, é claro, da ciência.

No seu livro "Il Saggiatore" de 1623, Galileu Galilei introduz uma distinção entre as qualidades primárias e secundárias dos corpos. Aquelas, a  grandeza, proporções, o peso, o movimento, a posição, existiam nos corpos em si mesmos, e ainda tinham a vantagem de poderem ser representadas matematicamente. As segundas, como a cor, o gosto, o som, o cheiro, dependiam do observador humano e eram, portanto, subjetivas. Galileu chega a afirmar que objetivamente elas nem existem, são "produtos da nossa imaginação". A distinção, sem maiores discussões, foi aceita por Descartes, Hume, Berkley e Locke, incorporando-se ao vocabulário da filosofia natural e depois ao senso comum, no sentido gramsciano da humanidade ocidental. As consequências foram portentosas: de um só lance o universo inteiro dos objetos sensíveis tornava-se duvidoso. Só restando de certo e confiáveis as suas propriedades matemáticas. Era o mesmo que dizer a humanidade inteira, o conjunto dos homens naturais viviam num mundo ilusório. Só os cientistas com sólida formação matemática é que estavam firmemente instalados no real. 

Com essa bifurcação, como chamou o professor Wolfgang Smith, Galileu abolia a concepção aristotélica segundo a qual todos os corpos são compostos de matéria e forma e se distinguem uns dos outros pela forma, significativamente. A forma não entra na lista galilaica, nem das qualidades primárias, nem das secundárias. Ambos os tipos de qualidades são sensíveis, mas o sentido se desprovido do auxílio matemático, já não são testemunhas confiáveis da realidade dos objetos. 

Essa bifurcação inaugurou a era do fenomenismo, em que a humanidade vive perdida entre meras aparências, sem poder apreender a verdadeira realidade, quer ela seja constituída de arquétipos matemáticos, quer seja admitida, como será com Kant, um mistério inacessível. Malgrado a sua utilidade prática para as ciências físicas e malgrado o prestígio quase sagrado de que ainda desfruta na imaginação popular, a distinção era de uma grosseria incomparável. A forma, no sentido aristotélico, não é só o formato visível dos objetos, mas a sua formula, o seu algoritmo, a sua lei de proporcionalidade intrínseca, como chamava Mario Ferreira dos Santos, a qual faz com que eles sejam o que são e não outra coisa. 

Se entendermos isso é lógico e inevitável que cada objeto possua junto das suas qualidades primárias, uma capacidade determinada para emitir sinais que, captados diferentemente por observadores distintos, conforme as respectivas estruturas do deu aparato de percepção, nem por isso deixa de refletir na variedade mesma das impressões que produzem a unidade interna do objeto emissor. Mesmo que um objeto possa emitir diferenres sinaus para diferentes receptores conforme a estrutra de percepção de cada um deles, nem por isso deixa de haver uma unidade na fonte emissora. Por exemplo: a azaleia parece vermelha, porque o nosso aparato de percepção capta assim os raios luminosos que batem em cima dela nos emitem então o sinal, mas um outro bicho pode enxergar uma coisa diferente, um mosquito, por exemplo, não acha que a azeleia seja vermelha, mas alguma outra coisa. Mas de onde estão vindo esses sinais para mim e para o mosquito? Da mesma azaléia. Galileu então confunde a multiplicidade dos sinais emitidos para diferentes observadores e receptores com objetivismo e subjetivismo. E não tem absolutamente nada que ver uma coisa com a outra. Muitos desses sinais e a sua variação, conforme o meio luminoso, espacial e acústico, são hoje mensuráveis e matematizáveis, provando que aquelo Galileu considerava como subjetivo, era perfeitamente real e objetivo. 

O erro da concepção galilaica é quase nada comparado a vastidão das suas consequências culturais. Edmund Hurssel assinalou que a troca dos objetos da percepção real pelo seus esquemas matemáticos levou a inumeráveis becos sem saída na filosofia e na ciência, mais seu efeito principal e imediato é bloquear o acesso à simbologia Cristã. Se os objetos percebidos são os dados quantitativos reais, o resto só poderia ser simbólico na imaginação de poetas e malucos. O imenso sistema da cosmologia medievial reduzia-se até assim a um mero dicionário de figuras de linguagem. Ou seja, esta simbólica toda não estava na natureza, estava na imaginação das pessoas que olhavam a natureza e concebiam-nas. Em vez então de um simbolismo natural, nós temos um produto cultural. 

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