Martha Argerich e Verbier Festival Orchestra
Regência de Charles Dutoit
"Eu só sei lamentar pela música.” (Frédéric Chopin)
Concerto para Piano e Orquestra N° 1, Op. 23 em Bb menor de Tchaikovsky
Antes que qualquer nota seja tocada, já sentimos a aproximação de algo imenso, como o vento que antecede a neve ou o silêncio que pressagia uma revelação. Esse concerto é assim: não se apresenta, invade. Ele chega com a força de uma paisagem inteira, daquelas que se abrem até onde os olhos podem ver, comprimida em som, com o peso de uma alma que busca desesperadamente transformar dor em grandeza.
Quando Martha Argerich se senta ao piano, parece que ela não interpreta: ela convoca. É como se as mãos dela abrissem uma fenda por onde o próprio Tchaikovsky voltasse a respirar. O piano vira um corpo vivo, um animal inquieto, uma memória acesa. E tudo isso me atinge antes mesmo de pensar. Há uma espécie de verdade emocional súbita, quase brutal — a verdade que só Tchaikovsky ousou escrever e que Argerich, incendiada, ousa revelar.
É neste limiar, entre o que antecede a música e o que a música desperta, que começo minhas próprias impressões. Não como quem explica, mas como quem testemunha. Porque certos concertos não se escutam: nos atravessa atravessam. E cada vez que retornam, abrem no peito uma clareira onde luz e sombra lutam, uma paisagem onde a alma tenta, por um instante, acompanhar o fogo do piano.
I. Allegro non troppo e molto maestoso - Allegro con spirito
O início é como uma montanha abrindo o peito para cantar, vasto, desmedido, quase sobre-humano. A abertura orquestral, sem o piano, cria uma arquitetura sonora monumental que o piano depois quebra e ilumina. Sempre gostei dos contrastes da música de Tchaikovsky: uma mente claramente cheia de questões demais para expressar em palavras, e até suas músicas não são composições conclusivas: antes disso, demonstram os muitos medos, os anseios e alegrias, enfim, os vários aspectos da alma desse homem.
O tema surge como um início majestoso, um concerto de piano numa das salas mais luxuosas do mundo, mas o piano de Argerich o transforma em fogo instantâneo. A força dessa mulher em cada nota, mesmo em idade avançada, é como a experiência dissesse, por seus dedos: "vejam bem, é isso que queria nos dizer o velho Tchaikovsky, apaixonado, confuso, lutando contra si e contra o mundo. Não é uma dor que uma criança possa compreender."
O diálogo entre piano e orquestra parece um duelo entre tempestade e chama. Há algo de heroico e, ao mesmo tempo, quebrado, como se o próprio Tchaikovsky lutasse para respirar dentro das harmonias. Ele faz muito isso, seja nesse concerto, nos balés, nas sinfonias... Vejo muito de mim em Tchaikovsky, ou melhor, de Tchaikovsky em mim: um coração que pulsa, apaixonado e, por isso mesmo, perturbado pelos fantasmas que acabou encontrando pelo caminho.
Ele se perde nas pradarias e estepes, observa aquelas paragens longínquas, vê como a luz do sol brilha ou como a neve cobre tudo, e seus pensamentos correm livres por ali, e por isso mesmo são assustadores: não estão mais contidos dentro da caixa de seu peito, correm sem nenhum controle, e podem devorar qualquer um que ouse se aproximar. E então ele acorda de seu breve devaneio: a paisagem continua vazia, nada de feras, e ele coloca mão sobre o peito.
II. Andantino semplice - Prestíssimo
Uma luz suave entra pela janela após um dia de neve: tudo quieto, mas misteriosamente vivo. A entrada suave da flauta e das cordas me fazem pensar que, ao observar a paisagem, ele é tomado uma súbita melancolia que o assola. Ele continua contemplando aquele espaço aberto, imenso, que parece se estender infinitamente, mas já não olha para ele.
O piano caminha com ternura e fraqueza, como quem toca memórias que doem, mas não querem ir embora. Memórias de uma infância distante, que se perde naquele horizonte amarelado, e os segredos da infância permanecem vivos naquele peito. Esse movimento tem essa fragilidade da infância, mas com esse peso do adulto que sabe que não pode voltar.
Argerich faz o tema parecer um sussurro contado ao pé da lareira, enquanto a orquestra responde com um suspiro. Num legato, ele como que costura as linhas da flauta: ambos respiram como um só. Seria bem mais fácil não é, se pudessem apenas respirar juntos assim, caminhando sem rumo, sem precisar trocar palavras, apenas observando o mundo ao redor.
Mas não é, e o mundo cobra, as pessoas cobram, e ele não pode ser um home feliz, precisa se esconder por detrás de pesadas cortinhas, das intermináveis linhas das partituras que ninguém parece entender. Todos acham lindas, mas não entendem de verdade.
Martha mostra a força da sua experiência ao unir-se com a orquestra. Ela olha rapidamente para os outros músicos, bem mais novos, e entende imediatamente o que precisa ser feito para acompanhar. Não dita sozinha ao piano, mas, como amigos que caminham juntos, ela ajusta o passo para que ninguém acelere ou fique para trás. A agilidade daquelas mãos guardam décadas desses interiores complicados que, com leveza e destreza, ela traz de volta à vida para que as pessoas conheçam, e entendam, um pouco do coração atormentado.
III. Allegro con fuoco
Aqui o piano vira um animal selvagem correndo sob céu aberto, caindo como um relâmpago e ateando fogo ao campo. Argerich toca como quem cavalga o próprio desespero até que ele vire alegria. Por isso o ritmo parece um coração galopando rápido demais, impossível de conter.
Os arpejos desse movimento nos dão a impressão de uma corrida, mas não são mais as feras que correm, mas o próprio homem, para que sua respiração alta e assustada tape os urros daqueles monstros, ao mesmo tempo, em que ele tenta fugir deles.
O final explode como uma festa à beira do abismo: dança, vertigem, triunfo e perigo. No finale, a articulação percussiva e os ataques quase felinos de Argerich transformam as escalas em golpes de luz. Há algo de majestoso: é o homem que domou seus instintos e agora se apresenta, belo, diante do mundo, mas que continua gritando, por cada nota, cada arpejo, cada compasso, e chora copiosamente, sem que os outros sequer percebam. E então, numa mesura, enquanto abaixa a cabeça e lágrimas caem ao chão, quando ele levanta, todos parecem pensar que apenas se trata de emoção comum ao artista. Ninguém o vê de verdade.

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