sábado, 8 de novembro de 2025

Sob as Luzes do Afeto (III) - A Melancolia Realista

Esse artigo é o terceiro de uma série que aborda a estética de obras audiovisuais de alguns países. Você pode encontrar os outros aqui: I - Introdução, II - Coreia do Sul e IV - Tailândia.

~

Talvez uma das coisas mais difíceis da nossa sociedade ocidental seja a aceitação da imperfeição. Nossa relação com aquilo que é diferente, imperfeito, passageiro, é repleta de dicotomias: vivemos equilibrando uma incômoda percepção que nos persegue, da qual fugimos constantemente. Os idosos são excluídos do convívio quando doentes, a despeito de todo cuidado e esforço que tiveram durante suas vidas. Doentes são marginalizados e sua dor diminuídas. O envelhecimento é atenuado por dezenas de procedimento que, a cada dia, surgem para dar uma aparência mais jovem, saudável. 

A beleza japonesa nasce da simplicidade, da transitoriedade e do imperfeito — o que é efêmero e contido tem valor poético. Pode-se dizer que é uma estética da imperfeição, aquilo bem trabalhado pela filosofia Wabi-Sabi, que se conecta com os ensinamentos budistas da transitoriedade, a prática do Kintsugi e também com a tradicional Cerimônia do Chá, trazendo nomes como Sen no Rikyū (1522–1591), elaborada na prática contemporânea por Michiko Okano e popularizada no ocidente por Leonard Koren (ainda que continue sendo vista mais como um "treco exótico" do que como uma experiência autêntica).

Nas obras audiovisuais podemos observar esses ideias primeiramente na fotografia, que se manifesta em cores neutras, composições minimalistas e uma luz suave que privilegia a naturalidade sobre a aparência idealizada.

É bem comum a presença de cenas onde uma luz natural passa pela janela, filtrada por uma leve cortina branca, dando ao ambiente uma coloração confortável, condicionada pelo próprio tempo: se é inverno, a luz é fria, se faz sol, a claridade ilumina o espaço e isso ajuda a ditar o tom da própria cena. Em "Minato’s Laundromat" (2022–2023), onde a história se passa numa cidade costeira, vemos o protagonista com roupas próprias de um lugar quente e úmido, revelando em cenas íntimas o desejo reprimido do mesmo. 

Já a aclamada "Cherry Magic! Thirty Years of Virginity Can Make You a Wizard?!" (2020) encontramos um cotidiano em forma de poesia, onde o ambiente, com sua luz própria, é como a moldura onde se apresenta a pintura: embora não seja ela o foco, ajuda a criar o formato e a direcionar o olhar. Os personagens flutuam do escritório para casa e um parque, do social para o informal, de uma relação profissional para um passeio casual onde podem dar as mãos. O Japão encontra profundidade no banal. As tramas cotidianas revelam o extraordinário do simples. Cada refeição, estação do ano ou gesto rotineiro ganha sentido simbólico, expressando a busca por equilíbrio e introspecção. Os personagens tímidos revelam seus pensamentos em olhares, toques discretos, e muitas vezes precisamos do recurso onde seus pensamentos são ditos em voz alta para compreendermos o que eles querem dizer, enquanto os outros personagens continuam no escuro.

Em uma sociedade onde a coletividade é prioridade, o indivíduo experimenta uma solidão silenciosa, quase existencial. Nessas obras a solidão é um estado natural do Ser. Os J-Dramas frequentemente abordam personagens introspectivos, isolados emocionalmente, mas que encontram beleza na própria melancolia e que, ao aceitá-la, conseguem finalmente ter algum contato com o outro, desfazendo parte dessa solidão e criando finalmente laços. 

Falando de uma cultura onde as cidades são extremamente populosas, mas que as pessoas dormem em cápsulas ou hotéis com quartos menores do que um carro, a solidão é uma realidade mais do que simplesmente representada. A arte sendo mais sensível a esse fenômeno, que já apresenta problemas com uma população cada vez mais velha, tenta fugir desse mundo por meio da criação de um universo caloroso, afetuoso, onde o solitário encontra aquele que rompe sua casca e lhe ensina o afeto e a importância do contato com o outro. O audiovisual é um clamor para que os japoneses acordem para a presença do outro.

"Our Dining Table" (2023) e "Naked Dining" vencem a solidão na simplicidade de uma refeição compartilhada. "Old Fashion Cupcake" (2022) e "40 Made ni Shitai 10 no Koto" (2025) revelam o desejo de uma juventude solitária e a realização de pequenos desejos por meio desse contato com o outro, de uma abertura que possibilita vivências que antes não podiam ser experimentadas, pois não faziam sentido num contexto de solidão. A questão da sexualidade torna-se um problema posterior e quase secundário.

O tempo e o silêncio se mostram importantes nessa estrutura narrativa do descobrimento do outro. O ritmo é lento, meditativo, e o silêncio tem tanto peso quanto a palavra. Nas duas últimas séries citadas, os protagonistas já são adultos, e ainda trabalham com dificuldades que carregam desde tenra idade. A narrativa dá espaço ao respiro, permitindo que o espectador sinta — não apenas entenda — as emoções contidas. 

Assim como nos filmes no Studio Ghibli, muitas vezes vemos cenas que parecem não acrescentar nada, mas são cheias de significado: elas são como portões ou janelas por onde entram a luz dos outros momentos. Sem elas não haveria tempo do pensamento, do crescimento. Isso também contrasta com uma cultura que não dorme: ao invés de uma Tóquio onde milhares de pessoas passam no mesmo cruzamento por dias, vemos personagens caminhando em ruas vazias em dias de sol, passando por uma ponte ou um parque onde crianças brincam. Me lembro como hoje o impacto que as cenas de silêncio e os poucos diálogos que "More Than Words" (2022) tiveram em mim. Não raras vezes o que não era dito tinha muito mais peso e significado que os diálogos.

Há uma forte presença simbólica das estações e dos elementos naturais, refletindo o shintoísmo e o budismo zen. A relação da natureza, como as flores de cerejeira, a chuva, o vento... Tudo fala da impermanência e da beleza da passagem do tempo. "Tokyo in April is..." (2023) mostra de forma bela e comovente a importância do tempo no amadurecimento dos personagens, mas o protagonista só consegue superar seu trauma definitivamente com a aceitação plena da presença do outro. Outro grito de clamor a um mundo de barulho onde nada mais além do rendimento pessoal importa. O tempo é necessário para o crescimento, ainda que seja dolorido, como em "Ameagari no Bokura nitsuite" (2025)

A Pressão Social é imensa, seja nas telas ou fora delas. O senso de dever e o medo da desonra são forças que moldam a identidade japonesa. Os personagens lutam para conciliar a face pública e o seu eu interior, revelando a tensão entre o que se mostra e o que se é. Em "Smells Like Green Spirit" (2024) vemos a aceitação desse eu e a sua revelação, ou não, ao outro, num mundo marcado pela negação do diferente. "The Proper Way to Write Love" (2025) traz a construção da imagem exterior como forma de construção de um eu mais adequado ao ambiente, numa busca por melhorar-se a si. 

Essa complexidade do sujeito introspectivo se revela também na dinâmica das relações. O afeto raramente é explosivo; é sugerido nos gestos, nas pausas e no cuidado. Ó amor é respeito e espaço. O toque é substituído pelo olhar, o beijo pelo silêncio compartilhado. Ainda assim, o silêncio pode machucar, como em "My Personal Weatherman" (2023), ou ainda ser ponto de partida para crescimento ao ser superado, dando espaço a um diálogo sincero consigo e com o outro, como "Kare no iru seikatsu" (2024).

Para representar essa complexidade nas dinâmicas, as obras usam de recursos como forma de representação simbólica do que não é dito. Planos longos, simetria e composições geométricas refletem o ideal de harmonia estética japonesa. A fotografia se torna reflexo da alma dos personagens. A imagem é tratada como pintura — cada quadro é pensado como uma espécie de meditação visual. Em "I Cannot Reach You" (2023) observamos atentamente as contemplações platônicas de um protagonista cujos olhos são a janela para seus próprios pensamentos, ao passo que o outro não consegue esconder o que pensa por trás de sua expressão. Cada cena se torna então um desvelar e recobrir os sentimentos conflituosos.

O conflito também se dá na apresentação de um aspecto real, crescente e, ao que tudo indica, permanente da sociedade japonesa: a dedicação extrema à profissão é exaltada, mas também criticada como fonte de vazio e isolamento. A figura do workhalic exausto, sem sonhos, simboliza o conflito interno entre a realização pessoal e a social. "Perfect Propose" (2024) apresenta um protagonista claramente estafado, completamente sobrecarregado, e um de seus colegas inclusive abandona o trabalho por não conseguir mais aguentar esse peso. Também em "Sukiyanen Kedo Do Yaro ka" (2024) acompanhamos um homem em fuga, tanto do seu passado afetivo quanto profissional, encontrando novo sentido e novas possibilidades ao se abrir ao amor, incentivado pelo dono de um pequeno, porém acolhedor, restaurante.

Claro que essa reconstrução é demorada, dolorida, o que nos leva novamente ao tema do tempo, agora acrescido da dor que, no contexto japonês, é também um meio de reconstrução — não há redenção sem aceitação do sofrimento. Essa filosofia se reflete na narrativa circular e na fotografia melancólica que acompanha a transformação interior dos personagens. Aceitar a dor como parte do crescimento nunca é fácil, e em "Jack o' Frost" (2023) a fuga extrema é preferível ao invés da aceitação do fim. Quando finalmente encarada, ela leva ao crescimento. Em "Koi wo Surunara Nidome ga Joto" (2024) a dor do abandono é o ponto de partida para um entendimento mais profundo, revelando-se num relacionamento de delicado equilíbrio. Coisa semelhante vemos em "Futtara doshaburi" (2025) onde a figura de um desconhecido se torna um lugar acolhedor em meio a dor da rejeição física que tornou até mesmo o ambiente conjugal em solidão. 

O Japão tende a tratar o amor entre homens de forma reflexiva e poética, centrada em silêncio, cumplicidade e aceitação interior. Suas obras apresentam bem mais do que um romance, mas um processo de autodescoberta e reconciliação com o próprio “eu" em vários campos da vida onde, só então, o romance ganha espaço e significação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário