Sonata para piano N° 23, Op. 57 em Fm - "Appasionatta" de Beethoven
Há obras que possuem uma capacidade maior do que nos tocar o sentido: elas verdadeiramente atravessam nosso ser. A Appassionata é uma delas. Beethoven não a compôs como quem escreve música, mas como quem rasga a escuridão à procura de uma forma de existir. O que se ouve não é apenas o temperamento de um homem em confronto com o destino, é a própria estrutura interna da luta humana, exposta sem cortes, sem misericórdia, sem explicações.
O primeiro movimento emerge como quem abre uma porta proibida. Não é uma introdução, mas uma descida: acordes abafados, subterrâneos, insinuam um mundo que respira antes de ruir. A tensão cresce como se tivesse pulsação própria, uma criatura que se forma no escuro. E quando finalmente se ergue, já não é música: é uma força. Beethoven trabalha a matéria sonora como quem golpeia metal incandescente — fragmenta motivos, os distorce, os ergue ao limite da ruptura. O movimento inteiro parece duvidar de si, como se cada frase fosse empurrada pela certeza de que não há escolha senão avançar.
Sempre achei um ato de subserviência intelectual o fascínio, proporcional ao desinteresse, que as pessoas têm pela música clássica, mas especialmente pelo piano. É comum que, ao verem de perto um longo piano de cauda, preto e brilhante com detalhes dourados, se encantam com sua beleza e dizem "eu acho piano uma coisa linda" com afetação. Mas, ao se depararem com uma música que não seja adaptação de algo do repertório pop, já se afastam aterrorizadas, pois, para elas, a música clássica é mais do que chata, é sonolenta, entediante.
Essa peça é só uma, dentre tantas outras, que mostram o quanto esse julgamento é absurdamente errado, expediente de alguém que se deixa levar pelo preconceito contra todo e qualquer produto de verdadeira intelectualidade, ou da contaminação profunda pelos estímulos contínuos da nossa arte contemporânea. Assim como fazem com a própria vida intelectual, apegando-se aos símbolos e desprezando o conhecimento que ele evoca, apegam-se a beleza do instrumento enquanto desprezam os tesouros que para ele foram criados. Beethoven não faz o pianista tocar uma instrumento, o faz arremessar um martelo sobre ele: é visceral.
Me recordo da primeira vez que ouvi essa peça. Esperando aquela cadência romântica, doce ou melancólica, algo que encontraria mais tarde em um Debussy ou Chopin, mas encontrei uma verdadeira tempestade.
Há explosões, atropelos. Linhas melódicas brutalmente interrompidas por uma tensão que vai costurando por entre as variações do tema. É uma corrida em desespero, os pés sangrentos arrastados enquanto o vendaval destrói tudo por onde passa.
Ao atingir o segundo movimento, muitos esperam repouso. Seria natural que, depois da tormenta, viesse alguma espécie de serenidade. Mas Beethoven oferece outra coisa: um lamento contido, quase religioso, que tenta se sustentar sobre a própria fragilidade. O tema simples, quase despojado, parece pedir calma, mas suas variações são fissuras internas, pequenas rachaduras emocionais que revelam o quanto essa calma é uma mentira necessária. Não é uma pausa; é a consciência da própria exaustão.
Aqueles cortes brutais do primeiro movimento aqui deixam escapar fumaça e sangue, e então percebemos que se tratava de um buraco no peito do próprio homem que, agora, deixa fluir numa torrente sua tristeza, a raiva contida, e tantos outros sentimentos mesclados ali. A impressão de estranheza, no entanto, não acabou, Beethovem continua numa linha melódica tensa, desconfortável. Arpejos mostram um pensamento quase alucinado, não seria estranho se realmente o fosse. Repete-se numa busca, num olhar para o céu à espera de algo.
A transição para o terceiro movimento é como a perda súbita de um mundo inteiro. Quando o Allegro surge, ele irrompe como uma língua de fogo. Não deixa espaço para reflexão. Não permite dúvidas. É o triunfo da intensidade sobre qualquer tentativa de contenção. As mãos do pianista se tornam martelos e serpentes, construindo um espaço sonoro onde tudo é velocidade, combustão, desespero. Deslizam numa velocidade vertiginosa, mas ainda assim cada nota tem a sensibilidade de um soco no estômago. A famosa coda final, brutal, precipitada e inevitável, é Beethoven admitindo que não há salvação no controle, mas apenas no enfrentamento.
Ao fim, resta uma sensação estranha: a de que algo dentro de nós foi arrancado. A Appassionata não nos leva para lugar algum. Ela nos despoja. É um ritual de perda, uma explosão que continua a ecoar no corpo depois que o último acorde se desfaz no ar. Tudo aquilo que se esvaiu nos rasgos anteriores agora é iluminado, mas não de uma esperança bela e gloriosa, como novamente poderíamos esperar, mas apenas uma luz que evidencia ainda mais o que há exposto: um coração.
E talvez seja por isso que ela permanece tão viva. Porque existe uma verdade incômoda ali: no turbilhão que nos suspende entre o impulso de resistir e a vontade de desistir, há uma centelha, algo que brilha e fere, que ilumina e esvazia. Não responde à escuridão, a atravessa. E no rastro da sua passagem, descobrimos que também somos feitos desse mesmo fogo que consome e ilumina.
Entre os golpes e o silêncio, Beethoven não narra uma vida: ele a despedaça.

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