quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Palavras Secas

Acho que antevendo a empolgação dos próximos dias, o meu corpo vem acumulando energia, meio que entrando em hibernação. Parece que, de repente, tudo ficou coberto por uma névoa densa, que vai entorpecendo os sentidos e me fazendo, pouco a pouco, mergulhar na escuridão do sono profundo. 

Sei que, antevendo a empolgação dos próximos dias, devo me preparar para não falar demais. Sim. Embora na terapia muito se tenha dito sobre criar uma rede de apoio, eu sei bem que, no meu caso, não é assim que a coisa acontece, quando você fala o que sente e o que sofre, o outro não tem compaixão, pelo contrário, se afasta, te diminui. A doença mental é sempre vista como fraqueza, incômodo e, convenhamos, ninguém quer alguém assim por perto. Por eu quero cada vez mais estar distante do outro. 

Pode ser que até presente fisicamente, mas distante. Devolvendo ao mundo a distância que sempre recebi. Me recordo dos momentos sorrindo em mesas com mais de dez pessoas ao redor, sem estar exatamente ali. Como se apenas assistisse a um filme numa tela enorme. Mas eu não estava ali naquela cena, aquela não era minha história. 

Não tenho conseguido escrever sobre mim esses dias, e nem sobre outras coisas também. No momento em que pensei e disse, em voz alta, que queria começar a registrar mais dos meus estudos e impressões para, num futuro, possivelmente usar como base para um trabalho sério, acabei sendo acometido de imediato por um enorme desânimo. 

Pensei em como poderia escrever sobre a linguagem audiovisual das produções tailandesas, coreanas e japonesas e então traçar um paralelo com a Sociologia, bem como coletar alguns aspectos religiosos e aplicar à Filosofia da Religião e à Religião Comparada. Por enquanto seriam apenas anotações, breves apontamentos que, algum dia, poderiam ser usados numa reflexão mais séria. 

Mas, bem, foi pensar nisso que perdi completamente a força de escrever um parágrafo sequer. 

Eu só queria... Não ser assim. Mas não sei bem como queria ser. Mais disposto? Mais inteligente? Mais bonito? Acho que, em verdade, só não queria ser eu. Qualquer outra coisa seria, e isso seria bom. 

Não há poesia alguma nessas palavras, apenas a secura de um homem medíocre que reconhece sua mediocridade.  

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A Montanha da Verdade I

Transcrição da aula 442 do Seminário de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho, com adaptações e comentários meus (em itálico).

As pessoas, em geral, não conseguem suportar situações que lhes pese a consciência por muito tempo. Ou se acostumam com ela ou lutam contra veementemente, não raras vezes, desenvolvendo neuroses no caminho. Não é difícil notar o ambiente opressivo em que vivemos, das mais diversas formas: a cada esquina alguém aparece com uma fórmula para salvar o mundo. Vivi isso muito recentemente quando, ao ir ao médico e ele apontar algumas deficiências no meu exame de sangue, as recomendações que recebi prontamente foram inúmeras: alguns disseram que eu deveria mudar minha dieta imediatamente e fazer exercício, outros disseram que o tratamento do médico, a reposição pontual daquilo que necessitava, era apenas um paliativo, e que eu devia buscar na medicina chinesa a alternativa natural para tratar todo meu ser. Comecei a tomar várias cápsulas de remédios naturais, na promessa de, equilibrar o organismo. Depois de algum tempo outra pessoa disse que isso não era natural o suficiente e que eu deveria preparar eu mesmo cada dose do que tomaria. E aí eu desisti ou, em pouco tempo, estaria numa fazendo cultuvando meu próprio alimento sem agrotóxicos e, ainda assim, com deficiência de vitaminas.

Bem, essa introdução é, na realidade, uma anotação. Meus estudos sempre foram baseados na minha memória, mas, recentemente, tenho visto um declínio da mesma, e como esse tema me é caro, quis condensar aqui alguns ensinamentos do Prof. Olavo, de modo que, uma vez registrados, possa voltar a eles mais tarde. Com exceção do próprio Professor, nunca ouvi ninguém falar sobre o Monte Veritá. 

Como introdução a esse tema ele indica no livro do Hermann Hesse, "Pequeno Mundo", em que há um conto chamando O Reformador do Mundo, contendo um resumo bastante esquemático da experiência que o próprio autor teve nesse lugar e que, de certo modo, revela também a experiência que muitos tiveram, revelando muito sobre o espírito da época. Não sendo um dos grandes escritos dele, é esquemático demais, dando a impressão de que ele anotou o assunto para retomar depois, servindo como documentação para esse estudo. 

O conto diz respeito de um jovem que se forma na faculdade de Belas Artes com o desejo de se tornar um crítico de arte, e acaba se decepcionando com a vulgaridade do meio que encontrou, sendo que ele desejava ter contato com a alta expressão de valores autênticos. Ao mesmo tempo então em que ele conhece uma moça muito culta e séria com quem tem longas conversas e por quem acaba se apaixonando, ele também toma conhecimento de uma série de comunidades que propõe um novo estilo de vida, estilo esse que se caracteriza pelo vegetarianismo, pela liberdade sexual, por alguns pendores anarquistas e socialistas, tudo junto, e que se distinguem do resto da sociedade por meio de sua indumentária: usam túnicas no estilo romano, sandálias feitas eles mesmos e que tentam voltar a uma espécie de simplicidade natural, ou que lhes parecia natural. 

Essa busca do retorno à natureza é uma coisa que sempre reaparece, como observou muito bem o historiador Martin Green, que todo fim de século retorna esse tema da volta à natureza. Então em 1790, 1890, em 1990 de novo. Por outro lado, a próprio preocupação com o espírito da época é um sinal do espírito da época, porque nós não temos sinal de nenhuma outra época, anterior ao século XVIII, que se preocupasse com o seu próprio espírito: qual é o sentido desta época, para onde nós estamos indo? E, sobretudo, esse hábito de falar em nome da humanidade, usando o, a primeira pessoa do plural: "Nós estamos indo. Nós estamos experimentando isto." "Nós" quer dizer, vagamente, a humanidade inteira, mas não temos o menor sinal de que as pessoas que falam dessa maneira, tenham pesquisado a opinião pública para saber se todos nós pensamos assim. Então, fica no ar a famosa pergunta: "a gente quem, cara pálida?" Uma coisa pode ser boa para você mas o outro pode estar sentindo outra completamente diferente. Portanto esse estilo de avaliar a nossa situação como o espírito da época se torna ele próprio um sinal da época. E isso se repete de tempos em tempos e tem se tornado uma constante cada vez mais intensa. O número de pessoas que falam a respeito do nosso destino, das nossas vidas é cada vez maior.

Antes das Nove da Manhã

Queria poder... Na verdade, eu não sei. Transcrevi uma aula de ontem para hoje, tentando memorizar um tema que me é tão caro e que se coaduna com uma pesquisa melhor que pretendo desenvolver nos próximos anos e que já teria algum avanço caso eu não estivesse tão debilitado. Parece que tudo concorre para atrasar meus estudos: minha memória cada dia pior, o desânimo para ler... 

O sol brilha forte, só encoberto por pequenos temporais de primavera. A estação começa a firmar, o calor vem aumentando gradativamente. Apesar da luz dar novos ares para uma cidade tão cinza, eu me incomodo com isso. Especialmente com aqueles que ficam animados demais, porque eles sempre se animam com coisas bobas, como a mensagem safada de uma garota. 

Não quero ver nada disso. Quero me isolar de tudo. Mas também queria ajudar mais minha família. Só que, no momento, não consigo ajudar nem a mim. Quero ficar dias sem sair, mas já estou dias sem sair e isso não eu me sentir melhor.

Queria um empréstimo, mesmo sabendo que nenhuma instituição vai aprovar. Sim, queria comprar bobagens. 

Também quero dormir, mesmo sabendo que não é uma solução e que meu estoque de remédios não é infinito. Há tanto que eu sinto e não consigo dizer que tudo parece vazio, mas a verdade é que, diante de tudo que se embola no meu peito, eu acabo emudecendo. E então esse silêncio, como uma névoa, vai fazendo com que eu aos poucos desapareça...

Deveria sair um pouco, tentar conhecer outras pessoas, mas há duas semanas eu não consigo sair do circuito quarto e sala. Acho que vou tomar mais um café, e depois um chá, e depois alguns remédios. Não são nem 9h da manhã e sinto que já morri uma dezena de vezes.

Acho que é mais um daqueles dias de contemplação da minha própria melancolia. Onde a névoa, a fumaça que sobe do chá, penetram meu coração e desaparecem como no ar. Sinto que não há muito que dizer, ao mesmo tempo que há muito que quero escrever, mas não consigo. Apenas olho pela janela, o tempo passa lá fora, enquanto parece que eu parei por aqui.

"Sou apenas o rastro de uma presença física no mundo perdida há muito tempo." (César Augusto)

sábado, 25 de outubro de 2025

Notas sobre a Divisão

Foi uma semana de ânimos exaltados no mundo da Liturgia e, não me surpreende que bem poucos consigam ler o que realmente tem acontecido, enxergando apenas um expediente de seus próprios partidos religiosos e sem perceber o impacto maior que isso tem no quadro geral da igreja no Brasil, nem muito menos compreendendo os fatores que levaram a essa situação.

Primeiramente, a congregação a qual pertencia a Ir. Miria T. Kolling publicou uma nota repudiando as modificações que atualmente tem sido feitas nas suas músicas. Acontece que a Ir. Miria foi, de fato, uma grande compositora, com um enorme número de músicas, mas, num período em que a Liturgia no Brasil estava em completo desalinho com a da Igreja. Não que hoje esteja melhor. E por isso muitas de suas composições, especialmente aquelas que constituem o ordinário da Missa, não contemplam o que de fato pede a Igreja: a simples, mas completa, fidelidade ao texto. 

Como suas músicas são bem conhecidas e fazem parte de algo como um "repertório nacional", muitos cantores, acompanhando a crescente onda de formações a respeito do assunto, fruto da disseminação de grupos de estudos na internet e iniciativas que buscam reformar e retornar a sacralidade da Missa no Brasil, tem adaptado suas letras de modo a não abandonar as composições de uma só vez e nem descumprir o que nos pede a Igreja. 

Segundo a nota da congregação, essa atitude é um desrespeito à memória da compositora. Mas, composições feitas num tempo em que os bispos não davam a mínima importância para o que se cantava, preocupados demais com as questões sociais que dominaram o país por meio da Teologia da Libertação, realmente precisam ser revistas e adaptadas ou substituídas. Infelizmente ninguém fala a respeito das belas músicas, em português mesmo, que se cantavam antes da onda vernacular pós-Concílio Vaticano II. Para a congregação, o respeito pela composição é mais importante que o respeito pelas normas litúrgicas, e, portanto, mais importante que a própria Igreja, uma vez que a lex orandi é a lex credendi, colocando assim a pessoa da compositora acima da unidade da Santa Mãe Igreja, já que a nota está repleta de um certo repúdio a obediência que se deve aquilo que nos pede a Igreja. Acho que não preciso falar mais.

Logo depois, o bispo de Aracaju publicou um decreto, na verdade, publicado no dia de Nossa Senhora Aparecida mas que só agora se difundiu, em que repudia aqueles que não respondem às aclamações presentes nas orações eucarísticas aprovadas para a Igreja do Brasil. Segundo o decreto, o purpurado percebeu a necessidade após um ano à frente da referida cátedra onde, por certo, deve ter tido contato com comunidades que buscam uma comunhão maior com a Igreja ao aproximar ainda mais nosso rito de todos os outros. Sinceramente, cada vez que vejo algo assim, como quando defendem a substituição de "e com teu espírito" por "ele está no meio de nós", sinto que nos tratam como burros. Desse modo, quando os fiéis, orientados por sacerdotes de uma renovada ars celebrandi, explicam que apenas no Brasil isso ocorre porque nosso povo dificilmente consegue entender que a participação ativa e frutuosa da assembleia também diz respeito a oração silenciosa, para os liturgistas que sequestraram nossas rubricas, o brasileiro precisa estar em constante diálogo com o celebrante, quase numa concelebração, ou então sente que não participa. Outro ato lamentável.

Infelizmente ninguém parece se dar conta que a inserção do vernáculo e a abolição do latim é o ponto de partida dessa problemática. Ainda ousam dizer que o rito permite que o fiel participe da missa em qualquer ponto do globo, mas isso não é verdade. Exceto pelo fato de conhecer o rito, como poderia entender uma missa celebrada em japonês? Se fosse latim, uma formação básica da língua serviria para a maioria, ao passo em que momentos específicos como a liturgia da Palavra poderiam se beneficiar do vernáculo. Um missal bilingue também resolveria fácil a situação, mas agora, se eu quiser participar de uma missa no Vietnam, qual a chance de encontrar um missal em vietnamita-português?

Ainda em nossas terras, o Centro Dom Bosco, nos últimos anos levantando a bandeira em defesa da doutrina tradicional, anunciou uma procissão em honra de Cristo Rei, com a presença da FSSPX, inclusive de Dom Fellay a conduzir a mesma. Claro que isso não passou e nem passará despercebido dos demais católicos que vão acusar o instituto de cisma por unir-se a Fraternidade, muito embora o próprio Vaticano não tenha declarado tal, a mesma continuando numa espécie de limbo canônico e um problema que ninguém sabe como resolver. Mais uma batalha nessa longa guerra. Muitos acusam a Fraternidade e o próprio CDB de cismáticos, um pouco arrogantes talvez, mas cismáticos por defender a ortodoxia não. Muito embora eu creia que esses grupos só estejam lutando para manter o já escasso espaço que possuem dentro da Igreja, já que nos últimos anos vivemos uma crescente aceitação de tudo, menos da tradição. Mas, em alguns pontos, parece-me que há também uma boa dose de sensacionalismo e provocação nesses atos. 

E, por falar em Vaticano, pela primeira vez em vários anos tivemos a Liturgia Tradicional sendo novamente celebrada na Basílica de São Pedro. A Missa no Rito Tridentino foi celebrada pelo Cardeal Burke, um gigante defensor da Tradição. Embora esse fato em particular só tenha repercutido entre os grupos mais conservadores, em consonância com os demais, apenas mostra o quão divididos estamos. É uma centelha de esperança que, ao menos, o rito tridentino possa ser novamente celebrado sem a perseguição dos bispos que, por anos, ignoraram o motu proprio de Bento XVI, mas que publicaram ferozes documentos no dia seguinte ao do Papa Francisco, não dando nenhum espaço para as comunidades tradicionais, ao passo em que grupos heréticos e pregadores sem a mínima formação ganham palco, mídia e aprovação universal.  

De um lado temos defensores de uma reforma que ninguém sabe onde vai parar, outros defensores de um retorno quase sem limites, e, na realidade, temos jovens que acham que a igreja são as músicas da Colo de Deus (sic!). Há ainda aqueles que buscam uma posição conciliatória. Vejo alguns jovens se intitularem como "tradismáticos", que buscariam um retorno a tradição com uma espiritualidade carismática. Enquanto criticam alguns excessos da Renovação Carismática que, pouco mais de uma década atrás, ainda arrebanhava centenas de milhares de pessoas para qualquer um de seus eventos, não notam que essas novas comunidades, como a própria Colo de Deus, Samaria e tutti quanti, na verdade, só trazem uma nova roupagem da via neopentecostal daquela, e nem notam ainda que ela é completamente inconciliável com a tradição. 

Quando me refiro, por exemplo, a essa banda execrável, de composições bregas e shows/pregações repletos de momentos de sugestão e transe, além da baixíssima qualidade das falas e das próprias músicas, isso se contrasta diretamente com a riqueza do simbolismo profundo que a Igreja perdeu nas últimas décadas, gerando uma pobreza imaginativa gigantesca. Essa ausência simbólica criou um vácuo no coração da igreja no Brasil, preenchido então por toda sorte de parafernálias, como a crescente burocratização sacramental, as pavorosas inovações litúrgicas que se fincam nos abusos e erros mais deploráveis e numa completa despreparo espiritual dos pastores. O povo então inventa aquilo que lhe parece completar e, ao menos alguns, conseguem notar que o retorno à Tradição é a única via segura, e que as demais são apenas falatório confuso.

Um claríssimo exemplo disso são as frequentes manifestações da CNBB sobre qualquer assunto. A Conferência parece ser hoje dominada por verdadeiras múmias que se preocupam apenas em emitir notas de repúdio que só bobos como eu as leem e pedir dinheiro nos dias de maior concorrência de fiéis nas paróquias, calando-se completamente nos casos em que seria justificável sua intervenção. A obscena demora na tradução do missal, mais fiel à versão latina que, não por coincidência, saiu apenas depois da promulgação do Papa Francisco de que as traduções não precisariam mais passar por uma acurada revisão de Roma, mas apenas ser chancelada por ela. Recentemente o Secretariado Nacional para a Liturgia, ao tratar em nota a ocorrência dos dias de Finados e Todos os Santos num fim de semana, cometeu o desserviço de salientar que a Comemoração dos Fiéis Defuntos é celebrada com paramentos roxos, pois, no Brasil, não é costume usar o preto, ignorando completamente o alcance da mesma nota para incentivar que o mesmo costume seja também aderido por nós.

A Associação dos Liturgistas do Brasil (ASLI), que felizmente é pouco conhecida, frequentemente publica artigos que levam do nada a lugar nenhum. Uma mixórdia de reflexões que servem apenas para criticar todo e qualquer resquício de tradicionalismo nas nossas paróquias, incluindo, mas não limitando-se, até mesmo aquelas igrejas históricas e de valor espiritual inestimável ao povo de Deus, que receberam uma mesa de pedra cortada num formato estranho com toalha costurada porcamente no meio, quebrando completamente a estética que, para nós cristãos, nunca teve apenas valor estético, senão catequético e profundamente espiritual, tornando nossos templos cada vez mais próximos do pauperismo protestante. Com frequência a referida associação também divaga em reflexões sem nenhum sentido, como dizer que a Pastoral Litúrgica deve-se ocupar com a crescente integração do povo no mistério celebrado, mas sem dar nenhuma sugestão concreta, o que, sem a devida formação, é entendido como a aplicação de toda sorte das mais toscas invencionices: o povo deve participar, ao invés de fazer isso rezando e contemplando (afinal não há mais nada a ser contemplado no templo), deve fazê-lo por meio de peças de teatro, de fantasias, momentos de sentimentalismo ou de absurdos, como o tal Cerco de Jericó, que transforma Jesus na Santíssima Eucaristia como partícipe cativo de uma pantomima ridícula. 

Formadores que discutem entre si. Bispos ocupados demais com uma burocracia que eles mesmos inventaram e negligenciando o povo que, sem quem os guiar, inventam qualquer coisa que lhes pareçam completar, e sempre aumentando o grau dessas invencionices, já que a necessidade que eles sentem é do Cristo mesmo, devidamente honrado, como naquela procissão ao fim da Missa recentemente celebrada no Vaticano, soleníssima, em que se cantava, e que esperamos que seja em breve, que "Cristo vive, Cristo reina, Cristo impera!"

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Dias insones

"Rain clouds", Vladimir D. Orlovskij

“Sou como um quarto vazio onde o vento entra e sai.” (Fernando Pessoa)

Nada mais faz efeito, quantidades absurdas de remédio não são suficientes para sustentar o meu eu desperto, venho precisando encarar cada maldito momento dos dias. No início da semana, pelo menos tinha a desculpa de, com a crise alérgica, poder tomar ainda mais e misturar mais, mas mesmo assim, dormia por pouco tempo, retornando para essa realidade e, com uma incrível angústia, perceber que continuo vivo. Que grande decepção! Quão doce o dia que deitarei e não tornarei a abrir os olhos, e tudo o que me cerca não será mais problema meu. O quanto anseio por esse dia.

Anseio pelo dia que não mais pensarei em nada que demonstrei minha imensa imaturidade. Como o fato de ter vivido uma adolescência tardia. Não vivi um romance de adolescência, eu era feio (e hoje estou pior) e ninguém me queria (o que também não mudou), eu não saía para festas, não fui rebelde. Eu fui  o filho exemplo, sempre com boas notas, sem reclamações dos professores. E ainda carrego isso. Eu me arrependo não ter vivido mais, sempre me dedicando a ser sério e dar o meu melhor, para os outros. Sinto que perdi a fase de criar conexões, hoje só tenho colegas, não tenho amigos que chamo na minha casa ou que converso sempre ou que possa confiar. 

Percebo que preciso aprender a lidar com tempestades. Vê-las chegando ao longe, seus ventos e as ondas impetuosas que elas causam no mar, e depois a calmaria que se segue, quando o sol se abre novamente pela manhã, brilhando no reflexo da água. 

Não sei se é uma aceitação de que todos se vão e eu vou continuar sozinho ou o eterno retorno. que eu não consigo amar, de amores que vêm e vão sem nunca serem recíprocos, ao mesmo tempo que buscam o mesmo. Já aceitei a invisibilidade. 

É madrugada, e faz silêncio lá fora. Queria que começasse a chover, mas acho que não terei essa sorte. Ao menos do meu lado tem uma caneca fumegante de chá. 

Lia algumas páginas de Pequeno Mundo, do Hermann Hesse. A princípio movido pelo interesse pela última novela do livro, O Reformador do Mundo, e os estudos sobre aqueles movimentos esotéricos vividos em gérmen pelo próprio autor na Comunidade do Monte Veritá. Pretendia anotar sobre isso, já que recuo no percurso histórico que tornou possível essa comunidade é uma das coisas mais interessantes que já estudei.

Mas, considerando minhas limitações, atualmente maximizadas pelas perdas de memória típicas do transtorno e das medicações que venho tomando, bem... Acho que isso me consumiria boa dose de esforço. 

Acabei me detendo em outro conto presente no livro, O Noivado, me identificando completamente, e com boa dose de vergonha, com o personagem dele. Um homem nos seus trinta anos, sem nenhum talento especial para os estudos, que cuida da loja de aviamentos da tia e, com tamanha incapacidade de traquejo social que aprendeu a falar apenas alguns meneios enquanto faz algumas mesuras. Além disso, um homem feito, mas sem nenhuma perspectiva de futuro, que faz tudo o que a mãe manda, inclusive ao buscar uma noiva, algo que ele considera impossível. 

Muito embora os contos desse livro não estejam entre grandes escritos de Hermann Hesse, como documento realmente são valiosos. Nesse em específico, destaco essa imaturidade que, num personagem ali, simbolizaria toda uma geração de jovens adultos absolutamente incapazes. Meus pais não terminaram o Ensino Médio e, embora até hoje morem de aluguel, desde bem novos davam um jeito de se virar. Meu pai criou quatro filhos, com seus desmantelos é claro, mas a minha irmã mostra completa inépcia de fazê-lo. Não fosse pela família, meu sobrinho não teria completado um ano no último dia dezessete. 

Me identifiquei muito com o personagem principal que, aos trinta, se encontra completamente desconhecido dos amores e até mesmo das amizades. Esse campo da existência lhe parece um mistério. O outro se lhe apresenta como alguém tão distante que jamais pode ser conhecido e, se conhecido, não pode ser alcançado e, se ainda assim pudesse ser alcançado, não poderia haver entre eles uma comunicação real. Ele observa seus colegas de coro como se o quisessem ajudar, suportando o ridículo de subir num caixote para ficar à altura dos demais, sem perceber que isso é apenas troça, da mesma forma como acaba se expondo ao ridículo no passeio do grupo.  

Sua falta da habilidade social é tamanha que, visando apenas aquela por quem se interessa, ignora a que se interessa por ele, e que ele nota apenas e tão somente quando se vê sem nenhuma possibilidade. Em personagens rasos, Hesse revela a pequenez de espírito do homem atual. Me incluo entre eles e conheço um inumerável de pessoas buscam alguém, mas ignoram quem está ao seu lado. Até poderia extrapolar essa observação com aquela feita sobre O Reformador do Mundo, em que cada novo grupo revolucionário, de tipo Nova Era e tutti quanti, se arroga o direito de falar em nome do mundo. O apaixonado enxerga a todos que quer amar menos quem o ama, o revolucionário enxerga a humanidade que quer salvar, mas não o próximo ao seu lado que necessita de salvação. E assim vamos vivendo. Em paz?

(...) Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse “angústia”, mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível... Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. “Falta alguma coisa”, repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que. (Nelson Rodrigues)

domingo, 19 de outubro de 2025

O Piano e o Abismo

Ao som do Concerto para Piano nº 1 em Mi menor, Op. 11, de Frédéric Chopin

O piano começou a falar, e eu soube que era de mim que ele falava. As notas se erguiam tímidas, como quem pede perdão por sentir demais. A orquestra, solene, respondia em ondas que pareciam vir do próprio tempo — antigas, dolorosas, infinitamente belas. Havia algo de oração naquelas melodias, algo de desespero também, como se o instrumento buscasse um Deus que nunca respondeu. O som não era apenas música, era um corpo tentando respirar dentro da tristeza. E, por um instante, tudo que havia em mim — a saudade, o cansaço, o amor que não se cumpriu — tornou-se som. Chopin, sem saber, contava a minha história, muito antes de eu nascer, naquele seu primeiro concerto para piano.

Fiquei acordado durante todo o dia, vi meu sobrinho brincar com um bolinho cheio de Chantilly, sorrimos bastante. 

Assisti algumas séries. "That Summer", com os Winny Satang está ótima, gostando da profundidade emocional deles e claro, apaixonado pela beleza do Satang, do Mond e do Ryu. Também teve a estreia de "Me and Who" com Big e Pak, produzida em parceria entre a WeTV e a Mandee, duas das minhas produtoras favoritas. E o último trabalho desses dois foi tão gostoso de acompanhar, mesmo tendo bem menos investimento, que eu fiquei com alta expectativa. 

Também quero, por alguma razão, assistir mais durante a noite. Toda manhã sinto o coração inquieto. Ouço uma orquestra ao longe, se erguendo infinitamente rumo ao céu. Ela anuncia uma solenidade ainda em segredo, mesmo com o sol claro dos últimos dias. É na noite que ela há de se revelar, como o prelúdio de um sentimento ainda sem nome.

O fato é que o barulho das pessoas durante o dia me incomoda, e tenho tentado assistir de fato com mais atenção, afinal defini já há muito que esse momento seria o meu momento. Mas também creio que haja mais por trás disso, por exemplo, o fato de ficar com um pouco mais de sono no dia seguinte, me ajudando no objetivo de dormir sem precisar ver ninguém. E eu definitivamente não quero ver ninguém. Não quero precisar sair do quarto durante todo o fim de semana.

Já não sei mais que nome dar a isso: se é um episódio misto ou uma manifestação do Borderline. Eu não sei mais nada. Mas sei que eu não quero me humilhar num abraço qualquer, não quero mandar mensagens o fim de semana todo como se fôssemos melhores amigos quando, na realidade, sou sempre a última das opções. Então, enquanto esse turbilhão não diminui, prefiro não ver ninguém. Se conseguisse, me afastaria completamente da internet, mas ainda não cheguei a esse ponto. 

Cada palavra minha, assim com cada nota daquela partitura para piano, é uma confissão. É um virtuosismo onde não cabe arrogância, apenas as súplicas de um homem em profunda aflição. O piano, ou eu, fala ao destino como quem pede por gentileza. Mas gentil é algo que o destino não é. 

Tentei por duas vezes ler um pouco, e só consegui umas poucas páginas. Minha atenção e minha memória estão péssimas. Minha vontade também, pífia, eu já não tenho coragem nem de comentar sobre os episódios que assisto, coisa que antes fazia com tanto prazer. Sinto que deixei partes de mim nos últimos anos, em cada esquina fui deixando um pouco de minha vida, e eu já não sei mais quem eu sou. 

Dormi o dia inteiro, após uma noite atribulada por uma crise respiratória. Teve uma tempestade durante a tarde. Não sei por qual razão deveria achar que ele pensaria em mim nessa tarde chuvosa. Não é o tipo de companhia que ele espera. Eu não sou o que ele deseja.

E então as notas, minhas palavras, se revelam uma carta de amor que não foi enviada. Uma melodia que desliza como dedos sobre a pele, num toque que nunca se completa. É o amor visto à distância, envolto em névoa, entre o desejo e o impossível. Há um perfume de ausência pairando em cada compasso, como se o próprio tempo hesitasse em avançar para não ferir o instante.

Acabei falando com ele empolgado demais, e tive o entusiasmo transformado em desilusão. A resposta fria e rápida, cortante como ferro frio. 

Minhas palavras foram como explosão. Após tanto suspirar, o piano ri, dança, corre — mas é uma alegria desesperada, quase febril. Como quem sabe que a felicidade dura o tempo exato de um acorde. O riso se transforma em vertigem. O piano é uma alma que tenta escapar de si — e termina exausta, triunfante e só.

Quando o concerto termina, o silêncio que o sucede é quase sagrado. Fica no ar a impressão de que Chopin não compôs para o público, mas para o próprio vazio, ou para mim. 

Sua obra é uma oração dita ao espelho — e o espelho responde com lágrimas e o silêncio se uma escuridão abissal.

Não sei por qual razão achei que dessa vez seria diferente. Nunca é. A vida é sempre decepção. Como eu posso ser tão burro assim? Como eu ainda posso esperar algo, de novo e de novo, depois de tantas vezes ter visto a verdade?

E quando a última nota se dissolveu no ar, percebi que o silêncio era mais sonoro do que a própria música. O mundo inteiro pareceu suspenso, como se respirasse comigo — ou por mim, já que eu mesmo não conseguia mais. Tudo que restou foi uma brisa fria atravessando a sala, e nela o eco de algo que não voltará. Chopin calou-se nos dedos do jovem virtuoso, mas o que ele disse continua vivo, latejando nas fibras rasgadas do meu peito. Por um instante, pensei que talvez eu também fosse feito apenas de som: 

uma melodia breve, 
nascida do nada, 
destinada ao nada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Noite entre uma nota e outra de Chopin


Mais uma noite.
E o piano — esse eco distante de um mundo que não existe mais —
me embala em melancolia.

Mais uma noite — e eu, sentado diante do nada,
escuto Chopin como quem escuta a própria alma chorar.

A música toca, mas não me toca.
Estou só, minimamente interessado em continuar vivo.

As teclas tocam o ar,
mas é em mim que a melodia se derrama, lenta,
como luz que já não ilumina.

Essa música que cai em mim, atravessa — e fico oco.
É como se o mundo tivesse sido varrido de sentido
e restasse apenas o eco do que um dia foi humano.

Pensei em ver alguma história de amor,
qualquer coisa que me distraísse do abismo,
mas o desânimo veio primeiro,
como uma maré que engole a vontade.

Tentei erguer o braço e alcançar um livro,
mas o gesto morreu antes do movimento.
A vida ficou parada numa sonata que acabou,
entre o querer e o desistir.

Não é alegria, tampouco dor:
é o espaço entre uma nota e outra,
onde o tempo suspira cansado.

É estranho:
parece que toda a alegria do mundo foi recolhida
— e o que restou foi apenas o pó do silêncio.

E esse silêncio pesa.
Pesa tanto
que até respirar torna-se um gesto inútil.

Tudo pesa.
O ar torna-se apenas uma lembrança antiga
de quando respirar ainda era possível.

Fico imóvel,
ouvindo o som que não consola,
mas existe.
Talvez seja isso o consolo —
que algo ainda exista.

E, quando a última nota morre,
sinto que é o próprio mundo que se cala em mim.

E na pausa entre uma nota e outra,
a derradeira,
eu também me apago.

A pilha de livros que me aguarda


“Há um cansaço da alma que nenhuma esperança consola.” (Fernando Pessoa)

Fiquei um bom tempo procurando algo para assistir. Algo que me despertasse, que me lembrasse, por um instante, o que é estar vivo. Mas fiquei rolando a tela por longos minutos — talvez horas — e nada. Nada me agrada. Tudo parece velho, gasto, já visto. É como se o mundo inteiro tivesse perdido o brilho e eu, por dentro, estivesse apagando junto.

Há dias em que sinto que vivo numa montanha-russa de exaustão e euforia, e nenhuma das duas me serve de abrigo. O corpo dói, os olhos pesam, o sono não vem. E, quando vem, é tão raso que não descanso. É como se eu dormisse em um buraco.

Nada me toca. A música morreu, a poesia sumiu, e até as cores parecem se esconder de mim. Vivo num silêncio opaco, onde nada tem contorno. Em cima da cama há cinco livros abertos, todos pela metade — testemunhas mudas da minha desistência. Um deles está ali desde o ano passado, e ainda assim comprei outro hoje. Não o abri. Só o deixei sobre a pilha, como quem acrescenta mais um peso à própria inutilidade.

Tentei um filme. Parei no meio. Tentei uma série. Travei no terceiro episódio. Há algo em mim que se quebrou em algum ponto, e eu não sei onde nem quando. Só sei que o gosto da vida azedou. Tudo que me resta é uma tristeza antiga, dessas que não se curam nem com o tempo, porque o tempo também adoeceu comigo.

Hoje fiz compras idiotas. Coisas que não preciso, que não posso pagar, mas que por um segundo pareceram prometer algum sentido. Meu seguro termina no próximo mês. Eu deveria enviar currículos, tentar, fazer qualquer coisa. Mas a verdade é que não sei se estarei vivo quando, e se, alguém me chamar para uma entrevista.

Penso às vezes que minha vida se resume a essa espera: esperar dormir, esperar acordar, esperar que algo finalmente aconteça — e nada acontece. Não fosse a promessa de uma viagem com meu afilhado, o abraço que ainda quero sentir antes do fim, talvez eu já tivesse terminado tudo semanas atrás.

Mas sigo. Não por esperança, mas por inércia.
A tristeza, afinal, também é uma forma de existir.

Fecho os olhos.
E por um instante, o vazio me acolhe.
E penso — talvez seja isso o que chamam de paz.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Com alguns companheiros

E mesmo assim não sou bom o bastante. 

O raciocínio deles funciona mais ou menos assim: idealizam alguém, desde os detalhes da aparência até a personalidade e até suas contrariedades. Alguém que certo tipo de cabelo, adepta da religião e ainda assim cheia de tesão na cama... E então, focados nisso, perdem as pessoas boas que os rodeiam e que possuem aquilo que mais deveria importar: o carinho, dedicação e sentimentos por eles. Cegados pelos próprios desejos, pelas próprias idealizações. 

Quanto tempo perdemos com essas pessoas que nunca serão capazes de enxergar a nós. Mais uma vez tentando fugir desse ridículo plural majestático, quanto tempo eu perdi com essas pessoas incapazes de me enxergar, mesmo quando eu dava o meu melhor, mesmo quando eu disponibilizava meu tempo, meu carinho, tudo? Quantas vezes quis ser aceito, amado, querido, desejado?

Byung-Chul Han chamou de “sociedade do cansaço” o tempo em que o sujeito explora a si mesmo. As redes sociais novo espelho do narcisismo: precisamos ser vistos para existir. O vício não é na tela, é na validação. A solidão aumentou porque ninguém suporta o próprio silêncio. Com isso buscamos a validação nas fotos e nos vídeos sensuais e eróticos que produzimos e enviamos para as pessoas que idealizamos, na intenção de que sejamos exatamente aquilo que elas procuram, assim como elas são aquilo que buscamos tão ávidamente.

Buscamos pessoas de aparência virtuosa, que citam reflexões religiosas aparentemente profundas, mas repletas apenas de sentimentalismo vazio. Buscamos a beleza perfeita, sem saber que ela pode esconder corações completamente destroçados que também buscam ali a validação que preencha seu vazio interior e que as assusta tanto a ponto de se exporem desse modo. Se eu tivesse uma aparência agradável e não tão horrenda, também o faria. Fico então revisitando as páginas, abrindo as mensagens, na esperança ávida de que, em algum momento, me reconheçam, me percebam. 

No entanto, amor não se mede pelo quanto preenche, mas pelo espaço que deixa. Lacan dizia que desejar é sustentar a falta. É manter esse oco no peito, vendo claramente que o seu sentimento é ignorado, desvalidado, diminuído, porque não corresponde as idealizações do outro. 

Mas esse outro também é idealizado? Nem sempre, o creio eu, pois o desejo pode nascer da convivência, daquilo que vimos no outro e daí brota o carinho. Mas isso não significa que vá brotar também no coração do outro. Também isso pode estar errado, também eu posso estar, na verdade, idealizando que qualquer um me queira, justamente porque nenhum me quer. Quem ama demais ama uma fantasia. A idealização é a defesa contra o real. Simone Weil chamaria de amor idólatra, Kierkegaard de desespero disfarçado. Amamos o reflexo, não o outro. E é na queda do ideal que o amor começa. Esse desespero é algo que sinto diariamente, em cada palavra trocada: é como se absolutamente tudo que eu fizesse só encontrasse valor quando o outro me valida. Como não acontece, o desespero brota e faz repetir infinitamente, me prendendo num eterno retorno do horror de não ser amado.

Creio que não idealizo o outro, mas o sentimento, quase abstrato e metafísico, de um amor, de um companheirismo. E por isso as demonstrações contrárias me chocam tanto. 

Entender demais é um veneno lento, o tomamos em doses homeopáticas. O lúcido sofre porque enxerga até o que preferia não ver. Camus via nisso o preço da consciência. Mas talvez o alívio venha quando aceitamos o absurdo como parte da beleza. Pensar não é curar, é suportar o real. E quantas vezes essas constatações me são tão insuportáveis que eu simplesmente fujo do real para as páginas em branco que preencho visceralmente?  

Ser autêntico exige perder aplausos. A máscara social dá menos trabalho que a verdade. Citando Kierkegaard mais uma vez, chamava isso de desespero: o sujeito que vive no personagem. Autenticidade não é sinceridade. É coragem para continuar sendo, mesmo quando ninguém reconhece. No meu caso não há mais máscara ou papel a ser mantida, ou interpretado, e por isso mesmo, na obrigação do ser, me confronto com a realidade brutal da solidão.

O medo de morrer é disfarce do medo de não ter vivido direito. Heidegger dizia que só quem encara a morte entende o valor da existência. Não se trata de pressa, mas de presença. A vida não é curta, é mal usada. Quem vive distraído morre antes da hora. Eu vejo o horror que as pessoas tem da morte. Eu a desejo, a vejo como uma esperança num mundo onde, aquilo que idealizei, o amor, simplesmente não existe. Porque vejo que, após tanto esforço, tantas palavras gastas, ainda assim não sou bom o bastante.

No fim, percebo que não sei para onde vou e nem por onde vou, mas sei que irei sozinho. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Quatro Palavras


Apenas quatro palavras bastaram
para, em estado devastado, 
o pobre que há muito havia se enamorado

À conversa de meses atrás
aquela franqueza maldita
finalmente dita

E as verdades que vieram à luz
tomando pela mão
ao pobre para as trevas conduz

"Já tivemos essa conversa"

Aquilo que, por anos,
em silêncio por um lado acordado 
mas por outro...

A brisa do inverno parece que se foi
a primavera trouxe consigo o calor
e o meu peito, que sempre foi calor

Arrefeceu, não por querer
mas porque como água fria
arremessado se frustrou

E tudo o que era doce virou silêncio,
e o que era sonho, pó.
Nem o tempo, com sua lerdeza,
soube desfazer do górdio o nó.

Veio-me à mente o riso,
aquele leve, distraído,
que um dia pensei ser abrigo.

Mas era só vento,
soprando promessas em vão,
levando contigo meu coração.

Agora falo contigo apenas no pensamento,
numa espécie de prece sem fé,
pedindo que não me lembres —
e que eu te esqueça, se puder.

domingo, 12 de outubro de 2025

Fantasma da Madrugada

“E se tudo o que eu vivi não passou de um ensaio para o silêncio?” (Clarice Lispector)

Às vezes o luto não é pelo que se perdeu, mas pelo que não chegou a existir. Sonhos que ficaram em rascunho também doem. Freud dizia que o inconsciente não distingue ausência de morte. Por isso sofremos até pelo que só viveu na ideia. 

Não precisei de muito para perceber o quão distante ele estava de mim. Era uma noite fresca e ele tentava sustentar diversas conversas, e eu tentava ficar quieto. Aquele sorriso dele... Saber que, mesmo comigo, ele pensava em outras pessoas, era dolorido demais. E sei também que ele não percebeu, nem meu silêncio e nem a dor que ele significava.

Uma dor por algo que nunca existiu senão na minha própria mente. Mas eu só percebi a verdade tarde demais. Ele não era eficiente ou proativo porque essas eram qualidades inerentes a ele, não, ele agia assim quando isso lhe aproximava de alguma garota. 

Ainda sinto por aquele dia, em que nas trevas mais escuras eu clamei por ele e só pude ouvir o silêncio. Nem uma centelha de luz sequer.

E cá estou eu agora, insone numa madrugada, andando pela casa como um fantasma atormentado, tendo que cantar em algumas poucas horas e sem saber se vou conseguir me manter de pé até lá. 

No fim é sempre assim: eu preciso arranjar um jeito de me manter de pé. Mesmo não querendo. Mesmo não querendo mais. Eu já desisti, e ainda continuo levantando e tentando caminhar. Mas para onde? Completamente sem rumo, sem estrela que me possa alumiar a noite. 

Tenho lutado contra certo ímpeto de ira contra a falta de organização de uma pessoa. E me incomodado com essa subserviência de outro. E ainda triste por não ser prioridade na vida de outro. Mas sei que isso se deve, boa parte, ao fato de ficar demais em casa e, com isso, acabar dando atenção demais a esse tipo de besteira. 

É como se voltasse minha atenção completamente para a banalidade do meio. Não tenho conseguido ler, embora diga que, na verdade, só mudei de ritmo. A verdade é que tenho lido bem menos. E levo uma semana para ler um artigo que normalmente acabaria em poucas horas. Minha memória anda péssima, esqueço coisas que antes me eram simples, confundo nomes, digo bobagens. 

Tento me dissociar. Pensar naquelas melodias, me fingir de sonso, mas é difícil quando tudo me convida a essa banalidade. 

E talvez dormir seja apenas outra forma de compreender o indizível. É que o muito que se acumula, o que não é dito, porque não seria compreendido, porque seria um incômodo, porque não adianta. Porque seria gastar palavras e sentimento. Mas lançá-los ao vento como farrapos…  

No fundo, eu só queria o silêncio — aquele que não pesa, aquele que acolhe. Porque todos esses sentimentos que não são ditos, ou que não podem ser expressos apenas num beijo no rosto, porque tudo que há dentro do meu coração, acaba se tornando uma tempestade, e os ventos impetuosos me machucam, me revolvem para todos os lados. E por isso eu só queria uma campina, um bosque tranquilo onde, quando chovesse, ouvisse a água bater no telhado de uma pequena casinha e nas folhas das árvores ao redor. Mas o meu silêncio é outro: é o de um fantasma que assombra meu próprio coração.

Quem sabe, quando eu adormecer, Deus sonhe comigo. Não quero respostas. Quero apenas um instante em que o tempo pare de me doer. Eu já cansei de me perguntar se ele vai gostar de mim, se ele vai me notar, se eu serei alguém diferente na multidão, mas não, não serei. A desistência era minha única escolha. Ou melhor, não era nenhuma escolha. Era apenas o único caminho à minha frente, um agreste escarpado, o qual eu preciso desbravar, sem vontade, arrastando os pés sangrentos por uma terra árida de amor.

Talvez o que chamam de sono seja a alma voltando para casa. Digo isso assim porque em todo lugar, com todas as pessoas, me sinto sempre deslocado. Eu nunca estou na mesma página que todos os outros. E, mesmo não gostando do silêncio, eu gosto mais do silêncio do que do barulho. E então, no fundo do silêncio, eu me reconheço — e isso também é dor. Há um instante, antes de adormecer, em que tudo parece ter sentido. É quando percebo que, quando mergulhar na profunda escuridão, não precisei pensar em nada, nem lembrar, e esquecer da dor da solidão absoluta, na própria solidão absoluta. Depois, o nada volta a ser Deus.

“Há momentos em que a alma se esconde atrás do corpo, cansada de sentir.” (Clarice Lispector)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O desânimo de toda sexta

Clarice Lispector podia ter dito "se alguém não te quer, parte pra outra" mas ela preferiu dizer:

"Quando fazemos tudo para que nos amem... e não conseguimos, resta-nos um último recurso, não fazer mais nada. Por isto digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado... melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não façamos esforços inúteis, pois o amor nasce ou não espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes é inútil esforçar-se demais... nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende a nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de nada mais fazer"

Já acordei decidido a não viver esse dia. E sei que fiz isso a semana toda, mas quem se importa. Até me levanto por alguns instantes, atualizo as redes sociais da paróquia, mas de que adianta? Volto a dormir. 

Falei sobre isso com minha família algumas semanas atrás, e disseram que iam me ajudar. Mas tudo continua igual. Se passo o dia acordado, me sinto irritado demais com cada pequena coisa. Se durmo demais, fazem com que me sinta culpado por não ajudar. Ainda não comecei a procurar emprego, e já devia, mas cada vez que penso nisso, a única coisa que me vem à cabeça é enrolar uma corda no meu pescoço.  

Tenho tomado então um punhado de remédios, uns goles de vinho barato e dormido. Hoje é sexta, poderia dormir até mais tarde, mas amanhã tenho evento e, como sempre, primeiro eu marco as coisas e, depois, prefiro morrer a ter que ir. Isso porque não quero ver ninguém, nem falar com ninguém. Qualquer visão do outro me cansa. 

Mais uma vez pensei em sentar e escrever, mas acabei sem inspiração. Talvez tente ler um pouco, e depois volte a dormir. 

O barulho sempre me incomoda. Pude ter um brevíssimo momento de tranquilidade enquanto algumas pessoas dormiam e outras não estavam em casa. Me deitei no sofá e coloquei uma gravação da "Sinfonia dos Mil" de Mahler. Não cheguei ao intermezzo orquestral, mas valeu.

Fiquei um bom tempo deitado ouvindo a tempestade ao meu redor. E não me refiro à chuva. Mas quero assistir hoje, até um pouco mais tarde. Não sei como vou organizar meu sono, é impossível ficar acordado o dia todo. Queria pintar as unhas. Fazer a barba. Não sei se vou conseguir.

Assim como acordei decidido a não fazer nada quanto a este dia, também estou decidido a não dar nenhum passo mais em direção a ninguém. Bem sei que não costumo ter uma vontade firme nesse campo e, não raras vezes, acabo cedendo ao primeiro sinal de atenção e carinho. No entanto, os dessabores das últimas decepções deixaram em mim tão profunda descrença que, penso não ser capaz de amar novamente. 

Quando fecho meus olhos e examino meu coração, tudo que vejo é como um jardim ressecado, abandonado, num dia que se findou, iluminado por apenas uma pequena arandela que pisca, sinalizando que, como aquelas flores, logo também será apenas um fantasma. Bom, mas o que posso fazer? Não hei de fazer nada. 

"Eu escrevia visceralmente, alguns odiavam, outros amavam. Eu não estava nem aí. Apenas bebia mais e escrevia mais poemas. Minha máquina de escrever era uma metralhadora e estava carregada." (Charles Bukowski)

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

A Invisibilidade Sensível

“Quanto mais se ama a humanidade em geral, menos se ama o homem em particular.” (Fiódor Dostoiévski)

Em alguns momentos eu me deparo com coisas que me enchem, ou ao menos me encantam, de algum tipo de prazer. Me refiro aqueles lampejos de beleza, aquelas pequenas experiências que fazem o coração se encher. É como um suspirar: enche-me os pulmões de fôlego por um instante. Gosto delas. Muito embora não sejam nada como um sentido para a existência, claro, elas são um alento, uma espécie de bálsamo por sobre essa ferida aberta que chamam de existência. 

Mas aí, como acontece com tudo que amamos, eu desejo compartilhar. Como nossa comida favorita, o filme favorito, a música favorita, a cena perfeita daquela série. No entanto, quando me lembro que, para o outro, isso nada significa, que não importa de modo algum. Essa é a constatação da distância intransponível entre duas pessoas.

E é por isso que eu silencio. Em momentos assim eu apenas aprecio, fecho os olhos e tento guardar essa experiência para mim. E não faço mais nada, porque qualquer mais que fizesse não valeria nada. Cada uma das palavras que escrevo sobre esses instantes de beleza que explodem no ar e depois desaparecem, são a minha tentativa de escrevê-las de modo profundo no meu próprio coração. Pois já desisti de tentar chegar a outro coração. 

"Existe amigo mais chegado que um irmão." (Pr 19, 24)

Não duvido, mas creio que não seja o caso. Afinal, que amizade pode haver quando um dos lados só se preocupa com os outros, e deixa o amigo padecer só, sem um consolo sequer? E, o mais brutalmente irônico, é que ele correria a socorrer, e jamais esquece os pedidos feitos pelas meninas. E depois vem falar de amizade? Isso é conveniência. Sei que nossas relações são pautadas pela conveniência, mas para tudo tem um limite. Quando o discurso da amizade é apenas isso, bem, é outra demonstração da completa distância entre dois corações. 

Uma vez preso no eterno retorno da solidão, talvez aceitar isso seja minha forma de tornar-me um super-homem. 

Isso me leva recente publicação do primeiro documento magisterial do Papa Leão XIV, e determinado ponto me chamou atenção:

"O amor cristão é profético, realiza milagres, não tem limites. O é sobretudo uma forma de conceber a vida, um modo de a viver. Assim, uma igreja que não coloca limites ao amor, que não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar, é a Igreja que o mundo hoje precisa."

Bem, tendo a visão evangélica dos pobres, no sentido patrístico do termo, o que muito provavelmente não será percebido, essa posição cristalizada através dos séculos e uma vez mais apresentada se revela justamente pela necessidade que temos em perceber o outro. É engraçado pensar na questão do pobre, leia-se vulnerável, quando nos encontramos num estado de vulnerabilidade. Daí percebemos a necessidade de atenção do outro, da caridade cristã que transforma. Por isso a insistência de Cristo na simplicidade: a vida simples nos impede de esquecer de olhar o outro em suas necessidades. 

Não estou fazendo uma defesa superficial, como a fazem os ideólogos da teologia da libertação, que acreditam que até mesmo o uso da batina seja um sinal de ostentação, mas sim uma defesa daquela vulnerabilidade que, sendo profunda, muitas vezes nem mesmo se revela visualmente no outro. 

Guardadas as devidas proporções, eu me recordo de um Santo Inácio de Antioquia, bispo, que em sua prisão no caminho para Roma era, por um lado, maltratado pelos soldados e, por outro, consolado pela comunidade cristã ali presente que o reconhecia como sucessor de Pedro na sede de Antioquia. Isso porque a visão que me remonta Santo Inácio é de um homem forte, aquele autor das cartas que mostram uma Igreja firmemente centrada na Eucaristia e na vida comunitária. Mas, esse homem de voz forte, foi preso e lançado às feras. 

Provavelmente um bispo não é exatamente o que pensam quando a Igreja fala em "pobre", mas isso porque, como em tudo mais, só enxergam a palavra em seu significado dicionarizado, superficial e imediato. No entanto, o pobre é aquele que se encontra em maior vulnerabilidade em dada situação.

Queria me deter um pouco mais nisso para meu próprio proveito, é claro, mas sem a pretensão de explicar isso para os outros. No entanto, prefiro fazê-lo quando eu mesmo examinar mais detidamente o texto. Essa foi apenas minha impressão após uma leitura inicial.

De algum modo, a percepção que as pessoas tiveram da mesma, a esmagadora maioria lendo apenas o subtítulo de manchetes e se detendo na "preferência pelos pobres", acabam fazendo justamente uma leitura pobre. 

Isso me leva a uma certa impressão de um estado de loucura, ou de limite psicológico ao qual todos estamos submetidos. Esse sentimento de instabilidade financeira que afeta o emocional e que, por isso, nos impede de mudar a situação financeira, é como uma aglutinação de problemas. E então parece que todos estão cada vez mais impacientes. 

Meu pai tem tomado para si cada vez mais a obrigação de cuidar do bebê, enquanto a minha irmã não só se afasta dessa obrigação como a faz de modo desleixado para que justamente os outros tomem para si essa responsabilidade. Mas isso se torna um peso demasiado quando se junta a instabilidade financeira que estamos passando, em partes por minha causa, já que estou desempregado e em tratamento, e fica ainda pior quando penso que não me vejo ainda recuperado o suficiente para procurar outro emprego.

Aqui reconheço certo descontrole de minha parte em pensar em problemas antes mesmo deles aparecerem. Mas já imagino, por exemplo, voltando para a docência, e fazendo de tudo, menos dar aula, ocupado com aquela maldita burocracia. O que não muda muito do meu último trabalho, onde, privado do atendimento e do contato com o outro, eu precisava resolver problemas e mais problemas. E acho que ainda não consegui me livrar disso. 

É o terceiro dia da semana que quero dormir. Um amigo quer me ver. Uma amiga me chamou para sair. Mas eu só quero dormir. Queria ajudar mais com o bebê. Mas eu só quero dormir. Eu só quero dormir.

“Cada coração é um abismo; e ninguém pode atravessá-lo.” (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Sombras Entre Sombras

“A glória do mundo é transitória.” (Tomás de Kempis)

Me recordo de várias vezes ter chegado em casa cansado, depois de um longo dia de atividades como foi ontem, mas sempre com aquele sentimento bom de dever cumprido, que fazia valer as dores no corpo e o sono do dia seguinte. Mas dessa vez não foi assim. 

Passei boa parte do dia conversando, fotografando, indo de um lado para outro, socorrendo em diversas urgências. Deveria ficar feliz de, ao menos, passar algum tempo falando com amigos. Mas não. Tudo que senti quando voltei para casa foi um grande vazio. Sinto que todas as conversas, e abraços, e sorrisos, não passavam senão de frivolidades, amenidades e que, em nenhum momento, foram reais. 

A bem da verdade, não faria muita falta se não estivesse ali. Claro, não é como se alguém fosse realmente insubstituível, de fato se alguém não estivesse ali, talvez eu nem percebesse também. Mas entre ser insubstituível e ser absolutamente dispensável, há uma grande diferença. 

Ainda que todos tenham uma história, algo além das aparências e que nem sequer consigo supor, ainda assim é como se todos, inclusive eu, não passassem de sombras, pairando, flutuando, mas sem consistência, sem importância. De fato, observando tantos séculos de história, quantas milhões de vidas passaram que, hoje, ninguém se dê conta de sua ausência. Até mesmo em seu tempo, as pessoas sentem falta de quem se vai por alguns dias, em caos raros até anos, mas no fim, inevitavelmente seremos todos esquecidos. 

Isso significa, no entanto, que devemos lutar para que nos tornemos memoráveis ou que podemos abraçar a nossa insignificância e então realmente viver como se nada que fizermos terá a mínima importância. Acredito que sim, não consigo pensar em nenhuma razão que justifique suportar as angústias da vida. Ao fim do homem, apenas o esquecimento nas areias do tempo. 

Amizades, amores correspondidos ou não, desentendidos. Tudo isso findará, e logo ninguém mais se lembrará desse tempo senão com o desprezo de um tempo retrógrado. Não seremos nem mesmo sombras. 

Acho que essa sensação advém do fato de eu não conseguir me conectar. Vejo nos olhos de todos, ou melhor: não me vejo nos olhos de ninguém. Sinto apenas desprezo. Como se eu tivesse certo dom de invisibilidade, mas que, no meu caso, é mais como maldição.

E no dia seguinte já se lembram de mandar mensagens pedindo coisas. E há não muitos dias me encontrava completamente sozinho.

Ao fim, ninguém se lembrará de nós — e talvez seja esse o único consolo.

“Entre ser lembrado e ser esquecido, há o mesmo nada.” (Franz Kafka)

sábado, 4 de outubro de 2025

A festa dos outros, o meu exílio

"Amar magoa. É como se oferecer para ser esfolada, e sabendo que a qualquer momento a outra pessoa pode simplesmente ir embora levando a sua pele." (Susan Sontag)

Comentei esses dias sobre não querer ficar na prisão da cama, ao mesmo tempo que também não quero ficar acordado. E então, no meio dessa dicotomia, me vejo perdido. 

Ele me disse que tem refletido em algumas mensagens, algo como meditações cristãs a partir de aforismos, como muito se fez com Imitação de Cristo ou Filoteia. Bem, a minha tendência é não acreditar mais nisso. Não enquanto essas pessoas perdem-se em devaneios floridos, cheios de bela moral cristã, e ignoram o irmão que sofre ao lado. Acho que as cicatrizes deixadas por essa decepção vão demorar sarar. Enquanto isso eu peço a graça de perdoar… 

Embora já tenha tomado remédios pra dormir hoje, e acordar faltando pouco tempo pra missa, eu não queria dormir, mas também não queria ficar acordado, nem pensar no que eu faria se ficasse acordado. Essa perspectiva me incomoda. E me machuca. E acho que talvez por isso, por causa dessa incerteza sobre o que fazer, reflexo da incerteza sobre o que ser, vinda de uma longa sucessão de erros, abandonos e verdades frias como aço encaradas de frente cortando minha carne, eu deveria dormir, e não pensar em nada disso. Mais importante ainda, não pensar em ninguém. 

Gostaria de poder ignorar as obrigações do fim de semana. Tem sido sempre assim, todas às vezes que eu preciso ficar muito tempo num lugar com muita gente eu me sinto enjoado e quero ir embora. Não são como um ensaio de canto, com hora para começar e acabar, mas uma festa, que começa cedo, com centenas de pessoas conversando ao mesmo tempo, nenhuma delas comigo e, ainda assim, eu preciso tirar fotos, esperar que sorriam, achar algum motivo para mostrar aos outros que aquele é um bom momento sendo que eu não acredito nisso nem sequer por um instante. 

Fico diante daquela multidão com essa profunda descrença no peito. Ouvi os músicos reclamarem que o padre pediu silêncio antes da missa, mas como era uma missa festiva deveria ter um momento de músicas animadas. O que enxerguei eram pessoas que só estão esperando o momento certo para se tornarem protestantes, músicos que tiveram aquele sonho de infância frustrados e que agora extravasam isso colocando uma maldita bateria numa igreja de proporções pequenas demais para isso. 

Bem, mas isso também não é um problema meu. Coloquei um headphone para abafar o som daquela bateria ridícula e segui minha vida. Penso em como vou fazer para escapar hoje a noite, e amanhã também. Bom, poderia apenas dar às costas e sair, afinal ninguém nunca se incomodou em fazer isso comigo. Todos sempre foram embora sem nenhuma explicação. 

“Tudo me cansa, até o que não me cansa.
A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.”
(Álvaro de Campos)

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Fugindo dos dias

“As pessoas são a pior coisa que já aconteceu ao planeta.” (Charles Bukowski)

Continuo fugindo dos dias. Deveria regular meu sonho, e estava firme nesse propósito. Ou, talvez, nem tão firme assim. Hoje novamente encho a cara de energético para ter mais sono amanhã e não ficar acordado durante o dia e, como foi hoje, dormir o máximo que puder. 

Ficar acordado durante o dia tem sido insuportável. O volume de pensamentos ruins que me dominam é mais do que eu posso suportar. 

Me lembro das traições do último fim de semana. Daquele que me trocou pelas meninas e daquele que me deixou no silêncio enquanto era assolado por ataques de demônios. Não quero pensar nisso. 

Ele me magoou. E eu o aceitei de volta. De frente ao Santíssimo Sacramento pedi que pudesse perdoar, para não carregar esse sentimento dentro de mim. Tente entender, sua idade, suas limitações. Mas a verdade é que simplesmente não sou importante assim para ele. Não o odeio, mas odeio a mim, e é a mim que deveria perdoar e pedir perdão por aceitar isso.

Não quero ouvir aquela mulher nojenta maltratar o meu sobrinho sem que eu possa fazer nada. Se pudesse eu tomaria a guarda dele e me tornaria seu pai, mas não posso fazer isso quando não pretendo nem mesmo chegar ao fim da semana com vida. Eu apenas traria mais e mais dor aquele pequeno.

Não quero conversar, ao mesmo tempo que queria me sentar e falar a alguém o que sinto, o que senti quando me entupia de remédio, querendo morrer ou, ao menos, apagar por alguns dias, e o meu "melhor amigo" sorria e cantava na igreja palavras de amor cristão. Vazias, cada uma daquelas palavras e frases de efeito. 

O outro não é diferente. Já não somos mais os amigos de antes. Sabemos disso, mas acho que só eu sinto pesar pelo fim dessa relação. E então me vejo só. Indo embora sozinho da festa, sem que ninguém perceba minha ausência. 

Estou cansado, quero chorar, mas nem isso consigo mais. 

Tentei assistir, mas precisei me esforçar para me concentrar e, ainda assim, sinto que não vi nada. Pensei em rever aqueles episódios "conforto" de Bleach, ou continuar vendo Sousou no Frieren, ou ainda algum filme. Tentei me forçar a dormir ao menos por volta das três, mas são apenas duas da madrugada e já estou caindo de sono. 

De todo modo, amanhã não pretendo ficar acordado, não consigo, a realidade tem sido insuportável demais. 

“Tenho nojo da vida.” 
(Fernando Pessoa)

A dor de partir e a dor de ficar

"Entender a dor de quem foi abandonado é fácil, mas e quem precisa partir?" (ThamePo, 2025)

Desde o fim de semana eu pensei em rever ThamePo, primeiro porque já há bastante tempo venho querendo maratonar uma série de novo, além de que o clima melancólico, as cenas silenciosas, a profundidade dos olhares e os diálogos de dor, o tema dos amigos que se separam... Acho que nem eu mesmo entendi porque isso mexeu tanto comigo na época do lançamento, mas, ao rever o primeiro episódio, eu entendi: é porque eu sentia ambas as dores dos protagonistas. 

Entendia a dor dos meninos que eram deixados, abandonados, como que trocados por algo melhor. Ao mesmo tempo que entendia a dor do Thame de ver tudo desmoronando mesmo fazendo seu melhor pelos amigos. E então, o que era para ser demonstração de amor entre os amigos, acabou virando um clima desagradável, olhares frios e cheios de rancor, lágrimas de dor que brotavam de cada um daqueles rostos. 

Tenho sentido isso. Esperei a companhia dos amigos e me vi sozinho, e vi ainda a mobilização para ajudar os outros. Entendi agora que, embora as situações sejam diferentes, o sentimento de abandono e traição são o mesmo. E, ao constatar isso, sinto que devo suportar a dor de partir e então voltar os meus sentimentos para dentro de mim. É isso, as coisas são assim, e eu fiz o melhor que pude, e elas continuam desmoronando. Bem, acho que preciso me acostumar. Como as lágrimas que descem em meu rosto, tudo o mais sempre desmorona. 

Não há, na vida real, momentos bonitos como acordar e ver que alguém passou a noite acordado com você esperando para tocar sua música favorita. Não. As pessoas me mandam mensagens cobrando coisas e pedindo conselhos. Ou elas mentem deliberadamente. Para mim não há uma terceira via. 

A chuva caindo lá fora mostra que o tempo não para, ele avança sempre. Escuto meu sobrinho chorar no quarto ao lado e lamento porque a mãe dele é a pior coisa que poderia acontecer com alguém. E o tempo vai passar para ele também, e ele vai precisar sobreviver a ela. Isso é algum tipo de maldição. Não consigo enxergar a vida de outro jeito. 

Dormi o dia inteiro. Não queria ver e nem falar com ninguém, e estou tentando não pensar no fato de que vou ter que encarar uma igreja cheia agora à noite. Queria continuar dormindo, ou assistindo quieto, e sozinho. É isso, me deixaram tanto tempo só que agora a presença das pessoas me incomoda. Ideal mesmo seria nem acordar. Hoje, como nas últimas noites desde sexta passada, eu vou dormir fazendo a oração mais sincera, pedindo a Deus que não acorde no outro dia. 

“Sinto-me tão lúgubre, tão sem coisa nenhuma, tão sem ninguém com quem poder ter qualquer coisa, tão órfão desta sensação…” (Álvaro de Campos)

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

À Beira da Ressaca


"Cada sonho é um existir de outro sonho. 
Ó eterna desterrada de ti própria, ó minha alma." 
(Álvaro de Campos)

Mar em ressaca, naquela violenta existência pós-tormenta, em que as águas cinza tudo atraem a si com a  força agressiva de um titã. Observo da margem, com olhos mais cinzas e mais frios que os daquele mar. Contemplo o horizonte sem de fato olhar. Apenas sinto a absoluta solidão enquanto as águas revolvem-se diante de mim, abafando todo é qualquer som de outrem que passe atrás ou ao lado. Já não viro o olhar, não busco encontrar alguém nem tampouco que me encontrem. Talvez nem mesmo se possa dizer que exista ali, ao menos não materialmente. Ou existo apenas não materialmente, mas não completamente. Sinto-me como uma ideia, algo pairando sem muita consistência, prestes a desaparecer. Apenas observo a virulência fundamental ou, como a chama, a vida. As gaivotas voando distante são como fúrias lutando no ar. Imagino guerreiras ferrores com lanças e espadas travando uma guerra cuja motivação eu não consigo entender. Não tenho disposição para lutar mais. 

Apenas observo, com os olhos cinza, cheios de nada e cansaço, a ressaca do mar depois da grande tempestade. 

Penso nas pessoas que estão em casa. Não sei se o que elas tem é esperança ou desespero, o limiar entre ambos tornou-se confuso para mim. Essa espera por uma mudança, uma melhora. No próximo mês, no próximo semestre, no próximo ano. E então vejo que eles esperam essa melhora há mais de trinta anos, que vieram para o Sul em busca de uma melhora. Mas nada mudou, nada melhorou, pelo contrário, com o aumento da família apenas aumentamos o número de desesperados. 

Eu não espero que as coisas melhorem. Percebi que não posso esperar nem mesmo que continuem assim. Só posso prever que elas piorem, que me esmaguem cada vez mais. Ecoam em mim os versos de Cartola, "mal começastes a conhecer a vida, e já anuncias a hora de partida (...) em cada esquina cai um pouco tua vida, em pouco tempo não serás mais o que és." Me encontro algo assim, os contornos desapareceram, sinto como se minha mente tenha perdido a capacidade de dizer quem é. 

A esperança se foi, ela desapareceu como se fosse uma estátua de areia, perdeu-se no tempo e no vento. Foi triturada como num moinho, lembrando novamente o poeta, reduzida com as minhas ilusões a pó. 

Mas também vieram alguns aprendizados: o mais importante deles é de não esperar nada da vida. Ela não nos dá nada. Apenas tira, e pouco a pouco vai tirando, até que não sobre mais do que isso, pó. Somos estátuas de poeira, a espera daquela pequena brisa que no leve de uma vez para sempre ao nada.

Não espero amor, tampouco amizade, nem mesmo o menor indício de compreensão. Não espero nada. Não espero que os segredos sejam revelados senão quando for melhor aos outros e mais destrutivo para mim. Não espero nada diferente da traição, do punhal cravado nas costas. Além disso, mais nada.  

Não sei se quero dormir o resto do dia. Tenho começado a sentir medo dessa prisão na minha cama. Mas temo igualmente a vigília e as dores que os outros me causam. Queria poder, em silêncio, viver em eterna solidão, e não ser obrigado a esta solitária vida em meio a agitação do mundo. 

"Ah, tudo isto é para dizer apenas
que não estou bem na vida, e quero ir
para um lugar mais sossegado, ouvir
correr os rios e não ter mais penas.

Sim, estou farto do corpo e da alma
que esse corpo contém, ou é, ou fazse...
Cada momento é um corpo no que nasce...
Mas o que importa é que não tenho calma.

Não tenciono escrever outro poema
Tenciono só dizer que me aborreço
A hora a hora minha vida meço
E acho-a um lamentável estratagema."

(Álvaro de Campos)