sábado, 6 de dezembro de 2025

Ecos da condição humana na Ressurreição de Mahler I

Sinfonia N°  2 em Cm - "Ressurreição", de Gustav Mahler

A Ressurreição de Mahler é, antes de tudo, uma anatomia do desamparo. Cada movimento parece tentar sustentar algo, uma memória, a fé e seus abalos, a incessante busca de sentido. Até que a própria estrutura cede sob o peso do mundo. O que resta é o que Mahler sempre buscou: uma fração da alma que resiste mesmo quando tudo mais parece se desfazer.

I. Allegro maestoso (Totenfeier)

Com a explosão tensa das gordas somos levados, de sobressalto, a um surto interno: uma alma que percebe que não consegue mais se sustentar dentro de si. A música tem o gesto de um corpo que cai repentinamente, como se a consciência fosse lançada para fora de seu eixo. É um susto, uma abertura pessimista. As cordas, especialmente violoncelos e contrabaixos, tão tensas que parecem feridas, traçam o início da vida e da morte no mesmo gesto. Eles abrem com uma figura violenta e abrupta, quase uma queda física. É uma das mais dramáticas aberturas do repertório sinfônico, e anuncia que toda a obra se moverá entre colapso e resistência.

Mahler tem, a meu ver, essa capacidade de ver a alma de modo tão profundo e expressar os seus afetos mais contraditórios em suas notas que sempre me pego imaginando como seria sua mente, em que seu coração se detinha continuamente.

E essa tensão entre queda e negação é o estado espiritual do movimento inteiro: uma alma que luta contra o próprio desaparecimento. Já nos primeiros compassos somos arrebatados: algo brutalmente sério está acontecendo. É a vida, essa sucessão de alegrias fugazes e finais que se anunciam no horizonte, seja o fim do dia ou dessa mesma vida.

Mahler constrói, desmonta, e constrói de novo, como alguém que tenta reerguer uma casa durante um terremoto. Entre uma tragédia e outra, cada silêncio é um abismo. Cada explosão, uma recusa. Passagens delicadas, mas que nunca perdem esse crescente pessimismo, se contrastam. Um brilho cor de rosa, aquele entardecer colorido, uma esperança longínqua que só veremos muito à frente. Para isso, as madeiras agem como um colapso da consciência: o clarinete e o oboé surgem como interrupções, pequenos lampejos mentais que não deixam o tema se estabilizar.  No entanto, agora, tudo que vemos é um corpo que cai na terra, no lamaçal. É o grito da existência quando ela percebe que vai morrer. 

Perdida, entre o desejo e o medo da morte, num tema lírico apresentado pelos violinos e as viola que se prolonga em paisagens, como se, mesmo no chão, o pobre homem avistasse uma flor distante, crescendo em meio ao pântano. Como ela veio parar aqui? Ah, próximo há um campo florido, e o moribundo pensa sentir o perfume dessas flores. O mesmo tema vai aparecer algumas vezes, sendo interrompido e retornando. Os trombones e trompas aparecem não para reforçar o drama, mas para interrompê-lo com blocos harmônicos que parecem perguntas metafísicas. Justamente por isso não poderiam ser colocadas em palavras, senão apenas na música, ensinada pela alma, como dizia Platão. Esses metais são como “paredes sonoras” que colocam freio ao impulso de tensão.

A reação do mentor de Mahler, o maestro Hans von Bülow, quando o compositor tocou a partitura ao piano em 1891, atesta a natureza radical da música. O maestro mais velho tapou os ouvidos e insistiu que a peça era tão incompreensível que fazia Tristão e Isolda, de Wagner, soar como uma sinfonia de Haydn. “Se o que acabei de ouvir ainda é música”, disse ele, “então não entendo mais nada sobre música”.

No fim, temos a transição antes da recapitulação, em que a orquestra inteira parece mergulhar para dentro de si mesma, num tutti que se desfaz subitamente em cordas trêmulas. A alma oscilando na beira do abismo, daí o título "Totenfeier", rito fúnebre. O rito da alma que pende ao fim.

II. Andante moderato (Ländler)

No segundo movimento, Mahler faz algo desconcertante: introduz uma dança. Uma dança depois de algo declaradamente fúnebre. Um Ländler, dança popular com poucos movimentos, suave, pastoral, quase doce, mas que nunca se acomoda por completo. É a memória idealizada da vida simples, não a vida em si. De algo singelo como uma breve troca de olhares, os morangos silvestres num canto escondido do jardim. O tema retorna sempre ligeiramente distorcido, como se o passado não pudesse mais ser reproduzido sem rachaduras. Sempre me pareceu uma valsa, sem realmente o ser. 

Quando ouvi esse movimento pela primeira vez, isolado do restante da peça, para um trabalho escolar, me perguntei por qual razão uma obra chamada "Ressurreição" me soava como uma espécie de dança macabra. Não entendia naquela época que se tratava de uma construção: não pode haver ressurreição sem antes passar pela morte, e a ressurreição aqui é justamente construída lentamente, como um grande dia de tempestade, numa manhã nublada, depois pequenos raios de sol que conseguem transpor aquela muralha de nuvens iluminam as pétalas das flores, depois a chuva brutal a destruir tudo para, finalmente, abrir o sol, lentamente, porém iluminando todo.

Os violinos apresentam o tema doce, quase ingênuo, com vibrato controlado, criando uma cor rósea, mas antiga. Mahler marca explicitamente na partitura: sehr gemächlich (muito tranquilo), para saturar a música com nostalgia. Não são todos os maestros que conseguem conter o ímpeto da orquestra e manter esse sentimento, já o ouvi por vezes acelerado demais, dando a impressão de ansiedade em demasia. De todo modo, ele nos leva a contemplação, como a participação breve, mas simbólica da harpa em pontuações que soam como lampejos de memória idealizada. Talvez seja como um sono da tarde, aquele em que deixamos cair o livro no colo e nos entregamos a uma fantasia entre sonho e realidade.

A seção central mais turbulenta, em que o Ländler quase se desfaz, com pizzicatos secos contrastando com arcos longos, mostra memória que, aos poucos, se torna um fantasma. A ansiedade está presente, mas é etérea. 

É a alma ainda tentando lembrar-se de um lugar onde havia ordem, onde o tempo fluía sem resistências. Mas o mundo já não permite essa inocência. A beleza aqui é sempre ferida, ou pelo menos ameaçada. Os fagotes e o contra-fagote entram discretamente em momentos-chave, lembrando que a doçura tem um fundo de peso, como uma sombra na borda do quadro. Mas, ao menos, há beleza para ser recordada. 

O segundo tema traz oscilações rítmicas mais irregulares, que parecem querer “romper” a ilusão pastoral do primeiro. É a lembrança que começa a rachar. A tensão que as mesmas cordas, outrora sonhadoras, agora ameaçam e criam como uma moldura ao do passado. Mas é tarde demais. O movimento é como olhar uma fotografia antiga enquanto se sabe que nada daquilo volta. Talvez ela esteja em chamas, queimando lentamente enquanto, sentado numa cadeira velha, o homem observa os últimos traços de seu passado se esvair em cinzas e fumaça que some por entre seus dedos.

Daí talvez a grande incompreensão de Mahler. Muitos o julgam difícil, embora seja um dos compositores mais executados, mas suas peças são longas, cheias de detalhes que passam despercebidos, e nuances: cada compasso tem várias camadas de significado, mostrando mais uma vez a complexa profundidade daquela alma. Mahler meu caro, deixaste teu testamento, mas não conseguimos te entender completamente, apenas fechar os olhos e nos deixar levar pela cadência dessa valsa que, com poucos movimentos, nos envolve e nos leva pela mão até partes mais escuras da pequenina vila em que estamos festejando. 

continua

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