segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A Morte, o Juízo e a Esperança: uma leitura do Dies Irae II

Leia a primeira parte aqui

Em consonância com a Teologia Patrística, São João Paulo II afirma a iluminação da dor pela expectativa da Ressurreição: “O sofrimento humano foi assumido por Cristo e, na sua Páscoa, tornou-se caminho para a vida.” Enquanto o mundo silencia sobre a morte, por um desespero silencioso, a Igreja consola seus filhos na voz do Papa: “A morte não é a última palavra sobre o homem, porque o Filho de Deus penetrou na própria morte e dela fez o início da vida eterna.”

A comunhão dos santos é, para nós, de imenso valor, pois, sendo homens e mulheres como nós, também experimentaram nossas dores e nossos medos, mas encontraram em Cristo a força que lhes fizera confiar plenamente na esperança escatológica. São Gregório Magno, homem de grande sabedoria, confessa, em um de seus sermões, o que sente o homem diante da iminência de seu fim: “Temamos o Juízo futuro, irmãos, e purifiquemo-nos agora para não sermos condenados então. O que não corrigimos em nós na vida presente, o Juiz eterno o julgará com rigor.”. Mais tarde o pecador arrependido vai gemer, prostrado, como réu diante do Juiz. Mas, também como pai e pastor da Igreja, conforta o coração inquieto ensinando onde encontrar a luz: “Desejemos as alegrias eternas, onde não há temor de perder o que se possui, nem dor de procurar o que falta.” Unindo então as duas realidades, São Gregório como que nos mostra uma visão de fogo, mas o fogo do Juiz é o amor que purifica e a verdade que revela. O juízo de Deus é fogo que ilumina: queima a palha, mas revela o ouro. O rosto de Cristo é como uma chama amorosa que revela o que somos sem nos esmagar.” O Dies Irae não canta um fogo de destruição, mas o fogo de um Deus que deseja consumir em nós apenas o que não é amor.

A profundidade da teologia de Santo Tomás de Aquino não condiz com a frieza que normalmente apontam sua obra, nos meios não católicos. Pelo contrário, um coração frio jamais seria capaz de compor os mais belos hinos à Eucaristia, senão que só poderiam ser obra de uma alma ardente. Sem rodeios, ele apresente a morte como essa separação dolorosa e a recompensa perfeita que é a vida eterna transformada pela redenção em Cristo. “A morte, enquanto separação violenta da alma e do corpo, é a mais terrível das coisas naturais.” Mas não permanecemos nela, e podemos retomar a visão do rio, e a morte como passagem, dura, é verdade, mas certa do porto ao qual chegaremos: “A morte foi vencida pela morte de Cristo; assim, aquilo que era causa de temor tornou-se caminho para a vida.” 

Por fim, ao termo da viagem, encontramos algo tão perfeito que, mesmo tendo buscado a vida toda, não poderíamos imaginar tamanha beleza: “A felicidade perfeita consiste na visão da essência divina.” Essa essência é aquela sabedoria que nos criou e para qual desejamos voltar, já nos tendo esquecido de sua perfeição. Essa posição teológica tratada com seriedade e esperança foi recentemente retomada por Bento XVI: “o juízo de Deus não é um tribunal de horror, mas o lugar onde a verdade se torna amor e purificação.”

Com efeito, a visão de Santo Tomás que o fez optar por não mais escrever se dá porque ele reconhecia que, embora fosse genial escritor, ainda assim não conseguiria exprimir toda beleza que viu, condensando-a assim, como uma promessa. Optou pela contemplação amorosa.

Essa promessa é muito bem descrita pela poética teologia da tradição carmelita. São João da Cruz, o qual já me referia sobre a imagem da Noite Escura, enquanto Santa Teresa d’Ávila trata esse mundo como um nada diante de Deus. Reconhece a beleza que nele há, mas exalta que é uma beleza passageira. “Tudo passa, Deus não muda. A paciência tudo alcança.” Esse mundo logo passará, findará, e então nascerá o dia sem fim, essa expectativa pelas núpcias é, a meu ver, o eixo da sua obra: “A vista do que Deus prepara para nós na outra vida faz com que as dores desta nos pareçam nada.” Teresa anseia pela visão do Amado mais do que qualquer coisa. 

Essa expectativa pelo Amado aponta a morte como momento decisivo e a misericórdia como esperança, sem perder aquela seriedade que lhe é própria, um temor. A complexidade desse pensamento foi melhor expressa com o auxílio da música. Verdi em seu Requiem como que condensa a teologia cristã do Juízo Final, como bem dito nos já citados, mas também em Santo Afonso em sua Preparação para a Morte: séria, decisiva e misericordiosa.

Introito do Requiem é como o murmúrio de um cemitério ao amanhecer. O coro entra em voz baixa, quase um sopro que se levanta do pó da terra, como se as almas, recém-despertas do silêncio da morte, ousassem pronunciar pela primeira vez a palavra descanso. Tudo ali é bruma, véu, cinza e, ainda assim, promessa. É o pedido humilde do coração humano: que a eternidade não seja pesadelo, mas repouso; não vazio, mas luz.

Três clamores se alternam como ondas que se quebram na praia da misericórdia divina. Kyrie Eleison, Christe Eleison, Kyrie Eleison, o nome de Cristo é o único som firme no mar de fragilidade humana. Verdi faz a alma ajoelhar: não diante de um juiz implacável, mas de um Deus que conhece os abismos do homem e os chama pelo nome. É súplica, mas também confiança, como o olhar de um filho que implora e espera ao mesmo tempo.

Desaba o céu e os trovões rasgam o firmamento. A orquestra explode como o terremoto do último dia, quando montanhas se movem e os mares se levantam como muralhas. O coro grita como multidão diante da verdade absoluta: o dia da ira não é capricho, mas revelação; não é destruição, mas desvelamento; não é horror, mas a justiça em sua pristina forma. É o estremecimento da criatura diante do Criador.

E entre esse caos, Verdi faz surgir um instante terrível e belo: um sopro quase silencioso do coro murmurando “Quantus tremor est futurus…” porque, no fundo, o medo humano não grita: se estreme.

Dies Irae de Verdi é um ícone sonoro do momento em que Deus desce com toda a Sua verdade, e o mundo inteiro se reconhece pequeno, frágil, pó. Mas também é súplica, porque cada explosão é seguida por um pedido: “Recordare…” Lembra-Te, Senhor.

A pergunta “Que poderei eu dizer?” sobe como uma brisa triste, mas também honesta. É o reconhecimento de que a salvação não nasce das mãos humanas. Cada voz treme como folha ao vento do juízo e Santo Afonso nos alerta com gravidade: “A morte é a porta da eternidade: feliz de quem a encontra em graça!”

O Offertorium e o Sanctus mudam o tom, assim como aquela severidade de Santo Afonso se convertem em reflexão sobre a Pátria Eterna: “No paraíso não se deseja nada, porque nada falta; ali se possui o Sumo Bem.” É tranquilidade depois do abismo, música que sobe como incenso. O movimento é vertical: ascensão da alma que se oferece a Deus. Oferendas e preces a Ti, Senhor, conduzidas por luzes que já não queimam, mas acolhem.

Um clarão de felicidade inesperada, como se, após toda a dor do juízo, os céus finalmente se abrissem. É dança, é sol, é glória. O coro canta como multidão de anjos, com brilho e velocidade jubilosos. O Requiem se encerra não com triunfo, mas com esperança humilde, como se dissesse: “A eternidade começa na entrega.” Não apresenta o Paraiso, chegamos até sua antessala. O restante devemos ver por nossa própria conta. Essa bela visão nos é sugerida por São Francisco de Sales: “A morte não deve ser temida pelos que amam a Deus, pois é a porta da verdadeira vida.” A posição cristã é a da serenidade, não desleixo e pecado, claro, mas esperança na misericórdia, Deus conhece nossas fraquezas mais que nós mesmos.

A eternidade deve ser vista como primavera sem inverno. Se, nesta vida, o coração experimenta invernos de dor, a eternidade é a primavera em que todas as flores brotam ao mesmo tempo. Ali, não existe mais noite, nem frio, nem lágrimas, apenas o calor do amor que tudo preenche. 

Como o Liber Scriptus, vemos a própria vida como um livro que Deus escreve e sela pela morte. Não contém apenas nossos pecados, como muitos o creem, achando que Deus deseja nossa condenação. Pelo contrário, ele deseja ardentemente nossa salvação. Nesse livro, cada dia é uma linha; cada dor, uma sílaba; cada graça, um adorno. Ele mesmo quer de nós a esperança de um dia vê-lo face a face, como nos ensina o Papa Francisco, sobre a esperança cristã diante da morte: “A morte é iluminada pela esperança da vida eterna; não é o fim, mas a porta pela qual passamos ao encontro com Deus.” A palavra final desse livro deve ser o nosso "amém", ressoando como trovão, ao Paraíso em que Nosso Senhor nos aguarda junto de seus anjos e de todos os seus santos.

Não poderia abreviar essa reflexão: é na repetição dessas palavras que a verdade se marca em nosso coração, e é preciso que a esperança da eternidade supere o medo da morte sem o verdadeiro arrependimento. Entre a sombra da morte e a luz da eternidade, a voz da Igreja canta: ‘Recordare, Iesu pie’ — lembra-Te, Senhor, que sou pó chamado à glória.

Referências 

SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Preparação para a Morte, Considerações I e VI.

SANTO AGOSTINHO. Comentários sobre os Salmos, 60, 1. A Cidade de Deus, XIII, 2. XXII, 30.

BENTO XVI. Carta Encíclica Spe Salvi, sobre a esperança cristã, 47.

SÃO BOAVENTURA. Palestra sobre os seis dias da criação, XIX, 14. Itinerário da mente para Deus, I, 1.

FRANCISCO. Reflexão da Audiência Geral, 27/11/2013.

SÃO FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus, XII, 13.

SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homilias sobre os Evangelhos, II, 34. Comentários sobre a moral em Jó, XXVIII, 47.

SÃO JOÃO DA CRUZ. Carta 21. Dito atribuído, recolhido em Obras Completas, ed. crítica, p. 753.

SÃO JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Salvifici Doloris, sobre o sentido do sofrimento humano, 23. Homilia na Solenidade de Todos os Santos, 1999.

SÃO PAULO VI. Missal Romano, Prefácio dos Domingos do Tempo Comum IX. Credo do povo de Deus - Solene profissão de Fé, 28.

SANTA TERESA D'ÁVILA. Poesias, 9. Castelo Interior, VI, 2, 1.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica , I-II, q. 5. I-II, q. 3, a. 8. Exposição sobre o Credo, art. 5.

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