sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Promessas Feitas ao Vento

“Não há nada mais ilusório que o outro. E nada mais cruel que depender dele para ser.” (Simone de Beauvoir)

Preciso admitir que venho sentindo uma coisa que não queria. Por mais que tenha lutado contra, buscado na razão e na realidade das coisas a verdade que deveria aceitar, o meu coração não aceitou. Infelizmente. E agora eu percebo, na noite escura, o meu coração em vivas ânsias inflado. Com temor e tremor eu me prostro diante dessa verdade que eu não queria, mas que uma parte de mim quis e que então, nessa divisão, oposição, acabei me perdendo: eu acho que estou amando. 

Isso porque eu jurei a mim mesmo, que na próxima vez que o amor viesse, me chamando baixinho, um sussurro por entre os agrestes escarpados que caminho sem rumo, arrastando os pés sangrentos, que faria diferente. Que que não me deixaria apegar, mas o efeito que o breve abraço dele, e aquele beijo, tem sobre mim mostra que me apeguei sem nem perceber, ou melhor, percebi, mas não consegui conter. Jurei ainda que não falaria meus pontos fracos, porque isso me faz ser visto como inferior, maluco, como alguém com mais problemas do que soluções, e que pode, deve, e vai ser descartado quando não tiver mais propósito. Pensei que conseguiria não falar do passado, mas disse a ele as coisas mais íntimas, e não encontrei a mesma sinceridade em troca. Que não faria promessas, pois elas sempre acabam sendo quebradas. Prometi que, se possível, não amaria. 

Mas em algum lugar profundo eu ainda espero, por um daqueles amores das séries. Mesmo sabendo que nada daquilo é real, que as pessoas não se amam daquele jeito, especialmente homens. Que as pessoas não lutam umas pelas outras, não, pelo contrário. É uma triste verdade. 

Esse parágrafo ficou patético, nossa. 

O que estou tentando dizer é que estamos cercados de ilusões. Conheço muitas pessoas que sonham com um amor perfeito. Homens que sonham com a namorada perfeita: bonita, simpática, safada e que necessite deles, ou do pau deles, quase como oxigênio. Esse desejo não raramente esconde apenas uma necessidade quase patológica de atenção. Ignoram os sentimentos sinceros de outrem, porque essa pessoa não corresponde as expectativas que eles criaram por causa de vídeos na internet. Não é uma acusação gratuita, pelo contrário, eu reconheço que sou cheio dessas expectativas, e que justamente elas são causa de boa parte de meu desespero constante. 

Fico chateado quando eles simplesmente vão dormir sem se despedir. Como se fôssemos namorados, com esse acordo prévio. Não somos, nem seremos. A verdade é que eles vão continuar atrás desse sonho ridículo, e no fim se contentar com uma menina medíocre, porque foi o melhor que conseguiram. E eu? Bem, não nego o amor, pois não me é ofertado. Eu sou apenas uma sombra, passando despercebido, em casa, na igreja, nas ruas. Porque ele não existe. Minhas idealizações não foram substituídas por uma realidade medíocre, não, elas foram destruídas, reduzidas a pó. 

E eles devem conversar com outras meninas enquanto escrevo sozinho. Vou ao cinema sozinho. Leio livros sozinho. Faço compras sozinho para tentar preencher esse vazio. Tomo chá sozinho. Bato punheta vendo pornô oriental sozinho. 

Bem, amanhã será outro dia, outro maldito dia. E o tempo já começa a esquentar com a chegada da primavera, o sol já desponta cedo, com seu calor infernal. Talvez durma o dia todo, sem responder ninguém, afinal... Bem, nem adiante reclamar de novo. O mais que faço não vale nada.

Vou dormir com os olhos pesados, passei o dia todo me arrastando de sono. Nem as várias xícaras de chá-preto ajudaram. Mas não é apenas o sono que pesa, também a constatação de que meu amor também não vale nada para nenhum deles.

O meu sobrinho, no entanto, dormiu no meu colo hoje. O levei para brincar no jardim da igreja, e ele ficou um bom tempo jogando as pedrinhas que ficam no caminho até a imagem de São Francisco. Uma das cenas mais lindas que já vi. Depois ele engatinhou pela igreja inteira, sorrindo por brincar sem que ninguém o segurasse. Depois que ele dormiu, completamente indefeso, mas apoiando a cabeça e as mãos no meu peito, confiante de algum modo em sua mente de criança, que o tio o protegeria, eu não consegui conter as lágrimas, que caem novamente agora. Talvez esse seja um amor que exista realmente.

“Não sofremos por amor, sofremos porque ele nos lembra que estamos irremediavelmente sós.” Fernando Pessoa (parafraseado a partir de seus fragmentos)

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Psicologia da Impotência

"Quero escapar, fugir de mim mesmo, mas é impossível" 
M, O Vampiro de Dusseldorf (1931)

Às vezes me vejo manipulado por esses impulsos incoercíveis. Sinto-me no meio de um intenso embate interno: de um lado, querer a liberdade da solitude e, do outro, o desejo constante da presença, do afeto, do carinho. Me pergunto constantemente quando deixei de receber afeto para me tornar assim tão carente, tão absolutamente dependente. 

Fui mais uma vez ao cinema, sozinho. Comprei os ingressos, a pipoca e o refrigerante. Mas a minha expressão não era de quem iria assistir ao filme que esperou por meses, mas de quem acabara de sair do enterro da mãe. Cheguei a notar alguns olhares, e sabia que meu rosto estava absolutamente fechado. Quando escrevo aqui, cada uma dessas palavras grita um impulso que não consigo conter, é o grito da fera que gritou Eu no coração do mundo, mas um Eu dividido, fendido, partido com um grande e impiedoso machado, o grito de terror de um sujeito que luta constantemente contra o que o impulsiona, a medida que esse mesmo impulso o leva a sofrimento tal que só quero lutar contra ele, vencer e aprisioná-lo no mais profundo da mente.

Continuo a odiar a maneira ele me trata, a frieza do toque, a distância da fala, a aparente relação de puro interesse... Mas, ao mesmo tempo, eu continuo desejando o corpo dele sobre o meu, o toque intenso dos nossos lábios, o pau dele dentro de mim e o meu dentro dele, sua expressão ruborizada ao gozar, entre o prazer lancinante e luxurioso e a confusão dos sentimentos descobertos e temidos. Eu quero falar o nome dele por entre gemidos, e ouvir sua respiração de desejo desesperado. Quero sentir o sei leite em minha pele, e depois em nosso lábios, transmitindo uma energia que, compartilhada entre os corpos, passa por baixo de nossa pele em chamas.

Aquela expressão bestial era então sinal não de ódio, mas reflexo de um coração e de uma personalidade dilacerada. A oposição entre essa aparência animalesca e meu comportamento normalmente delicado, atencioso, sorridente, revelam uma consciência esmagada pelo peso de ser ela mesma, sustentando esse conflito brutal. Constantemente, dia após dia, eu sou obrigado a ver no espelho, e nas vitrines por onde passei, a psicologia da impotência diante da compulsão. Enquanto por vezes eu me comporte como monstro absoluto, quando não controlo o tesão ou quando choro copiosamente ao ver a cama vazia, desvelo minha humanidade despedaçada.

Me recordo daquela cena dos minutos finais de M, O Vampiro de Dusseldorf, a confissão de Beckert com suas profundas camadas ainda são uma das mais marcantes para mim. Me coloco em lugar daquele assassino, com a diferença de que eu sou a única vítima.

Talvez me veja como um tipo de Édipo moderno, condenado por algo que não escolhi. E essa minha confissão, e tantas outras incontáveis que já fiz e que sei que ainda vou fazer, me soam como uma espécie de monólogo, no sentido shakespeariano, onde o lamento lírico revela que a dor da minha consciência é pior que qualquer consequência exterior a mim. Nenhum abraço frio, ou abraço nenhum, ou até mesmo um ato de covarde violência seria pior do que esse embate que constantemente venho travando comigo mesmo, no já devastado campo de guerra dos recessos da minha mente. Reconheço certa tensão poética no monstro que pede por compaixão ao próprio reflexo.

Constantemente me vejo diante da aporia fundamental do meu ser: a responsabilidade, individual, e o determinismo psicológico. Não busco justificar, nenhuma dessas palavras podem ser entendidas assim, mas são um clamor por uma compreensão impossível, condenado a viver entre o humano, dotado de razão e senhor de si, e do monstruoso, inumano, incapaz de me enquadrar onde quer que seja.

Quando Fritz Lang filmou sua obra-prima, a confissão é apresentada em planos fechados, com uma câmera fixa no olhar obcecado do assassino, o desespero daqueles olhos, daquela fala infantil a confessar crimes de violência extrema são de uma experiência sufocante. Olhar o meu reflexo, ou expor esse reflexo aqui, tem a capacidade de me aliviar brevemente desse sufoco em que me encontro ao examinar minha própria mente e meu coração. Por isso minha poesia, assim defino meus escritos, quase como diários de um cárcere, são um tipo de catarse psicológica, uma tragédia e uma questão filosófica insolúvel: o existencialismo é, em mim, o problema fundamental por excelência. 

Ser é a maior das dores. 

e eu sabia que mesmo as palavras mais apropriadas nunca 
resolveriam. 
eu estava sujo, sujeira, eu parecia sujeira,
eu estava sujo de sujeira suja, 
eu só queria entrar nela, 
ficar lá, eu não era nada a não ser um comedor de buceta e 
eu estava quebrado. eu não sabia soletrar, eu nem sabia 
como usar 
2 ou 3 garfos para jantar, eu não sabia nada sobre Harvard 
ou
diplomas ou 50 mil por ano, e ela sabia que tudo isso 
era verdade: eu havia sido chutado por aí por muito 
tempo, eu não sabia mais 
o caminho para cima ou para fora ou nem queria saber: eu 
estava destinado ao 
fracasso. 

(Charles Bukowski)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Notas amargas para uma manhã

“Aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como. Mas e se não houver porquê?” (Nietzsche)

Silêncio. Queria uma manhã calma e silenciosa, mas, a essa altura da vida, e olha que nem sou tão velho, mas já tenho um coração de muitas décadas e ainda mais decepções, já não acredito mais nisso. 

Lembro das intermináveis e repetitivas manhãs naquele inferno de trabalho, em que precisava escrever às pressas e torcer para conseguir fazer algo logo, antes que começassem a me fazer perguntas idiotas ou pedir coisas estúpidas que levariam dias. E com um sorriso no rosto, claro, sempre querem um sorriso. Malditos! Preso com pessoas que não sabiam o que fazer, com chefes que não deixavam fazer, e que ainda diziam zelar pelo nosso bem-estar ali, afinal éramos tão poucos que deveríamos ver aquele lugar como nossa casa, já que passávamos mais tempo ali do que em nossa casa de fato. Mas só de lembrar daquele tempo me vem náuseas. Hoje tenho nojo dessas pessoas. Sei que não é nada nobre, nem mesmo cristão da minha parte, desejar a elas um inferno de tormentos como o que me causaram.

Mas, voltando para a manhã silenciosa. Talvez eu tenha criado isso em algum delírio enquanto me entupia de remédios. Manhãs silenciosas não existem. Assim como a paz mundial, chefes que te respeitam, unicórnios e, quem sabe, o Pé Grande. Mas ainda acho possível que algumas dessas invenções da mente criativa e delirante do homem, possam ser verdadeiras em algum sentido. Me refiro, é claro, a paz mundial e unicórnios, no fim da lista, os chefes que te respeitam. A manhã silenciosa não. Por definição essa não parece ser possível de existir, senão que é algum tipo de conceito puramente mental ou verbal, algo que podemos dizer e até pensar, mas que não se concretizará. Talvez na alvorada dos tempos, quando Deus criou o universo do nada, tenha existido uma manhã silenciosa, em que ele dormiu no sétimo dia, certamente sem uso de remédios, como eu. 

Quando Van Gogh pintou a noite estrelada, ele estava em um hospital para doentes mentais, guardando na memória aquelas gravuras japonesas nas quais se inspirou, misturando a elas as diversas camadas de seus pensamentos. Alguns imbecis dizem que São Paulo tinha epilepsia, por isso ouviu a voz de Deus. Hemingway, Silvia Plath, Billie Holiday... Todos eram geniais, e doentes, e então questionam se deveriam condenar essas pessoas a mediocridade por meio de tratamentos. Pelo que me recordo, Van Gogh se matou num campo de trigo depois de pintar um quadro. Silvia Plath tinha trinta anos quando enfiou sua cabeça num forno a gás. Billie Holiday morreu por causa de uma cirrose hepática decorrente de abuso de álcool e de muitas drogas durante toda a vida. Daí a afirmação de que a normalidade não é condenação à mediocridade, mas cria tempo suficiente para a criação. É preferível ser excepcional e morto? 

Bem, não me incomodaria com isso. Principalmente dado o fato de que minha existência já é medíocre, a morte só seria um fim. Talvez encontrem nessas páginas uma dor profunda que alguém identifique-se, ou, pode ser que elas desapareçam subitamente. Milhares de páginas, nenhuma delas imortal. Todas tão passageiras quanto um longo poema escrito na praia. Já disse como me sinto um livro absurdamente longo e monótono que ninguém se aventurou ou teve paciência de ler.

Mas qual a razão desse monólogo, tão cedo numa, nada silenciosa, manhã? Bem, acho que tudo isso foi para dizer que, se a manhã não pode ser silenciosa, quem deve silenciar sou eu. E o mais que faço não vale nada! 

“A vida é uma prisão em que se espera a pena de morte.” (Fernando Pessoa)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Convicta Solidão

Apenas confirmei, uma vez mais, aquilo que já sabia com certeza. Acho que é próprio dos idiotas querer reforçar as próprias convicções. Com exceção de que, acredito, eu faço isso porque em algum lugar de mim há esperança de que dessa vez seja diferente. Mas não foi. Tudo aconteceu exatamente como eu esperava. Lamentavelmente eu tinha razão. A minha ausência foi perfeitamente imperceptível, exceto por aqueles que precisaram de mim. Quem o diria? E venho dizendo isso todos os dias. Apenas para constatar, pela enésima vez, a minha devida insignificância.

Mas de algum modo isso significa também a descoberta de uma liberdade. Sem precisar ir em lugares apenas para ser usado como pretexto. Se não tenho ninguém que se importe verdadeiramente comigo, não há razão para me importar de verdade com ninguém. Claro que, aquele pequeno ponto, pequenino, quase imperceptível, tão breve e fugaz quanto um piscar de olhos, brilhou em esperança, antes de desaparecer nas trevas profundas do ser. 

Me isolei de todos hoje. Mas então, depois de tudo, de perceber que sou absolutamente irrelevante, ainda me sinto culpado. A quem quero me explicar? Não há nenhuma explicação necessária. As mensagens que recebi eram todas pedidos de favores. Nenhuma, nenhuma delas preocupada comigo. O findar da vida não é um peso assim. É apenas libertação. E ainda assim eu queria correr até ele, tomar pela mão, abraçá-lo, pedir desculpas. Mesmo sabendo que, depois desse tempo, sou menos importante que qualquer menina que tenha chegado ontem na vida dele. Ou de qualquer outro. 

E então, tornei à minha casa, com a cara fechada, e vi que assustei algumas pessoas. Devo ter parecido feroz. Mas é que essas verdades ecoavam e me cortavam profundamente demais para que eu conseguisse controlar a expressão do meu rosto. Com efeito, devia ser a face de um assassino, uma fera, uma besta. E sim, me sentia capaz de extinguir toda existência, com requintes de crueldade, se me fosse dado poder para isso. O resultado seriam corpos desmembrados, vísceras espalhadas até o teto, sangue derramado como num rio, faces destruídas que amais tornariam a rir e nem sorrir. Nos crânios esmagados, apenas o terror absoluto. Coisa não muito diferente se vê no meu coração. Essa é a minha expressão: completamente esmagado, destruído em terror, num silêncio tão absoluto que não ouvia nem mesmo meus próprios pensamentos. Já não haviam mais pensamentos. Apenas a dor do vazio, vazio deixado por todos que se foram e que, um dia, eu acreditava que ficariam. 

Mas todos se foram.

E o resto é silêncio. 

Eu sabia que isso ia acontecer.  

Não importa o quanto de esperança possa haver: no fim, tudo retorna ao nada.

E tudo retorna ao nada.

"Sentia vontade de chorar, mas não saía lágrima alguma. Era só uma espécie de tristeza, de náusea, uma mistura de uma com a outra, não existe nada pior." (Charles Bukowski)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Metafísica da Ausência

"A angústia revela o ser-no-mundo em sua totalidade." (Martin Heidegger)

Foi uma noite de fúria, é verdade, e sentia que não havia mais sangue correndo nas minhas veias, mas algo como veneno, ou lava. Sei que, depois daquela explosão, consegui respirar um pouco melhor, como se a pata pesada de uma fera fosse tirada de cima do meu peito. Essa é uma imagem comum, gosto de usar, algo nela me faz sentir familiar. As palavras sangue, veneno, fera... De algum modo refletem algo dentro em mim. Agora, no entanto, restaram apenas cinzas.

Isso porque, às vezes, a decepção com a vida, a desesperança, o olhar para o horizonte sem nenhuma perspectiva, ao invés de resignação, provoca uma onda de ira. E então um horror é liberado do peito. 

Senti raiva por parecer estar sendo usado. Odiei isso. Porque, de novo tornando a esse assunto, eu me esforço nas coisas que me proponho a fazer, e parece que querem tirar sempre proveito disso. Quando senti que ele poderia me usar para se aproximar de outras pessoas, ao invés de valorizar o que eu estava fazendo... Parece que algo se desfez. Talvez de novo um dos altares que ergui aos meus ídolos ruiu? 

Uma parte de mim acha que isso é só paranoia. Afinal, muitas das ideias que temos são minhas, mas parece, e isso eu sei que não é paranoia, que ninguém nunca olha para mim. Mas olha para frente, para outras pessoas. 

No fim, me incomodei por sentir que estava sendo usado por outra pessoa que só queria ser aceita, quando eu também faço muito do que faço apenas para ser aceito pelo meio. Um sinal bastante claro da imaturidade, de alguém que ainda não saiu da quarta camada. 

Ele não entendeu que as imagens pessimistas em alguns trechos de Bukowski que enviei eram, na verdade, analogias para algo que parece bom, mas que pode ser destrutivo se você voar perto demais, o que parece ser o desejo de todos. Não gosto do sol, nem do calor, porque isso me lembra as pessoas que amo, e todas elas, acabaram me machucando quando me aproximei demais. Como Ícaro eu fui lançado ao chão por tentar voar perto do sol. Hoje eu o vejo com desprezo. Porque há de iluminar um mundo nojento. 

Por isso eu tenho preferido ficar quieto. Meus planos de regular meu sono não se cumpriram completamente. De noite estou dormindo melhor, estou conseguindo me acalmar mais cedo e, por isso, a qualidade do sono tem sido melhor. Infelizmente, talvez pela redução abrupta dos sedativos na semana passada, eu tenha ficado demasiado sensível, e isso se refletiu num abuso dos remédios nessa semana. Seja por um motivo ou outro, acabei ficando deprimido, e isso me fez ficar doente. Não nego que me tornei dependente desses remédios, e que teria gasto três vezes mais se tivesse esse dinheiro. Qualquer quantia é válida para impedir que eu veja, que eu responda, que eu seja. 

Quero voltar a dormir. Não há um só dedo de Deus nessa existência miserável que justifique ficar acordado para ver essas desgraças. 

E a minha ausência nem sequer fez diferença. 

Não é como se eu estivesse surpreso. 

Se presente, eu sou útil. Se não estou, não faz diferença. 

Continuam cantando, rindo, sorrindo, falando das carnes das mulheres. Comigo nunca é assim. Eles não dão a mínima!

Então, se vai ser assim, diga a Maricotinha que mandei dizer que eu não tô. Nem vou. Triste, sim, mas não surpreso. Mas a tristeza não é uma novidade, é uma velha companheira. Formamos um trio: eu, a tristeza e a desesperança. 

Como se fôssemos um só.

E o resto é vazio.

" - Estou trabalhando em um poema para você.
- Um poema de amor?
- Sim, se é para você, é um poema de amor." 

"Paterson" (2016)

sábado, 13 de setembro de 2025

Elogio à Desistência

"Tenho náusea da vida, como os que têm náusea da comida só por verem comer." (Fernando Pessoa)

Expectativas demais em cima de mim. Agendar reuniões, formações, encontros de espiritualidade, fazer artes, criar campanhas, ir nas missas da minha comunidade, da comunidade vizinha, do setor inteiro... Mas hoje, hoje não tenho a menor condição de terminar esse dia. 

A psiquiatra aumentou duas das minhas medicações e tirou outra. Concordo com ela, me senti levemente melhor quando tomava um pouco mais. Mas o problema não é esse. É olhar as mensagens e ver que esperam demais de mim. Agendar reuniões, formações, encontros de espiritualidade, fazer artes, criar campanhas, ir nas missas da minha comunidade, da comunidade vizinha, do setor inteiro... É demais para mim. Esperam demais de mim, e eu? Bem, eu não sou bom assim.

E ninguém percebe e isso é normal. 

Uma amiga, anos atrás, me disse essas palavras, numa madrugada íntima, quando ela me falou sobre os abusos que recebeu na infância e início da adolescência: no fim, é você quem precisa lidar com seus problemas, sozinho, ninguém vai fazer isso, nem tampouco te ajudar. Dá seu jeito. Cada um precisa dar seu jeito. Mesmo que alguém morra, podem te desejar os pêsames e, no dia seguinte, exigirem que esteja bem. Não só os chefes imbecis fazem isso, eles também, mas, em geral, todos são assim.

Por isso, eu que disse que ia melhorar a qualidade do meu sono e diminuir os remédios, voltei a encher a cara de sedativos hoje. Porque me incomoda olhar para a janela, e ver o sol brilhando lá fora, e saber que esperam que eu seja assim: capaz de iluminar a todos, e corresponder as expectativas de todos. Mas, em verdade, a única expectativa que terei hoje é a minha própria: quero dormir.

Dormir para não ver e nem ouvir o que esperam de mim. Não quero olhar mensagens, não quero agendar reuniões, formações e encontros de espiritualidade, não quero criar campanhas, não quero sair e, acima de tudo, não quero ser usado como pretexto para tentarem conquistar meninas, as quais me enojam simplesmente pelo fato de serem mulheres. Elas sempre me roubaram os homens, e isso acho que nunca serei capaz de perdoar.

Quero dormir, e fingir que esse dia não existiu. Fingir que não senti tristeza ao ver que ele só pensa nas coisas que posso fazer, mas que não pensa em mim propriamente. Não pensa no que disse aquele dia. Mas se lembra das palavras das mulheres. Sempre elas.

Não quero mais ser feito de bobo, mesmo sabendo que a maior parte da culpa é minha. Agora não quero mais ir nos compromissos do fim de semana. Ele terá muitas meninas por lá. Aliás, a minha presença só é necessária quando eu posso ajudar a chamá-las, não é? No fim, eu sou só mais uma abominação. Nunca um amigo de verdade, tampouco um melhor amigo, como já chegaram a dizer. É que confundiram a minha vontade de querer ser bom e me aproximar, e ser amigo, com a disponibilidade para ser feito de idiota.

Eu estou cansado, cansado de agir assim, cansado mesmo. 

Cansado de ser assim, cansado de implorar assim, cansado de me humilhar assim. Cansado mesmo.

As pessoas lembram de mim quando veem algo da Igreja. Lembram de mim quando precisam de um favor. Lembram quando eu não faço o favor na hora. Lembram quando eu posso responder uma pergunta difícil com a precisão de uma Inteligência Artificial. Lembram quando eu sou útil. 

Elas só não lembram de mim.

E parece que mesmo que eu desista cem vezes, sempre algo no meu coração desperta e começa a sentir de novo. De novo. E de novo. Preso no eterno retorno de amores não correspondidos, num ciclo infernal de entrega e morte. A serpente mordendo a própria cauda. Eu sempre morro. Porque corro demais só para ver alguém. E morro. Porque nado demais. E morro. E voo demais, só para ver alguém. E eu morro. De novo.

Quero dormir, e fingir que esse dia não existiu. Quem sabe não se decepcionem comigo como fizeram no trabalho e, com isso, me descartem. Prefiro ser descartado a ser usado para algo tão baixo e estúpido quanto conquistar uma menina. Por isso hoje não tenho a menor condição de terminar esse dia. 

"A compaixão pelos homens deve ser substituída por compaixão por nós mesmos: libertar-se deles." (Nietzsche)

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Corvo


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo
Tão levemente, batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivêssem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.

Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento,
Perdido murmurei lento. “Amigos, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas suas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entorno da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dêssem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz êsses teus ais!”
Disse o Corvo, “nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, e esta noite e este segredo
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida, se no Éden de outra vida,
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
“Que êsse grito nos aparte, ave ou diabo”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.

E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!

Edgar Allan Poe 
(Tradução de Fernando Pessoa)

Prelúdio do Desespero

"A esperança é o pior dos males, pois prolonga o tormento dos homens." (Friedrich Nietzsche)

Acho que, mesmo depois de tanto tempo, depois de todas as coisas que aconteceram, eu não consegui matar completamente a esperança dentro de mim. 

Será que isso é esperança? É isso que tanto chamam de esperança, que nos faz querer, de algum modo, seguir em frente e acreditar que as coisas vão dar certo?

É que, mesmo sem querer, eu me vejo de novo querendo estar envolto em um abraço, e queria que aquele meu beijo tivesse algum significado para ele, queria que ele entendesse que eu desejo a formação de um laço.

Mas me parece que todos os laços que criei, depois foram usados para me enforcar. E com esse não é diferente. Não é um laço entre nossos corações. É um laço para que eu coloque ao redor do meu pescoço, pondo um fim de vez a esse ciclo interminável de paixões não correspondidas e desespero.

Aquele beijo não significou nada para ele.

Eu não significo nada para ele.

Posso até tentar levar a conversa para outro rumo, tentar manipular as coisas de algum modo. Mas, no fim, essa é a única verdade, brutal, fria e direta: eu não significo nada para ele.

Nem para nenhum outro.

Os últimos dias foram de uma intensa euforia. A canonização de São Carlo Acutis me despertou, e eu realmente fiz muito mais do que imaginei que conseguiria, depois de quase dois meses de uma depressão terrível. 

Hoje o sol amanheceu um pouco mais brilhante. Há dias víamos apenas um céu nublado, e eu achava isso lindo. A presença de tanta luz me incomoda. Ele, por outro lado, ficou feliz com o sol. Acho que isso mostra o quanto estamos distante e incompatíveis.

Quando o sol se mostra dessa forma, dispersa as nuvens e a névoa que recobre o chão. Tudo se torna visível, o dia se torna caloroso, as pessoas mais dispostas. Eu não combino com isso. Prefiro o silêncio de uma noite onde tudo que se vê pela janela é um denso nevoeiro e um ar frio a fazer bater os ossos. Sinto que assim posso fechar os olhos e contemplar o silêncio. 

Não é como se fôssemos andar de mãos dados sob o sol e depois dormir juntos ao cair da lua. Não. 

Então é isso que chama de esperança? Querer continuar desejando, esperando, que meus esforços sejam reconhecidos? Mas o que se ganha com a esperança?

Alguma vez uma guerra se venceu porque o povo tinha esperança? Na verdade, a esperança só fazia com que aqueles pobres durassem mais em meio aos horrores. E desde quando sobreviver as desgraças é uma coisa boa? Não vejo nisso senão causa de desespero. Sim, o desespero é o único filho da esperança. Um homem magro das guerras, fome e tantos terrores que teve de enfrentar. Um homem que já não carrega luz nos olhos, senão uma lembrança opaca e sem vida. Seus passos arrastam pés sangrentos, suas mãos trituradas não seguram mais nada. 

"A esperança é a lua brilhante da desilusão, iluminando o caminho até a queda." (Cioran)

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Artéria


"É no beijo recusado que o amor se prova." (Marguerite Duras)

Em uma manhã fria
enquanto minhas mãos tremiam
não era pela chuva que caía
que meus ossos quase se partiram

porque à distância de uns passos
eu poderia me entregar bem mais 
do que um simples abraço
ao fim daquela cantoria

os sorriso ecoavam pela capela
e uma fraca luz pelas janelas
mas em contrário
meu coração ardia

e eu sabia que não podia
permitir que vissem ou sentissem,
que entre sorrisos e aclamações
meu coração se abrisse

ainda assim, movido por força
que eu não podia resistir
venci àquela distância
de poucos passos

para então me deparar com a 
distância invencível.
E mesmo assim, 
diante do impossível

abracei aquele corpo branco
no meio de um enorme sorriso
e num amplexo amado
um beijo apaixonado

ao pescoço lhe foi dado
tocando brevemente meus lábios
por aquela artéria onde
seu sangue passava.

Pergunto eu
no silêncio do meu coração,
se ao separarmos os nossos braços
os sentimentos que imprimi

em meus lábios
e que toquei sua pele
se teriam chegado pelo sangue
ao coração dele.

No entanto, é com aquela normal
tristeza e repugnância
que eu enfrento a cruel dureza
da verdade daquele instante.

Mesmo que não tenha demonstrado
para além da indiferença
a única coisa que ele pode ter sentido,
foi uma contida repugnância.

"E o que em mim sente está pensando." (Cecília Meireles)

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Entre a euforia e o silêncio


a noite chega já bastante escura
enquanto eu penso em outros assuntos
que também prometem perdas quase certas.
procuro um cigarro no
painel, este idiota sorrindo
internamente: as coisas nunca foram muito
boas, talvez não tenham mesmo de ser.
(Charles Bukowski)

Eu odeio esses dias de euforia. Odeio essa eletricidade que parece percorrer meu corpo por baixo da pele. 

Mas, seria eletricidade ou fogo? Pois parece que, depois, quando as coisas finalmente se arrefecem, quando passa o furacão que eu me torno dentro de mim mesmo, sobra apenas cinza. Cinza fria. Sinal de algo que explodiu, destruiu, e agora se foi. 

Eu odeio esses dias em que fico falante demais, porque sempre acabo chateando alguém, fazendo entender errado, e acabo me chateando mais ainda quando me vejo, como hoje, de novo, numa sexta de chuva em Joinville, sozinho, sem nem ao menos alguém para conversar, sair ou beber. As notificações pararam de chegar, porque as pessoas estão vivendo. Estão namorando, estão sendo elas mesmas, com seus amigos, com suas famílias, namorados, amantes, e até desconhecidos em mesas de bares e camas de um motel barato.

Cheguei em casa com os cabelos gotejando sereno. Participei de uma formação chatíssima que não me acrescentou nada além de horas de um profundo tédio que eu queria poder oferecer a Deus, se eu tivesse sofrido em silêncio. Mais uma vez me culpo por nunca conseguir colocar limites nesses dias.

Limites.

Limites no que digo, no que compro, no que me proponho a fazer. 

Limites nos remédios que tomo, no álcool, na pornografia. 

Parece que nesses dias essa palavra é simplesmente riscada. E eu não encontro limites. Mas não é verdade. Pois os limites se encontram exatamente nos mesmos lugares em que sempre estiveram: no limiar da minha própria consciência. Na diferença entre mim e os outros. Nisso que nos separa e que nos torna individuais. Nisto que torna nossa comunicação impossível.

Precisei dormir um pouco nos dois últimos dias apenas para fazer diminuir as vozes e evitar maiores danos. Mas as contas desse mês já estouraram o meu orçamento. Me comprometi a ir em lugares que não queria, a ter conversas que não queria, a muitas coisas que não queria. E, mesmo muitas vezes nem sabendo o que eu quero, sei bem que essa euforia não é, nem de longe, o que eu queria.

Passei um leve chá Rooibos e me sentei para escrever. Depois de assistir ao último episódio de Memoir of Rati, com o meu querido Sarin Ronnakiat, um de meus atores mais queridos. Me concentrei no aroma doce do chá, no seu tom avermelhado, no seu sabor, na xícara quente entre minhas mãos e do líquido em meus lábios. Foi preciso isso para desacelerar, embora já sejam quase três da madrugada e eu esteja tão disposto quanto estava às cinco da tarde.

Queria poder sentir o calor de um abraço, ao invés de apenas do chá. O perfume de um corpo querido, o sabor de um beijo. Queria poder ter seu corpo em minhas mãos, e assim me acalmar. Mas não é possível. 

No fim o que sobra é apenas isto, minha mente e corpo em desconexão, um cansado e o outro acelerado. E o silêncio. 

“Assim termina o mundo: não com uma explosão, mas com um suspiro.” (T.S. Eliot)

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Na orquestra dos dias, um murmúrio de beleza

“O peso de estar consciente é maior que o peso de viver.” (E.M. Cioran)

Talvez eu esteja procurando algum consolo nas músicas que venho ouvindo repetidamente nos últimos dias. Tenho preenchido não só o ar da casa mas também minha atenção com as notas dos Concertos para Piano N° 1 do Chopin, Tchaikovsky e os de N° 2 e 3 do Rachmaninoff. Há algo de reconfortante nas notas, tanto dos instrumentos principais quanto das orquestram, que parecem tornar a atmosfera um pouco mais respirável. É como se as linhas das partituras fossem filtros de ar por onde o meu pulmão consegue de novo um pouco de frescor, por entre o peso constante a esmagar meu peito, numa interminável melancolia. 

Mas não é apenas na música que venho buscando algo. Não. Também nas conversas, parece que vou tentando encaminhar sempre para algum campo em que me sinta mais confortável, ao passo que venho também fugindo de outros, não tão agradáveis assim. Como se falar de sexo com um amigo hétero antes de dormir pudesse mudar algo na forma dele de olhar para mim. Mas também é algo catártico, já que minha libido se encontra em franco declínio, é uma forma de me sentir um pouco, não sei, vivo? Não, isso é demais. Normal? Se for no sentido biológico, como um homem normalmente safado, pode ser. Embora a química do meu cérebro também se recuse a ser classificada como normal. De todo modo, não posso nem, como um homem normal, simplesmente deitar e tocar uma punheta antes de dormir. Não tenho vontade e nem autoestima pra tocar meu próprio corpo.

Não é como se buscasse sentido. Mas acho que ao menos busco distração. 

Beleza. 

Isso, busco um pouco de beleza em meio a tudo isso. 

As conversas, aos barulhos, as notificações que não param de chegar. Mas, é como se, girando nos ventos impetuosos de uma tempestade, eu conseguisse encontrar uma pequenina flor, de delicadas pétalas alvas, a resistir bravamente ainda de pé, enquanto eu mesmo há muito já caí por terra, me encontrando sujo de lama. E então olhando essa flor, pudesse sentir seu perfume, como se não fosse apenas uma pequenina, mas sim todo um canteiro repleto das mais belas e perfumadas flores. 

Ah, a beleza, talvez o desejo da beleza seja a única coisa que ainda exista em mim. A beleza de uma flor, de um arpejo ao piano, do sorriso de um amigo, de um amor não correspondido ou de desconhecido que nunca mais tornarei a ver.

“E contudo, apesar de tudo, a vida, essa velha infame, continua.” (E.M. Cioran)

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Silêncio na esquina da paróquia

“Há um cansaço da carne, e um cansaço da alma. O da carne nos leva à cama, o da alma, ao nada.” (Machado de Assis)

Recebi um ultimato na terapia: ou me esforço mais para diminuir o uso dos remédios para dormir ou vou acabar sendo internado para desmame dessas medicações. Isso significa que eu vou precisar de uma série de estratégias para alcançar isso. 

A primeira delas foi conversar com a minha família, e explicar os momentos que fico mais tenso e dos motivos que me fazem recorrer aos remédios. Eu já deveria ter admitido há tempos que eu não conseguiria fazer isso sozinho. Além dos meus descontroles emocionais, há uma série de situações que acabam me deixando agoniado, especialmente quando há muito barulho... 

Nesse momento, são quase seis da tarde, a brisa fria mudou, o anoitecer já se anunciar e um monstro começa a crescer, e eu sinto como se ele colocasse suas patas pesadas em meu peito. É difícil respirar, é a ansiedade chegando. Acho que vou na Igreja, mesmo com preguiça, participar da novena. Não gosto muito de novenas, e nem tenho um motivo pra isso. Acho que não gosto de compromissos fixos demais.

Mas não são só os remédios. Não sei como vou explicar pra minha família a dúzia de compras que vai chegar nos próximos dias, nem o rombo no cartão de crédito deles. Acho que vou precisar começar a tomar chá mais cedo, pra dormir mais cedo e, regulando o sono, não querer dormir tanto durante o dia. Quanto aos momentos de ansiedade, bem, ainda não sei o que fazer com eles. As pessoas falam que eu preciso me exercitar, mas a paróquia fica na esquina da minha casa e tem dias que nem lá consigo pisar, elas não se dão conta do absurdo que é dizer isso. 

E hoje foi assim, conforme a tarde ia caindo, o vento mudando um pouco, fui sentindo mais e mais... 

Queria companhia, um abraço, um afago, de novo, de novo, e de novo, sempre essa maldita carência mesclada com ansiedade, como se nos braços de alguém eu fosse encontrar algo. 

Não vou, porque não há algo, e sequer haverá braços a me envolverem. Meu único destino é como o daquele lavrador, numa cova grande pro meu defunto parco, e ainda mais que no mundo me sentirei largo. 

Lá só haverá a terra fria e os vermes, se assim o quiserem, a me devorar. 

“O resto é silêncio.” (Shakespeare)

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Nada é mais longo que o dia

“Nada mais tenho que o nada.” (Fernando Pessoa)

Quando foi que comecei a olhar para as pessoas e achar que sou absolutamente insuficiente para elas? Quando se tornou normal eu me sentir inferior por não ser objeto de desejo de um homem, hétero, independente se bonito ou não? Desde quando a aprovação dele se tornou condição sine qua non para que eu me considere capaz ou, pelo menos, digno de existência? Desde quando me tornei dependente da aprovação do meio a esse ponto? Sem a necessidade de diminuir o outro, mas desde quando eu passei a esperar o juízo de um homem medíocre, como eu? 

Desde quando e até quando? 

Até quando vou pedir por atenção assim, esperar por um desejo como o meu desejo, que nasce de uma simples atenção, até mesmo da mais tênue educação? Até quando eu vou implorar, me humilhar, rastejar, esperar por uma resposta que não vai e nem pode vir porque as pessoas não são condicionadas ao que eu espero delas. Até quando vou esperar que algum cara me queira só porque o achei educado ou simpático e quero mais atenção e ternura? Até quando eu vou esperar por algo que eu sei que não existe? 

Porque eu sei que não há amor, não há esperança, não há desejo, pelo menos não quando se trata de mim. Porque eu sou diferente. Eu sou pior que todos eles. Se eles são medíocres, eu estou ainda mais abaixo, num nível tão patético que nem se pode dizer humano. Sou apenas um animal, um bichinho esperando por afago. E eles? Bem, todos devem preferir ficar com a prostitua mais suja a me dar um beijo sequer. Um animalzinho que merece ser sacrificado, de tão patético. 

Por isso o que ganho é apenas o silêncio. O último lugar. 

É bem significativo quando Fernando Pessoa disse "nunca amamos ninguém. Amamos - tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É um conceito nosso - Em suma, é a nós mesmos - que amamos."

Com a mente à beira de um colapso, eu reconheço boa parte da minha estupidez. O exagero nos remédios, as noites sem dormir, as compras desmedidas. Não porque isso prejudica minha saúde, apenas porque torna mais difícil o que já é insuportável. E quanto mais eu penso nisso, mais forte se torna essa convicção paradoxal.

Mas penso, por exemplo, no amanhã. Preciso iniciar as artes da festa do padroeiro, organizar algumas publicações pro resto da semana e tenho um compromisso simples à noite. Para os dois primeiros, preciso de silêncio, o que só consigo por um instante de manhã enquanto o bebê dorme e a tarde ainda menos. E a tarde é o problema, porque as horas parecem se arrastar longa e indefinidamente, como se entrasse num eterno retorno. Leio, durmo, olho as redes sociais e parece que não se passaram nem cinco minutos. Um longo e cruel tormento. 

Já não consigo estudar como antes, seja por meio das aulas ou da leitura. Tampouco consigo assistir nesse tempo, o barulho ao meu redor é demais. Então minha única fuga é dormir, e antes eu dormir por horas e horas pra evitar esse transtorno. Mas agora os remédios já não fazem efeito. Só sinto aumentarem as dores, refluxo, o que só torna o dia ainda pior. E ai quando chega a noite, estou exausto e não quero sair. Por isso venho fugindo de compromissos. 

Hoje, depois de uma manhã caótica envolvendo quedas, problemas financeiros, discussões, e uma tarde de terapia em grupo, eu só consegui chegar em casa e dormir. Nada mais se fixava na minha mente e amanhã terei que reler algumas conversas para saber se esqueci algo, porque minha memória também anda bem falha, o que parece ser um combinado do meu estado depressivo com minha irresponsabilidade e consequente dependência dos remédios. 

Mas não estou demonizando-os, antes disso, estou me culpando, culpando meu corpo estúpido por não conseguir mais assimilar a única coisa que nos deu um mínimo de descanso e prazer nessa existência demasiado longa e profundamente miserável, a qual repudio e amaldiçoo com todas as minhas forças, não que tenha restado muto delas.  

Bem, mas é isso. Com a mente acelerada, o corpo em desequilíbrio total, só posso passar um chá, respirar fundo e torcer pra ter uma boa noite de sono. Sem remédio vai ser difícil. Droga. O que um homem precisa fazer pra ter um pouco de tranquilidade nesse inferno? 

“E a única salvação é não nascer.” (Sófocles)

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Sombras que não dormem

"Sou tão misteriosa que não me entendo. (…) Há um certo prazer na solidão, mas também uma dor profunda de não caber no mundo do outro." (Clarice Lispector)

É um dia cinza. Sombrio, nas palavras de um amigo, mas o achei lindo. Não queria dormir. Queria ler um pouco, assistir. Mas sei lá, é como se a confusão ao me redor me sugasse e, ao entrar no frenesi das pessoas que me cercam, entre a burocracia de documentos, datas, prazos... Acabo por voltar sempre pra cama. Disse que queria ficar distante das redes sociais e da internet hoje para não descontar em ninguém o desarranjo libidinoso que senti, mas acabei indo pra compulsão e gastei o que não tinha em livros e presentes. Acordei no meio da madrugada, assisti até o amanhecer e, quando finalmente consegui dormir, já era mais tarde do que planejara. Regular meu sono é absolutamente essencial.

Agora, no meio da tarde, fiquei deitado com esse pensamento: assistir mais um episódio e dormir no horário em que o pessoal de casa está mais ativo ou dormir direto, acordar a noite e maratonar, deixando pra amanhã o desconto de sono acumulado nos últimos dias e adiando mais a missão de reeducação dos meus hábitos, para me adaptar a nova dose de estabilizante de humor. Acabei levantando pra escrever um pouco e dormir de novo, aproveitando a nova onda de frio do inverno. 

Sinto que estou me matando. Já venho sentindo sintomas de refluxo e dores no estômago há algum tempo. É claro que uma hora abusar de tantos remédios ia me cobrar um preço. Mas não acho ruim, se isso significar que posso aumentar ainda mais a dose. Não preciso dizer que não estou me esforçando nem um pouco para estender minha vida. 

Meu amigo disse que era um dia sombrio. Eu acho esse céu cinza lindo, acompanhado de ventos frios. A única coisa sombria é minha concepção da existência, e creio que isso ele não viu. É, definitivamente não viu, nem quer ver. Ninguém quer. 

Passei um chá quente Pu-erh com ameixa e, enquanto isso, vou me entregado ao sono. A bem da verdade, nada consegue me apagar mesmo ou me deixar chapado como antes, e era tão bom quando podia escrever sob efeito deles e saiam textos incríveis, tão diversos das repetitivas reclamações atuais sobre como estou sempre sozinho e tudo e tal. Mas bem, o chá é leve e a brisa fresca devem ser o bastante. Talvez acompanhe com alguns concertos para piano. É acho, que é um bom plano. Quem sabe de madrugada eu volte a essa página e termine com mais alguma contribuição. 

Não queria dormir tanto, mas ficar acordado é sempre um suplício gigantesco. E há tantas coisas que quero fazer, tantas histórias para conhecer, lugares para visitar. Mas a visão de cada manhã, do início de outro dia terrível, por Deus, me desanima só o fato de levantar e ver a bagunça pela casa. Percebo como a depressão ataca todos aqui, ainda que eles consigam fingir que não. Ou talvez eu tenha me acostumado com isso. Mas vejo que minha mãe não consegue mais cuidar da casa, minha irmã não parece disposta a ajudar, eu incapaz até de cuidar de mim mesmo, apenas indo do sofá pra cama, como uma boneca de trapos carregada por uma criança metódica. Meu pai começa a se preocupar com a própria idade e saúde que avançam, tenta disfarçar, mas seus nervos estão aflorados. Por vezes ele ou minha mãe quebram um copo enquanto lavam a louça. Será que eles se dão conta de que tudo está quebrado nessa casa?

Não queria ficar tanto tempo sem estudar. Queria poder redirecionar um pouco minhas forças nesse campo. Embora esteja lendo os artigos daquela Coleção Cadernos do Concílio, mas admito que demoro bem mais do que deveria. Fiquei feliz por ter lido um dos volumes das Crônicas de Nárnia em dois dias. No dia seguinte peguei um livro do Viktor Frankl que ganhei do meu afilhado e me frustrei por não passar da introdução. Decidi voltar ao C.S. Lewis, mas agora o segundo volume está acumulando poeira com o marca-páginas ainda longe do número cem. Achei que estava conseguindo voltar ao meu ritmo de estudos. Lembro que num dos períodos mais obscuros de depressão, quando ficava semanas de cama e não conseguia nem tomar banho ou comer direito, eu ainda conseguia ouvir as aulas do Prof. Olavo, que sempre me davam o que hoje percebo ser a força para continuar naquele caminho por ele guiado. Acho que, assim como preciso ter paciência e retomar a prática da leitura a começar por volumes menores e de mais fácil entendimento, talvez tenha que retomar as primeiras aulas do Seminário de Filosofia, de modo que recupere aquele vigor do qual depende a vida intelectual.

Não queria gastar tanto, inclusive o que não tenho. Mas tem sido difícil controlar a compulsão. Multiplicam-se os livros, as canecas, os itens de cuidados faciais. São úteis, é verdade, mas não necessários nessa quantidade. E em dias como hoje eu simplesmente entro nas lojas online e saio comprando, no crédito, no cheque especial, no cartão dos meus pais… No momento parece que aquilo vai me acalmar, e que a espera da entrega será satisfatória, mas todos os dias chegam coisas novas e todo dia é igual. Como dizia Santo Agostinho, "seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam senão em ti." Venho buscando fora, nas coisas que, de modo algum, podem me ajudar realmente, porque não é delas que eu careço. Não são elas que vão preencher a parte que falta em mim. Mas que parte é essa? 

Não queria ceder e acabar ficando onde não quero. Queria que algumas pessoas me deixassem quieto, mas parecem não se importar com o fato de que eu não as respondo porque não quero contato, porque as considero desagradáveis ou simplesmente banais demais. Venho ignorado há várias semanas uma coordenadora que insiste em ignorar todas as orientações superiores e eu preciso me adaptar a isso para que ela fique satisfeita, o que não pretendo fazer, pois esses são alguns daqueles meus valores inegociáveis. 

Não queria depender do outro pra ser feliz e, justo por isso, se absolutamente infeliz. A necessidade do outro me machuca à medida que quanto mais próximo, mais distante e vulnerável eu me sinto. E forçado a cooperar em convenções sociais que me incomodam. Eu não quero ir num show de uma banda que eu desprezo para agradar uma pessoa que não iria a um recital de piano comigo. Mas parece que se eu não fizer isso, vou ficar sozinho, e se fizer, embora acompanhado, não será a companhia que esperava. A todo momento penso que logo serei trocado, e serei mesmo. Se eu não vou com alguém, essa pessoa arruma outra companhia. Se eu fico sozinho, tenho de ir sozinho mesmo. Parece, guardadas as devidas proporções, que também tento completar com a presença do outro algo que falta em mim e que nem sei o que é. E, como provavelmente esse não é o modo correto de resolver esse problema, continuo no ciclo vicioso de me frustrar sempre. 

Acabei não conseguindo dormir como queria, apenas desperdicei um punhado de remédios. Droga, a cada dia meu organismo está mais resistente a eles. Ficar girando na cama ficou incômodo demais, acabei levantando e me dedicando a essas palavras, como se as colocar pra fora me ajudassem a tirar um peso do peito, me ajudasse a respirar melhor da brisa fresca que entra pela janela e agita a delicada fumaça que levanta do meu chá carmesim. Mas, embora sejam como um arrancar de pele, não sinto que me livrar dos demônios presentes nessas palavras me façam mais vivo. Ao contrário, elas pintam um enorme mural que, observado direito no afastamento devido, é apenas uma parte que permanece de um gigantesco mausoléu em decadência.

Meu amigo disse que era um dia sombrio. Eu acho esse céu cinza lindo, acompanhado de ventos frios. A única coisa sombria é minha concepção da existência, e creio que isso ele não viu. É, definitivamente não viu, nem quer ver. Ninguém quer ver ruínas.

"A vida é um processo cadavérico. (…) Senti-me só, e a solidão me apodreceu os ossos." (Augusto dos Anjos)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Adagio Cinza em Vazio Maior

Antologia breve sobre o fardo da convivência e a claridade da solidão

Depois de muito tempo eu resolvi dar uma olhada no catálogo de um dos serviços de streaming que pago, e quase não uso. Me surpreendi com várias sugestões promissoras, como séries intimistas, cinema indiano e até uma produção de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, um de meus livros favoritos. Pensei comigo, num sorriso quase mórbido, que só me falta a disposição necessária para assistir. Entre a possibilidade das descobertas das histórias, num prazer semelhante, guardadas as devidas proporções, ao da literatura, e a minha completa apatia diante das possibilidades, não apenas dos programas, mas de toda a vida. Parece que estou diante de um imenso muro pintado com o mais tedioso cinza já inventado. 

Não quero fazer um discurso motivacional sobre como ou de onde deve fruir a inspiração de um artista. Até porque, da convivência que tive com eles, isso pode vir dos mais diversos lugares e se transmutar nas mais diversas situações. Mas, enquanto vagava entre vídeos na internet, me deparei com um pequeno corte de uma entrevista do pianista Yunchan Lim, além de achá-lo bonito, gosto muito de sua interpretação do 3° Concerto para Piano do Rachmaninoff. Ele falava brevemente sobre como o chamavam de prodígio, até porque tocar essa peça com dezessete anos, enquanto muitos pianistas maduros a consideram um verdadeiro desafio, e de como começou a tocar muito novo, aos onze anos. Quando perguntado sobre a diferença em como tocava antes e agora, ele diz, num tom sério, sem ser ríspido, que sua habilidade piorou desde então, porque aos onze ele tocava de maneira pura. Não consigo descrever o negro profundo dos seus olhos e nem de seu semblante fechado, como um diamante opaco. Talvez a única forma de compreender o que ele disse seja ouvindo-o tocar. Quem sabe algo de puro flua por seus dedos, como as lágrimas de uma criança que não existe mais. Decerto aquela gravação dele ao lado da regente Marin Alsop em 2022 vai ter outro impacto em mim quando a ouvir.

As palavras dele ecoaram em mim, como sussurros metálicos numa grande caverna fria. O som do concerto, um dos mais melancólicos do repertório erudito, agora me soa ainda mais triste, solitário, cinza. É como se o jovem e belo Yunchan conseguisse transmitir por seus dedos uma vez mais aquela depressão que o Rachmaninoff imprimiu a sua peça.

Retomei a escrita dos dois parágrafos anteriores ao acordar por conta de uma dor. Precisei levantar e aplicar remédio sobre a ferida. Ah, um belo modo de dizer que precisei passar pomada nas hemorroidas que praticamente floresceram no meu rabo depois de uma cagada! E nem eu esperava assumir esse tom depois de uma reflexão sobre os dedos cinza de um pianista deprimido. Por alguma razão, enquanto abria uma das minhas nádegas com uma mão e passava o creme amarelo-doente com o dedo nas erupções ao redor da borda, eu lembrei daqueles amigos que tinha antes de me mudar para. Três deles ficaram comigo até quase o fim, mas acabei por afugentá-los também. A mulher e o de cabelo afro começaram a namorar escondidos e, embora uma parte de mim soubesse, acabei bancando o louco quando resolveram me contar, no dia em que ela saiu da minha casa. Algo naquilo me cheirou a uma grande filhadaputagem e eu preferi banir os dois da minha vida, o que certamente já haviam cogitado, afinal me deram essa opção expressamente. O terceiro, que tinha o pau maior e que consegui chupar uma vez, não tinha mais carona para ir me ver em outro bairro com frequência e paramos de nos ver. Hoje, com o cérebro sequelado das enormes quantidades de álcool e maconha de que ele usa já nem curte mais as fotos que posto online. 

“O tédio é não poder ter sequer o consolo de se estar só. A pior maneira de sentir a vida é ter de a sentir em convivência com os outros.” (Fernando Pessoa)

Em algum ponto anterior eu tinha mais amigos do que jamais havia sonhado aquele jovem estranho e cheio de espinhas que, no primeiro ano do ensino médio, conhecera um leque de pessoas tão diferentes que teve coragem de assumir alguns estilos até mesmo duvidosos, na busca da construção de uma autoimagem que, hoje, mais de dez anos depois, eu já não reconheço de modo algum, senão que apenas aceito a continuidade histórica que, até ela mesma, vem se desfazendo aos poucos também por efeito da depressão e das drogas. Mas éramos muitos, e cantávamos bem nas missas, éramos bem recebidos. Jovens que chegavam na capela animados, nove da manhã de domingos ensolarados e secos de Valparaíso, irmão da capital do Brasil. Uma vez fomos aplaudidos de pé numa missa, impróprio, mas gratificante. Também esses amigos foram embora, não podiam suportar a hipocrisia que eu sustentava em estar com eles num momento e, horas depois, publicar textos como esse, falando sobre como é insuportável viver e conviver com pessoas. De todos sobraram apenas aqueles que citei anteriormente, que no fim deu no que deu. E hoje, embora converse com duas ou três pessoas, daqui de Joinville ou de outras partes de Goiás, já não sei mais a que passo andam minhas amizades.

“O estar só é duro, mas o estar entre os outros é ainda mais duro. Pois a solidão é um espaço puro; já a multidão é ruído que dilacera.” (Rainer Maria Rilke)

Tenho medo das pessoas de quem me aproximei aqui. De algum modo eu sei que eles vão embora mais cedo ou mais tarde, e por isso não quero me apegar muito. Quanto a um deles já comecei a perder o controle dos sentimentos. Acho que sua personalidade aparentemente tímida, escondendo um rapaz normal, com desejos e curiosidades sexuais normais, atiçou algo em mim que me descontrolou, e tento rever esses sentimentos agora. Não tenho em vista outras amizades. Saio com duas amigas queridas com quem tenho longas e gostosas conversas, e certamente sairia mais se tivesse um salário melhor, afinal ainda gosto de uma boa conversa e ambas conseguem me manter interessado por muitas horas. Não é o caso das outras pessoas, principalmente as da igreja ou as que tinha no trabalho que, além de erguerem um muro encimado por grossos cacos de vidro entre nós, possuem não raras vezes a profundidade de um pires. Essas pessoas são chatas, e já estão fechadas em seus ciclos de amizade, onde não há espaço para mim e, francamente, eu nem suportaria também. Outras ainda me causam um tédio que beira repulsa física. Me identifico cada vez mais com o fronteirismo do Transtorno Borderline, aliado ao meu já conhecido Transtorno Bipolar. Alguns idiotas colecionam bonecos de personagens de filmes e histórias em quadrinhos, eu coleciono transtorno mentais e cartelas de remédios.

“O problema é que as pessoas são estúpidas demais. Não é que eu seja um gênio, mas estou cansado de ouvir as mesmas coisas ditas do mesmo jeito, todos os dias.” (Charles Bukowski)

Uma coisa eu não posso negar, esse concerto de Rachmaninoff é magnífico. O som daquele piano, surgindo em melodia simples que pouco a pouco começa a se confrontar com a orquestra, como uma luta violenta entre um pobre homem e o mundo que insiste em engolir sua existência para cuspir depois. Em momentos de suspensão, o piano dá lugar a uma ternura. Até o mais deprimido de nós ainda consegue encontrar beleza, ainda que transfigurada da dor, entrevendo um mistério inefável expresso apenas pela música. Realmente magnífico, um desespero sublime, das primeiras notas tristes e arrastadas até seu final, não glorioso e apoteótico, mas como um grito de afirmação do eu. A fera que gritou Eu no coração do mundo, revivida no dedilhar de jovem e belo pianista deprimido. 

Essa reflexão tornou minha madrugada um pouco mais bela. Uma paixão sem cruz, minha alma e minhas feridas expostas à nudez das minhas palavras até o último ponto. Ou última nota.

"O que me fere não é a solidão, mas a obrigatoriedade de estar com os outros." (Clarice Lispector)

A Mística das Madrugadas

“A podridão da carne é a verdade do desejo.” (Augusto dos Anjos)

São muitas perguntas num coração inquieto durante a madrugada. Até demais eu diria. Pensar nelas me deixa apreensivo, e eu busco que possa me ancorar. Me sinto um pouco tonto, como se começasse a girar, o que deve ser efeito da quantidade absurda de remédios que venho tomando para dormir mais e pensar menos. Seguro com as duas mãos a caneca quente de chá-verde com morango, respirando fundo para sentir o aroma da bebida ao passo em que sinto seu calor tocando levemente meus lábios e, assim, ela vai me puxando pouco a pouco de volta para a realidade, meio escura, da madrugada em minha sala. 

Talvez eu esteja novamente confundindo as coisas. As reações fisiológicas do meu corpo, aquele tesão incontrolável de certo episódios mistos, ou, que podem ser, marcas de um Transtorno Borderline, não necessariamente significam que a relação, os laços, que busco no outro, sejam de teor sexual. Pode ser que uma amizade sincera e desinteressada, como orienta a mater et magistra, seja a verdade.

No entanto, se for assim, como devo proceder com essa energia, esse calor que percorre meu corpo até ceder em suspiros e gemidos de gozo, geralmente sozinho ou com algum desconhecido e desconfortável? Pra dizer a verdade, encontros casuais são quase sempre tão sem graça que nem me lembro quando algum deles me fez gozar; 

Devo seguir o conselho daquele jovem sacerdote que, anos atrás, me orientara em confissão a tentar guiar essa energia para outro lugar? Se conseguisse simplesmente desviar, como o fluxo de um rio para a vida intelectual, por exemplo, isso seria de grande proveito para minha alma. Anseio essa maturidade, se ela me for possível de ser alcançada.

Mas, e se esse pensamento ocorreu porque, na madrugada, fiquei diante diversas realidades que normalmente se apresentam a mim separadamente de modo que, dificilmente, conseguiria um panorama abrangente como o de hoje? É que aqui tenho a perspectiva da solidão, no silêncio daquele que ainda não sei se nutro tesão ou afeto, ou um misto de ambos, como o chá que acabei de tomar, ou como a silenciosa resposta do outro, que me confirmou um relacionamento assim que, embora transpasse a barreira da amizade, não é no rumo romântico e nem sexual ou, por fim o desconhecido, anônimo, puramente sexual, que poderia me aliviar brevemente?

Quem sabe a constatação acima seja um conformismo estoico, de que devo ser apenas amigo de um e ceder as lascívias luxuriosas de uma prostituta barata com célebres desconhecidos? Essa visão não me agrada. Mas o que mais eu posso fazer? Como desviar os fluxos desse rio que se ramifica em afluentes tão sinuosos, desaguando em pedras, em jardins e alimentando, ao mesmo tempo, o solo fértil de flores, árvores de frutos suculentos e ervas daninhas que se espalham como verdadeiras pragas? 

A vida cenobítica me parece aprazível, no entanto, iria requerer de mim uma reorganização completa do meu ser. Me tornaria aquilo que desprezo naquele amigo: uma espécie de asceta que, ao primeiro estímulo, cede e mostra sua verdadeira face. Prefiro não esconder o cheiro de enxofre que escapa do meu pau. A hipocrisia me incomoda. Mas tampouco a vida diabólica me agrada, como fera que se entrega, sem pudor, aos seus apetites mais bestiais. Muito embora as fantasias luxuriosas me sejam frequentes, depois de gozar eu não sinto que elas sejam de fato importantes, são mais como incômodos passageiros.  Alguém quer amor, o outro quer foder. E, por uma noite ou menos, chamamos isso de felicidade.

Onde está o meio-termo, ou a virtude que devo buscar? Isso porque me considero incapaz da completa castidade, temo que a macularia como quando, naquela fatídica noite, aos vinte anos, cedi e senti o gozar pela primeira vez, passando a, com certa frequência, sentir os jatos de porra em meu próprio corpo. Não sentia que descobria algo fantástico, mas banal e, justamente por isso, comum, como alimentar-me ou me banhar todos os dias. 

Busco contato, conexão. É o que digo sempre, é o que parece me faltar, é onde me parece haver um vazio, a imperfeição fundamental. Mas de que tipo deve ser essa conexão? As sexuais parecem demasiado superficiais. O problema dessa solução é que nesse mundo as pessoas são bonitas demais na cama e feias demais ao levantar. Muitas vezes nem isso. As conexões profundas, porém não sexuais, parecem deixar de fora algo que as torna incompletas. Conciliar ambas parece ser como viver uma vida dupla, difícil de equilibrar, para não dizer impossível.

Busco contato. 

Mas isso significa segurar a mão de alguém com ternura enquanto durmo? 

Significa conversar sobre santos e carreiras universitárias?

Ou ainda significa encontrar alguém que me coma igual uma cadela no cio? 

No entanto, algumas imagens que me levam a crer na possibilidade dessa casta vida se apresentam a mim em momentos inesperados. Especialmente aquelas de um olhar de puro amor, transbordando carinho, cuidado. E elas continuam aparecendo, como se me chamassem. Mesmo depois daquela erupção da madrugada, me momento de ainda mais silêncio, como se, coberta de cinzas, estivesse uma belíssima estátua, obra-prima maravilhosa de um escultor angélico. 

Parece que aos trinta me surgiram os questionamentos ridículos de um jovem que se esconde no banheiro para se masturbar. Faço isso em algumas noites, mas sem me esconder. Não vejo razões para isso, e falo disso como quem comenta a previsão do tempo. 

Certamente vai chover. 

“Ela era jovem, queria amar, mas não sabia que o amor era só uma palavra que inventamos para enganar a carne.” (Charles Bukowski)

domingo, 31 de agosto de 2025

Sexta-feira em ruínas malditas e zolpidem

"O álcool é provavelmente uma das melhores coisas que chegaram à Terra, além de mim. Nos entendemos bem. É destrutivo para a maioria das pessoas, mas eu sou um caso à parte. Faço todo o meu trabalho criativo quando estou intoxicado. O álcool, inclusive, me ajudou muito com as mulheres. Sempre fui reticente durante o sexo, e ele me permitiu ser mais livre na cama. É uma liberação porque, basicamente, eu sou uma pessoa tímida e introvertida, e ele me permite ser este herói que atravessa o espaço e o tempo, fazendo uma porção de coisas atrevidas… O álcool gosta de mim.”

(Charles Bukowski)

X

O que o velho Buck diz sobre o álcool eu digo sobre os meus remédios para dormir. Embora eles pareçam querer me abandonar, fazendo cada vez menos efeito, devo admitir que foi sob efeito deles que consegui escrever algumas de minhas páginas mais memoráveis. Não que eu seja um escritor memorável, não sentado no chão da sala ouvindo os roncos do meu pai aos trinta anos, desempregado e fazendo tratamento psiquiátrico. 

Mas eles me deram a oportunidade de fugir, por pouco tempo que seja, dessa droga de mundo. 

Se as coisas que digo são um incômodo a todos, a quem ouve e a mim que sofro as consequências, o que pode haver de melhor do que a oportunidade de não dizer? De me calar diante do mundo? 

Por isso queria ser mais independente do outro. Aquelas pessoas que não precisam de ninguém, que sentam numa mesa de bar e tomam sua cerveja sem ligar para nada. Eu fui ao cinema sozinho duas vezes e, esperando ter a mesma experiência das pessoas na internet que disseram ser libertador, acabei achando excepcionalmente deprimente.

Se já não acreditam mais quando falo sobre meus planos para meu próprio fim, não falarei mais a ninguém. Essas páginas serão minhas únicas confidentes onde, em letras escarlates, registrarei com meu sangue a minha dor existencial. 

Sozinho enquanto outros enchem a cara, trepam com suas namoradas ou amantes, comem com os amigos. Lembrarão de mim na necessidade, apenas. Mas eu não quero mais ser assim, e se for preciso ficar completamente sozinho, o que não seria muito diferente de agora, eu vou ficar.

Só queria que as drogas continuassem funcionando. Que pudesse dormir sem preocupação. Me encanta estar inconsciente desse mundo.

Rivotril. Diazepam. Zolpidem. Cloridrato de Ciclobenzaprina. Dramin, Fernegan. Celestamine. Hidroxizina. Todos ao mesmo tempo, e ainda assim dormi por menos de seis horas. Gostava de quando metade disso me apagava por oito ou até doze horas. Era delicioso. E com isso podia ignorar as mensagens, aliás naquela época todos me odiavam, ninguém me procurava. Talvez devesse voltar a ser assim. 

Bem, eu só queria um bom sono, desses que apagam completamente. Tão profundos que sequer sonhamos. Só queria uma dopada candura que me permitisse não mais acordar. Não mais ver o amanhecer de outro dia terrível. 

É uma ilusão, no entanto, acreditar que isso faria alguma diferença para os outros. Não. Os remédios me fazem dormir, mas eu também serei aquele a ficar doente por isso. 

Meu silêncio apenas deve me proteger dos outros, não vai incomodá-los ou preocupá-los. As coisas que digo não tem a menor importância. 

É como quando alguém falece. Na família alguns cuidam dos documentos, outros choram, mas o resto do mundo continua. Se a pessoa trabalhava, começam imediatamente a buscar um substituto. O Papa Francisco nem havia sido velado e já se falava no próximo conclave, com especialistas e idiotas dando suas opiniões. Portanto, essa minha opção, e isso precisa ficar claro para mim mesmo, é apenas e tão minha e para minha proteção. Eu simplesmente não quero mais me incomodar e sofrer pelo outro. 

Ensaiei dizer que não queria sair, o convite foi cancelado. Menti quando disse que estava tudo bem, mesmo mudando minha forma característica de escrever, e bem, ninguém ligou. Então, essa é uma ação que serve apenas para mim. 

Dormir serve para aliviar minha dor ao anestesiar as chamas da realidade que me consomem. Serve para me afastar do outro, para me proteger do peso de conviver. Não serve ao outro senão para aliviar o peso da minha incômoda companhia. 

Alguém até poderia me questionar: mas por que raios uma pessoa poderia querer isso? E então eu fecho os olhos tentando me concentrar em vão no Concerto para Piano N° 3 do Rachmaninoff e o barulho ao redor mostrou que é simplesmente impossível. Também não consegui me concentrar nas leituras. Aumentam os números dos livros que não consigo ler. Além de incapaz, cada dia mais doente da cabeça, serei burro também. E eu acho que isso já é motivo mais do que suficiente para querer me isolar no sono. Meu sono. 

Finalmente começo a sentir algum sono. Espero que durma todo o resto do dia. 

Bom mesmo seria nunca mais acordar.

X

"(...) A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece." (Clarice Lispector)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Homeopatia do Fim


"Alma minha gentil, que te partiste 
tão cedo dessa vida descontente,
repousa lá no céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste."
(Camões)

Não estou surpreso. Um pouco triste, talvez, mas surpreso não. Sei que logo chegarão mais mensagens, pedidos. Sempre assim. Mas esta será mais uma sexta em que passarei sozinho, sem ânimo até mesmo para assistir às séries que, antes, me faziam tão bem.  Ninguém vai lembrar de mim, no entanto, para os embalos de sexta à noite. Mas, bem, não vou fazer nada, continuo quietinho no meu mundo fechado, pois, como disse Machado de Assis: "há coisas que melhor se dizem calando." 

Eu só não quero mais lutar. 
Embora triste e humilhado, 
reconheço a derrota. 

Sempre a derrota.
Não apenas de uma batalha,
mas toda minha guerra.

Sempre derrota.

Não há lugar para mim nesse mundo. 
Não há onde possa me deitar em colo.
Vivo exilado em mim. 

Como se a um reino
tivesse atentado à soberania.
De fato tentei invadir,
mas o coração não era meu. 

E então, quando decido recuar
percebo que estou tomando
um remédio homeopático.

Em pequenas doses 
vou morrendo, 
em cada pequena dose de desamor.

De solidão, desesperança
de frial indiferença.
Enquanto de mim se lembram na precisão.

Não estou surpreso. Um pouco triste, talvez, mas surpreso não. Sei que logo chegarão mais mensagens, pedidos. Sempre assim. 

É curioso quando ofereço ajuda, ou quando aceito um pedido. Dizem que sou lindo, que sou um sonho. E então devoram cada pedaço com uma fome voraz, violenta. Mas quando eu preciso de ajuda, quando peço por alguma demonstração mínima de amor, quando quero companhia pro cinema ou pro concerto de piano, bem, aí é incômodo demais. Engraçado, não é demais quando sai de mim. Mas, de todo modo, esta será mais uma sexta em que passarei sozinho.

São João da Cruz disse, em certo lugar, que "ferida de amor não se cura, senão sem a presença ou figura." Tomarei o oposto como realidade, quero buscar agora o afastamento por iniciativa minha. Quero ser eu a dizer não. Não quero pular com os jovens, não quero ouvir besteiras sobre garotas, detesto garotas, não quero ser obrigado a estar sem querer. Estar vivo já é mais do que eu queria. Estar acordado, então, é um absurdo a minha vontade!

E eu só queria dormir nessa droga de dia! Mas nenhum dos remédios funcionou, e gastei o resto que tinha na conta para comprar outros dois e, quem sabe, conseguir apagar. Não aguento mais ficar acordado. Simplesmente. Sei que já é um quadro de dependência, mas que importa? Não consigo pensar numa razão para querer me manter sóbrio. A sobriedade me inspira uma preguiça existencial. Eu  observo o ser, a vida, tudo com total e absoluta desesperança. Minha única vontade é a de ser completamente destruído, deixando de existir. 

Voltar ao nada. 

X

O trabalho que eu havia feito por prazer e praticamente de graça estava sendo recompensado com dinheiro vivo. Me senti como o jovem Hemingway. Deve ser uma maravilha ser um escritor verdadeiramente bom, mesmo que isso signifique um tiro de espingarda no fim da linha.

E talvez seja por isso que eu, Bukowski, ainda estou aqui, não menos sagrado que Gandhi e, doçura, talvez um pouco menos morto, disparando histórias que talvez só as pessoas interessadas em sexo possam entender. 

Eu bebo,
minha cabeça tomba sobre a máquina de escrever,
ela é meu travesseiro!

Eu sou o Underground, sozinho. E não sei o que fazer.

(Charles Bukowski)