segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Afeto e hábito

É uma noite inspiradora para um escritor que passou o dia inteiro buscando o silêncio, não o silêncio exterior, mas aquele raro, quase impossível, que às vezes se esconde nos cantos escuros da alma. Permaneci em casa, escondido do mundo, mas nem assim consegui escapar da tempestade interna que me acompanha quando a ciclagem se aproxima. A chuva fina, persistente, que cai lá fora como um murmúrio interminável, parece apenas reforçar esse contraste: por fora, delicadeza; por dentro, o peso de uma tormenta. Coloquei para tocar uma playlist de Ryuta Muneto, e o casamento foi imediato: os longos respiros das composições se misturavam ao som da chuva, como se cada pausa da música desse espaço para o céu completar a melodia.

Não queria falar sobre mim, mas talvez seja inevitável — um prelúdio necessário para que estas linhas não tomem a forma árida de um estudo sociológico ou de uma filosofia pretensamente sistemática. Há textos que precisam nascer da alma exposta, não do papel ordenado.

Comecei a rever I Saw You In My Dream por causa de um impulso quase intuitivo, um retorno movido por um vazio recente que pedia consolo. Lembrei da delicadeza com que essa série me tocou na primeira vez, da surpresa gentil que senti ao acompanhar a história de Ai e Yu. Talvez tenha encontrado neles um tipo de reflexo, já que no primeiro episódio vemos um cantando dos meninos cantando na igreja e outro tirando fotos, exatamente o que faço. Um fragmento da minha própria vida disperso ali, devolvendo-me à minha sensibilidade em um tempo em que eu mal lembrava de tê-la perdido.

E então, olhando novamente com mais calma, percebi algo que permeia tantas obras tailandesas, mas que nesta se torna ainda mais luminoso: aquele carinho que não precisa ser justificado. Um afeto que não se explica, não se prepara, simplesmente existe. Como um reflexo natural, uma linguagem aprendida antes da linguagem. Sou brasileiro, habituado à lógica do toque que rapidamente se erotiza, ao corpo que se antecipa ao sentimento; mas ali o toque é outra coisa: é humano antes de ser romântico. É a mão que ajeita o cabelo, a gola da camisa, o creme da sobremesa nos lábios. Gestos que antecedem o pensamento, como se o coração agisse primeiro e só depois a consciência corasse de timidez. Há algo profundamente verdadeiro nessa espontaneidade, como se amar fosse antes um hábito de cuidar do que uma declaração.

O amor, discreto e contido, carrega o respeito como sua moldura: o amado se torna quase um objeto de veneração. Os olhares se prolongam; o mundo ao redor desbota; a cena se reduz a dois corpos tentando decifrar o mesmo sentimento nascente. Essa demora do olhar é uma oração silenciosa. O toque, uma espécie de coragem. E juntos constroem um ritmo lento, sensível, onde cada pequena evolução é legítima, conquistada, necessária.

Essa construção se dá no terreno mais humilde e sagrado: o cotidiano. Comer juntos, dividir um prato; cozinhar lado a lado, dividindo o mesmo vapor; estudar até tarde, compartilhando cansaços e pequenas vitórias. Todas essas ações formam o que só posso chamar de liturgia doméstica — um sacramento silencioso onde o afeto vai se tornando presença, e a presença vai lentamente se convertendo em sentimento.

A beleza dessa história está no fato de que Ai e Yu crescem juntos, paralelamente, como duas árvores que se inclinam uma para a outra sem perder a própria raiz. Não é o amor que os molda; é o amadurecimento mútuo que refina o amor. Yu, que carrega a dor aberta do abandono e o peso da responsabilidade; Ai, que guarda seus medos infantis, sua vulnerabilidade exposta. Um vai preenchendo as frestas do outro sem sufocar, sem dominar, apenas acompanhando. O cuidado nasce das necessidades reais e se manifesta nas ações simples: correr até o quarto do outro na queda de energia, oferecer carona, ajudar no trabalho, estar presente quando ninguém mais está. Assim como o alvorecer salpica o céu de estrelas, o amor deles surge devagar, mas com a inevitabilidade de um fenômeno natural.

A natureza, aliás, é quase um terceiro personagem, não por conveniência estética, mas como espelho emocional. O mar é vasto e belo, mas também perigoso quando encarado de perto: a imensidão do sentimento sempre traz algum temor. O céu estrelado guarda momentos que só podem viver na memória e, por isso, tornam-se infinitos. A paisagem não decora: revela. Ela diz o que o coração ainda não sabe pronunciar. O sentimento sempre esteve lá, mas precisava da luz certa para se tornar visível.

Assim, aquilo que antes se expressava no cuidado infantil, a amizade, o apoio, a brincadeira, se transforma, quase sem que se perceba, em cuidado adulto: companhia constante, proteção discreta, compreensão profunda. A forma muda, mas a essência permanece: o carinho continua sendo o primeiro idioma.

Talvez seja isso que me faz voltar a essas histórias: a lembrança de que o amor, quando verdadeiro, não precisa anunciar-se. Ele se insinua. Cresce nos gestos mais simples. Aparece primeiro no que não se diz.

E, como a chuva desta noite, ele cai devagar, mas sem interrupção, até que de repente percebemos que tudo ao redor já está molhado de sentimento.

E talvez seja assim que essas histórias nos tocam: como sombras que deslizam sobre a memória, como chuva que cai sem alarde, como gestos que passam despercebidos até que, de repente, descobrimos que foram eles que nos sustentaram.

No fim, o amor de Ai e Yu me lembra, nessa madrugada, que o coração não desperta com estrondo, mas com constância. É na repetição do cuidado, no silêncio compartilhado, no olhar que demora um instante a mais, que ele encontra a coragem de existir.

E quando finalmente reconhece o próprio sentir, não o faz como revelação grandiosa, mas como quem abre a janela após a tempestade e percebe que o mundo ficou mais úmido, mais fresco, mais vivo.

Há amores que não chegam, eles emergem procurando a luz.

E talvez a maior beleza esteja nisso:

no que nasce devagar, mas permanece.

sábado, 22 de novembro de 2025

Materialismo Angustiado


Fugindo de mim 
cadáver consciente
escapo das Verdades que, pútridas, 
germinam no húmus do peito 
outrora efervescente,
erguendo-se como vermes que se animam.

Rodopiam pétalas mortas, 
levadas por ventos de agonia sobre a carne fria;
e nos silêncios das horas mutiladas
sepultam-se os amores de sangria.

Em verdade, meu tórax 
tumba exausta onde jaz oco 
como um órgão carcomido,
sem fé na vida, sem paixão, sem holocausto,
exaurido do Amor
e, mais ainda, do fingido.

Do amor-postiço, máscara apodrecida;
da hemorragia farsa dos afetos;
da imitação de chama, extinta e fingida, 
que só produz fantasmas incompletos.

Daquele "eu te amo" de saliva breve
que, dito à noite, amanhece esquecido,
como um cadáver morno que se ergue
apenas para morrer
sem ter vivido.

E vão surgindo, lúgubres, indecisas, 
as luzes que incendeiam quem ainda arde;
mas sobre mim só tombam cicatrizes
de astros mortos, dissolvidos em retarde.

Pois já se extinguiu, em meu deserto,
todo brilho, toda centelha, todo lume.
E os outros buscam no rosto descoberto
a claridade que em mim já não assume.

Por aqui, passam-se as horas 
que mastigam dias, devorando sua trilha;
e eu, em escombros, perscruto meus estragos,
sem encontrar, em parte alguma,
um só vestígio
dessa antiga maravilha.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Alma disfarçada pelas notas: Tchaikovsky por Argerich

Interpretação de referência:
Martha Argerich e Verbier Festival Orchestra
Regência de Charles Dutoit

"Eu só sei lamentar pela música.” (Frédéric Chopin)

Concerto para Piano e Orquestra N° 1, Op. 23 em Bb menor de Tchaikovsky

Antes que qualquer nota seja tocada, já sentimos a aproximação de algo imenso, como o vento que antecede a neve ou o silêncio que pressagia uma revelação. Esse concerto é assim: não se apresenta, invade. Ele chega com a força de uma paisagem inteira, daquelas que se abrem até onde os olhos podem ver, comprimida em som, com o peso de uma alma que busca desesperadamente transformar dor em grandeza.

Quando Martha Argerich se senta ao piano, parece que ela não interpreta: ela convoca. É como se as mãos dela abrissem uma fenda por onde o próprio Tchaikovsky voltasse a respirar. O piano vira um corpo vivo, um animal inquieto, uma memória acesa. E tudo isso me atinge antes mesmo de pensar. Há uma espécie de verdade emocional súbita, quase brutal — a verdade que só Tchaikovsky ousou escrever e que Argerich, incendiada, ousa revelar.

É neste limiar, entre o que antecede a música e o que a música desperta, que começo minhas próprias impressões. Não como quem explica, mas como quem testemunha. Porque certos concertos não se escutam: nos atravessa atravessam. E cada vez que retornam, abrem no peito uma clareira onde luz e sombra lutam, uma paisagem onde a alma tenta, por um instante, acompanhar o fogo do piano.

I. Allegro non troppo e molto maestoso - Allegro con spirito

O início é como uma montanha abrindo o peito para cantar, vasto, desmedido, quase sobre-humano. A abertura orquestral, sem o piano, cria uma arquitetura sonora monumental que o piano depois quebra e ilumina. Sempre gostei dos contrastes da música de Tchaikovsky: uma mente claramente cheia de questões demais para expressar em palavras, e até suas músicas não são composições conclusivas: antes disso, demonstram os muitos medos, os anseios e alegrias, enfim, os vários aspectos da alma desse homem.

O tema surge como um início majestoso, um concerto de piano numa das salas mais luxuosas do mundo, mas o piano de Argerich o transforma em fogo instantâneo. A força dessa mulher em cada nota, mesmo em idade avançada, é como a experiência dissesse, por seus dedos: "vejam bem, é isso que queria nos dizer o velho Tchaikovsky, apaixonado, confuso, lutando contra si e contra o mundo. Não é uma dor que uma criança possa compreender."

O diálogo entre piano e orquestra parece um duelo entre tempestade e chama. Há algo de heroico e, ao mesmo tempo, quebrado, como se o próprio Tchaikovsky lutasse para respirar dentro das harmonias. Ele faz muito isso, seja nesse concerto, nos balés, nas sinfonias... Vejo muito de mim em Tchaikovsky, ou melhor, de Tchaikovsky em mim: um coração que pulsa, apaixonado e, por isso mesmo, perturbado pelos fantasmas que acabou encontrando pelo caminho.

Ele se perde nas pradarias e estepes, observa aquelas paragens longínquas, vê como a luz do sol brilha ou como a neve cobre tudo, e seus pensamentos correm livres por ali, e por isso mesmo são assustadores: não estão mais contidos dentro da caixa de seu peito, correm sem nenhum controle, e podem devorar qualquer um que ouse se aproximar. E então ele acorda de seu breve devaneio: a paisagem continua vazia, nada de feras, e ele coloca mão sobre o peito.

II. Andantino semplice - Prestíssimo

Uma luz suave entra pela janela após um dia de neve: tudo quieto, mas misteriosamente vivo. A entrada suave da flauta e das cordas me fazem pensar que, ao observar a paisagem, ele é tomado uma súbita melancolia que o assola. Ele continua contemplando aquele espaço aberto, imenso, que parece se estender infinitamente, mas já não olha para ele.

O piano caminha com ternura e fraqueza, como quem toca memórias que doem, mas não querem ir embora. Memórias de uma infância distante, que se perde naquele horizonte amarelado, e os segredos da infância permanecem vivos naquele peito. Esse movimento tem essa fragilidade da infância, mas com esse peso do adulto que sabe que não pode voltar.

Argerich faz o tema parecer um sussurro contado ao pé da lareira, enquanto a orquestra responde com um suspiro. Num legato, ele como que costura as linhas da flauta: ambos respiram como um só. Seria bem mais fácil não é, se pudessem apenas respirar juntos assim, caminhando sem rumo, sem precisar trocar palavras, apenas observando o mundo ao redor.

Mas não é, e o mundo cobra, as pessoas cobram, e ele não pode ser um home feliz, precisa se esconder por detrás de pesadas cortinhas, das intermináveis linhas das partituras que ninguém parece entender. Todos acham lindas, mas não entendem de verdade.

Martha mostra a força da sua experiência ao unir-se com a orquestra. Ela olha rapidamente para os outros músicos, bem mais novos, e entende imediatamente o que precisa ser feito para acompanhar. Não dita sozinha ao piano, mas, como amigos que caminham juntos, ela ajusta o passo para que ninguém acelere ou fique para trás. A agilidade daquelas mãos guardam décadas desses interiores complicados que, com leveza e destreza, ela traz de volta à vida para que as pessoas conheçam, e entendam, um pouco do coração atormentado.

III. Allegro con fuoco

Aqui o piano vira um animal selvagem correndo sob céu aberto, caindo como um relâmpago e ateando fogo ao campo. Argerich toca como quem cavalga o próprio desespero até que ele vire alegria. Por isso o ritmo parece um coração galopando rápido demais, impossível de conter.

Os arpejos desse movimento nos dão a impressão de uma corrida, mas não são mais as feras que correm, mas o próprio homem, para que sua respiração alta e assustada tape os urros daqueles monstros, ao mesmo tempo, em que ele tenta fugir deles.

O final explode como uma festa à beira do abismo: dança, vertigem, triunfo e perigo. No finale, a articulação percussiva e os ataques quase felinos de Argerich transformam as escalas em golpes de luz. Há algo de majestoso: é o homem que domou seus instintos e agora se apresenta, belo, diante do mundo, mas que continua gritando, por cada nota, cada arpejo, cada compasso, e chora copiosamente, sem que os outros sequer percebam. E então, numa mesura, enquanto abaixa a cabeça e lágrimas caem ao chão, quando ele levanta, todos parecem pensar que apenas se trata de emoção comum ao artista. Ninguém o vê de verdade.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Uma vigília com Rachmaninoff


Interpretação de referência:
Yunchan Lim e Fort Worth Symphony Orcherstra
Regência: Marin Alsop
Concurso Internacional de Piano Van Cliburn, 2022

Concerto para Piano N° 3, Op. 30 em Dm de Rachmaninoff

“A música nasce onde termina a palavra.” 
(Rachmaninoff)

 I. Allegro ma non troppo

A chuva cai fininha lá fora, e eu gosto de ver o reflexo dela na luz amarela dos postes. É como se ela caísse devagar, mas eu sei que isso é só uma impressão. Parece que o céu chora em silêncio. E eu, observando pela janela e sentindo o aroma doce e envolvente de uma caneca fumegante de chá, pareço competir, ou me unir, com o céu em melancolia. 

Assim como a chuva só parece cair lentamente, minha melancolia é apenas aparente: dentro de mim esconde uma verdadeira tempestade que, de tão barulhenta, se torna ensurdecedora, e então todo o som bravo e poderosos, desaparece, e tudo que ouço é isso, a chuva leve, triste e amarela lá fora. 

Já fazia algum tempo que não observava a chuva cair. Não digo a lá de fora, mas essa aqui dentro. Queria ter ficado um pouco mais sem escrever sobre mim, mas acabei interrompendo meus planos de regular o sono e recorrendo aos remédios de novo, de novo, e de novo... E eu não sei o que será daqui para frente. Essa é a tempestade que agora me aflige. 

Sinto como se caminhasse descalço na lama fria, e sentisse meus músculos e ossos congelarem, as minhas lágrimas caírem frias como aquelas gotas. Respiro profundamente o chá mais uma vez. Aroma doce de baunilha, o sabor suave me trazendo de volta à realidade enquanto o seu calor se espalha por meu corpo.

A melancolia vem e vai, assim como a cor de tudo ao meu redor parece perder o brilho e depois quase me cegar, apenas para sumir novamente. Yunchan Lim não se parece com um homem ao piano, mas se uniu a ele de tal modo que parece ser sua presença que eu sinto ao olhar pela janela, entre o barulho ininterrupto da água descendo pelas correntes das calhas até o chão. 

II. Intermezzo: Adagio

Ao lado da orquestra é também como essa paisagem ao meu redor: o chão já molhado, cada passo criando pequenas ondas que mudam a forma do reflexo da água que caiu do céu em gotículas preciosas de ouro e ainda não foi absorvida pelo solo, os animais que não vejo, mas sei que estão escondidos em suas tocas e debaixo de arbustos no mangue que cerca a ilha em que vivo.

Essa peça é um mergulho na depressão, talvez esse garoto tenha um coração tão inquieto que conseguiu incorporar o do próprio Rachmaninoff de tal modo que essa tem sido a minha interpretação definitiva desse concerto. É o movimento de quem vive com dor constante, mas suave. O contraste entre as pulsações das cordas e o desenho melismático do piano cria um diálogo de desamparo: um coração que fala e outro que apenas responde com silêncio.

O brilho do piano, e também da orquestra na segunda metade do movimento, não é algo caloroso como o sol, como o momento em que a chuva perde sua força: é um silêncio úmido e um homem que se recosta para chorar mais baixo. As harmonias do movimento oscilam entre esperança e desistência, como se a tonalidade tentasse erguer-se, mas fosse puxada de volta para o peso do grave.

Ele soa como a respiração irregular de alguém que tenta dormir após horas de tormento, mas continua acordando num sobressalto que não se explica. A progressão final do Adagio, quando a orquestra cresce em volume e densidade, soa quase como um soluço contido, um clímax que não explode, mas colapsa para dentro. Os arpejos de Yunchan Lim parecem carregar a mesma tensão das mãos de alguém que tenta estabilizar o próprio tremor. Essa inquietação profunda que culmina num corpo que já não consegue respirar em meio a um pesadelo e, debatendo-se, ergue-se num rompante.

III. Finale: Alla breve

A entrada do último movimento é quase triunfal, não fosse uma peça em que se imprimiu a dor de um coração e mente colapsados e que agora flutua nos dedos ágeis de outro coração perturbado. As notas fluem como se cada uma delas fosse uma gota de sangue a cair, ou uma lágrima pesada a rolar por um rosto frio. É o momento em que a alma, exausta, corre não para fugir, mas para não parar, porque parar é ser engolido. A tensão harmônica cresce em ciclos, como alguém que tenta controlar a respiração, mas sempre volta ao ponto em que o coração dispara.

Ao acordar do sonho horrível, ele reconhece o quarto em que está. O ar úmido impregnado de suor, uma camisa jogada numa cadeira, uma caneca com um café que esfriou. Olhando pela janela, ele vê a chuva cair e brilhar. Coloca a mão sobre o peito e percebe que seu coração ainda bate rápido, mas sem saber se isso é algo bom. A respiração cresce, parece que o pulmão vai explodir, mas é só outra noite difícil. Essas visões também vêm e vão, às vezes como se fossem minhas e ora como se fossem do Lim ou do próprio Rachmaninoff, ou talvez já nem consiga mais distinguir dentre os três. 

Numa agilidade sobrenatural, a melancolia retorna mesclada em loucura, na madrugada solitária e assustadora de um homem atormentado. A técnica de Yunchan Lim faz com que os saltos e escalas vertiginosas pareçam pensamentos acelerados, não exercício mecânico. A escrita rítmica do Finale cria a sensação de hiperventilação: motivos curtos, repetitivos, comprimidos, como impulsos nervosos em surto. É o rasgo final da noite: antes da aurora, o momento em que o desespero brilha mais do que a esperança.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A Morte, o Juízo e a Esperança: uma leitura do Dies Irae II

Leia a primeira parte aqui

Em consonância com a Teologia Patrística, São João Paulo II afirma a iluminação da dor pela expectativa da Ressurreição: “O sofrimento humano foi assumido por Cristo e, na sua Páscoa, tornou-se caminho para a vida.” Enquanto o mundo silencia sobre a morte, por um desespero silencioso, a Igreja consola seus filhos na voz do Papa: “A morte não é a última palavra sobre o homem, porque o Filho de Deus penetrou na própria morte e dela fez o início da vida eterna.”

A comunhão dos santos é, para nós, de imenso valor, pois, sendo homens e mulheres como nós, também experimentaram nossas dores e nossos medos, mas encontraram em Cristo a força que lhes fizera confiar plenamente na esperança escatológica. São Gregório Magno, homem de grande sabedoria, confessa, em um de seus sermões, o que sente o homem diante da iminência de seu fim: “Temamos o Juízo futuro, irmãos, e purifiquemo-nos agora para não sermos condenados então. O que não corrigimos em nós na vida presente, o Juiz eterno o julgará com rigor.”. Mais tarde o pecador arrependido vai gemer, prostrado, como réu diante do Juiz. Mas, também como pai e pastor da Igreja, conforta o coração inquieto ensinando onde encontrar a luz: “Desejemos as alegrias eternas, onde não há temor de perder o que se possui, nem dor de procurar o que falta.” Unindo então as duas realidades, São Gregório como que nos mostra uma visão de fogo, mas o fogo do Juiz é o amor que purifica e a verdade que revela. O juízo de Deus é fogo que ilumina: queima a palha, mas revela o ouro. O rosto de Cristo é como uma chama amorosa que revela o que somos sem nos esmagar.” O Dies Irae não canta um fogo de destruição, mas o fogo de um Deus que deseja consumir em nós apenas o que não é amor.

A profundidade da teologia de Santo Tomás de Aquino não condiz com a frieza que normalmente apontam sua obra, nos meios não católicos. Pelo contrário, um coração frio jamais seria capaz de compor os mais belos hinos à Eucaristia, senão que só poderiam ser obra de uma alma ardente. Sem rodeios, ele apresente a morte como essa separação dolorosa e a recompensa perfeita que é a vida eterna transformada pela redenção em Cristo. “A morte, enquanto separação violenta da alma e do corpo, é a mais terrível das coisas naturais.” Mas não permanecemos nela, e podemos retomar a visão do rio, e a morte como passagem, dura, é verdade, mas certa do porto ao qual chegaremos: “A morte foi vencida pela morte de Cristo; assim, aquilo que era causa de temor tornou-se caminho para a vida.” 

Por fim, ao termo da viagem, encontramos algo tão perfeito que, mesmo tendo buscado a vida toda, não poderíamos imaginar tamanha beleza: “A felicidade perfeita consiste na visão da essência divina.” Essa essência é aquela sabedoria que nos criou e para qual desejamos voltar, já nos tendo esquecido de sua perfeição. Essa posição teológica tratada com seriedade e esperança foi recentemente retomada por Bento XVI: “o juízo de Deus não é um tribunal de horror, mas o lugar onde a verdade se torna amor e purificação.”

Com efeito, a visão de Santo Tomás que o fez optar por não mais escrever se dá porque ele reconhecia que, embora fosse genial escritor, ainda assim não conseguiria exprimir toda beleza que viu, condensando-a assim, como uma promessa. Optou pela contemplação amorosa.

Essa promessa é muito bem descrita pela poética teologia da tradição carmelita. São João da Cruz, o qual já me referia sobre a imagem da Noite Escura, enquanto Santa Teresa d’Ávila trata esse mundo como um nada diante de Deus. Reconhece a beleza que nele há, mas exalta que é uma beleza passageira. “Tudo passa, Deus não muda. A paciência tudo alcança.” Esse mundo logo passará, findará, e então nascerá o dia sem fim, essa expectativa pelas núpcias é, a meu ver, o eixo da sua obra: “A vista do que Deus prepara para nós na outra vida faz com que as dores desta nos pareçam nada.” Teresa anseia pela visão do Amado mais do que qualquer coisa. 

Essa expectativa pelo Amado aponta a morte como momento decisivo e a misericórdia como esperança, sem perder aquela seriedade que lhe é própria, um temor. A complexidade desse pensamento foi melhor expressa com o auxílio da música. Verdi em seu Requiem como que condensa a teologia cristã do Juízo Final, como bem dito nos já citados, mas também em Santo Afonso em sua Preparação para a Morte: séria, decisiva e misericordiosa.

Introito do Requiem é como o murmúrio de um cemitério ao amanhecer. O coro entra em voz baixa, quase um sopro que se levanta do pó da terra, como se as almas, recém-despertas do silêncio da morte, ousassem pronunciar pela primeira vez a palavra descanso. Tudo ali é bruma, véu, cinza e, ainda assim, promessa. É o pedido humilde do coração humano: que a eternidade não seja pesadelo, mas repouso; não vazio, mas luz.

Três clamores se alternam como ondas que se quebram na praia da misericórdia divina. Kyrie Eleison, Christe Eleison, Kyrie Eleison, o nome de Cristo é o único som firme no mar de fragilidade humana. Verdi faz a alma ajoelhar: não diante de um juiz implacável, mas de um Deus que conhece os abismos do homem e os chama pelo nome. É súplica, mas também confiança, como o olhar de um filho que implora e espera ao mesmo tempo.

Desaba o céu e os trovões rasgam o firmamento. A orquestra explode como o terremoto do último dia, quando montanhas se movem e os mares se levantam como muralhas. O coro grita como multidão diante da verdade absoluta: o dia da ira não é capricho, mas revelação; não é destruição, mas desvelamento; não é horror, mas a justiça em sua pristina forma. É o estremecimento da criatura diante do Criador.

E entre esse caos, Verdi faz surgir um instante terrível e belo: um sopro quase silencioso do coro murmurando “Quantus tremor est futurus…” porque, no fundo, o medo humano não grita: se estreme.

Dies Irae de Verdi é um ícone sonoro do momento em que Deus desce com toda a Sua verdade, e o mundo inteiro se reconhece pequeno, frágil, pó. Mas também é súplica, porque cada explosão é seguida por um pedido: “Recordare…” Lembra-Te, Senhor.

A pergunta “Que poderei eu dizer?” sobe como uma brisa triste, mas também honesta. É o reconhecimento de que a salvação não nasce das mãos humanas. Cada voz treme como folha ao vento do juízo e Santo Afonso nos alerta com gravidade: “A morte é a porta da eternidade: feliz de quem a encontra em graça!”

O Offertorium e o Sanctus mudam o tom, assim como aquela severidade de Santo Afonso se convertem em reflexão sobre a Pátria Eterna: “No paraíso não se deseja nada, porque nada falta; ali se possui o Sumo Bem.” É tranquilidade depois do abismo, música que sobe como incenso. O movimento é vertical: ascensão da alma que se oferece a Deus. Oferendas e preces a Ti, Senhor, conduzidas por luzes que já não queimam, mas acolhem.

Um clarão de felicidade inesperada, como se, após toda a dor do juízo, os céus finalmente se abrissem. É dança, é sol, é glória. O coro canta como multidão de anjos, com brilho e velocidade jubilosos. O Requiem se encerra não com triunfo, mas com esperança humilde, como se dissesse: “A eternidade começa na entrega.” Não apresenta o Paraiso, chegamos até sua antessala. O restante devemos ver por nossa própria conta. Essa bela visão nos é sugerida por São Francisco de Sales: “A morte não deve ser temida pelos que amam a Deus, pois é a porta da verdadeira vida.” A posição cristã é a da serenidade, não desleixo e pecado, claro, mas esperança na misericórdia, Deus conhece nossas fraquezas mais que nós mesmos.

A eternidade deve ser vista como primavera sem inverno. Se, nesta vida, o coração experimenta invernos de dor, a eternidade é a primavera em que todas as flores brotam ao mesmo tempo. Ali, não existe mais noite, nem frio, nem lágrimas, apenas o calor do amor que tudo preenche. 

Como o Liber Scriptus, vemos a própria vida como um livro que Deus escreve e sela pela morte. Não contém apenas nossos pecados, como muitos o creem, achando que Deus deseja nossa condenação. Pelo contrário, ele deseja ardentemente nossa salvação. Nesse livro, cada dia é uma linha; cada dor, uma sílaba; cada graça, um adorno. Ele mesmo quer de nós a esperança de um dia vê-lo face a face, como nos ensina o Papa Francisco, sobre a esperança cristã diante da morte: “A morte é iluminada pela esperança da vida eterna; não é o fim, mas a porta pela qual passamos ao encontro com Deus.” A palavra final desse livro deve ser o nosso "amém", ressoando como trovão, ao Paraíso em que Nosso Senhor nos aguarda junto de seus anjos e de todos os seus santos.

Não poderia abreviar essa reflexão: é na repetição dessas palavras que a verdade se marca em nosso coração, e é preciso que a esperança da eternidade supere o medo da morte sem o verdadeiro arrependimento. Entre a sombra da morte e a luz da eternidade, a voz da Igreja canta: ‘Recordare, Iesu pie’ — lembra-Te, Senhor, que sou pó chamado à glória.

Referências 

SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Preparação para a Morte, Considerações I e VI.

SANTO AGOSTINHO. Comentários sobre os Salmos, 60, 1. A Cidade de Deus, XIII, 2. XXII, 30.

BENTO XVI. Carta Encíclica Spe Salvi, sobre a esperança cristã, 47.

SÃO BOAVENTURA. Palestra sobre os seis dias da criação, XIX, 14. Itinerário da mente para Deus, I, 1.

FRANCISCO. Reflexão da Audiência Geral, 27/11/2013.

SÃO FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus, XII, 13.

SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homilias sobre os Evangelhos, II, 34. Comentários sobre a moral em Jó, XXVIII, 47.

SÃO JOÃO DA CRUZ. Carta 21. Dito atribuído, recolhido em Obras Completas, ed. crítica, p. 753.

SÃO JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Salvifici Doloris, sobre o sentido do sofrimento humano, 23. Homilia na Solenidade de Todos os Santos, 1999.

SÃO PAULO VI. Missal Romano, Prefácio dos Domingos do Tempo Comum IX. Credo do povo de Deus - Solene profissão de Fé, 28.

SANTA TERESA D'ÁVILA. Poesias, 9. Castelo Interior, VI, 2, 1.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica , I-II, q. 5. I-II, q. 3, a. 8. Exposição sobre o Credo, art. 5.

domingo, 16 de novembro de 2025

A Morte, o Juízo e a Esperança: uma leitura do Dies Irae I

“Tudo passa, Deus não muda." 

(S. Teresa D'Ávila)

O mês de novembro marca algumas celebrações de um tom bastante interessante e que, vejo, passa despercebido porque desconfortável: a realidade da morte. Seja nas celebrações de Todos os Santos, dos Fiéis Defuntos ou nas leituras dos últimos dias do Tempo Comum, é retomado o tema da passagem dessa vida para a eternidade.

A morte sempre acompanhou silenciosamente os passos do homem, como sombra que não se impõe, mas que o convida a erguer os olhos para além de si. Desde nosso primeiro pensamento há essa inquietação sobre o que acontece depois que fechamos os olhos, paramos de respirar e não mais estamos corporalmente ao lado dos nossos. No coração humano há um saber antigo — mais profundo que qualquer ciência — de que não fomos criados para terminar no pó, mas para ser abraçados pelo Deus que nos conhece desde o ventre. E, no entanto, este mesmo coração experimenta a dor, o temor e o estremece diante do juízo que nos aguarda quando cair o véu desta vida. A tradição cristã nunca fugiu dessa tensão: ao contrário, educou-se nela, porque sabia que a verdade sobre a morte revela a verdade sobre a vida.

É nesse horizonte que o Dies Irae se ergue como um farol. Não como um grito de desespero, mas como o clamor de uma alma consciente da santidade daquele que virá. Seus versos ecoam como o gemido profundo do espírito que, iluminado pela justiça divina, reconhece e se prostra diante da visão da própria miséria e, iluminado pela misericórdia, ousa suplicar: “Recordare, Iesu pie”. Este hino medieval não é apenas poesia litúrgica, mas doutrina cantada, capaz de restaurar no fiel o santo temor que conduz à conversão e a confiança filial que conduz à esperança. Grande perda que poucas pessoas o conheçam. 

Enquanto o mundo contemporâneo torna a morte um evento escondido, quase clandestino, e o juízo uma ideia incômoda, a sabedoria da Igreja ressurge com urgência. Os Padres e Doutores reconhecem que a morte é limite, purificação e passagem — realidade dura, mas transfigurada pela cruz daquele que assumiu a nossa condição até o extremo. E se a morte permanece amarga, já não é mais absurda: Cristo nela entrou, e onde Ele está, a noite não é completa, pois “o amor é mais forte que a morte.” (Ct 8,6).

Assim, refletir sobre a finitude humana não significa afundar-se na angústia, mas reencontrar a ordem espiritual que nos prepara para a eternidade. A dor tem sentido, a morte tem porta, o juízo tem rosto, e este rosto é o de Cristo. Entre o rigor da justiça e a doçura da misericórdia, a fé católica canta — com a serenidade de uma Teresa, com o ardor de Afonso, com a claridade de Tomás — que cada alma é chamada ao amor que não passa. 

A morte é representada nas diversas culturas de muitas maneiras, várias assimiladas pelo cristianismo, também nas Escrituras ela aparece de muitas formas. Também desde muito tempo o homem entendeu que coisas complicadas só podem se entendidas por meio de algumas imagens, que não explicam a realidade, mas nos coloca diante da verdade mesma que buscamos. Aqui encontrei na música, arte da expressão dos afetos da alma, para completar aquilo que eu mesmo não consigo dizer, mas que os santos entenderam profundamente, e me legaram, como herança espiritual.

Dentre essas imagens, o escurecer, o anoitecer, o fechar dos olhos para encontrar a escuridão. Com essa imagem, São João da Cruz nos traz a Noite Escura. Enquanto ele fala da purificação mística dos sentidos e da alma, essa purificação também pode ser entendida como a preparação para um novo amanhecer. Dormimos na certeza de um novo amanhã. É na noite que somos assombrados pelos fantasmas de nossos pecados, e por isso geralmente a escuridão é vista de modo ruim, mas essa escuridão é finita, nós o sabemos, e ela não é mera decadência, mas o momento em que todas as seguranças humanas são removidas para que a alma se entregue pura nos braços de Deus, entre os amplexos do Amado.

Muitos de nós já ficamos diante da dor da morte, seja o temor da nossa ou da dor pela perda de alguém que amamos. Essa dor é parte da purificação dolorosa como preparação para a glória. E é essa glória que nos consola nesse momento.

Sobre a alegria dessa perspectiva futura, cremos que "na glória, toda tristeza se converterá em alegria, e toda dor, em suavidade eterna" como nos disse São Boaventura. E é belo notar como os santos apresentam essas realidades nessa dualidade: no plano terrestre da dor, do pecado, e então da glória do mundo novo que há de vir. Bem fez a Igreja ao compor o belo prefácio afirmando que, nesses tempos, ela "recorda a ressurreição do Senhor, na esperança de ver o dia sem ocaso, quando a humanidade inteira repousará junto de vós. Então, contemplaremos vossa face e louvaremos sem fim vossa misericórdia." 

O Doutor Seráfico então condensa essa realidade afirmando a vida presente como vale de lágrimas e a esperança como caminho de ascensão, a condição de exílio nesta vida e alegria da glória futura. Sua visão é a da labuta dessa vida em contraposição ao repouso da próxima. A palavra repouso tem esse tom cândido, fresco, como aquele brisa que alivia um dia quente, pois “enquanto estivermos no caminho, permanecemos em lágrimas e gemidos, suspirando pelo repouso da pátria.” O tema do repouso é central na doutrina católica a medida que se mescla com o Domingo, Dia do Senhor, reservado ao descanso, em lugar do sábado, para os judeus. No entanto, não é um descanso sinônimo de ócio. Jesus curava no sábado, aos Domingos vamos à Igreja e celebramos a Paixão, Morte e Ressurreição. O descanso, portanto, é voltado a Deus: repousar é contemplar Deus ao invés das coisas.

Essa dualidade é, portanto, ligada por uma realidade que nos põe medo, é essa a parte que assusta o coração dos homens. Encontramos então certo consolo ao ver a morte não como fim, mas como travessia. São Paulo VI diz a nós, seus filhos: “Cristo deu à morte um sentido novo, transformando-a de fim em passagem.” A morte é um imenso rio espiritual: atravessamos suas águas tremendo, mas do outro lado está a Terra Prometida. É o último mergulho, em que a alma deixa para trás a poeira que o suja e então emerge para respirar a vida eterna. Mas, embora pareça atemorizante, não estamos sós, Cristo e sua Igreja caminham conosco, como o povo de Israel atravessou o Mar Vermelho a pé enxuto entre paredes de água, assim também a alma atravessa a morte protegida pelos braços do Crucificado. 

Ainda assim, também como Israel, foi preciso que passasse pela purificação do deserto antes de chegar na terra prometida. Nesse ponto, o mestre São João da Cruz nos traz sua já citada imagem da noite escura. “No entardecer da vida, seremos julgados pelo amor.” Sua teologia, com aquela profundidamente esponsal dos carmelitas, gira ao redor do valor das dores presentes e da visão beatífica. Nele, a ressurreição aparece como aurora irrevogável. A eternidade é o desposório final entre a alma e Deus, já intuído na noite da fé. A morte do justo, e cada lágrima da vida mortal, é como uma gota do puro perfume de mirra a preparar alma para o encontro nupcial, ela é a entrada na sala do banquete, onde o Esposo esperou toda a vida. “As tristezas e trabalhos desta vida são pequenas diante da glória que nos está prometida; e quanto maiores forem, mais proporcionada será a recompensa.” 

Com isso, ao passar a noite escura, a purificação, esperamos a aurora. O sofrimento não é castigo arbitrário, mas trabalho de Deus na alma. A morte é a última sombra antes da aurora eterna, a ressurreição é o sol que Deus põe ao céu uma vez e nunca mais apaga. O Dies Irae canta a madrugada do juízo: terrível para quem rejeitou o amor, suave esperança para quem viveu a contemplar o rosto de Cristo.

Recuando na história, voltamos aos Padres da Igreja, onde Santo Agostinho vai tratar a condição humana, a morte e a esperança da pátria celeste como peregrinação, marcada por dores e a alegria da visão beatífica. “Esta vida, toda ela, se constitui numa tentação. […] Vivemos entre tentações e tribulações até que passemos para onde não existam mais dores, onde reine a verdade e a eternidade.”

Agostinho de Hipona foi aquele que, com coração e mente inquietos, sofreu as tribulações de uma vida sem sentido. Suas dores eram tão fortes que atingiam sua carne. Conheceu o pior dos sofrimentos: não aquele que somente fere o corpo, transitório, mas aquele que dói na alma. Concebe então, dentro da dualidade de que falei, a morte como "a punição comum do gênero humano; ninguém escapa ao decreto pronunciado sobre todos: ‘tu és pó e ao pó hás de voltar’." Mas não para por aí, pois por meio do perdão, que ele próprio encontrou em seu contato com Cristo nas Escrituras e na sua Igreja, também nas incansáveis orações de sua santa mãe, tem a certeza de que a vida não termina na morte, mas na visão de Deus em seu trono: “Ali veremos, amaremos, louvaremos. Eis o fim sem fim.”

Continuação

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Vox Ecclesiae: O Canto Gregoriano como Herança e Regra da Fé II

Durante séculos a igreja dedicou-se, por meio de alguns dos maiores nomes da música ocidental, a buscar a maior intimidade possível entre as diversas partes da ação litúrgica, comunitária por excelência. O canto gregoriano continua ocupando o primeiro posto daquilo que mais aproxima o povo do mistério celebrado. Com ele, as palavras proferidas, as orações e o canto entram em tal sintonia que verdadeiramente tornam-se um só: o canto se torna a oração do povo.

Aqui um pequeno excurso: o Concílio afirma que o canto na liturgia deve favorecer uma participação ativa da assembleia na celebração. A palavra "ativa" é aqui compreendida de modo ambíguo. O brasileiro, como característica do povo, a entende como fazer algo, externamente, visivelmente. De modo que, cantar algo que a assembleia não conheça e não consiga cantar exatamente como o coro, está errado. Essa concepção é equivocada por vários fatores: se podemos cantar apenas aquilo que é conhecido, em algum ponto do passado cantou-se algo desconhecido para que o povo aprendesse, então por qual razão não se pode inserir novas, ou melhor ainda, antigas composições que lamentavelmente caíram em desuso, de modo a torná-las novamente conhecidas? Quem disse que a única coisa ativa na liturgia é o exterior, aquilo expresso em voz alta? Aquele que escuta a música, como escuta a leitura e a proclamação do Evangelho, pode e deve, unir-se por meio da oração, seja vocalizada ou interior. 

Quem defende que apenas os gestos exteriores são válidos estaria invalidando a própria presença real de Cristo na Eucaristia, afinal, como canta Santo Tomás, "na cruz se escondia sua divindade, mas aqui também se esconde sua humanidade." Se formos crer apenas no que é visto, como acreditaremos no mistério da Eucaristia. 

Vox Ecclesiae: O Canto Gregoriano como Herança e Regra da Fé I

Com toda a agitação que nos rodeia, falar sobre beleza ou, de modo mais específico ainda, de uma música sagrada, talvez seja algo até mesmo absurdo para alguns. Entretanto, justamente por conta dessa absurdidade, que é símbolo de algo muito maior e mais importante que perdemos, é que se torna necessário falar. Ou melhor, silenciar e depois falar. 

De um lado podemos imaginar não um mosteiro, não sou um idealista, mas uma igreja em que as pessoas chegam em silêncio, ajoelham-se ou sentam em oração. Rezam um terço se chegam muito cedo ou algumas breves jaculatórias de modo a preparar o coração para o mistério celebrado. De outro, temos uma comunidade em que todos chegam às pressas, inclusive a própria equipe que prepara a missa. Os ministros correm com os vasos da credência, os acólitos se trombam e discutem sobre quem desempenhará qual função, os músicos ensaiam poucos minutos antes da celebração e, enquanto isso, toda a assembleia, se encontrando ali após uma semana, resolve colocar a conversa em dias. A segunda realidade é, na verdade, a regra que seguimos. Portanto, falar de música sacra é, antes de tudo, falar de ordem. 

São Bernardo de Claraval aponta a Beleza e a ordem como caminhos para Deus. Para ele “a alma é conduzida por meio da beleza sensível à beleza invisível.” Embora não trate diretamente de música litúrgica, oferece uma fundamentação estética que sustenta sua importância. Já tratei da ordem, bem como da estética, em outras ocasiões, querendo me deter aqui na música como um dos aspectos dessa beleza que deve conter a música na Liturgia.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A Estética da Revelação: Fundamentos Patrísticos e Tomistas da Beleza na Liturgia

 “Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei.” (Santo Agostinho)

Se observamos as paróquias do nosso Brasil há um descolamento completo entre a doutrina e a arte. As construções são pavorosas: apelam ao grotesco externo e ao pauperismo interno. E Joinville, por exemplo, pela influência das fábricas, muitos acham que é interessante colocar esses traços nas igrejas. Em Brasília, o modernismo arquitetônico que dominou a Europa do pós-guerra transformou o que deveria ser uma cidade planejada num verdadeiro show de horrores a céu aberto, e ainda somos obrigados a dizer que aquilo é bonito. O resultado são verdadeiras aberrações. Ambientes que, em nada, favorecem a virtude. Internamente não há mais imagens. Aqui fulguram belos ícones, mas sem nenhum respeito às leis de proporcionalidade. As cruzes se reduziram à cruz processional, que desaparece no presbitério assim como os padres em meio aos ícones gigantes, não importando se usam uma casula vermelha com brocados de ouro. 

A regra não é difícil de se entender: se os ícones são visualmente maiores que um corpo humano médio, a presença das pessoas fica achatada. Seria preferível um número maior de ícones, mas num tamanho menor, ainda que mais coloridos. Mas essa falta de planejamento cria apenas um ambiente desconfortável ao extremo. A falta de conhecimento, ou simplesmente a desonestidade de fazer as coisas conforme a própria vontade, sem levar em consideração os muitos séculos e as tradições dos diversos estilos das igrejas católicas pelo mundo, ou até mesmo as regras mais básicas da composição, só evidenciam uma presença hegemônica de um antropocentrismo pavoroso. Mas, além da minha simples opinião de liturgista que se incomoda por não ser capaz de rezar na própria paróquia, quero esboçar alguns pontos mais teológicos com relação a isso.

Se não houvéssemos abandonado a simbólica medieval das igrejas, como exposto brilhantemente pelo Prof. Olavo de Carvalho, ainda seríamos capazes de compreender um poucos das admiráveis, e um tanto misteriosas, relações entre o que nos aparece pelos sentidos e os estados da nossa alma, de modo que o belo, no campo visual e audível, e o agradável, no campo dos sabores, dos perfumes, podem induzir as pessoas a adotarem determinados estados de espírito. 

A Montanha da Verdade II


Transcrição da aula 442 do Seminário de Filosofia do Prof. Olavo de Carvalho. Leia a Parte I.

Se o céu e a terra cantavam a glória de Deus, isso não tinha mais valor que as fantasias de um bêbado. O impacto dessa mudança foi ainda mais profundo nos países de confissão protestante, onde o ascetismo cognitivo de Galileu se mesclava a dois outros fatores para gerar o ambiente seco e severo do mundo burguês. Em  primeiro lugar, o ascetismo visual que condenava como idolátrica a devoção as imagens, e de um só golpe deu um ponto final na experiência da arte sacra medieval. Se as igrejas católicas eram como livros que produzem formas visíveis de toda uma cosmologia, os templos protestantes eram apenas lugares de reunião, sem nenhum significado particular. Até hoje é assim e a coisa ainda ficou pior: esse mesmo estilo protestante invadiu também o meio católico. Hoje, qualquer edifício pode servir, porque ele não precisa obedecer a regras da simbólica cristã. Ele não precisa, em si mesmo, significar nada. Ele pode criar coisas como, por exemplo, aquela horrível Catedral de Brasília, que é um cacho de banana virado de cabeça pra baixo, e dizer que é uma catedral. Aprofundando esse assunto fica a indicação da leitura do livro do Michael Rose, "Ugly As Sin" que mostra o que fizeram com arquitetura sacra do mundo moderno. 

A confluência dessas duas linhas de força que são totalmente independentes, por um lado, a ciência galilaica com a sua redução das aparências sensíveis como produto da imaginação humana e, por outro, o ascetimso o visual protestante que suprime a as imagens, suprimindo portanto, toda a estética do templo Cristão. Qualquer catedral da idade média poderia ser lida durante meses e seu conteúdo nunca acabaria. Ela contém todo um sistema cosmológico, toda a complexidade de uma riqueza extraordinária. Tanto que se pode dizer que praticamente toda a doutrina cristã está ali gravada em pedra. E isso não era assim, só porque as pessoas queriam, mas por que o próprio templo deveria documentar na sua existência física, aquilo mesmo que ele estava veiculando. Essa unidade do sentido, da forma e da experiência religiosa, tudo isso se perdeu graças a essa confluência de fatores.

A simbólica não desapareceu só da imaginação popular, mas do próprio quadro terrestre. Em segundo lugar, o predestinacionismo, que separando antecipadamente os eleitos e os condenados. Mas sem que houvesse meios de distinqui-los na vida real, só deixava ao crente a alternativa de comportar-se em público como se fosse um dos eleitos para evitar escândalo. Tornava-se então uma obrigação. Se não temos como saber se estamos eleitos ou danados mas, se eu me comportar como um danado, eu estou dando mal exemplo, então, daí eu estou danado mesmo. Então, eu tenho que me comportar como se fosse um dos eleitos, ainda que eu seja um dos danados. 

A solidariedade dos santos, e dos pecadores, no sofrimento comuns do destino humano era substituída pela convivência ascética entre os eleitos que cultivavam um sacrossanto horror aos desviantes e dos réprobos. Toda a origem do moralismo é essa, ao passo que na Idade Média tinha-se toda uma mistura, uma mixórdia de santos e pecadores numa proximidade muito grande. As histórias de conversões de  ladrões, assassinos, as cenas de arrependimento público, tudo isso era muito comum na idade média. De repente, não, aqui estamos nós e lá os pecadores e não nos metemos com eles. 

A moral tornava-se, assim, indistinguível da decência, da austeridade no traje e na conduta, da polidez, das boas aparências. Instantaneamente a Europa se recobre de pessoas vestidas de preto. Um traje asltero sem todos aqueles adornos, aquela parafernália. Adornos que não eram só da nobreza medieval mas que marcavam toda uma estrutura de classe: pelo traje era possível saber qual era a origem social de um sujeito e até sua ocupação. Tudo isso daparece. Cria-se uma uniformidade do traje, pelo menos entre as pessoas desse certo nível social. Tudo aquilo que na era moderna, sobretudo nos meios germânicos, anglo-saxônicos, mesclando-se ao pretígio crescente da ciência da Medicina viria a formar a imagem da normalidade. Essa mesma ideia de normalidade se for buscada na Idade Média não existia, não era anormal um sujeito ser louco. Toda cidade tinha seu louco. 

E um dos sintomas visíveis disso foi a mudança na indumentária. Os trajes da antiga nobreza, com seus adornos, brasões e tecidos multicoloridos, eram uma árvore genealógica, onde o observador podia identificar imediatamente pelo signo hieráldico a posição social do indivíduo, seu dever de estado e até a história da sua família. De repente, tudo isso desaparecia, sendo substituído pela uniformidade asltera dos trajes negros. Um pastor só se distinguia de um comerciante ou de um funcionário civil por algum sinal discretíssimo, por trazer uma Bíblia debaixo do braço, enquanto o outro podia trazer um livro de contabilidade. 

A moderna psiquiatria assinala com um dos primeiros sinais da síndrome depressiva a desimaginação, o empobrecimento do imaginário. Como uma espécie de compensação, a imaginação se volta mais para o mundo das emoções individuais. Aí começa o gênero romântico, investigando mais as coisas da alma individual, da a intimidade, e começamos a entender de que estavam fugindo os primeiros autores e exilados alemães do Monte de Verità.

Mas a coisa não para por aí. Da antiguidade até o fim da Idade Média, os governantes, reis e imperadores, só eram reconhecidos quando sagrados pela igreja, em consonância com a noção tradicional de que Jesus dera a Pedro, e a mais ninguém, as chaves dos dois reinos: a autoridade espiritual e o poder temporal. Lutero e Calvino, que haviam rejeitado a autoridade da Igreja e não aceitavam nem mesmo a ideia de um clero, muito menos a sucessão apostólica, não tiveram remédio senão concluir e espalhar que a autoridade dos governantes civis vinha diretamente de Deus, sem intermediários. Ironicamente, mais tarde, seus discípulos inventaram, e até hoje a massa evangélica americana acredita piamente, que a Igreja Católica havia inventado o direito divino dos Reis do qual a humanidade sofredora foi liberta pela reforma. Acontece que foi a Reforma Protestante que inventou isso. Elevando assim ao sétimo céu o poder e a soberba dos governantes e, ao mesmo tempo, as igrejas protestantes, apregoando a livre interpretação pessoal da Bíblia, em vez da obediência ao Magistério e à Tradição, se esfarelava em mil seitas diversas, desarmando-se pela posterioridade contra o monstro que elas mesmas haviam criado. Colocando o governante como enviado de Deus, quando esse governante começa a oprimir o povo, já não se tem uma igreja unificada para reagir, e sim mil seitas separadas. 

Não espanta que, daí por diante, o Estado Nacional foi ampliando cada vez mais seu raio de ação e usurpando áreas que, antigamente, estavam submetidas ao sagrado, como a educação e a moral. A filosofia que, nos séculos subsequentes, passou a se desenvolver na Alemanha protestante, concorreu decisivamente para que esse resultado e decerto nem Lutero e nem Calvino não o previram, nem mesmo em sonho. Immanuel Kant, 1724-1804, cavou mais fundo o abismo que Galileu havia aberto entre o conhecimento humano e o mundo. Ele acreditou ter descoberto que tudo que conhecemos reflete apenas a estrutura do nosso modo de perceber e pensar, e não necessariamente as coisas mesmas. Ele não negava a existência dessas últimas, mas afirmava que só podemos conhecer aquilo que nos chega, seja pela experiência sensível, determinada pela forma dos nossos órgãos de percepção, seja pelo nosso pensamento, que não produz senão esquemas formais derivados da estrutura da nossa razão. Nos dois casos, as coisas em si, isso é, as coisas consideradas independentemente do observador humano, ficavam de fora. Resultado: não há mais um conhecimento objetivamente verdadeiro, ficando o conhecimento adequado às exigências da razão tomado no seu mais alto patamar de desenvolvimento na situação dada. 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Sob as Luzes do Afeto (IV) - O Calor da Vida e das Emoções

Quarto e último artigo que aborda aspectos estéticos de produções audiovisuais de alguns países. Você pode encontrar os outros aqui: I - Introdução, II - Coreia do Sul e III - Japão.

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A Tailândia é um país de riqueza cultural fascinante. Em muitos aspectos me lembra o Brasil: mesmo com um complexo jogo político em permanente andamento, uma população vítima da violência institucionalizada, assim como uma pobreza endêmica e ignorada, a Terra do Sorriso ainda insiste na alegria. As cores das festas, a alegria das músicas mais populares, tudo grita uma forma de sobrevivência: é o povo que luta contra a tragédia do próprio destino, tema ao qual retornarei logo mais adiante.

Este eixo se diferencia dos anteriores: a estética tailandesa é mais solar, tátil e emocionalmente explícita, refletindo tanto o clima e o imaginário do país quanto a sua cultura de expressividade e espiritualidade.

Da Ordem

"As águas, que estão debaixo do céu, juntem-se num só lugar, e apareça o elemento árido. E assim se fez. E Deus chamou ao árido terra, e ao conjunto das águas chamou mares. E Deus viu que isto era bom." (Gn 1, 7-8)

O homem moderno parece cada vez mais incapaz de ler símbolos, no entanto, estes continuam a exercer influência sobre a mente, muito embora de modo difuso. Não é incomum perceber que as pessoas apenas aceitaram a confusão do mundo em que vivem, ou não conformarem de modo algum, buscando compreender uma ordem oculta por métodos próprios: Marx faz isso com a luta de classes, Jung com os arquétipos, Kant com as estruturas da razão… E tantos outros que tentam encontrar alguma ordem no caos que nos rodeia.

Aparentemente esse é um problema antiquíssimo: o caos primordial assusta o homem desde seu primeiro pensamento. O Enuma Elish, o mita da criação babilônico, já tratava de uma explicação para a origem e ordem das coisas milhares de anos atrás. Deus e forças cósmicas lutando entre si e, como resultando, usando corpos dos inimigos para criarem o mundo em que vivemos. Também os filósofos gregos trataram disso, buscando nos elementos a origem de tudo. O caos assusta, e é natural e instintivo que o homem busque uma ordem ao seu redor.

sábado, 8 de novembro de 2025

Sob as Luzes do Afeto (III) - A Melancolia Realista

Esse artigo é o terceiro de uma série que aborda a estética de obras audiovisuais de alguns países. Você pode encontrar os outros aqui: I - Introdução, II - Coreia do Sul e IV - Tailândia.

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Talvez uma das coisas mais difíceis da nossa sociedade ocidental seja a aceitação da imperfeição. Nossa relação com aquilo que é diferente, imperfeito, passageiro, é repleta de dicotomias: vivemos equilibrando uma incômoda percepção que nos persegue, da qual fugimos constantemente. Os idosos são excluídos do convívio quando doentes, a despeito de todo cuidado e esforço que tiveram durante suas vidas. Doentes são marginalizados e sua dor diminuídas. O envelhecimento é atenuado por dezenas de procedimento que, a cada dia, surgem para dar uma aparência mais jovem, saudável. 

A beleza japonesa nasce da simplicidade, da transitoriedade e do imperfeito — o que é efêmero e contido tem valor poético. Pode-se dizer que é uma estética da imperfeição, aquilo bem trabalhado pela filosofia Wabi-Sabi, que se conecta com os ensinamentos budistas da transitoriedade, a prática do Kintsugi e também com a tradicional Cerimônia do Chá, trazendo nomes como Sen no Rikyū (1522–1591), elaborada na prática contemporânea por Michiko Okano e popularizada no ocidente por Leonard Koren (ainda que continue sendo vista mais como um "treco exótico" do que como uma experiência autêntica).

Nas obras audiovisuais podemos observar esses ideias primeiramente na fotografia, que se manifesta em cores neutras, composições minimalistas e uma luz suave que privilegia a naturalidade sobre a aparência idealizada.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Sob as Luzes do Afeto (II) - A Estética da Pureza

Esse artigo é o segundo de uma série que aborda a estética de produções audiovisuais de alguns países. Você pode encontrar os outros artigos aqui: I - Introdução, III - Japão e IV - Tailândia.

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As obras coreanas sempre me encantaram, sejam os doramas ou os famosos MVs, vídeos musicais, que foram meu primeiro contato com esse país. Me recordo de ficar horas e horas assistindo e ouvindo música, sem entender direito o motivo desse encantamento. Mais recentemente, com o país entrando na onda das produções BL, percebi também esse mesmo deslumbramento, no entanto, hoje, quase vinte anos depois, entendo que se trata de uma incansável busca pela perfeição a partir de um ideal estético muito bem definido.

A cultura coreana valoriza a harmonia, a aparência polida e o autocontrole emocional — reflexo de uma sociedade orientada pela disciplina e pela busca da excelência. Na fotografia, isso se traduz em enquadramentos limpos, luz fria e personagens visualmente impecáveis, mesmo em momentos de dor.

Todos precisam ser perfeitos: pele sem nenhuma mancha ou espinha, o que faz com que a indústria dos cosméticos coreanos cresça mais e mais a cada ano a despeito da genética desse povo, cabelos e roupas impecáveis... Até mesmo em séries que mostram a destruição ou a decadência, como "Sweet Home" (2020), com a estrela Song Kang conquistando corações mesmo sujo e maltratado na primeira temporada e, mais tarde, impecável mesmo em meio a um cenário apocalíptico, "All of Us Are Dead" (2022), "Weak Hero Class" (2022) onde um Park Ji-hoon física e emocionalmente destruído ainda é uma das pessoas mais lindas já vistas: também a maquiagem do sofredor é bela, como um quadro ou uma escultura da Virgem Mãe das Dores.

Mãe do Povo Fiel

Recentemente o Dicastério para Doutrina da Fé, atualmente chefiado pelo Cardeal Victor Manuel Fernandez, publicou a "Mater Populis fidelis - Nota doutrinal sobre alguns títulos marianos referidos à cooperação de Maria" na obra da Salvação, com a aprovação do Santo Padre, o Papa Leão XVI.

Bastaram alguns instantes após a publicação da mesma e a internet começou a pulular de opinadores, em sua maioria, bradando com veemência contra o referido dicastério e também contra o Papa, citando ferozmente alguns daqueles já conhecidos jargões do tipo "o Papa só é infalível numa declaração solene (ex cathedra) e uma nota do dicastério não se enquadra como tal."

Muito embora seja verdade, o documento ainda é um ato válido, autêntico, do Magistério e, ao contrário do que muitos parecem pensar, não é a opinião aleatoriamente escrita de um teólogo formado em meia dúzia de vídeos no YouTube que o ensinaram não as bases da teologia, mas, como dito, apenas alguns jargões. O Magistério autêntico da Igreja não é, pasmem, um grupo do WhatsApp.

O próprio, em sua introdução, já explica seu principal objetivo: "Não se trata de corrigir a piedade do Povo fiel de Deus que encontra em Maria refúgio, fortaleza, ternura e esperança, mas, sobretudo, de a valorizar, admirar e encorajar;"

Algo que percebi foi que o documento revelou uma porção de "católicos protestantes" que tem o seu magistério paralelo e acham — do alto da autoridade conferida por ninguém — que podem julgar e declarar como errado um texto do Dicastério para Doutrina da Fé com aval do Papa. Aí citam algumas coisas e pronto, acham que refutaram o Papa e alguns dos bispos mais inteligentes do mundo em matéria de Cristianismo que, nos últimos trinta anos, analisaram a questão.

Com zero rigor teológico, as pessoas se acham especialistas em coisas que não são. O fato de eu gostar de futebol, não me faz um especialista. O fato de eu ler o catecismo, não me faz um teólogo. As pessoas hoje não têm rigor para ler um texto (o que me preocupa). Os comentários vêm normalmente acompanhados de: uma citação de um santo do século XVII, que a gigantesca maioria das pessoas não possuem lastro filosófico e muito menos teológico para entender. Enquanto a nota vem recheada de citações e apoiada na Tradição e no Magistério. 

De repente então uma série de pessoas ladra, com espuma nos lábios: "Nossa Senhora, corredentora nossa e Medianeira de Todas as Graças, rogai por nós!" 

A primeira vez que ouvi esse termo fora uns dez ou doze anos atrás, ainda iniciante nos estudos teológicos, e desde então só ouvia isso quando conversava com pessoas profundamente envolvidas nesses estudos. E então surpreendentemente, surgiram especialistas de todo lado, e eu sinceramente duvido que todos tenham lido mais do que uma manchete tendenciosa escrita, como sempre, em forma de denúncia contra um modernismo tenebroso.

Não nego que a fumaça do modernismo já há muito esteja na Igreja. Nos últimos anos, no entanto, os documentos raras vezes vinham com tal clareza, senão quando eram para tratar algum assunto tradicional, como a supressão da Missa Tridentina que, em sua maioria, é quem recebe a maior parte do ódio destilado pelos progressistas. Talvez por isso, pela constante presença de uma linguagem bifurcada, que sempre permitia a leitura de cada afirmação de uma forma conservadora ou progressista, o contato com um ensinamento real, resultou num estranhamento por parte do povo de Deus mais desinformado, leia-se aqui o Brasil.

Trata-se aqui de uma questão onde vigora os diversos níveis de predicação. Funciona mais ou menos assim: 

Tenho um afilhado que estuda Química e trabalha num laboratório envolvido em algumas pesquisas iniciadas por doutores nessa mesma disciplina. De vez em quanto ele fala comigo sobre suas pesquisas, e há alguns dias ele participou de um congresso onde apresentou os primeiros resultados da mesma. 

Quando ele me explica sua pesquisa, não usa de termos técnicos, complexos para o meu entendimento, já que sou de fora da área em questão. Eis o primeiro nível, aquele que se usa de figuras de linguagem, isto é, no âmbito do discurso poético, embora possa parecer estranho falar disso sobre uma pesquisa laboratorial. No entanto, é ainda um discurso poético por se valer de todas as formas de analogias e metáforas para que eu entenda.

Num segundo nível, essas analogias não são necessárias. Quando ele apresenta os dados das experiências aos seus colegas, estes possuem o entendimento necessário para compreender do que se trata, com os termos técnicos mais apropriados perfeitamente compreendidos pelo falante e pelo ouvinte.

Quando apresentado o trabalho num congresso, o expectador pode não ter familiaridade exata com aquela pesquisa em particular, mas o conhecimento geral daquela área lhe é tão suficiente que, basta uma breve introdução, para que ele possa integrar aquela pesquisa no todo da disciplina, compreendendo não apenas as consequências imediatas da mesma mas também algumas possibilidades que vão adiante e que o próprio estudante não havia considerado.

Por fim, quando meu afilhado fala aos seus orientadores, doutores em Química com anos de experiência na área e diversos projetos bem sucedidos, inclusive financeiramente, ele é que se torna aquele que não compreende completamente o que lhe é dito, pois, embora domine as suas atribuições aqui, ainda não tem aquela visão ampla e profunda do assunto, que vai desde a captação dos dados básicos até a compreensão de onde aquela pesquisa se enquadra no todo da disciplina e das diversas variações de mercado que ela envolve.

Da mesma forma, ler um documento desse, de fato tendo por destinatário o povo de Deus, há diversos níveis de compreensão do mesmo. O leitor sem a devida formação pode, sim, compreender e aceitar em seu coração, como nos ensina Santa Catarina de Sena ao tratar da obediência devida ao Magistério. O mesmo não possui linguagem profundamente técnica, embora trate de assunto teológico profundo e complexo, dado que o próprio dicastério estudou o tema por trinta anos. Teólogos mais versados, e isso exclui completamente os teólogos das seitas protestantes, compreenderão um pouco mais no âmbito das discussões mesmas da Teologia. É aos bispos e presbíteros que cabe uma compreensão maior, no todo que forma o povo cristão, explicar de modo que todos possam, com mais dignidade, como diz a nota introdutória: "valorizar, admirar e encorajar" a devoção a Nossa Senhora.

Por fim, além da já dita enorme precaução do mesmo dicastério, que analisou a obra por décadas, penso que a mesma não tenha sido publicada anteriormente, pois o papado de Francisco não era exatamente polemista, e creio que ele anteviu as eufóricas manifestações. Por outro lado, Leão prezou pela clareza sem, de modo algum, diminuir a ação da Virgem Maria, aliás pelo contrário, a exaltação da mesma é presente e contém ainda, mesmo sendo uma nota mais teologal, do carinho que a devoção desperta em nós. 

Reiterando, não se trata de impor limites ao culto a Nossa Senhora, apenas de apontar certa imprecisão terminológica que justamente obscureciam esse mesmo culto. Não se trata ainda de um esforço para que os protestantes aceitem essa parte da Igreja, pelo contrário, todas as manifestações protestantes, a despeito de qualquer aprofundamento no documento para além dos três primeiros parágrafos, mostram a completa incompatibilidade da mesma devoção com as teologias difusas do protestantismo. Qualquer coisa além disso é analfabetismo funcional, isto é, incapacidade de compreender o texto em sua totalidade, incluindo as quase duzentas citações referenciadas, ou, desonestidade intelectual. 

Que nenhuma injustiça tenha sido cometida nestas palavras. Maria, Mãe do Povo Fiel, rogai por nós.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Sob as Luzes do Afeto - Estética e Emoção nas Produções Audiovisuais Asiáticas

As formas daquilo que vemos revelam muito e nos impactam muito, das mais diversas maneiras, além de, é claro, revelarem o pensamento por trás da produção. Não apenas de quem produziu, mas de toda sociedade que o cerca. Sendo um reflexo direto da mesma ou a busca por uma contraposição. Pretendo com esse esboçar alguns breves apontamentos acerca da fotografia de obras audiovisuais asiáticas, traçando um paralelo entre suas cores e a personalidade ali representada, de modo ainda um pouco amplo, algo como uma espécie de sociologia do audiovisual asiático. Isso corrobora com meus estudos atuais acerca do simbolismo porque essas produções são o simbolismo atual.

Se durante a Idade Média o simbolismo era visto por toda parte, da natureza às catedrais, e refletiam a relação do homem com a revelação divina, no ambiente cristão, mas também no paganismo asiático, ainda hoje podemos tentar compreender o que as produções contemporâneas podem nos significar. 

O início desse projeto vem da experiência de algumas centenas de obras assistidas, e esses apontamentos sempre estiveram presentes em minha mente. Assistindo várias dessas obras ao mesmo tempo, essas percepções foram se tornando comuns para mim, mas acredito que o início de um estudo mais aprofundado da mesma possa ser bastante útil.

Em princípio vou me deter nas produções coreanas, japonesas e tailandesas, afinal são as que mais tenho familiaridade, primeiramente destacando elementos particulares e depois traçando paralelos entre as mesmas, afinal essa é uma cultura de alcance internacional e, se chega até mim que estou do outro lado do mundo, não é de se estranhar que afete também, e principalmente, aqueles países mais próximos. 

A fotografia e o uso de cores nas produções audiovisuais (especialmente nas séries BL ou dramas) refletem não só questões estéticas, mas traços culturais, históricos e sociais de cada país. Por trás de cada obra há um universo imagético profundo. Dou aqui especial notoriedade a esse mundo formador do imaginário, pois a psiquiatria moderna afirma como principal causa da síndrome depressiva, a incapacidade da percepção e leitura dos símbolos. No entanto, eles continuam lá, e continuam exercendo influência sobre nós, quer percebamos ou não.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Liberdade e Prisão

Dentre as muitas mentes brilhantes que habitaram, ou visitaram, aquela Montanha da Verdade, no interior de Ascona, na Suíça, alguns continuam como ilustres desconhecidos, enquanto outros estampam  prateleiras por todo o mundo, entre amantes da literatura, espíritos revolucionários, psicanalistas, artistas e pessoas com um certo pendor anarquista.

No entanto, nem todos se sentiram realizados com o contato com aqueles homens e mulheres que ali pretendiam criar um novo céu, ou um novo inferno. A Montanha da Verdade também guardava muitas mentiras. E então alguns, iludidos por aquelas promessas, acreditavam que a resposta para o mundo opressivo burguês estava na liberdade proposta ali. 

Infelizmente, na busca pela liberdade, encontravam apenas uma prisão diferente: uma prisão que, incapaz de reconhecer, aceitar e se permitir admirar a realidades, as coisas como elas de fato são, aprendiam apenas mais um conjunto de regras, também inventadas por homens e correntes de pensamento, e que também só criavam outro tipo de mundo hostil, só que travestido de liberdade.

Privavam-se de alimentos, das músicas e dos livros que aqueles escreviam, mas, ao forçar o outro a comida, as músicas e os livros que eles mesmos escreviam, só mudavam a mão do déspota que comanda com punho de aço. 

A Montanha da Verdade não era um lugar de libertação, mas apenas uma prisão que não tinha a aparência cinza dos prédios e nem o preto das roupas sociais que cobriram o mundo com sua moral protestante, vazia e kantianamente elaborada a partir de uma mentira: a mentira daquela montanha via nua ou coberta por túnicas romanas tecidas de algodão cru que eles mesmos plantavam e fiavam, mas ainda era uma veste opressiva.

E, em nenhum momento, pensaram em recuar no tempo para entender de onde vinha aquela atmosfera pesada, opressiva, sufocante, que fizera com que, num determinado lugar do cosmos, surgisse uma comunidade como aquela. 

Muitos subiram ali na esperança de respirar ar fresco e contemplar o alvorecer de um novo tempo, mas desceram rapidamente ao perceber que ali somente encontraram outra prisão, tão alucinada e convencida da verdade quanto aquela da qual fugiam.

Alguns poucos perceberam que não encontrariam ali liberdade, e se exilaram, não como uma comunidade, mas tornaram viajantes solitários e errantes, anacoretas, homens e mulheres que, no silêncio de seu anonimato, desistiram da liberdade e aceitara a realidade de que, no máximo, podem tentar viver exercitando certa indiferença aos sistemas que agora surgem prometendo a livre escolha de suas prisões, seja nas salas de escritórios entre prédios cinzas e ternos pretos, ou na neurose coletiva do libertarianismo.

Quantos outros continuam presos em suas próprias teias de pensamento e nem mesmo se dão conta disso? Quanto sofrem com o julgo brutal que eles nem mesmo percebem que trazem consigo? E quantos ainda tenta fazer ao outro se juntar a eles nessa mesma prisão, como todas as prisões, criadas por mentes jumanas?