sexta-feira, 27 de junho de 2025
Miserere
quinta-feira, 26 de junho de 2025
Simplicidade
"Às vezes, a poesia mais bela é sobre as coisas mais simples." (Sociedade dos Poetas Mortos)
Penso bastante nas coisas que eu mesmo digo e escrevo, numa espécie de meditação ou ruminação constantes. Por um lado me torno um tipo de melancólico, reclamão em bom português, buscando sempre entender as coisas que me circundam e, por isso, observando-as atentamente, com não pequena dose de pessimismo. Por outro lado, eu percebo que essa experiência me dá certa vantagem em relação aos outros, que, por não refletirem nada, tomam suas decisões baseadas nas paixões imediatas e acabam por perderem-se. Anos depois percebem que se precipitaram.
Foi assim comigo, mas não houve quem me desse conselho. Eu apenas saí sem olhar para trás, hipnotizado pelas possibilidades que se abriam diante de mim, possibilidade que aquele filho de Apolo mostrava-me. Mas era tudo ilusão. Logo percebi que me encontrava sozinho e sem aquela perspectiva de futuro que, hoje, dez anos depois, percebo seria a correta para mim, para minha disciplina.
Fico triste ao ver descartarem as possibilidades de um futuro tão feliz por ilusões por tantas variáveis. Mas que posso fazer?
Escrevo isso não numa admoestação, pois sei que não a lerão. Apenas penso nisso brevemente enquanto observo a chuva cair lá fora, formando um véu cinza entre os vidros da janela e a paisagem da fora que, de algum modo, parece encolher-se diante do frio.
Olho para o lado, e vejo que o silêncio é rompido apenas pelo 3° movimento da Sinfonia Trágica de Tchaikovsky que, embora agitado, não superou o frio do inverno russo. Incompreendido, pobre compositor, e hoje discutem se morreu porque quis ou se foi um mero acaso depois de uma obra que claramente é um Réquiem para si mesmo. Bobagem, cada nota da peça diz que ele já estava morto ao compor. Sua 6° Sinfonia é, na verdade, obra póstuma. Não adiantou que a escrevesse, ninguém naquelas grandes e luxuosas entenderam o que se passara ali, apenas estranharam o movimento lento, Adagio lamentoso em Bm, no fim, esperando pelas comuns e apoteóticas finalizações das obras daquele período.
Eu não busco a compreensão nem mesmo de um público de duas mil pessoas. Que apenas uma ou duas o fizessem, eu já seria bastante grande. O adágio lamentoso do meu longo Réquiem.
Por incrível que possa parecer, hoje era um dia que queria viver. Sim, de algum modo. Fosse assistindo algo na televisão ou conversando tomando chocolate quente... Mas ainda assim fui abraçado pelos tentáculos gelados do adormecer.
Não quero me deixar vencer. Não.
Quero que esse momento possa ser um recomeço. Sem aquela velha bruxa super controladora no meu pé devido a transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata.
Quero sair mais, ver mais coisas, ainda que seja com esse tédio na alma. Visitar cafés, ver mais filmes e séries sem aquele automatismo cansado... Você iria comigo? Acho que seria bom, conhecer alguém anônimo para conhecer um café. Não sei, algo me diz que a vida não deveria ser apenas isso.
Tenho evitado sair do quarto porque acho minha casa muito cheia, e eu queria um pouco de tranquilidade. A princípio me vem aquelas imagens de pequenos, porém confortáveis, apartamentos de séries tailandesas e japonesas, mas seria um sonho distante. Também não sei o quanto seria perigoso ficar sozinho todo o tempo. Bom, mas são apenas possibilidades. Distantes e improváveis.
(...) Tudo é nosso, tudo é para nós, quando reencontramos em nossos devaneios ou na comunicação dos devaneios dos outros as raízes da simplicidade. (Gaston Bachelard)
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Dias Frios
A alergia tem me impedido de demonstrar, mas encontro eufórico em poder descansar esses dias, na tranquilidade aquecida artificialmente por um pequeno aparelho branco colocado aos pés da minha cama, já que lá fora hoje amanhecemos com uma temperatura 2 °C, o que é bem incomum para alguém que cresceu no Centro-oeste. O simples ato de lavar as mãos numa torneira não aquecida é como se cortássemos o dedo em milhares de pequenas lâminas.
Assim como nos dias nublados, percebi que me identifico também com esses dias frios. São mais tranquilos. É como se a grandiosidade invencível da natureza pedisse aos homens por silêncio e contemplação. Me recordo dos grandes padres do deserto, refletindo e meditando os mistérios divinos na solitude silenciosa dos agrestes escarpados.
O frio também me torna ainda mais consciente da solidão. Sim. Parece que estar sozinho numa cama onde não se pode mudar de posição sem sentir certo desconforto nos torna mais conscientes de que ter alguém para abraçar tornaria tudo mais fácil ao compartilharmos do calor dos corpos e, quem sabe, se tivermos sorte, dos sentimentos. Algo meio schopenhaueriano, me remetendo ao dilema do ouriço. Gostaria que me fosse oferecida a possibilidade de me aproximar dos espinhos do outro, se isso me fosse dar algum calor a aquecer o coração frio e triste de quem dorme sozinho todas as noites.
Bem, a reflexão também é algo que solitária, apenas o silêncio da noite fria e essas palavras, lidas por poucos anônimos, chegaram a conhecer, mas não sei se consigo, por meio delas, expressar a dor, o vazio, o delírio que é estar consciente de si mesmo na cama, estender o braço e perceber, numa constatação que corta o coração como uma espada de aço frio, que isso é tudo.
É um grande contraste que esses dias frios se reflitam num coração que sempre amou de modo tão ardente, e nunca conheceu outro amor que não este. Que no calor se diminui pouco a pouco, reduzindo-se a uma pequena, fagulha. Tão invisível que nem sequer pode-se dizer com certeza que existe.
"O tempo voa às vezes como a ave e às vezes se arrasta como o verme. O homem sente-se bem só, quando não percebe que as horas passam depressa ou devagar." (Ivan Turgueniev)
terça-feira, 24 de junho de 2025
Periferia
Não consigo descrever esse pequeno meneio, meio quase imperceptível sorriso que dou a mim quando quero ironizar minhas próprias escolhas. Quando quero chorar de coração partido, mesmo sabendo que seria assim se eu permitisse que esses sentimentos me dominassem. Foi uma decisão que tomei, talvez sem nem perceber, e que não consigo deixar para trás. Assim como você, também não volto atrás quando tomo uma decisão. Aprendi isso da pior maneira, e aprendo a cada dia, vendo que tudo é mais importante para você, e que ocupo apenas um pequeno espaço, na periferia do seu coração e da sua vida.
E agora, de novo o pequeno esboço de sorriso, penso que você já nem sequer pensa em mim. Espaçadas as mensagens, os assuntos, o espaço e, ainda mais, os corações.
Navego nesse mar de inverno, não enxergo a estrela da manhã.
À deriva. Sem porto.
Como posso dizer que não consigo voltar atrás, se nem sei mais para onde vou ou de onde vim?
Me perdi completamente nessas águas geladas, profundas, no abismo dos sentimentos que eu mesmo alimentei e que hoje me devoram na escuridão gélida dessas profundezas abissais.
X
sem saber se ainda
carrego uma alma.
Há tempos,
nenhuma paixão
para enternecer
meu coração petrificado.
Eu me tornei
confortavelmente desiludido.
sábado, 21 de junho de 2025
Hora das Trevas, Nova Luz Clara
estudando, trabalhando, sendo!
Pensei ter amado e odiado,
aprendido e ensinado,
fugido e lutado,
confundido e explicado.
Mas hoje, surpreso,
me vi no armário embutido
calado, sozinho, perdido, parado."
(Mário Quintana)
E então quando o sol começou a raiar na aurora e o coração a ver uma nova luz clara, torna-se difícil acreditar. Por tanto tempo preso, tanto tempo humilhado, tanto tempo usado e, depois, descartado sem nenhum valor, que é difícil crer na possibilidade de um desfecho não bom, mas ao menos justo. Que ao menos não me empurrem logo duma vez no abismo, que me deem a escolha de saltar, já que o cavei com meus pés.
Passamos a noite abraçados, a fogueira crepitava no meio de um grande grupo, mas ninguém parecia notar-nos. Ele notou meus sorrisos, e eu notei seu corpo quente, sua mão e cintura delicadas. Foi uma noite tranquila. Aquela fogueira, nova luz clara, ainda me parecia distante, mas sua luz já brilhava um pouco mais.
Os países estão lançando mísseis uns nos outros. Por alguma estranha razão a dinâmica da guerra fascina os homens desde tempos imemoriais. Gilgamesh já era um guerreiro. Comigo não é diferente. Mas, como os botões que aperto não disparam ogivas nucleares, e como caíram 10° nesta segunda noite de inverno, eu vou dormir mais um pouco.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Portas em Luto
(Lamentos de Jeremias)
Desculpe por ficar emotivo e irracional demais em dias como esses. Droga. Me sinto um daqueles caras num relacionamento abusivo que pede perdão repetidas vezes pelos mesmos erros hediondos. Meu laudo de Bipolar não ajuda em nada, antes disso, testemunha contra mim. Em se tratando de você, e de estar longe de você, é difícil controlar o que sinto. Acho que meus sentimentos por você foram os últimos que restaram.
Desculpe. Desculpe. Desculpe por ser tão patético, e continuar agarrado aos seus pés.
Tinha terapia hoje, mas não vou. A quantidade de barulho hoje de manhã foi tão insuportável que decidi não sair da cama. Tomei uma dose extra de tarja preta e vou apenas escrever um pouco antes de sentir os primeiros efeitos.
Admito que estou chateado. Mas não sua culpa, nem minha. As circunstâncias da vida tem dessas coisas... E não há muito que possamos fazer.
E alguém ao meu lado quando tremia de medo.
E alguém ao meu lado quando eu me deitei cansado, chorando aliviado.
E alguém ao meu lado agora, na expectativa da libertação.
Alguém ao meu lado.
Você ao meu lado.
Mas todos estavam ocupados. Sorrindo, bebendo, sendo amigos, enfim, vivendo.
X
O cara que disse “O homem comum vive uma vida de silencioso desespero” tinha um pouco de razão. Mas o trabalho também acalma os homens, dá a eles alguma coisa para fazer. E impede a maioria deles de pensar.
Homens – e mulheres – não gostam de pensar. Para eles o trabalho é uma dádiva. Dizem a eles o que fazer e como fazer e quando fazer.
Noventa e oito por cento dos americanos acima de 21 anos estão trabalhando, mortos-vivos. Meu corpo e minha mente me disseram que dentro de três meses eu seria um deles. Eu me opus.
(Charles Bukowski)
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Sobre o que pouco se fala
"Domingo. Dormi, acordei. Dormi, acordei. Vida miserável." (Franz Kafka)
Pouco se fala sobre algumas das verdades mais inconvenientes desse estado. Talvez porque quem se encontra nele dificilmente consegue expressar, ou porque simplesmente não querem ver ou saber dessas coisas.
Poucos falam de como os lençóis ficam fedendo depois de alguns dias, mesmo os mais frios, em que não conseguimos nos levantar e que, mesmo que incomode ficar ali, como porcos no chiqueiro, não há nada que podemos fazer. É como se a depressão saísse pelos poros, como cheiro de carne podre. Poucos falam das feridas na cabeça pelos dias que não conseguimos tomar banho, ou de como a pele perde a vitalidade, parecendo que envelhecemos anos em poucos dias. Também há feridas nas axilas e virilhas, e elas sangram exalando um cheiro ruim e manchando as roupas de sangue e pus. Embora muitos percebam os olhos fundos, pouco se fala do terror que é cada noite, longas e solitárias, onde queríamos apenas alguém para abraçar e de como, ao mesmo tempo, elas são reconfortantes, porque não há ninguém a dizer "sai dessa"ou então, "força!" Pouco se fala de como é quase impossível levantar cedo para receber ordens de uma velha burra, como se a vida fosse isso.
Mas como já perdemos a definição de vida, em meio aos lençóis suados, noites insones e dias de deserto, seguimos vivendo, se é que podemos chamar de vida. Seguimos, simplesmente, como aqueles espíritos rumo ao mundo dos mortos, sem propósito, vazios, sem contorno, apenas sombras flutuantes, quase sem forma.
X
Começou a chover e, mesmo já há alguns anos aqui numa das cidades que mais chovem no país, ainda me encanto em olhar pela grande porta de madeira da sala e ver os pingos de chuva refletirem a luz dourada da rua. É uma bela visão que eu gostaria de compartilhar.
Devo admitir, a distância já era ruim quando era apenas geográfica, mas ficar sem falar com você também agora se tornou ainda pior. Queria poder sentir sua presença, já que não posso sentir o toque dos meus dedos em sua pele, ou ouvir sua risada...
A chuva para e recomeça, de tempos em tempos, e eu me encanto ao vê-la brilhar refletindo a luz dourada da rua. Queria que você visse isso comigo. Acho que vou fazer um café, forte, e ficar aqui, olhando para a rua, e o céu coberto de manto negro, enquanto todos dormem.
"Despertei, mas como não havia ninguém na minha cama para me dizer que agia errado, dormi mais um pouco." (Charles Bukowski)
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Na Prateleira
ambas em fosca cerâmica
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Carcaça
Fecho os olhos em busca de uma resposta, mas só consigo ouvir alguns ruídos vindos lá de fora e minha respiração pesada, ofegante. Hoje é o dia cor de rosa, e muitos estão felizes, e esse ano eu não tenho aquela postura movida pela inveja puramente humana de achar esse dia um grande saco, não.
Tomado eu, pois, de singular descrença no amor, apenas observo ao meu redor que fui privado dessa faculdade humana. Assim como não sei pilotar aviões ou consertar rádios analógicos. Tampouco é uma atitude condescendente e conformista, mas talvez seja tanto estoica quanto niilista ao ver que, bem, as coisas são assim, e não há como mudar.
Não preciso aceitar passivamente, mas também não há revolta da carne ou do espírito, que possa, em exortação, me fazer traçar o caminho do meio, como que regando jardins de pedra, sem parar a caminhada rumo a sei lá o quê.
O que eu sei é que agora estou a vagar, como um fantasma, natureza morta. Caminho entre túmulos que andam ao meu lado, mas não creio que estejam vivos, e há muito deixei de sequer tentar sobreviver. Mas, no entanto, nas noites frias, eu ainda espero, como aquela última fagulha de uma grande fogueira que se apagou, mas continua lutando para novamente se levantar em grandes labaredas, abrigo nos corações.
Mas ninguém vê tamanha desgraça.
Pensar nesses últimos me faz subir uma ânsia análoga à ânsia de um cardíaco.
Ninguém sequer nota essa de carne podre e cheia de ossos, carcaça.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Desde Quando
e completamente inútil no resto deles.
Realmente odeio.
Fiz mais hoje do que em várias semanas,
mas não quero sequer sair do meu quarto agora,
e estou pensando em mil desculpas
para não ver
e nem falar
com ninguém amanhã.
mãos dadas,
músicas românticas,
fotos em restaurantes,
sorrisos felizes.
E eu esqueci de tomar
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Após Três Dias
Parece que a previsão mais cedo no jornal estava certa, choveria durante a tarde. Pelo tom ameaçador das nuvens, eu arrisco dizer que vai chover bastante. Ótimo, espero que meu sono seja bom acompanhado pelo barulho da chuva.
Dormi ontem o dia todo, mas consegui ainda um pouco de energia para ir à Missa da noite, ouvir e cantar com alegria a sequência:
"Dai à Vossa igreja, que espera e deseja, Vossos sete dons. Dai em prêmio ao forte uma santa morte, alegria eterna. Amém!"
Gosto desses detalhes da liturgia, como um hino em louvor ao Espírito que conduz a Igreja de Deus, que nos envia do céu um raio de luz. Que nos guia na solidão do pecado e da morte. Que no dá como prêmio a vida eterna. É uma beleza que faz com que as outras belezas desse mundo não se possam comparar, pelo contrário, se unem a ela, pois é da beleza eterna e imutável que nasce a beleza que nos cerca.
No sábado eu fui a uma festa, e embora fizesse parte da organização, de algum modo, fui a contragosto, mas acabei me animando, especialmente depois de ficar mais à vontade perto de algumas pessoas, de sorrir com amigos, conversar sobre S. Tomás e Tchaikovsky, sobre amores não correspondidos, e tantas outras coisas. Admito que me senti quase vivo, como que ressuscitado após três dias.
Mas também observei muito os outros que conversavam, via para onde iam seus olhares, o que observavam, o que os fazia se animar. Vários rapazes bonitos, meninas de beleza mediana e personalidade insossa, mas ainda assim, algo nela, e nem preciso dizer que é o cheiro e aquilo que elas têm no meio das pernas (sic!) fazem com que todos olhem para elas. E assim decorreu a noite, um pouco de álcool para tornar a convivência com o outro um pouco mais suportável e vários olhares, alegres, excitados, passando a todo momento, mas nenhum deles se virou para mim. Nenhum sorriso sequer.
Naquele ínterim eu me vi então como um jovem, desejado do desejo alheio. Algo bobo, infantil, buscando nesse desejo aprovação e, na aprovação, um sentido. Ainda não dominei isso em mim. Ainda não sou um homem, apenas moleque com palavras de erudição filosófica que, sem isso, tornam-se palha.
"Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito." (Albert Camus)
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Caminhada
Caminhei por algumas ruas que ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordava. Consegui diminuir um pouco da fúria que sentia e que me fazia tremer. Usei muitos dos recursos que aprendi nos últimos meses: respiração, prestar atenção plena no presente, isto é, no som da água negra se movendo lentamente, as gaivotas já preguiçosas e uma ou outra criança feliz por estar ali com os avós, enquanto eu estava sentado no concreto espinhoso do trapiche, braços apoiados no metal frio. Não havia brisa, mas, mesmo assim, meus pensamentos foram aos poucos levados.
Também tentei, de algum modo, analisar a situação sabiamente. Não se trata de algo que eu possa resolver. Aqueles que podem não querem. A minha parte eu fiz e continuo fazendo. Então essa é a realidade. O concreto embaixo de mim é real, o metal frio é real. Ainda que a situação também o seja, eu não posso mudá-la.
Num pequeno parque, já bem próximo da minha casa, eu caminhei sentindo a grama molhada pelo orvalho. Não choveu hoje, mas a umidade próxima do mar sempre deixa as folhas das plantas assim. Também fiquei ali, sem me concentrar em nada, além de duas pessoas brincando com um pequeno cachorro perto dali. Francamente, queria poder caminhar assim a noite toda. Não estava particularmente agradável, mas ainda era melhor do que voltar para casa.
Aqui eu tento não ser dominado pelos pensamentos que me fazer querer jogar aquele monstro pela escada. Essa criatura tão espúria que eu me recuso a sequer chamá-la de gente. Quem dirá irmã. Gostaria de poder sair e não tornar a ver seu rosto senão tomado pela palidez da morte num caixão.
Tinha um compromisso, mas minha cabeça não me permitia ficar lá, daí decidir andar um pouco. Me enfureci comigo mesmo ao saber que, naquele momento, não tinha sequer uma pessoa para quem pudesse ligar.
Ninguém.
Nem mesmo uma sequer.
Todos distantes, ocupados, incapazes de compreender.
Aquela que diz me amar passou os últimos dias inteiros se preocupando com aquele demônio. Amigos? Namorado? Um luxo distante para um homem como eu. Talvez devesse ter me sentado em algum ponto do caminho e contado o que sentia para as árvores do mangue.
Também tentei me isolar um pouco, infelizmente o hábito de sempre tornar a abrir as notificações precisa ser controlado. Me irritei ao ler algumas palavras. O que é isso? Um casal, em demonstração de felicidade por terem um ao outro. Um casal gay. Aberrações, foi o que devem ter pensado ao vê-los. Deveriam preferir morrer a se amarem assim, não é mesmo? Deveriam preferir morrer a amar como eu amo.
Como uma aberração.
A fúria me enfraqueceu, meu sangue mais uma vez se transformou em veneno, pesado. Em algum lugar li que Viktor Frankl disse que "o homem se realiza a medida que se afasta de si mesmo." Não sei se era esse o sentido que ele quis dar, mas, admito, hoje me sentiria realizado se pudesse ser outro, ou nada. Mas o que posso fazer é apenas arrastar os pés sangrentos, e desejar que aquele anjo de pureza não sofra tanto naquelas mãos que sequer deveriam entre homens. E as quais me recuso chamar de irmã.
Começou a chover fraquinho lá fora, gosto desse som, talvez ele me faça companhia nesta que eu queria que fosse a derradeira noite.
~
Ao Acaso
(Carla Pais)
quarta-feira, 4 de junho de 2025
Doença de Amor
Depois de um dia todo rodeado de crianças, e sua aparente inesgotável energia, a minha se esgotou. Preciso ficar umas boas horas na cama, no escuro e em silêncio. Talvez mais tarde levante para assistir alguma coisa, aproveitando os últimos dias antes de voltar para aquele inferno, lembrando vagamente do que disse certa vez Nietzsche de que quem não tem pelo menos dois terços de seu dia para si, não importa quem seja, é um escravo.
Também venho tentando conter outra coisa que me escraviza: meus sentimentos desordenados. Minha carência, minha dependência emocional, quase me fazem mandar mensagens humilhantes, me fazendo mais uma vez buscar abrigos em portas já fechadas. É mais uma coisa que me faz voltar ao silêncio e à solidão do meu quarto escuro.
Disse, não faz muito tempo, que a saudade é uma doença cruel. E é verdade. Principalmente quando parece que... Não, é melhor nem dizer, não mais vez. Quantas vezes eu já me lamentei por não ser amado? Deve haver um limite do ridículo do quanto um homem pode se lamentar não é? Eu sei que sou um homem ridículo, mas até para isso deve ter um limite também.
Me sento na cama e olho pela janela, voltou a chover. Da sala, escuto comentários esportivos. Nunca entendi, em trinta anos de vida, essa fascinação por esportes. Mas imagino que também poucos entendam meu fascínio por atores tailandeses. Vou comer algo e deitar de novo, queria que a casa estivesse vazia. Penso em quantos dias ficaria deitado sem me levantar se estivesse sozinho. Parece um claro céu e, ao mesmo tempo, um turvo inferno.
Não sei se ouvi isso realmente ou se é fruto da minha imaginação num devaneio espiritual, mas refletir sobre o mês do Sagrado Coração fez brotar no meu coração uma prece: que o Jesus possa curar o meu jeito de amar.
Não, não me refiro a minha sexualidade. Me refiro ao modo como eu amo até a dor, como é sempre visceral, como meu amor nunca é tranquilo, nunca é um jardim florido num caloroso dia de primavera, mas é sempre uma tempestade, é sempre demais, sempre me sufoca, e sinto que não deve ser assim.
Não queria me medir pelos outros, mas sempre que vejo duas pessoas juntas, as vejo felizes, claro que há brigas e términos, mas quando parece real, flui naturalmente. Mas comigo, é sempre uma longa caminhada até o calvário. Meu amor parece doente, respira por aparelhos, clama pela ortotanásia.
"(...) Por vezes um momento de silêncio é o que existe de mais arrebatador." (Virginia Woolf)
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Duas Canecas e Um Dia Vazio
Ao acordar eu coloquei duas canecas ao meu lado, na minha tinha chococino de avelã, a outra estava vazia. Mas eu sei que você iria preferir café preto, torrado, puro, sem açúcar, amargo e forte. Mas estava vazia. Tomei o meu observando a chuva cair lá fora, de um jeito preguiçoso, formando como que um véu de umidade em gotículas cinzas, sem sinais de que vai passar tão cedo.
Hoje é um dia que não existirá. Poderia até ser retirado das folhinhas de calendário das casas de todos, ou simplesmente saltar um número nas agendas online. Não importa. Talvez o dia exista, mas eu não vou existir.
Serei apenas uma parte de uma paisagem escondida, um jardim secreto repleto de folhas secas. Serei apenas o final confuso de um romance absurdamente longo que ninguém nunca se dispôs a ler. E da prateleira de alguém que não sabe como ele foi parar lá, apenas existe, sem propósito.
Assim serei eu hoje.
Digo isso em verdade como espécie de marcação, afinal, já ha muito meus dias não existem. Ou sou eu que não existo mais. Passarei o dia na cama, no escuro, música baixa, ignorando tudo e todos, incluindo e principalmente, eu mesmo. Pelo menos faz frio, um frio como o das lâminas que cortam a carne de uma natureza morta. Ninguém verá a desgraça desse caixão que abriga apenas um fantasma e uma desfigurada carcaça.
Estou convencido de que a saudade é uma doença mais cruel que as do corpo. Mas também é do corpo. Dói a carne quando o coração já não quer doer sozinho. Mesmo que o amado esteja em espírito comigo, o abraço que queria,
o beijo que queria, era o do corpo próximo.
Não sexual, ainda não, só queria sentir de novo sua pele, suas mãos, suas lágrimas.
Quente, feliz, próximo, puro, belo, verdadeiro.
Como o amor dos tempos de juventude. Mas acho que estou velho demais para isso. E gordo demais. Deprimido demais. E você distante demais, além de não compartilhar os mesmos sentimentos.
Terminando de vou dormir. É o único jeito de terminar o dia que eu preferia que nem tivesse começado.