terça-feira, 15 de julho de 2025

Coelhinho Branco

A psiquiatra diminuiu a dose de um medicamento mais uma vez, e isso leva tempo para o meu corpo se acostumar. 

Meu corpo parece feito de chumbo. Tenho dormido mais de dezesseis horas direto. Tudo parece meio nublado, minha cabeça dói e meu humor muda várias vezes ao dia. De manhã eu quero maratonar uma série a noite toda, chega a noite e eu só quero dormir. Impaciente. Estou obcecado pelo Apo Dice que dançou no MV de White Rabbit do Daou Pittaya. Queria rebolar como ele. Ou segurar na cintura dele. Ou ser atropelado. Eu já nem sei mais o que fazer. Tem um domingo eterno na minha vida. Melancólico, demorado e com gosto de ressaca.

Comecei a rever Dangerous Romance, quando Perth e Chimon ainda eram parceiros, antes do Chimon se afastar para tratar a saúde mental. E pensar que ele chegou até a aparecer nos primeiros materiais de divulgação de Perfect 10 Liners, onde foi substituído pelo Santa. E o Chimon é, na minha opinião, um dos melhores atores da geração, ao lado do amigo Nanon, que também é um caso grave de depressão. Me lembro dele, Nanon, dizer que só se sente vivo quando trabalha, isto é, quando interpreta, quando dá vida a algum personagem, já que ele mesmo não existe. Não sei se consigo virar a noite como planejei.

Isso me mostra, embora não me conforte, que eu não o único a ficar doente assim. Isso me enche, na verdade, de novo pessimismo, uma espécie de conformismo fatalista onde me parece que todos, do viado maníaco-depressivo ao ator lindo e talentoso, estão ferrados nessa vida. A diferença é que nem todos se dão conta, e eu não queria lembrar dela, mas aquela velha bruxa com uma mania supercontroladora motivada por um transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata, também se inclui aqui, mas ela não sofre sozinha, o faz perturbando os outros. Talvez como Oscar Wilde disse, "o pessimismo é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males, prefere os dois." 

Me sinto um pouco alucinado. Talvez seja o energético de manga que tomei brigando com os outros elementos químicos do meu cérebro. Mais cedo eu jurava que ia conseguir virar a noite, empolgado com PerthChimon, mas agora, já quero dormir. Estou inseguro com meu dinheiro do FGTS, não consigo ficar tranquilo dependendo dessa burocracia para ter dinheiro. Sempre acho que alguma coisa vai dar errado. Estava adiando por dias a entrada no meu Seguro Desemprego porque achei que seria quase impossível de resolver, quando só precisei digitar um código de dez dígitos. Mas eu preferi sofrer antecipadamente por dias. Foi Millôr Fernandes quem disse que "o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra." Talvez fosse melhor eu forçar um pouco e voltar para minha série, atualizar o aplicativo do banco de madrugada certamente não vai fazer o dinheiro entrar na minha conta.

Por fim, a última citação, porque eu mesmo não consigo dizer mais nada, portanto, deixo que os outros falem por mim: 

"Esperar pelo melhor é preparar‑se para o perder: eis a regra. O pessimismo é bem grande, é fonte de energia." (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Desencontro

"A busca pelo desencontro é o teatro preferido de quem teme investir no desejo." (Lacan)

Há anos eu tenho essa impressão, e cada vez mais certeza, sobre mim: há algo definitivamente quebrado em, algo de intrinsecamente errado, uma espécie de imperfeição fundamental no ser. Por isso que, mesmo depois de tantas e tantas tentativas, continuo quebrado, esquecido numa cama, com o corpo coberto de feridas e dores em todos os músculos: trata-se da manifestação dessa imperfeição. Ela me impede que eu me conecte com os outros, ainda que me conecte com palavras e músicas de outros tempos, mas os outros, aqueles que estão próximos, ainda sinto que estou mais distante deles do que daqueles que já se foram. 

É quase como se, ao ler um livro, eu conseguisse captar aquela tristeza atemporal, aquela luta de todos os tempos, a angústia que perpassa o coração do homem desde seu primeiro pensamento, e isso me faz participante dessa história. Mas ao olhar o outro, ou simplesmente falar com ele, não consigo sentir senão uma distância abissal. Não basta que me mantenha aberto, não basta que eu ame, que eu demonstre, a distância parece jamais diminuir. E é dolorido, ver que entreguei tudo que tinha, mas, ainda assim, não foi o bastante, porque meu gênero, a faculdade, o tempo, foram mais decisivos que os sentimentos. 

E como eu insisti. Maldita insistência.

Eu queria dizer alguma coisa, mas tornei a esquecer, tem sido assim ultimamente. Venho tentando ignorar minha família se empolgar com uma mudança para o bairro ao lado, eles querem uma casa maior e, embora eu também queira, sei que vai ser só mais espaço para bagunça. 

Eu consegui e levantar, tomar um banho, mas não mais que isso. Desanimo de qualquer possibilidade no exato momento em que a ideia se cristaliza na minha mente, e então a destruo com um grande martelo. A mudança não significa nada, como o amor não significa, como os livros que sempre me gabei de ler, mas que agora pegam mofo nas prateleiras, também não significam. Nada é capaz de fazer brilhar meus olhos. 

Queria ficar acordado, eu juro que queria. Queria ficar deitado no chão, lendo e ouvindo música, me alimentando de algum modo. Mas eu não consigo. Me sinto cada vez mais e mais dependente dos remédios para dormir que me fazem passar inconsciente pelos dias entediantes. Uma solução seria buscar logo um trabalho, mas eu me recordo de ter que receber ordens daquela velha bruxa com super controladora por causa de um transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata, e aí desanimo também. 

Vou receber algum dinheiro nos próximos dias. Deveria guardar? Ou comprar mais dos livros que eu quero e que desejo um dia ler, fazendo parte daquele plano geral das minhas ideias? Não vejo essa compra como inútil. Seria mais útil se eu conseguisse ler mais rápido, mas, no momento, venho tentando me distrair com histórias mais leves. Pelo menos é melhor que nada, mas, após ler um livro inteiro em dois dias, o segundo já abri dois dias atrás e li apenas alguns capítulos. E acho que hoje não vou evoluir muito, visto que já enchi a cara de remédios.

Queria emagrecer, e comprei algumas sopas na internet, naturais e até bem gostosas que poderiam me ajudar (sim eu sei que não vou perder 30kg tomando sopa, mas é o que posso fazer). Mas até elas eu estou com preguiça de fazer. Academia ou exercícios ao ar livre? Fora de questão, se até levantar da cama é um suplício. Tirei algumas fotos na vernissage da galeria de um amigo meu, queria inaugurar uma espécie de nova fase, mas ao ver o tamanho da minha barriga, desisti completamente.

Alguns amigos sabem que não estou bem. Mas não sabem tudo.

Eles não sabem das feridas no meu corpo. Da minha virilha e axilas sangrando por conta dos pelos e do suor acumulado. Não sabem do sono desregulado, dos pesadelos, das dores no corpo todo. Eles oferecem apoio. Mas eu me sinto sozinho. 

Comecei esse texto com uma citação de Lacan. Ele faz referência a uma dinâmica bastante comum, no campo da subjetividade. Há muitos sujeitos, como eu, que apostam repetidamente nas frustrações planejadas, na autossabotagem, como forma de se protegerem de um desejo real e realmente destrutivo. Por isso a minha longa lista de paixões por homens que nunca se interessariam por mim. Quando, no entanto, sinto aquela eletricidade, uma espécie de sinal indicando que posso seguir em frente, eu fujo inventando as desculpas mais estapafúrdias, como a aparência, que justamente é meu cavalo-de-batalha ao afirmar que a gentileza supera a beleza física imediata.

A imagem teatral é bastante conveniente. Enceno o desencontro, a dor, a partida, sempre próximo "ao que poderia ter sido e que não foi". É uma estratégia de autoproteção. Escolho situações em que posso sair de cena, ainda que insista permanecer nelas, porque comprometido com uma narrativa real significa não poder fugir facilmente, e enfrentar verdades dolorosas de uma realidade impiedosa. 

"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)

sábado, 12 de julho de 2025

Nada Adianta

Nem adianta ficar bravo, quieto ou em silêncio. Em verdade não somos importantes assim. Não importa que durma o dia inteiro, tomando tanto remédio para isso que meu estômago já dói. Ninguém liga. Acho até que manter distância é um favor que faço, não é mesmo? 

Pois bem, aproveito a companhia de algumas taças de vinho e, hoje, um dos concertos para piano de Beethoven, admitindo que a maior parte do meu interesse é no Yuncham Lim, se além de virtuoso ao piano também e um colírio para os olhos, então que aproveitemos não é mesmo? Se a solidão é nossa sorte de todo modo, ao menos que possa gozar dela de algum modo.

E enquanto isso todos dormem. E eu reflito sobre a solidão. Uns fariam poesia disso. Eu só me acho patético mesmo. 

Admito, se pudesse, eu apenas dormiria, numa casa bonita e arrumadinha. Sairia do quarto pra sala usando roupas largas, sem me preocupar com prazos, entregas... Nada disso. Meus livros, produzo em quantidade não para cumprir um prazo editorial, mas apenas para descarregar toda frustração que carrego entranhada no ser. Uso as gotas de sangue como tinta, numa caligrafia caprichada escrevendo minhas bobagens, porque eu tenho consciência disso, não passam de linhas e mais linhas de bobagens infantis, adolescente apaixonado que ainda não cresceu. Nada de valioso, nada de virtuoso. Apenas a sensibilidade de uma criança.

Nem adianta ficar bravo, quieto ou em silêncio. Em verdade não somos importantes assim. Não importa que durma o dia inteiro, tomando tanto remédio para isso que meu estômago já dói. Ninguém liga. Acho até que manter distância é um favor que faço, não é mesmo? 

Maybe they just don't give a damn!

"(...) Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam?" (Rainer Maria Rilke)

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Minhas Imagens

"Encare o mundo de forma criativa, crie o mundo. Só o que você cria tem significado para você" (Winnicot)

Começou. 

Meus constantes devaneios. As imagens de luz e sombra, sorrisos e momentos de carinho. Duas canecas de café fumegando ao lado do casal que se olha de modo terno.

Sim, é irritante quando alguém deseja algo e só consegue pensar naquilo, não é mesmo? Os outros não conseguem entender. É impossível, pois é algo de valor apenas para mim. E de nada vale aos outros.

Sim, apenas aquela imagem foi capaz de mexer tanto comigo. Ou melhor, a falta de reação a ela. Mas eu bem sei que ela só tem esse significado para mim. Só eu vejo em duas canecas um sinal de intimidade maior que o sexo, vejo prelúdio de um tempo de carinho, prólogo de um amor que não poderia caber jamais em nenhum recipiente, mas que é, ao mesmo tempo, tão singelo quanto a fumaça que delas desprende em suave perfume, e tão quente, capaz de aquecer corpo, mente e espírito.

Mas eu também sei que os outros não conseguiriam apreciar isso. Tanto que estou aqui sozinho de madrugada falando sobre isso. Nada significa essa imagem aos outros, ainda que gostem de café. Assim como nada significa os meus convites, eu sou apenas a segunda opção, quando a garota recusa o convite para sair.  

Ou, em outros casos, nem opção eu sou.

O que Winnicott queria dizer é que somente tem sentido aquilo criado pelo ser, isto é, não uma criação "ex nihilo", mas uma espécie de conexão com o objeto, o outro, o mundo, enfim, algo que crie no eu um envolvimento profundo, emergindo daí então o significado. Parece óbvio, e, na verdade, o é, mas ainda assim esconde essa verdade que também pode ser dolorosa: a experiência é, por definição, pessoal, logo a conexão só pode ser também pessoal, resultando da mesma experiência significados diversos em seres diversos, espero aqui não estar incorrendo em kantismo demasiado, mas não consigo ver de outra forma.

Isso pode ser expresso nas limitações da linguagem bem como no escudo da consciência, nos limites entre o eu e o outro.

O que para mim é símbolo de intimidade, carinho, afeto, para o outro é simbolo de um bom momento, mas não um bom momento comigo.

Acho que esqueci da minha vida intelectual e de meus objetivos para me perder em devaneios olhando canecas fumagentes. 

"(...) A vida de estudo é austera e impõe pesadas obrigações. Ela traz compensações, por sinal, generosas; mas ela exige um investimento à altura de poucos. Os atletas da inteligência, tal como os do esporte, devem prever as privações, os longos treinos e uma tenacidade às vezes sobre-humana. É preciso entregar-se de todo o coração para que a verdade se entregue. A verdade só está a serviço de seus escravos." (A.D. Sertillanges)

terça-feira, 8 de julho de 2025

Palavras e Notas

Hoje eu só queria uma coisa: desaparecer, não ser, não existir, não sentir. 

Não perceber que me encontro numa página completamente diferente das outras pessoas: que o que lhes parece bom a mim é chato, e eu deveria começar a sair sozinho, se não achasse isso patético.

Não vejo motivo para isso. Apenas quero um dia sem ver ninguém.

E é de uma grande tornar a esse estado de melancolia um dia após ter escrito sobre a beleza de uma manhã ensolarada. Mas é assim que as coisas são, pelo menos para mim. 

Basta que feche os olhos e pense por alguns instantes naqueles que me são mais próximos e caros. Logo percebo o quão distante de cada um deles eu estou. Isso porque seus pensamentos são tão tão diferentes dos meus, que não consigo sequer compreendê-los, ao passo que também eles não compreendem a mim.

Vejo um enlouquecido pela rotina de trabalhos e estudos, quase já sem tempo para mim. O outro, nem mesmo sei o nome, mas era belo, e me mostrou as tatuagens do corpo com naturalidade e um sorriso cativante. Outro naquela fase da conversão em que as almas se apegam aos refrigérios e consolações e se deixam deslumbrar por elas, sem se preparar para a aridez que se seguirá. 

E essa aridez eu conheço bem.

Distantes. Todos eles. Distantes demais para que eu os alcance.

Pretendia virar a noite assistindo, e até tomei energético para isso, no entanto, perdi a vontade. Depois me sentei para escrever, com uma taça de vinho ao lado e Rachmaninoff no player, mas sem sucesso, cada uma dessas palavras me dói para ser escrita, não me soam verdadeiras, mas algum tipo de artifício: eu preciso dizer algo mas, por não saber o que é, me lamento dizendo que não consigo dizer. Eis-me diante dos umbrais dos limites da linguagem.

Da minha linguagem, das minhas limitações. 

Busco então inspiração em outros corações apaixonados, doloridos, poéticos. Me percebo que, num dia, escrevo sobre a beleza do sol e, no dia seguinte, me escondo do mesmo sol, atrás de cortinas finas que, filtrando a luz amarela como um véu verde, deixa as paredes do meu quarto numa cor que me evoca veneno, doença...

Penso no encontro do fim de semana, e lembro que, embora na minha frente, ele pensava em outra pessoa enquanto bebia do mesmo copo que eu. E sorrio sozinho quando me percebo caindo novamente na mesma armadilha que criei. Nesse abismo que cavei com meus pés, amo essa imagem da música de Cartola, mas também não é minha. Quase nenhuma das imagens que uso são. Até minhas lágrimas, a maioria são de Jeremias, o pessimismo do Velho Buck e outros, esse certo desencanto mesclado com esperança e boas doses de psicose de Clarice Lispector e assim sucessivamente. E então vou criando, como uma quimera, as minhas imagens, numa colagem de dores, de sonhos, de rompantes de ira.

Me pergunto se serei capaz de amar novamente. Amar mesmo, não apenas achar alguém bonito. Quem me conhece frequentemente acha que eu estou sempre amando. Mas eu não sei disso, acho que só amei de verdade aqueles que, ainda hoje, penso com um carinho especial, que me apertam o peito e mudam minha respiração. 

Yunchan Lim é simplesmente sensacional na interpretação do Concerto N° 3 de Rachmaninoff. Custo acreditar que alguém tão jovem consegue imprimir a profunda dor do compositor nessa peça. É preciso de mais do que uma técnica perfeita. Será que ele também sente dor, na pressão de ser o melhor? Ou consegue esse resultado pela sensibilidade natural que o fez tornar-se pianista? Talvez assim como eu vou coletando as dores dos escritores para descrever as minhas ele o faça com as notas daquelas partituras?

Não sei como estarei ao acordar. Vou tomar remédio para dormir e ver quem vence: ele ou o energético. E amanhã, bem, será quarta-feira.

X

todos os vicios me carregam
sou presa fácil do que me satisfaz
se amo, amo tanto que chega dói
se bebo, bebo até cair no banheiro do bar
se compro uma balinha, nem chupo
já vou logo triturando-a entre os dentes
cigarro eu não fumo, mastigo uma tragada
se não for pra comer todo o brigadeiro da panela
nem faço

vivo de excessos
que me vem uma tristeza
eu sempre morro

(Kaio Bruno Dias)

X

MUNDO GRANDE

Não, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

(Carlos Drummond de Andrade)

Sem Melancolia Hoje

Nunca vou me furtar a ser influenciado pelo belo que me rodeia. Um dia de sol claro, mas ainda fresco, em meio ao inverno. Por mais que goste dessa estação, admito que amanhecer com um pouco de luz atravessando as cortinas é como uma injeção de ânimo. Me espreguicei lentamente antes de levantar, esfregando os olhos e me acostumando com a claridade. A música ainda tocava, deixei rolando uma playlist do VIXX baixinha. Esqueci o aquecedor ligado. 

Meu bebê anda meio gripadinho, mas acordou melhor do que estava ontem. Brincamos um pouquinho antes que ele dormisse de novo. Parece que o sol lhe deu novo ânimo também, já que amanheceu mais disposto. 

Também as músicas, VIXX não é exatamente melancólico, e agora também não quis ouvir meus tradicionais Mahler ou Tchaikovsky, mas a bela "Ode à Alegria" de Beethoven. Algo mudou nesse dia claro, eu até estou esboçando um sorriso de verdade, enquanto sinto o calor na minha pele. É revigorante, devo dizer.

My Seetheart Jom, o lakorn BL com o Saint Suppapong e o fofo do Poom Nuttapart: eles passando um tempo sozinhos, comemorando o aniversário do mais novo de maneira simples mas tão importante: ao lado de quem se ama, mesmo que seja um amor que eles ainda não tenham assumido. As brincadeiras na chuva, sem os títulos de chefe da aldeia e protegido. Apenas dois amigos, duas pessoas que se amam, sorrindo, se abraçando. Não é sexo, não tem conotação sexual, é a felicidade de estar com aquele que desperta o coração, antes fechado e ocupado. O amor é divertido, é uma brincadeira na chuva... 

E, já dizia a poetisa Veveta Sangalo, maravilhosamente interpretada por Jeff Satur no último fim de semana:

"quando a chuva passar, quando o tempo abrir, abra a janela e veja: eu sou o sol!"

domingo, 6 de julho de 2025

Tendências

“Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”

(Rui Pires Cabral)

Duas tendências aparentemente conflituosas habitam meu imaginário. Por um lado, o pessimismo que me é intrínseco ao ser, essa dose de ceticismo com tédio absoluto ao observar o quadro da existência, indo do geral ao particular, me fazendo crer que o universo é hostil, a humanidade é inviável e, além disso, cada maldito detalhe da minha vida vai dar errado. Por outro lado, há uma certa idealização do mesmo ser, que me faz tantas vezes olhar um rapaz bonito e, por ser por ele cumprimentado, já passo a imaginar como seria um futuro inteiro ao lado dele. 

Claro que não é difícil perceber que a frustração da imaginação gera o pessimismo, numa relação de causa e efeito imatura, tosca até. De um lado esse imaginário cor de rosa movido por pulsões ou algo do tipo e, do outro, a consciência da natureza decaída do homem pelo pecado. Então, como resultado dessa tensão, o desesperar-se de si, mais ou menos no sentido que tratava Kierkegaard.

O que me trouxe a pensar isso? Dois canudos numa caipirinha de vinho dividida com um amigo que, na minha cabeça, se tornou um encontro. Uma brevíssima conversa com aquele rapaz de moletom branco, sério demais para dançar com outros da idade dele, que descobri ter metade do corpo tatuado e um sentido autodepreciativo inflamado. Com ambos, sem nenhum controle, minha imaginação disparou. Com o primeiro, fantasiei o encontro, especialmente nas fotos em que, aparecendo parte do outro, postamos. Com o segundo, pensei numa possível amizade crescente fomentada pelos desenhos no corpo. 

Mas eu sei bem da verdade. Para o primeiro foi apenas uma coincidência, para o segundo, o corpo dele é bonito demais para ele olhar alguém como eu, que jamais teria coragem de levantar a roupa e mostrar as tatuagens ali como ele fez. Não como estou agora. 

Daí percebo a fraqueza causada pelo meu pecado. A corrupção da percepção da realidade em detrimento da minha vontade. Mais uma vez concordo com Kierkegaard que esse ciclo aparentemente ininterrupto é como uma doença até a morte. Como Nietzsche, ele buscava sair do niilismo, mas creio que a saída deste, embora um tanto quanto utópica ou estoica, o que acaba por retornar ao niilismo, me parece mais realizável. Só não para mim. 

X

Eu precisava daquele momento ontem à noite. O jovem falou no começo sobre pedir perdão e agradecer, e manter isso em mente, quando fiquei diante do Santíssimo, com o coração ferido por tantas ofensas a Ele proferidas por aqueles que mais deviam zelar pela sua dignidade, como lamentou Jeremias ao tratar de Jerusalém 

"de seus amigos traída, são inimigos agora" 

eu pude pedir perdão, primeiramente pelas vezes que eu mesmo desrespeitei-o, com meus pensamentos, atos e omissões, especialmente servindo tantos anos o santo altar, percebendo hoje que poderia ter sido ainda mais zeloso. Mas também agradecendo porque, depois de tantos ultrajes, Ele continua vindo a nós, vindo a mim, e se colocou ali, naquela sala cheia de jovens, mas eu senti que estava somente Ele e eu, a pedir perdão agarrado ao seu colo, como criança.

Por fim, me recordei daquela música que tantas vezes cantei: 

"Eu estava só, com você Jesus Cristo"

sábado, 5 de julho de 2025

Confiança e Certeza

Quero transformar esse momento numa espécie de ritual. Na verdade, já o era para mim, mas acabei perdendo-o nas areias do tempo. Deitado no tapete, com uma xícara de chã fumegando, penumbra, e um concerto tocando, Rachmaninoff ou Chopin, Brahms ou Mozart, qualquer um que, por aqueles minutos, me ajudassem a relaxar, e não cobrar, e não buscar entendimento. 

Falava isso mais cedo com um conhecido. Ele, sempre muito certeiro em tudo, por vezes acaba entrando em embates desnecessários com os outros por ser direto demais, o que, não raramente, torna sua visão das situações equivocadas, não de todo erradas, mas parciais demais. 

E então me recordei das lições do Prof. Olavo, de que o homem de estudos precisa estar habituado e, mais do que isso, confortável com o estado de dúvida. Porque essa condição é inerente a mente humana: ter dúvidas faz parte do ser humano, e isso o temos desde o primeiro pensamento. Adão, ao querer a certeza dos deuses, caiu em pecado. Tantos reis, imperadores, conquistadores, ao terem a certeza de sua supremacia, caíram. Quando o homem encontra alguma certeza, em verdade, encontra seu fim. A dúvida faz o homem permanecer em busca, continuar a caminhar. 

No âmbito religioso, a dúvida nos leva a fé. A fé não é certeza, no sentido intelectual do termo, mas confiança numa pessoa, no Cristo e nas suas promessas. Eu confio em Cristo, mas não posso saber se vou ou não para o céu, não por culpa d'Ele, mas pelos meus próprios pecados. Por isso eu apenas confio, na misericórdia, e espero o perdão dos meus pecados e os sinais que Ele quiser me oferecer. 

Por exemplo, enquanto fugia, durante essa semana difícil, de todas aquelas situações complicadas envolvendo o Santíssimo Sacramento, e eu no propósito de rezar em reparação, mesmo ciente de meu estado de pecado, acabei indo participar da Missa em honra do Sagrado Coração, e no Oferecimento Diário havia justamente uma prece em reparação, a qual eu nunca tinha prestado a devida atenção. Naquele momento senti a confiança, não a certeza, de que estava fazendo a coisa certa, o que me conduz, com confiança, a voltar ao estado de graça, para que minhas preces em reparação tenham efeito mais profundo na minha própria alma e nos que me cercam. 

Mudando completamente de assunto, agora na minha coleção tenho duas canecas de mesmo modelo, mas de cores diferentes, como canecas de casal. Casal que deita junto no tapete para ouvir música, tomar café e fazer carinho. Penso nisso enquanto ouço, sozinho, o último movimento do Concerto para Piano N° 2 do Rachmaninoff, um de meus favoritos, enquanto tomo um chá chileno de oito ervas. Logo vou dormir. Sozinho.

"A atenção se assemelha ao amor." (Louis Lavelle)

Entre deuses e homens

Preciso ser breve ao registrar isso, pois logo serão três da manhã e eu infelizmente marquei um compromisso e seria chato desmarcar, mas também não posso deixar de falar sobre isso.

Sobre aquele rapaz misterioso que surgiu na minha casa depois da Missa e da procissão do Santíssimo Corpo de Cristo. Ele estava escondido naquela multidão?

Não precisei de mais do que um brevíssimo olhar para notar que tudo nele era perfeito. Guardava em si perfeitas proporções. O formato do rosto, masculino, firme. O cabelo, as mãos, ombros largos e corpo forte, e outras partes que notei, mas que não seria de bom-tom comentar, já que as notei porque ele usava um moletom fino.

Ele voltou outras vezes, e eu sempre o olhava com uma cara de quem era indigno de sequer olhar tal beleza. Por isso sempre desviava logo o olhar, de certo nunca o encarei por mais de cinco segundos. Mesmo ele voltando de novo e de novo, e sendo simpático ao brincar com o bebê, eu nem mesmo me atrevi a perguntar seu nome.

Continua sendo apenas um rapaz misterioso. Um boto cor-de-rosa, um deus disfarçado de homem em visita aos mortais. 

Não digo isso como quem está apaixonado. Não me atreveria a isso nem se ele fosse solteiro, nem em meus maiores devaneios. Não. Ele namora uma bela moça, preciso reconhecer, e por isso ela deve tê-lo conquistado. Mas, quando olho para ele e, depois, para mim, não consigo sequer cogitar o fato de sermos da mesma espécie. Será que ele não é um homem, e sim de fato um deus ou um anjo, ou eu é que não sou um homem, mas um monstro? O que é essa linha invisível e, ao mesmo tempo, tão clara que nos separa?

Na verdade, não só dele, mas de todos os outros. Sinto isso até mesmo ao ver o meu reflexo confuso numa porta. Eu encaro os meus colegas trocando de roupa sem preocupação, com seus tanquinhos, corpos perfeitos, as meninas do outro lado, mas todas elas já devem tê-los vistos de modo íntimo ou, se ainda não viram, vão fazê-lo logo em breve. E eu, no meio do caminho, não estou com elas. Não verei nenhum deles na minha cama. Longe deles, não tiro a roupa e nem me atrevo a olhar, seria como olhar diretamente a luz brilhantíssima do sol, ficaria cego ou cairia por voar daquelas alturas.

Por isso já não voo mais. Nem mesmo olho para o céu. 

Não quero mais ser como uma cobra que rasteja pelo chão invejando a água que voa no alto céu, sabendo que nunca poderá ser como ela. Minha relação com essa perfeição, ou com essa beleza que transcende e muito a minha, ela é ambígua. Envolve desejo, é verdade, mas também envolve inveja, e tristeza, e um gosto amargo na boca. 

É o rapaz misterioso, deus desconhecido de beleza descomunal, e até homens que me rodeiam, cuja beleza me afetam. Não vou aqui cair na mentira de que "cada um deve aceitar seu corpo e que se você está contente com ele assim, que seja." Bem, é verdade, que seja, mas isso não transforma um corpo feio como o meu. Mudar a forma como se chama algo não muda a essência dessa coisa. Continuo sendo criatura disforme, sem nome, caminhando entre deuses e homens, talvez monstro mesmo. Nada mais complicado e simples que isso.

No entanto, como não há nada que eu possa fazer, senão apenas paliativos cansativos demais, eu posso apenas me lamentar, numa esperança demente de que essa vida termine logo. Enquanto isso tomo um café, recordando as palavras:

"Não condenes ninguém a morte antes de tomares o teu café." (Leonard Cohen)

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Lembranças de Schopenhauer

Como manter um centro de atenção, a mente presente, quando tudo ao redor induz a uma loucura generalizada? Tento me proteger de todos os modos possíveis, com uma melodia interior, mãos dispostas, um meio sorriso, na intenção de não me deixar levar pela onda, avassaladora, daqueles que se entregaram, muitas vezes sem nem mesmo perceber, ao caos. 

Os problemas, diminutos e, muitas vezes, ridículos, quando somados, acabam se tornando esses entraves que requerem paciência e sabedoria, também estas não raramente indisponíveis na mesma proporção em que são demandadas. 

Bem, continuo aqui, mas tentando, tentando. Vendo tudo e todos funcionarem pela contínua aglutinação de problemas que se tornam problemas enormes. Enquanto isso, tento me concentrar na minha melodia interior. Não na gritaria das crianças, das coisas espalhadas na mesma (que não é culpa das crianças porque elas não alcançam a mesa), no barulho insuportável da TV no quarto ao lado com aqueles programas de auditório de qualidade duvidosa. Não nos idiotas que gostam de criar shows com o Santíssimo Sacramento, enchendo no coração dos pobres fiéis à ideia de que a presença de Cristo se mede pela sensação dada num ambiente artificialmente controlado. Qualquer um, inclusive eu, me emociono com uma música tocada em tonalidade menor, com vocais em contraponto repetindo a mesma mensagem em alto volume, meia luz, cenário e atuações sentimentais. Induzindo ao erro bobo, e protestante. 

Me lembro, e claro que ninguém nem sequer ouviu falar disso, de São João da Cruz explicando os perigos que de apegar a essas consolações, as lágrimas, a tudo isso que torna nosso coração mais terno por um tempo. Como o nome diz, é uma graça concedida para abrandar as almas exaltadas para que elas se preparem melhor para a aridez que se segue, e que essa, sim, eleva e aproxima a alma de Deus. Mas não posso escrever aqui um tratado de teologia ascética quando há tantos excelentes por aí. E este é o grande problema: eles estão disponíveis, mas os fiéis nãos os querem, porque eles falam da aridez, do vazio, das tentações, e elas querem apenas a promessa da cura, da queda das muralhas. É a teologia da prosperidade impregnada no Santíssimo Sacramento, que sofre como personagem secundário nesse teatro horrendo.

Essa é apenas mais uma das coisas que tento não prestar atenção. 

Também tento não pensar no coração. Nos amores que nunca foram e nos que não devem ser. Nos amores que eu não que minha dependência emocional criem. Porque é sempre assim, a proximidade produz o desejo em mim e, no outro, a repulsa, ao mesmo tempo, e proporção. 

Juro que pretendia dar a esse uma forma melhor. Mas a impressora estragou, o home theater desconfigurou, uma entrega chegou, a criança chorou, a outra gritou, as panelas caíram, as pessoas ralharam e eu, bem. . . Eu me esqueci da forma. O frio me deixou inspirado. A reprise de Be Loved In House: I Do, também. Mas acabei perdendo no meio desses brinquedos jogados no chão, entre biscoitos quebrados e controles remotos perdidos. Perdidos como eu que, fui ao quarto, tomei os remédios e sentei aqui para escrever, sem forma e sem contorno, enquanto ouvia Chopin e Mahler. 

E assim adormeci, longas e deleitosas horas. Nesses dias de inverno, dormir é como ser abraçado por anjos fofinhos. Ou talvez seja porque eu misturei vinho com os remédios. Acho que vou fazer isso de novo hoje. Pelo menos consegui assistir um pouco. Achei que ficaria mais feliz com os muitos livros que comprei, acho que pouco mais da metade já chegou, e eu sei que vou ler porque tem coisa muito boa ali, mas, ao mesmo tempo, sabendo que foi um exagero, de certo ponto de vista, esperava que ficasse mais feliz ao ver minha biblioteca crescer. Schopenhauer quase batendo à minha porta...

terça-feira, 1 de julho de 2025

Revolta Ansiosa

Estava ansioso para escrever, mas não sei bem ao certo sobre o assunto. Talvez seja um efeito da mistura de energético, café e chá-preto que fiz para ficar acordado a noite toda assistindo série e por ficar ansioso, a resposta do meu corpo foi de despejar aqui, porque geralmente consigo identificar o que me desencadeia um episódio ansioso, mas agora, sendo sincero, só consigo pensar na tristeza que será o Cerco de Jericó na minha paróquia, uma espécie de invencionice protestante com o Santíssimo Sacramento no meio de uma algazarra histérica, sentimentalista ao extremo, recheada de pregações bobas, para não dizer heréticas, e momentos nada menos do que sacrílegos.

Não que eu queira dar razão a eles, mas em momentos assim consigo entender a fúria de movimentos como FSSPX e tutti quanti. Realmente é algo insuportável para quem conhece a ama, ver o que se tornou a Igreja de Cristo.

Bem, mas já desabafei sobre isso no meu último texto, e é bem certo que isso, permanecendo no meu peito, deve me levar a uma confissão e comunhão reparadoras. Não porque me considere digno, já que bem sei dos meus pecados, muitos dos quais escrevi aqui, mas porque minha consciência assim me exige, e não permite que eu permaneça apenas vendo esse espetáculo de ultrajes ao Senhor na Eucaristia. 

Acho que quero dormir, bem, depois de uma noite de notívago, é o mínimo que posso fazer. Queria que cancelassem a reunião mais tarde, prefiro passar o fim de semana enfiado no quarto escuro, debaixo das cobertas. Mas fui eu mesmo que marquei, então talvez ir seja o mínimo que possa fazer. Infelizmente é difícil explicar para as pessoas que meu humor mudou e eu simplesmente não quero ver ninguém.

E isso por causa daquelas pessoas, tristes almas, que já não enxergam o milagre, fecharam seus olhos para o belo e se renderam a cultura do novo. Todos os dias precisam inovar, inovar, inovar. E não é como se eu defendesse uma liturgia absolutamente estática, mas é que as invenções são sempre bobas, com único fundamento num sentimentalismo imediato, como se refletem nas músicas, uma letra de quatro linhas e repetições com sobreposição de vozes por sete minutos. Tristes almas. Como perdemos tudo que nos indicava o sagrado? O canto gregoriano, a arquitetura sacra, os ofícios, os paramentos. Primeiro veio a simplificação que tirou tudo de belo da Missa, depois, quando se deram conta do vazio que ficou, começaram a inventar uma porção de coisas para suprir esse vazio.

Vazio esse que se reflete também na alma do próprio homem. Sinto isso em cada reunião, cada vez que as pessoas clamam por novidade, mas o fazem sem conhecer o antigo, jogam fora séculos de história e agem como se estivessem entediadas de um passado que desconhecem. É uma tendência, a princípio, do jovem, mas muitos adultos a encarnaram, e como é feio, como é tosco, um adulto que age como jovem quando o único propósito do jovem é justamente amadurecer. 

Onde eu queria parar? Não sei. Choveu um pouco durante a noite, lá pelo sexto ou sétimo episódio, mas eu não vi por conta das cortinas fechadas. O frio diminuiu um pouco, mas espero não ver o sol tão cedo, gosto de dias assim, embora quisesse estar mais desperto, disposto.

Mas então, no pouco tempo que me atrevo a sair do quarto eu vejo a bagunça da casa, e é como se a mente de todo mundo estivesse num completo caos, e talvez esteja mesmo, e isso se reflete no caos quer vejo o tempo todo. E todos parecem ter se acostumado com isso.

Meu pai trabalhou a vida inteira com o objetivo de comprar uma casa e ter a estabilidade de comprar comida sem precisar se regrar. Será que ele olha para trás e vê um fracasso nessa bagunça em que estamos? E minha mãe que passa os dias arrumando uma casa, limpando, lavando coisas que estão sempre desarrumadas e sujas?

Começo a sentir um pouco de fome, e lembro que não jantei. Agora prefiro esperar que acordem para não fazer barulho demais logo cedo. Não que tenham essa consideração por mim, mas continuo sendo uma criatura de hábitos. A defesa civil acaba de emitir mais um alerta de vendaval, além das ondas de frio. Já me acostumei com esses alertas desde que vim morar perto do litoral. Queria um alerta que apitasse sempre que pudesse acabar me apaixonando, ou que me dissesse para falar 'não' a uma situação constrangedora. Bem, não há muito que se possa fazer. Vai continuar frio e chovendo, e os ventos fortes continuarão causando estragos, e eu continuarei me apaixonado pelas pessoas erradas. Droga, eu realmente queria cancelar aquela reunião. Se acaso encontrar algum sentido nessas palavras, me escreva explicando. Mas se me encontrar quiseres, não busque aqui ou ali, mas mim, buscar-me-á em…  

Em algum lugar da imensidão de informações soltas da internet eu encontrei o que vinha tentando dizer, pelas palavras de uma psiquiatra que passa o mesmo que eu, com a diferença de estar estabilizada. É aquela euforia disfarçada de um dia alegre, de uma conversa animada, de um contentamento por um dinheiro que caiu na conta. Mas as consequências chegam antes de acabar o dia: as palavras causam arrependimento, a animação se transmuta em descontrole financeiro e quando vejo eu gastei mil, dois mil, três mil em livros, sopas dietéticas, suplementos, sabonetes e sei lá quantas outras bugigangas. 

Depois, a culpa, o peso, a insônia. Não iguais as da depressão, ainda vem acompanhada de um frenesi desgovernado. De repente a noite se torna como uma corrida silenciosa. Tudo ao meu redor se cala, estão todos dormindo, enquanto o mundo gira num vendaval na minha cabeça. Já falei disso várias vezes, mas é assim. Mas tem que ser assim? Porque eu nem mesmo vi acontecer, ou melhor, via, mas, ao mesmo tempo, não tinha nenhum controle do que fazia. Realmente como se estivesse em um carro desgovernado: não conseguia frear ou mudar a rota, apenas assistir a decida duma vez só, e o que era uma ladeira tornou-se um abismo, aquele de que também sempre falo: o abismo que cavei com meus próprios pés.

Por isso, quando me perguntam "como vai?" eu sempre sorrio de um jeito falso, digo "tudo bem" ou evito mesmo responder a verdade, e dizer, como bem me mostrou uma querida amiga, que "estou cada vez me suicidando mais", ou algo do tipo. 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Miserere


Impuras são suas vestes,
não quis pensar no depois;
hoje enterra na lama,
quem consolava se foi…
“Senhor, vê meu sofrimento,
quanto o inimigo me dói!”
(Lamentos de Jeremias)

Meus olhos se encheram de água, transbordaram de tristeza. E sei que muitos, mesmo dentro da igreja, não entendem isso. Não entendem a dor que causamos ainda mais ao Sacratíssimo Coração de Jesus. Sei que há uma boa dose de hipocrisia nisso, afinal meus próprios pecados, o meu próprio corpo/templo é profanado pela minha vontade. Mas é diferente quando se trata do corpo do próprio Cristo. É diferente quando aqueles que deveriam zelar, adorá-lo, enquanto o mundo o ignora ou se escarnece dele, são os primeiros a excluí-lo, colocando-se ao centro, colocando sua criatividade como um bezerro de ouro. 

É como se nada fosse, nada significasse. Há muito eu vinha tentando relevar, cada pessoa tem seu tempo, e a cada um é dado um dom, pela boa vontade talvez sejam redimidos, ou pela ignorância invencível. Mas dói ao ver o maior de todos os tesouros no meio de sinais tão simplórios, como se fosse ele mesmo mais um personagem de uma peça de teatro boba. 

Mas isso não é nenhuma novidade para Ele. Afinal, não zombavam dele com a coroa de espinhos e uma cana na mão, como se fosse rei, aqueles que o açoitaram? E, no caminho para o calvário, enquanto a multidão se escarnecia de um homem que dizia ser Filho de Deus caminhava para a morte maus humilhante dos judeus, de modo que alguns poucos corações diziam para si "ó vós que por aqui passais, olhai, dizei: quem nesse mundo sofreu mais?" (Lm 1, 12). E continua sofrendo, mas não apenas pelas mãos daqueles que o perseguem, mas por nós, por aqueles por quem ele morreu e se entregou. Não somos dignos, Senhor, perdoai-nos, não sabemos o que fazemos. 

Que as lágrimas desse pobre pecador possam consolar-vos de tamanhas injúrias. Piedade, ó Senhor, piedade!

"Pecamos como outrora nossos pais, praticamos a maldade e fomos ímpios;
no Egito nossos pais não se importaram com os vossos admiráveis grandes feitos." (Sl 105)

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Simplicidade

"Às vezes, a poesia mais bela é sobre as coisas mais simples." (Sociedade dos Poetas Mortos)

Penso bastante nas coisas que eu mesmo digo e escrevo, numa espécie de meditação ou ruminação constantes. Por um lado me torno um tipo de melancólico, reclamão em bom português, buscando sempre entender as coisas que me circundam e, por isso, observando-as atentamente, com não pequena dose de pessimismo. Por outro lado, eu percebo que essa experiência me dá certa vantagem em relação aos outros, que, por não refletirem nada, tomam suas decisões baseadas nas paixões imediatas e acabam por perderem-se. Anos depois percebem que se precipitaram.

Foi assim comigo, mas não houve quem me desse conselho. Eu apenas saí sem olhar para trás, hipnotizado pelas possibilidades que se abriam diante de mim, possibilidade que aquele filho de Apolo mostrava-me. Mas era tudo ilusão. Logo percebi que me encontrava sozinho e sem aquela perspectiva de futuro que, hoje, dez anos depois, percebo seria a correta para mim, para minha disciplina. 

Fico triste ao ver descartarem as possibilidades de um futuro tão feliz por ilusões por tantas variáveis. Mas que posso fazer?

Escrevo isso não numa admoestação, pois sei que não a lerão. Apenas penso nisso brevemente enquanto observo a chuva cair lá fora, formando um véu cinza entre os vidros da janela e a paisagem da fora que, de algum modo, parece encolher-se diante do frio.

Olho para o lado, e vejo que o silêncio é rompido apenas pelo 3° movimento da Sinfonia Trágica de Tchaikovsky que, embora agitado, não superou o frio do inverno russo. Incompreendido, pobre compositor, e hoje discutem se morreu porque quis ou se foi um mero acaso depois de uma obra que claramente é um Réquiem para si mesmo. Bobagem, cada nota da peça diz que ele já estava morto ao compor. Sua 6° Sinfonia é, na verdade, obra póstuma. Não adiantou que a escrevesse, ninguém naquelas grandes e luxuosas entenderam o que se passara ali, apenas estranharam o movimento lento, Adagio lamentoso em Bm, no fim, esperando pelas comuns e apoteóticas finalizações das obras daquele período.

Eu não busco a compreensão nem mesmo de um público de duas mil pessoas. Que apenas uma ou duas o fizessem, eu já seria bastante grande. O adágio lamentoso do meu longo Réquiem.

Por incrível que possa parecer, hoje era um dia que queria viver. Sim, de algum modo. Fosse assistindo algo na televisão ou conversando tomando chocolate quente... Mas ainda assim fui abraçado pelos tentáculos gelados do adormecer.

Não quero me deixar vencer. Não.

Quero que esse momento possa ser um recomeço. Sem aquela velha bruxa super controladora no meu pé devido a transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata.

Quero sair mais, ver mais coisas, ainda que seja com esse tédio na alma. Visitar cafés, ver mais filmes e séries sem aquele automatismo cansado... Você iria comigo? Acho que seria bom, conhecer alguém anônimo para conhecer um café. Não sei, algo me diz que a vida não deveria ser apenas isso. 

Tenho evitado sair do quarto porque acho minha casa muito cheia, e eu queria um pouco de tranquilidade. A princípio me vem aquelas imagens de pequenos, porém confortáveis, apartamentos de séries tailandesas e japonesas, mas seria um sonho distante. Também não sei o quanto seria perigoso ficar sozinho todo o tempo. Bom, mas são apenas possibilidades. Distantes e improváveis.

(...) Tudo é nosso, tudo é para nós, quando reencontramos em nossos devaneios ou na comunicação dos devaneios dos outros as raízes da simplicidade. (Gaston Bachelard)

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Dias Frios

A alergia tem me impedido de demonstrar, mas encontro eufórico em poder descansar esses dias, na tranquilidade aquecida artificialmente por um pequeno aparelho branco colocado aos pés da minha cama, já que lá fora hoje amanhecemos com uma temperatura 2 °C, o que é bem incomum para alguém que cresceu no Centro-oeste. O simples ato de lavar as mãos numa torneira não aquecida é como se cortássemos o dedo em milhares de pequenas lâminas.

Assim como nos dias nublados, percebi que me identifico também com esses dias frios. São mais tranquilos. É como se a grandiosidade invencível da natureza pedisse aos homens por silêncio e contemplação. Me recordo dos grandes padres do deserto, refletindo e meditando os mistérios divinos na solitude silenciosa dos agrestes escarpados.

O frio também me torna ainda mais consciente da solidão. Sim. Parece que estar sozinho numa cama onde não se pode mudar de posição sem sentir certo desconforto nos torna mais conscientes de que ter alguém para abraçar tornaria tudo mais fácil ao compartilharmos do calor dos corpos e, quem sabe, se tivermos sorte, dos sentimentos. Algo meio schopenhaueriano, me remetendo ao dilema do ouriço. Gostaria que me fosse oferecida a possibilidade de me aproximar dos espinhos do outro, se isso me fosse dar algum calor a aquecer o coração frio e triste de quem dorme sozinho todas as noites. 

Bem, a reflexão também é algo que solitária, apenas o silêncio da noite fria e essas palavras, lidas por poucos anônimos, chegaram a conhecer, mas não sei se consigo, por meio delas, expressar a dor, o vazio, o delírio que é estar consciente de si mesmo na cama, estender o braço e perceber, numa constatação que corta o coração como uma espada de aço frio, que isso é tudo.

É um grande contraste que esses dias frios se reflitam num coração que sempre amou de modo tão ardente, e nunca conheceu outro amor que não este. Que no calor se diminui pouco a pouco, reduzindo-se a uma pequena, fagulha. Tão invisível que nem sequer pode-se dizer com certeza que existe.

"O tempo voa às vezes como a ave e às vezes se arrasta como o verme. O homem sente-se bem só, quando não percebe que as horas passam depressa ou devagar." (Ivan Turgueniev)

terça-feira, 24 de junho de 2025

Periferia

Não consigo descrever esse pequeno meneio, meio quase imperceptível sorriso que dou a mim quando quero ironizar minhas próprias escolhas. Quando quero chorar de coração partido, mesmo sabendo que seria assim se eu permitisse que esses sentimentos me dominassem. Foi uma decisão que tomei, talvez sem nem perceber, e que não consigo deixar para trás. Assim como você, também não volto atrás quando tomo uma decisão. Aprendi isso da pior maneira, e aprendo a cada dia, vendo que tudo é mais importante para você, e que ocupo apenas um pequeno espaço, na periferia do seu coração e da sua vida. 

E agora, de novo o pequeno esboço de sorriso, penso que você já nem sequer pensa em mim. Espaçadas as mensagens, os assuntos, o espaço e, ainda mais, os corações.

Navego nesse mar de inverno, não enxergo a estrela da manhã. 

À deriva. Sem porto. 

Como posso dizer que não consigo voltar atrás, se nem sei mais para onde vou ou de onde vim? 

Me perdi completamente nessas águas geladas, profundas, no abismo dos sentimentos que eu mesmo alimentei e que hoje me devoram na escuridão gélida dessas profundezas abissais.

X

Confortavelmente Desiludido

Tenho vivido a vida
sem saber se ainda
carrego uma alma.
Há tempos,
nenhuma paixão
para enternecer
meu coração petrificado.
Eu me tornei
confortavelmente desiludido.


(Savio Oliveira Lopes)

sábado, 21 de junho de 2025

Hora das Trevas, Nova Luz Clara

"Esta é a vossa hora, a hora do poder das trevas." (Lc 22,53)

Meu coração se encontra inquieto.

Apenas efeito nefasto da ansiedade, essa vadia cruel e sem coração. Sei que veteranos de guerra nunca conseguem dormir bem ao voltarem para casa. Imagino que os heróis épicos também não, depois de lutarem contra aqueles monstros cujas cabeças, repletas de dentes prontos a devorá-los, multiplicavam-se como pragas demoníacas. O filósofo já alertava o perigo de olhar para um abismo muito tempo, quem dirá habitar ao lado dele... 

E por isso meu coração se encontra inquieto. E aqui percebo a fraqueza da minha fé, na absoluta solidão ao erguer os olhos a Vós, ó Pai, e exclamar "Meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21)

Meu coração se encontra inquieto na temeridade do surgimento de mais uma cabeça. Demônios não desistem fácil de suas presas. 

"Eu me esqueci no armário. 
Pensei estar vivendo,
estudando, trabalhando, sendo!
Pensei ter amado e odiado,
aprendido e ensinado,
fugido e lutado,
confundido e explicado.
Mas hoje, surpreso,
me vi no armário embutido
calado, sozinho, perdido, parado."

(Mário Quintana)

E então quando o sol começou a raiar na aurora e o coração a ver uma nova luz clara, torna-se difícil acreditar. Por tanto tempo preso, tanto tempo humilhado, tanto tempo usado e, depois, descartado sem nenhum valor, que é difícil crer na possibilidade de um desfecho não bom, mas ao menos justo. Que ao menos não me empurrem logo duma vez no abismo, que me deem a escolha de saltar, já que o cavei com meus pés.

Passamos a noite abraçados, a fogueira crepitava no meio de um grande grupo, mas ninguém parecia notar-nos. Ele notou meus sorrisos, e eu notei seu corpo quente, sua mão e cintura delicadas. Foi uma noite tranquila. Aquela fogueira, nova luz clara, ainda me parecia distante, mas sua luz já brilhava um pouco mais. 

Os países estão lançando mísseis uns nos outros. Por alguma estranha razão a dinâmica da guerra fascina os homens desde tempos imemoriais. Gilgamesh já era um guerreiro. Comigo não é diferente. Mas, como os botões que aperto não disparam ogivas nucleares, e como caíram 10° nesta segunda noite de inverno, eu vou dormir mais um pouco. 

terça-feira, 17 de junho de 2025

Portas em Luto


De luto estão as estradas
que rumam para Sião,
a suas festas, quem vem?…
Suas portas, que solidão!
Seus sacerdotes, suas jovens,
toda a cidade, aflição!

(Lamentos de Jeremias)

Desculpe por ficar emotivo e irracional demais em dias como esses. Droga. Me sinto um daqueles caras num relacionamento abusivo que pede perdão repetidas vezes pelos mesmos erros hediondos. Meu laudo de Bipolar não ajuda em nada, antes disso, testemunha contra mim. Em se tratando de você, e de estar longe de você, é difícil controlar o que sinto. Acho que meus sentimentos por você foram os últimos que restaram.

Desculpe. Desculpe. Desculpe por ser tão patético, e continuar agarrado aos seus pés.

Tinha terapia hoje, mas não vou. A quantidade de barulho hoje de manhã foi tão insuportável que decidi não sair da cama. Tomei uma dose extra de tarja preta e vou apenas escrever um pouco antes de sentir os primeiros efeitos. 

Admito que estou chateado. Mas não sua culpa, nem minha. As circunstâncias da vida tem dessas coisas... E não há muito que possamos fazer. 

Eu só queria alguém ao meu lado enquanto enfrentava feras maiores e muito mais fortes que eu querendo me devorar. 
E alguém ao meu lado quando tremia de medo. 
E alguém ao meu lado quando eu me deitei cansado, chorando aliviado. 
E alguém ao meu lado agora, na expectativa da libertação. 
Alguém ao meu lado.
Você ao meu lado.

Mas todos estavam ocupados. Sorrindo, bebendo, sendo amigos, enfim, vivendo.

X

O cara que disse “O homem comum vive uma vida de silencioso desespero” tinha um pouco de razão. Mas o trabalho também acalma os homens, dá a eles alguma coisa para fazer. E impede a maioria deles de pensar. 

Homens – e mulheres – não gostam de pensar. Para eles o trabalho é uma dádiva. Dizem a eles o que fazer e como fazer e quando fazer. 

Noventa e oito por cento dos americanos acima de 21 anos estão trabalhando, mortos-vivos. Meu corpo e minha mente me disseram que dentro de três meses eu seria um deles. Eu me opus.

(Charles Bukowski)

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Sobre o que pouco se fala

"Domingo. Dormi, acordei. Dormi, acordei. Vida miserável." (Franz Kafka)

Pouco se fala sobre algumas das verdades mais inconvenientes desse estado. Talvez porque quem se encontra nele dificilmente consegue expressar, ou porque simplesmente não querem ver ou saber dessas coisas.

Poucos falam de como os lençóis ficam fedendo depois de alguns dias, mesmo os mais frios, em que não conseguimos nos levantar e que, mesmo que incomode ficar ali, como porcos no chiqueiro, não há nada que podemos fazer. É como se a depressão saísse pelos poros, como cheiro de carne podre. Poucos falam das feridas na cabeça pelos dias que não conseguimos tomar banho, ou de como a pele perde a vitalidade, parecendo que envelhecemos anos em poucos dias. Também há feridas nas axilas e virilhas, e elas sangram exalando um cheiro ruim e manchando as roupas de sangue e pus. Embora muitos percebam os olhos fundos, pouco se fala do terror que é cada noite, longas e solitárias, onde queríamos apenas alguém para abraçar e de como, ao mesmo tempo, elas são reconfortantes, porque não há ninguém a dizer "sai dessa"ou então, "força!" Pouco se fala de como é quase impossível levantar cedo para receber ordens de uma velha burra, como se a vida fosse isso. 

Mas como já perdemos a definição de vida, em meio aos lençóis suados, noites insones e dias de deserto, seguimos vivendo, se é que podemos chamar de vida. Seguimos, simplesmente, como aqueles espíritos rumo ao mundo dos mortos, sem propósito, vazios, sem contorno, apenas sombras flutuantes, quase sem forma.

X

Começou a chover e, mesmo já há alguns anos aqui numa das cidades que mais chovem no país, ainda me encanto em olhar pela grande porta de madeira da sala e ver os pingos de chuva refletirem a luz dourada da rua. É uma bela visão que eu gostaria de compartilhar. 

Devo admitir, a distância já era ruim quando era apenas geográfica, mas ficar sem falar com você também agora se tornou ainda pior. Queria poder sentir sua presença, já que não posso sentir o toque dos meus dedos em sua pele, ou ouvir sua risada...

A chuva para e recomeça, de tempos em tempos, e eu me encanto ao vê-la brilhar refletindo a luz dourada da rua. Queria que você visse isso comigo. Acho que vou fazer um café, forte, e ficar aqui, olhando para a rua, e o céu coberto de manto negro, enquanto todos dormem.

"Despertei, mas como não havia ninguém na minha cama para me dizer que agia errado, dormi mais um pouco." (Charles Bukowski)

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Na Prateleira


Vi duas canecas na prateleira daquela loja,
em tons de cinza e azul-escuro
ambas em fosca cerâmica

Pensei naquelas possibilidades
acordando de manhã
a luz do sol depois de uma noite de felicidades

Aquela conversa normal
de toda manhã
como passou a noite?

Essa conversa é nosso ritual
sabemos como foi a noite
abraçados de forma carinhosa e habitual

Mas são apenas e tão somente isso
como se eu estivesse sob efeito
de algum misterioso feitiço

Esses pensamentos, ou sonhos, 
devaneios enquanto olhava uma caneca
de pé naquela loja, com o rosto num pequeno riso

Eu lembrei da distância
dos quilômetros e 
de toda minha insignificância

Dei uma última olhada para as duas canecas
na prateleira daquela loja
em azul-escuro e cinza de fosca cerâmica

Fui-me embora
enquanto uma das canecas ficou
a outra apertei com um aperto no coração.

Acho que esses versos ficariam melhor em prosa. E a minha vida também.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Carcaça

Fecho os olhos em busca de uma resposta, mas só consigo ouvir alguns ruídos vindos lá de fora e minha respiração pesada, ofegante. Hoje é o dia cor de rosa, e muitos estão felizes, e esse ano eu não tenho aquela postura movida pela inveja puramente humana de achar esse dia um grande saco, não. 

Tomado eu, pois, de singular descrença no amor, apenas observo ao meu redor que fui privado dessa faculdade humana. Assim como não sei pilotar aviões ou consertar rádios analógicos. Tampouco é uma atitude condescendente e conformista, mas talvez seja tanto estoica quanto niilista ao ver que, bem, as coisas são assim, e não há como mudar. 

Não preciso aceitar passivamente, mas também não há revolta da carne ou do espírito, que possa, em exortação, me fazer traçar o caminho do meio, como que regando jardins de pedra, sem parar a caminhada rumo a sei lá o quê. 

O que eu sei é que agora estou a vagar, como um fantasma, natureza morta. Caminho entre túmulos que andam ao meu lado, mas não creio que estejam vivos, e há muito deixei de sequer tentar sobreviver. Mas, no entanto, nas noites frias, eu ainda espero, como aquela última fagulha de uma grande fogueira que se apagou, mas continua lutando para novamente se levantar em grandes labaredas, abrigo nos corações. 

Mas ninguém vê tamanha desgraça. 

Caminhando sozinho entre multidões, de tolos, enamorados, ambiciosos. 
Pensar nesses últimos me faz subir uma ânsia análoga à ânsia de um cardíaco.

Ninguém sequer nota essa de carne podre e cheia de ossos, carcaça. 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Desde Quando


Eu odeio ser produtivo por um dia 
e completamente inútil no resto deles. 
Realmente odeio. 
Fiz mais hoje do que em várias semanas, 
mas não quero sequer sair do meu quarto agora, 
e estou pensando em mil desculpas 
para não ver 
e nem falar 
com ninguém amanhã. 

Dia dos Namorados, 
todos felizes, 
mãos dadas, 
músicas românticas, 
fotos em restaurantes, 
cartas de amor ridículas,
sorrisos felizes.

E eu esqueci de tomar 
meu estabilizador de humor, 
de novo. 

Enchi a cara de energéticos 
e agora quero dormir. 

E sonhar com aqueles longínquos
trigais dinamarqueses.
Sentado na varanda com um livro
ao colo e uma caneca de café ao lado
sozinho ouvindo o sino da igreja.

Desde quando eu me importo
com a métrica ausente
se ausente também o conteúdo 
e o contorno?

Desde quando o amor
doce e tranquilo
transformou o peito dos homens
num buraco indeciso?

Desde quando esse enigma
decifrado quando a luz da lua
beija o corpo dos amados
deixou nesses mesmos corpos um estigma?

Desde quando aquele amor que eu sentia
passou a ser uma constante ansiedade
uma eterna busca por saciedade
de uma fome que eu nem sabia que existia?

Desde quando um único dia, 
pode tornar-se dolorido
incômodo, 
penoso, 
tenebroso

Ao olhar para o lado esticar o braço
e sentir nada mais 
que a frialdade do ar a cortar a carne 
como corta o aço?

Desde quando me importo 
com o tempo vindouro
com as humilhações
buscando no amor algum tesouro

que possa fazer-me esquecer
depois das tórridas oito horas
de torturas lancinantes
chegar a receber em abraços algum prazer?

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Após Três Dias

Parece que a previsão mais cedo no jornal estava certa, choveria durante a tarde. Pelo tom ameaçador das nuvens, eu arrisco dizer que vai chover bastante. Ótimo, espero que meu sono seja bom acompanhado pelo barulho da chuva. 

Dormi ontem o dia todo, mas consegui ainda um pouco de energia para ir à Missa da noite, ouvir e cantar com alegria a sequência:

"Dai à Vossa igreja, que espera e deseja, Vossos sete dons. Dai em prêmio ao forte uma santa morte, alegria eterna. Amém!"

Gosto desses detalhes da liturgia, como um hino em louvor ao Espírito que conduz a Igreja de Deus, que nos envia do céu um raio de luz. Que nos guia na solidão do pecado e da morte. Que no dá como prêmio a vida eterna. É uma beleza que faz com que as outras belezas desse mundo não se possam comparar, pelo contrário, se unem a ela, pois é da beleza eterna e imutável que nasce a beleza que nos cerca. 

No sábado eu fui a uma festa, e embora fizesse parte da organização, de algum modo, fui a contragosto, mas acabei me animando, especialmente depois de ficar mais à vontade perto de algumas pessoas, de sorrir com amigos, conversar sobre S. Tomás e Tchaikovsky, sobre amores não correspondidos, e tantas outras coisas. Admito que me senti quase vivo, como que ressuscitado após três dias.

Mas também observei muito os outros que conversavam, via para onde iam seus olhares, o que observavam, o que os fazia se animar. Vários rapazes bonitos, meninas de beleza mediana e personalidade insossa, mas ainda assim, algo nela, e nem preciso dizer que é o cheiro e aquilo que elas têm no meio das pernas (sic!) fazem com que todos olhem para elas. E assim decorreu a noite, um pouco de álcool para tornar a convivência com o outro um pouco mais suportável e vários olhares, alegres, excitados, passando a todo momento, mas nenhum deles se virou para mim. Nenhum sorriso sequer. 

Naquele ínterim eu me vi então como um jovem, desejado do desejo alheio. Algo bobo, infantil, buscando nesse desejo aprovação e, na aprovação, um sentido. Ainda não dominei isso em mim. Ainda não sou um homem, apenas moleque com palavras de erudição filosófica que, sem isso, tornam-se palha.

"Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito." (Albert Camus)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Caminhada

Caminhei por algumas ruas que ainda não conhecia ou, pelo menos, não me recordava. Consegui diminuir um pouco da fúria que sentia e que me fazia tremer. Usei muitos dos recursos que aprendi nos últimos meses: respiração, prestar atenção plena no presente, isto é, no som da água negra se movendo lentamente, as gaivotas já preguiçosas e uma ou outra criança feliz por estar ali com os avós, enquanto eu estava sentado no concreto espinhoso do trapiche, braços apoiados no metal frio. Não havia brisa, mas, mesmo assim, meus pensamentos foram aos poucos levados.

Também tentei, de algum modo, analisar a situação sabiamente. Não se trata de algo que eu possa resolver. Aqueles que podem não querem. A minha parte eu fiz e continuo fazendo. Então essa é a realidade. O concreto embaixo de mim é real, o metal frio é real. Ainda que a situação também o seja, eu não posso mudá-la.

Num pequeno parque, já bem próximo da minha casa, eu caminhei sentindo a grama molhada pelo orvalho. Não choveu hoje, mas a umidade próxima do mar sempre deixa as folhas das plantas assim. Também fiquei ali, sem me concentrar em nada, além de duas pessoas brincando com um pequeno cachorro perto dali. Francamente, queria poder caminhar assim a noite toda. Não estava particularmente agradável, mas ainda era melhor do que voltar para casa. 

Aqui eu tento não ser dominado pelos pensamentos que me fazer querer jogar aquele monstro pela escada. Essa criatura tão espúria que eu me recuso a sequer chamá-la de gente. Quem dirá irmã. Gostaria de poder sair e não tornar a ver seu rosto senão tomado pela palidez da morte num caixão. 

Tinha um compromisso, mas minha cabeça não me permitia ficar lá, daí decidir andar um pouco. Me enfureci comigo mesmo ao saber que, naquele momento, não tinha sequer uma pessoa para quem pudesse ligar. 

Ninguém. 

Nem mesmo uma sequer.

Todos distantes, ocupados, incapazes de compreender.

Aquela que diz me amar passou os últimos dias inteiros se preocupando com aquele demônio. Amigos? Namorado? Um luxo distante para um homem como eu. Talvez devesse ter me sentado em algum ponto do caminho e contado o que sentia para as árvores do mangue.

Também tentei me isolar um pouco, infelizmente o hábito de sempre tornar a abrir as notificações precisa ser controlado. Me irritei ao ler algumas palavras. O que é isso? Um casal, em demonstração de felicidade por terem um ao outro. Um casal gay. Aberrações, foi o que devem ter pensado ao vê-los. Deveriam preferir morrer a se amarem assim, não é mesmo? Deveriam preferir morrer a amar como eu amo. 

Como uma aberração.

A fúria me enfraqueceu, meu sangue mais uma vez se transformou em veneno, pesado. Em algum lugar li que Viktor Frankl disse que "o homem se realiza a medida que se afasta de si mesmo." Não sei se era esse o sentido que ele quis dar, mas, admito, hoje me sentiria realizado se pudesse ser outro, ou nada. Mas o que posso fazer é apenas arrastar os pés sangrentos, e desejar que aquele anjo de pureza não sofra tanto naquelas mãos que sequer deveriam entre homens. E as quais me recuso chamar de irmã.

Começou a chover fraquinho lá fora, gosto desse som, talvez ele me faça companhia nesta que eu queria que fosse a derradeira noite.

~

Ao Acaso

Se na tua forma de reparares o mundo se der o acaso
de tropeçares na sombra do meu silêncio
lembra-te que foi sempre ali que esperei por ti.

(Carla Pais)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Doença de Amor

Depois de um dia todo rodeado de crianças, e sua aparente inesgotável energia, a minha se esgotou. Preciso ficar umas boas horas na cama, no escuro e em silêncio. Talvez mais tarde levante para assistir alguma coisa, aproveitando os últimos dias antes de voltar para aquele inferno, lembrando vagamente do que disse certa vez Nietzsche de que quem não tem pelo menos dois terços de seu dia para si, não importa quem seja, é um escravo.

Também venho tentando conter outra coisa que me escraviza: meus sentimentos desordenados. Minha carência, minha dependência emocional, quase me fazem mandar mensagens humilhantes, me fazendo mais uma vez buscar abrigos em portas já fechadas. É mais uma coisa que me faz voltar ao silêncio e à solidão do meu quarto escuro. 

Disse, não faz muito tempo, que a saudade é uma doença cruel. E é verdade. Principalmente quando parece que... Não, é melhor nem dizer, não mais vez. Quantas vezes eu já me lamentei por não ser amado? Deve haver um limite do ridículo do quanto um homem pode se lamentar não é? Eu sei que sou um homem ridículo, mas até para isso deve ter um limite também. 

Me sento na cama e olho pela janela, voltou a chover. Da sala, escuto comentários esportivos. Nunca entendi, em trinta anos de vida, essa fascinação por esportes. Mas imagino que também poucos entendam meu fascínio por atores tailandeses. Vou comer algo e deitar de novo, queria que a casa estivesse vazia. Penso em quantos dias ficaria deitado sem me levantar se estivesse sozinho. Parece um claro céu e, ao mesmo tempo, um turvo inferno. 

Não sei se ouvi isso realmente ou se é fruto da minha imaginação num devaneio espiritual, mas refletir sobre o mês do Sagrado Coração fez brotar no meu coração uma prece: que o Jesus possa curar o meu jeito de amar. 

Não, não me refiro a minha sexualidade. Me refiro ao modo como eu amo até a dor, como é sempre visceral, como meu amor nunca é tranquilo, nunca é um jardim florido num caloroso dia de primavera, mas é sempre uma tempestade, é sempre demais, sempre me sufoca, e sinto que não deve ser assim. 

Não queria me medir pelos outros, mas sempre que vejo duas pessoas juntas, as vejo felizes, claro que há brigas e términos, mas quando parece real, flui naturalmente. Mas comigo, é sempre uma longa caminhada até o calvário. Meu amor parece doente, respira por aparelhos, clama pela ortotanásia. 

"(...) Por vezes um momento de silêncio é o que existe de mais arrebatador." (Virginia Woolf)