segunda-feira, 14 de julho de 2025

Desencontro

"A busca pelo desencontro é o teatro preferido de quem teme investir no desejo." (Lacan)

Há anos eu tenho essa impressão, e cada vez mais certeza, sobre mim: há algo definitivamente quebrado em, algo de intrinsecamente errado, uma espécie de imperfeição fundamental no ser. Por isso que, mesmo depois de tantas e tantas tentativas, continuo quebrado, esquecido numa cama, com o corpo coberto de feridas e dores em todos os músculos: trata-se da manifestação dessa imperfeição. Ela me impede que eu me conecte com os outros, ainda que me conecte com palavras e músicas de outros tempos, mas os outros, aqueles que estão próximos, ainda sinto que estou mais distante deles do que daqueles que já se foram. 

É quase como se, ao ler um livro, eu conseguisse captar aquela tristeza atemporal, aquela luta de todos os tempos, a angústia que perpassa o coração do homem desde seu primeiro pensamento, e isso me faz participante dessa história. Mas ao olhar o outro, ou simplesmente falar com ele, não consigo sentir senão uma distância abissal. Não basta que me mantenha aberto, não basta que eu ame, que eu demonstre, a distância parece jamais diminuir. E é dolorido, ver que entreguei tudo que tinha, mas, ainda assim, não foi o bastante, porque meu gênero, a faculdade, o tempo, foram mais decisivos que os sentimentos. 

E como eu insisti. Maldita insistência.

Eu queria dizer alguma coisa, mas tornei a esquecer, tem sido assim ultimamente. Venho tentando ignorar minha família se empolgar com uma mudança para o bairro ao lado, eles querem uma casa maior e, embora eu também queira, sei que vai ser só mais espaço para bagunça. 

Eu consegui e levantar, tomar um banho, mas não mais que isso. Desanimo de qualquer possibilidade no exato momento em que a ideia se cristaliza na minha mente, e então a destruo com um grande martelo. A mudança não significa nada, como o amor não significa, como os livros que sempre me gabei de ler, mas que agora pegam mofo nas prateleiras, também não significam. Nada é capaz de fazer brilhar meus olhos. 

Queria ficar acordado, eu juro que queria. Queria ficar deitado no chão, lendo e ouvindo música, me alimentando de algum modo. Mas eu não consigo. Me sinto cada vez mais e mais dependente dos remédios para dormir que me fazem passar inconsciente pelos dias entediantes. Uma solução seria buscar logo um trabalho, mas eu me recordo de ter que receber ordens daquela velha bruxa com super controladora por causa de um transtorno obsessivo compulsivo que ela não diagnostica e não trata, e aí desanimo também. 

Vou receber algum dinheiro nos próximos dias. Deveria guardar? Ou comprar mais dos livros que eu quero e que desejo um dia ler, fazendo parte daquele plano geral das minhas ideias? Não vejo essa compra como inútil. Seria mais útil se eu conseguisse ler mais rápido, mas, no momento, venho tentando me distrair com histórias mais leves. Pelo menos é melhor que nada, mas, após ler um livro inteiro em dois dias, o segundo já abri dois dias atrás e li apenas alguns capítulos. E acho que hoje não vou evoluir muito, visto que já enchi a cara de remédios.

Queria emagrecer, e comprei algumas sopas na internet, naturais e até bem gostosas que poderiam me ajudar (sim eu sei que não vou perder 30kg tomando sopa, mas é o que posso fazer). Mas até elas eu estou com preguiça de fazer. Academia ou exercícios ao ar livre? Fora de questão, se até levantar da cama é um suplício. Tirei algumas fotos na vernissage da galeria de um amigo meu, queria inaugurar uma espécie de nova fase, mas ao ver o tamanho da minha barriga, desisti completamente.

Alguns amigos sabem que não estou bem. Mas não sabem tudo.

Eles não sabem das feridas no meu corpo. Da minha virilha e axilas sangrando por conta dos pelos e do suor acumulado. Não sabem do sono desregulado, dos pesadelos, das dores no corpo todo. Eles oferecem apoio. Mas eu me sinto sozinho. 

Comecei esse texto com uma citação de Lacan. Ele faz referência a uma dinâmica bastante comum, no campo da subjetividade. Há muitos sujeitos, como eu, que apostam repetidamente nas frustrações planejadas, na autossabotagem, como forma de se protegerem de um desejo real e realmente destrutivo. Por isso a minha longa lista de paixões por homens que nunca se interessariam por mim. Quando, no entanto, sinto aquela eletricidade, uma espécie de sinal indicando que posso seguir em frente, eu fujo inventando as desculpas mais estapafúrdias, como a aparência, que justamente é meu cavalo-de-batalha ao afirmar que a gentileza supera a beleza física imediata.

A imagem teatral é bastante conveniente. Enceno o desencontro, a dor, a partida, sempre próximo "ao que poderia ter sido e que não foi". É uma estratégia de autoproteção. Escolho situações em que posso sair de cena, ainda que insista permanecer nelas, porque comprometido com uma narrativa real significa não poder fugir facilmente, e enfrentar verdades dolorosas de uma realidade impiedosa. 

"Há palavras que requerem uma pausa e silêncio." (Herberto Helder)

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