Hoje eu só queria uma coisa: desaparecer, não ser, não existir, não sentir.
Não perceber que me encontro numa página completamente diferente das outras pessoas: que o que lhes parece bom a mim é chato, e eu deveria começar a sair sozinho, se não achasse isso patético.
Não vejo motivo para isso. Apenas quero um dia sem ver ninguém.
E é de uma grande tornar a esse estado de melancolia um dia após ter escrito sobre a beleza de uma manhã ensolarada. Mas é assim que as coisas são, pelo menos para mim.
Basta que feche os olhos e pense por alguns instantes naqueles que me são mais próximos e caros. Logo percebo o quão distante de cada um deles eu estou. Isso porque seus pensamentos são tão tão diferentes dos meus, que não consigo sequer compreendê-los, ao passo que também eles não compreendem a mim.
Vejo um enlouquecido pela rotina de trabalhos e estudos, quase já sem tempo para mim. O outro, nem mesmo sei o nome, mas era belo, e me mostrou as tatuagens do corpo com naturalidade e um sorriso cativante. Outro naquela fase da conversão em que as almas se apegam aos refrigérios e consolações e se deixam deslumbrar por elas, sem se preparar para a aridez que se seguirá.
E essa aridez eu conheço bem.
Distantes. Todos eles. Distantes demais para que eu os alcance.
Pretendia virar a noite assistindo, e até tomei energético para isso, no entanto, perdi a vontade. Depois me sentei para escrever, com uma taça de vinho ao lado e Rachmaninoff no player, mas sem sucesso, cada uma dessas palavras me dói para ser escrita, não me soam verdadeiras, mas algum tipo de artifício: eu preciso dizer algo mas, por não saber o que é, me lamento dizendo que não consigo dizer. Eis-me diante dos umbrais dos limites da linguagem.
Da minha linguagem, das minhas limitações.
Busco então inspiração em outros corações apaixonados, doloridos, poéticos. Me percebo que, num dia, escrevo sobre a beleza do sol e, no dia seguinte, me escondo do mesmo sol, atrás de cortinas finas que, filtrando a luz amarela como um véu verde, deixa as paredes do meu quarto numa cor que me evoca veneno, doença...
Penso no encontro do fim de semana, e lembro que, embora na minha frente, ele pensava em outra pessoa enquanto bebia do mesmo copo que eu. E sorrio sozinho quando me percebo caindo novamente na mesma armadilha que criei. Nesse abismo que cavei com meus pés, amo essa imagem da música de Cartola, mas também não é minha. Quase nenhuma das imagens que uso são. Até minhas lágrimas, a maioria são de Jeremias, o pessimismo do Velho Buck e outros, esse certo desencanto mesclado com esperança e boas doses de psicose de Clarice Lispector e assim sucessivamente. E então vou criando, como uma quimera, as minhas imagens, numa colagem de dores, de sonhos, de rompantes de ira.
Me pergunto se serei capaz de amar novamente. Amar mesmo, não apenas achar alguém bonito. Quem me conhece frequentemente acha que eu estou sempre amando. Mas eu não sei disso, acho que só amei de verdade aqueles que, ainda hoje, penso com um carinho especial, que me apertam o peito e mudam minha respiração.
Yunchan Lim é simplesmente sensacional na interpretação do Concerto N° 3 de Rachmaninoff. Custo acreditar que alguém tão jovem consegue imprimir a profunda dor do compositor nessa peça. É preciso de mais do que uma técnica perfeita. Será que ele também sente dor, na pressão de ser o melhor? Ou consegue esse resultado pela sensibilidade natural que o fez tornar-se pianista? Talvez assim como eu vou coletando as dores dos escritores para descrever as minhas ele o faça com as notas daquelas partituras?
Não sei como estarei ao acordar. Vou tomar remédio para dormir e ver quem vence: ele ou o energético. E amanhã, bem, será quarta-feira.
X
Não, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
(Carlos Drummond de Andrade)
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