quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Sobre manhãs irremediáveis

Sonata para piano N° 8, Op. 13 em Cm - "Patética" de Beethoven

Alguns dias já amanhecem como dias difíceis. Há manhãs que nos encontram antes mesmo de despertarmos, como se já houvesse um peso nos esperando na borda da cama ou no umbral daquele quarto. É o tipo de manhã que não nasce: apenas se arrasta. É como se a luz do sol, mesmo clara, fosse filtrada por um véu. Não me refiro às cortinas, mas a algo menos tangível, como se, ao me levantar, olhasse pela janela e visse não um dia que começa, mas uma tragédia que se anuncia. Aquele instante em que o corpo já sabe da derrota antes mesmo de o pensamento alcançá-la. E esse pressentimento silencioso é justamente o que a música expõe logo de início: a abertura é um Grave, quase litúrgico, uma Missa de Requiem que, depois, se transforma num Allegro, um contraste, a introdução lenta que cede lugar à pressa, aquele frenesi, aquele sangue fervente.

É o começo do fim. O tipo de fim que não precisa ser grandioso para ser devastador. Aquele fim silencioso, que ninguém vê. Não o fim do mundo ou algo assim, mas quando o coração acelera a tal ponto, quando não se consegue mais conter a ira que tudo se torna escuro, como se aquele véu da manhã cobrisse tudo. O Allegro cai sobre nós como uma verdade que não queríamos saber, mas que insiste em existir. A música traduz isso com seus golpes, suas frases empurradas ao limite do suportável. E então essa fúria se repete, num coração amargo, uma verdade impossível de se esquecer.

E então, quando cessa a corrida, ou a luta, o coração lentamente retorna ao Grave: um fantasma que não deixa a tensão morrer. Ele paira, retorna, e com ele vêm lembranças que preferiríamos não visitar. É como voltar a uma sala onde o ar nunca renovou, tudo ainda cheira ao que se tentou esquecer. É quando tentamos respirar, mas sem consolação. Estou sozinho, os olhos se fecham numa ternura ferida: é aquela melancolia por uma época remota demais para se recordar, mas que se sabe que não era tão dolorida como agora. Nesse ponto, a música fala com uma sinceridade que dói, não porque grita, mas porque suspira.

O homem busca em si uma cura para as feridas da batalha, mas não encontra, elas continuam abertas. Há feridas que não se fecham simplesmente porque desejamos que se fechem. Beethoven as expõe como quem vira uma cicatriz para a luz, não para curá-la, mas para analisar quanto tempo faz que ela ainda está lá,  para entendê-la. A confissão de sua incapacidade se encontra no famoso tema principal do segundo movimento. É uma confissão que se expande aos poucos, a ponto de tomar conta do próprio ser. Cada variação parece apertar um pouco mais o peito, como quem tenta ordenar sentimentos que não se deixam ordenar. Em algum momento ouve-se um canto, frágil, distante.

Esse olhar para dentro de si se transforma num movimento impaciente. A introspecção, ao invés de apaziguar, acende outra inquietação, e outra, e outra. É como se o próprio silêncio tivesse pressa. O mundo continua, ainda que eu não esteja pronto, ainda que corra, tropece e tente escapar de algum modo. A agilidade desse movimento contrasta com algumas passagens que aparecem como sombras, o final é repentino, cruel. Não há volta, nem remendo: a peça termina como certos dias terminam, cortando abruptamente o que não se resolveu. 

É propositalmente inacabado.

Entre escombros: a tragédia do encontro

A arte tem como esse magnetismo capaz de nos fazer conectar com ela para, numa troca, experimentarmos essa identificação. Por vezes ela nos toma pela mão, pois diz ou mostra, aquilo que não conseguimos dizer, mas que sentimos de forma poderosa e até devastadora. Talvez por isso Walter Benjamin insistisse que a obra de arte verdadeira “nos lê” antes mesmo de a lermos; ela se antecipa à nossa consciência e desvela aquilo que mantemos escondido até de nós mesmos.

Burnout Syndrome é uma das grandes apostas da GMM TV para esse ano. Após duas séries medíocres, a galinha dos ovos de ouro da empresa, o ship formado por Off Gun viria com mais uma produção com uma temática madura, como aquelas que consagraram os dois, que acabam de completar 10 anos como parceiros. Theory of Love e Not Me foram, cada uma a seu modo, marcantes na indústria BL a seu modo, mas tinham esse fator em comum: não eram produções simples, isto é, fugiam completamente da abordagem da maioria dos projetos, inclusive da própria empresa, sendo um ponto de virada para experimentações cada vez mais profundas, o que nos traz exatamente a Burnout Syndrome, que além do ship conta com a adição de Dew Jirawat como terceiro elemento. Há algo de Dostoiévski nesse tema do trio, as três personalidades que se chocam, se entrelaçam, se dissolvem uma na outra, criando um campo de forças onde cada gesto tem um eco moral e psicológico.

Como diria Blanchot, toda obra genuína exige esse trânsito entre o lúcido e o indizível, entre o comentário e o delírio, por isso esse breve ensaio vai flutuar da análise à poesia sem aviso prévio, não creio que possa falar de uma obra de arte de outro modo. E é bom que seja assim.

Como sempre, o simbolismo empregado nas obras audiovisuais são a chave de interpretação do todo por meio de suas partes: os símbolos fecundam nossa imaginação, ainda que não os interpretemos de forma consciente. Bem, aqui temos três personagens mostrados de forma visceral: todos estão absolutamente destruídos. Mas estamos apenas no terceiro episódio, enquanto escrevo, e o que virá adiante? Superação e queda? A psicanálise diria que, quando um personagem aparece quebrado logo no início, a narrativa o conduz não rumo à cura, mas ao reconhecimento, aquilo que Lacan (acho) chamaria de “encontro com o real”, o ponto duro onde nenhuma fantasia salva.

De todo modo, como dizia, todos estão destroçados. O que não é surpresa a partir do próprio nome. Mas somos apresentados a diversas formas dessa síndrome de exaustão que deixa nossos personagens à beira do completo colapso. Exaustão não só como falência emocional, mas como esvaziamento do desejo, e aqui há ecos de Kierkegaard: “o desespero é a doença do eu” e não apenas doença, mas "doença até a morte".

Jira, o personagem de Gun Attaphan, é um artista fracassado. Não só não consegue trabalho para pagara as dívidas crescentes como se encontra estagnado em sua própria obra, sua inspiração se foi. Ele lutou, e muito, mas continua pedindo dinheiro emprestado, pulando de bico em bico e ainda assim não consegue sair de uma linha abaixo do medíocre, por mais que se esforce. Não posso deixar tecer os elogios ao Gun que sempre entrega personagens incríveis com grande densidade emocional. Jira encarna o arquétipo do criador ferido, um Orfeu sem lira e sem Eurídice, preso naquilo que Freud chamaria de “inibição da função”. Sem criação, ele perde não só função, mas identidade. Não consegue nem mesmo interpretar num comercial qualquer. 

Dew, na ordem de apresentação na série, me deixou completamente chocado desde a primeira cena como Pheem. Claramente um homem em seu limite, incapaz de dar os passos necessários para sair de sua situação, mas prestes a explodir. Ele chega, se senta junto de Jira e, com um sorriso algo forçado, quase desesperado, inicia um diálogo com claras conotações de duplo sentido. Seu tom de voz, os pequenos trejeitos com as mãos, a forma de beber, o arrumar os óculos, o próprio sorriso: tudo aponta para um homem que mostra apenas uma pequeníssima parte de si. Uma pequena bola de luz flutuando num oceano de escuridão, com toda a violência que essa comparação implica. Ele será certamente o personagem a colapsar. É o tipo de personagem que me lembra o Raskólnikov antes do crime: tensão acumulada, um coração que ainda não sabe que já quebrou, mas que já se encontra nos umbrais de uma manão escura.

Enquanto Pheem tenta equilibrar a carreira e uma amizade aos frangalhos, Koh é o homem que criou tantas proteções ao seu redor que pode se dar a liberdade de ser quem é e agir como quer. Mesmo sendo bem-sucedido, aplicando técnicas lógicas de mercado às custas de um peso maior em cima de seu amigo e funcionários, ele quase não sai de seu refúgio pessoal. O personagem de Off não usa nada feito sob medida, comprando as coisas mais sem graça: a originalidade, o coração, o afeto, lhe tomaram tudo. Ele não dorme, não encontra paz e não tem força para mostrar o contrário. Num restaurante de luxo onde todos usam terno de alfaiataria, ele usa uma camiseta surrada de banda pop-rock. Em casa, anda de cueca ou simplesmente nu, ou enrolado num roupão. Abusa dos remédios para dormir e do álcool, aliás garrafas, copos e remédios se encontram jogados por toda parte. Usa os outros para fazer e falar. 

A relação entre esses três, para além de uma bomba relógio, mostra a ambiguidade do coração de cada um, revelando nuances que não esperavam. Há também muitos elementos visuais à disposição, mas talvez eu deve rever anotando para conseguir descrever todos. Em especial notei a óbvia placa de "cuidado, piso molhado" que é tirada da frente de Jira quando ele decide voltar a trabalhar para Koh, mesmo desprezando-o. Jira vai tirar proveito da inspiração que aquele homem lhe dá, Koh vai descobrir no jovem artista algo que o faz sentir vivo depois de muito tempo, no sentido terno do termo, afinal ele conseguiu dormir em cima das roupas não porque elas lhe lembravam a infância, mas porque uma presença afetiva ao lado das roupas lhe lembravam a infância. Quando ele percebe que não dorme tão bem sem a presença do outro, toma consciência do ponto que o fere, que escapa ao discurso e atinge direto a memória afetiva.

A tensão sexual dos três também é óbvia, e nenhum deles faz questão de disfarçar. Aqui, o eros é ferida, não força vital, é o eros de Bataille, o eros que sempre beira o sacrifício, eros envolto em luto e melancolia. Pheem assusta ao revelar que se apegou tanto a Jira que deseja que ele fique ainda pior para que volte para ele. Destroçado, ele se faz uma companhia agradavelmente necessária para pessoas exaustas, pois parece ter relacionamentos casuais recorrentes, a fim de barganhar seu afeto. Fazer com quem Jira o queira o coloca numa posição que preenche o vazio em que ele se afundou ao destruir sua carreira em nome de uma amizade com Koh que também se deteriorou. Koh sabe que Jira olha para ele de modo sexual, Jira assume ficar excitado, com os sentidos artístico e literal do termo confluindo, mas não consegue reagir. 

Por isso, se existe um pensador capaz de iluminar o tipo de relação que se desenha entre os três protagonistas, esse pensador é Bataille, talvez o único que colocou eros, morte e ruptura interior como partes inseparáveis do mesmo gesto humano. Em Bataille, o erotismo nunca é apenas sexual; é sempre um movimento de atravessamento, um impulso que faz o sujeito perder algo de si para entrar em contato com o outro. É uma ferida aberta que pede outra ferida. É sempre excesso, risco, desordem. O eros ali não aparece como romance, nem como desejo puro, mas como busca desesperada por dissolução, como se cada um deles precisasse abandonar uma parte de si para suportar a própria existência. 

E é aqui que entra o luto, outro pilar batailliano. Cada um desses personagens está em luto por algo que não sabe nomear: Jira pelo artista que não conseguiu ser. Pheem pelo homem que destruiu tentando salvar o amigo. Koh pela versão de si que um dia ainda acreditou por conta do afeto de seus pais para com os outros e que foi a causa da falência e destruição deles.

Eles não apenas choram seus mortos. Eles os carregam seus dentro do corpo, como um peso constante. E quando esses mortos internos encontram o eros que circula entre eles, o resultado é o que Freud chamaria de melancolia, mas o que Bataille nomearia como uma forma de sacralidade profana: a sensação de que só existe verdade quando algo dentro de nós se rompe.

A melancolia aqui não é contemplativa; é febril, inquieta, lascada. É a melancolia de quem se deseja e, ao se desejar, se ameaça. A tríade toda se move nesse território: Eros tenta costurar o que o luto rasgou. O luto aprofunda o buraco onde o eros tenta se enfiar. A melancolia é o estado intermediário, o ponto de partida. 

Ao passo que Koh devolve a inspiração para Jira, o ambiente tóxico, melancólico e depressivo, achatado, cinza e com cheiro de whisky e carvalho envelhecido do apartamento do milionário é opressivo demais, e ele encontra nos olhares provocantes de Pheem um lugar para usar a alegria que lhe é concedida ao ver retornar sua capacidade de produzir arte. É como se ele se recarregasse em um para aproveitar com outro. É com Pheem que ele ousa brincar de jogar vinho na camisa para criar uma obra espontânea, é com ele que canta e grita e sorri, é com ele que aceita ir para a cama. A cena em que Gun e Dew estão no sofá carrega o peso que será o mote principal, embora não fisicamente presente, as ligações de Off interrompendo os beijos e toques dos dois mostra o dilema: Jira não pode perder sua fonte de inspiração. Pheem não pode perder aquele que o faz ter vontade de dar um passo a mais. Koh não pode perder essa sensação tão estranha, mas ao mesmo tempo, tão familiar. 

É por isso que essa tríade não é romântica e não é trágica apenas, ela é transgressiva. Eles não se encontram para curar. Eles se encontram para se expor, para violar a superfície dura da própria solidão e descobrir, no instante do contato, que eros e luto são duas faces do mesmo movimento de perda. A melancolia é o preço, e a revelação. No fim, o que liga esses três não é o desejo, nem a dor, nem a dependência, mas a experiência quase sagrada e ao mesmo tempo dolorosamente mortal de encostar a própria ruína na ruína do outro, e sentir, por um instante, que esse toque os mantém vivos.

Essa relação coloca em evidência, pelo aumento e cessar do som, seja da música ou do trânsito, em cena várias vezes, de modo a mostrar a linha tênue que agora os separa do que eles querem, daquilo que eles precisam. A  literatura está cheia de “triângulos” que não são exatamente amorosos, mas forças humanas que se chocam, como placas tectônicas afetivas, morais ou espirituais. E ninguém fez isso com mais brutalidade lúcida do que Dostoiévski e, por isso, acho que vale a pena aprofundar um pouco mais nisso. 

Para esse gigante russo, mestre do moralismo (no sentido filosófico do termo), sempre que três figuras se cruzam, não se trata de um triângulo comum. É um campo de batalha espiritual, um encontro de mundos interiores que não se encaixam, mas se precisam. Temos Raskólnikov, Sônia e Porfíri em Crime e Castigo. Em O Idiota acompanhamos Íppolit, Míchkin e Rogójin e os Irmãos Karamázov, Aliocha, Ivan  e Dmitri. Cada trio é composto por aquele que busca redenção, o que está à beira da destruição e o que tenta mediar, compreender ou sobreviver ao choque entre os dois. Eles não se completam: eles se fraturam mutuamente. Um vive a partir do buraco do outro, um deseja o que o outro teme, um tenta salvar aquilo que o outro é incapaz de conceder. Isso é o que captei, de algum modo, em Burnout Syndrome.

Quando três figuras se colocam no mesmo espaço, existencialmente falando, algo maior do que elas começa a se mover. Não é só relação: é fricção. Não é só narrativa: é colisão de estruturas internas.  Pheem é o desejo de ser visto, no sentido de não decepcionar os amigos e ajudar desconhecidos que encontra no bar. Jira é o desejo de criar sentido. Koh é o desejo de controlar o caos. Os três desejos coexistem em qualquer pessoa, mas, separados em personagens, tornam-se forças vivas, independentes, famintas. E é justamente por estarem divididas dessa forma que elas entram em conflito. Cada uma busca aquilo que as outras duas ameaçam. Cada uma revela, sem querer, o ponto de ruptura das outras.

E aqui entra a tensão central: Esses três homens não se relacionam apesar de suas feridas, eles se relacionam por causa delas. Embora Koh afirme não sentir nada por Jira, é exatamente o que ele sente que o faz se aproximar, mesmo quando seu comportamento corriqueiro o diz para fazer o contrário.

Isso que a literatura sempre soube: quando três personagens se encontram num ponto de exaustão, o que se cria não é um triângulo amoroso, mas uma espécie de organismo psíquico coletivo, onde cada parte depende da dor das outras para permanecer de pé. Em Dostoiévski, isso aparece em todas as grandes tríades, o que busca redenção, o que está à beira da destruição, o que tenta mediar ou manipular o choque , e o efeito é sempre o mesmo: ninguém sai ileso.

Com Pheem, Jira e Koh, vê-se claramente essa relacão emocional devastadora. Pheem precisa do desespero de Jira para preencher seu próprio vazio. Jira precisa da dureza de Koh para reacender a fagulha criadora que perdeu. Koh precisa da vitalidade de Jira e da amizade competitiva com Pheem para não desmoronar por completo. Cada um se alimenta da fragilidade do outro, não por maldade, mas porque é ali que encontra a peça que lhe falta.

É o que Freud chamaria de circuito de desejo. Lacan chamaria de dependência ao olhar do Outro, e que Dostoiévski chamaria simplesmente de destino.

E é por isso que tudo aqui se dá como tragédia, não no sentido de algo “ruim”, mas no sentido grego, estrutural, inevitável: quando três forças incompatíveis se atraem, o resultado não pode ser harmonia. Só pode ser tensão. O encontro dos três é o encontro de três modos de existir que se precisam e se devoram, três necessidades que não se completam, mas se ferem. Cada aproximação é um risco e cada toque é um corte. 

Assim, talvez a melhor imagem não seja a de um triângulo, mas de uma arena. O campo minado onde o humano, dividido em três, tenta sobreviver ao choque de si mesmo.

É um triângulo que também lembra Marcel Proust mais do que qualquer romance contemporâneo: ninguém deseja o outro, mas sim o que o outro desperta, o desejo se torna reflexo, eco, espelho quebrado. As longas descrições de Proust que são como a composição psicológica dos seus personagens se mostram aqui nas complexas construções visuais: o apartamento destruído, a obra de arte em cores revividas, os trejeitos e olhares. Se em Swan, Proust usa as longas descrições aparentemente banais da paisagem, de dias claros ou chuvosos, na construção da personalidade e das memórias do personagem, aqui nós vemos essa relação na expressão visual deles. Pheem é elegante, social, sedutor mas sem ser indelicado, revelando em pequenos pontos o seu interior. Koh já desistiu, não se veste em casa, casa esta que está sempre uma bagunça mesmo sendo luxuosa, e Jira muda a forma de se vestir conforme sua situação melhora, não no sentido de usar roupas melhores, mas por perceber que reencontrou inspiração e trocar a aparência cansada e opaca pelo casaco cor de rosa.

E talvez seja justamente aí, nesse ponto em que nada se resolve e tudo permanece suspenso, que a história, a arte, me captura de vez, mais uma vez. Os três seguem ali, rondando abismos, presas, e eu, seguindo junto, sem respostas, sem garantias, caminhando entre ruínas que ainda não sei se serão reconstruídas. Há histórias que não avançam em linha reta, mas se aprofundam, como areias do tempo que escondem séculos embaixo de si. E enquanto cada um deles tenta sobreviver ao próprio cansaço, sinto que o que virá não será continuação, mas queda ou voo, ou aquele território estranho entre os dois, onde só a boa arte nos permite permanecer sem desespero, ou que nos conduz diretamente a ele.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Pequenos infernos de um dia qualquer

 "O que resta de nós quando tudo já ardeu?" (Emil Cioran)

Hoje foi um dia daqueles: acordei de péssimo humor e nada mudou isso. Às vezes o mundo desperta antes de nós e já nos espera com os dentes à mostra. Quis ficar longe de tudo e todos durante o dia, e o fiz tanto quanto possível. Era como se qualquer presença fosse uma agressão, como se o simples ato de existir ao lado de alguém custasse energia demais. O calor insuportável parece que finalmente chegou, e não conseguia usar o difusor de óleos essenciais e o ventilador ao mesmo tempo. O ar parado parecia zombar de mim, pesado, quase como se colocasse a mão pesada sobre mim. O barulho no quarto ao lado era infernal, aquela peste da minha irmã insiste assistir como se todo o quarteirão estivesse interessado nos programas de fofoca que exaltam os bandidos que ela tanto gosta. Nada pior do que o gosto alheio quando se está à beira do colapso. Deve ser minha cruz morar com uma pessoa com um caráter tão nojento.

Esse desconforto durou o dia todo, e eu dormi quase o dia todo, dopado, porque simplesmente não suportava abrir os olhos e sentir aquele sol maldito queimando minha pele, ou o barulho, ou a constatação de que não temos dinheiro para ar-condicionado, ou ainda sair e ver a bagunça que há em todo lugar. A bagunça externa sempre encontra um jeito de cutucar a interna, e então as duas se alimentam mutuamente. Essa maldita bagunça! E ainda assim, quando reclamo, me pedem paciência, as coisas vão melhorar, é o que dizem. É curioso como as pessoas oferecem esperança como quem oferece água a quem está se afogando. Nada vai melhorar. Eu sei disso. Todos sabem, mas eles preferem se agarrar a essa mentira para não caírem no desespero da verdade, o mesmo em que me encontro. É cansativo ser o único a admitir o que todos sentem e ninguém ousa dizer.

Acho que perdi minha capacidade de reclamar por páginas e páginas, não tenho conseguido escrever mais como antes. É como se a língua interna, aquela que só se move quando ninguém vê, também tivesse desistido. Já tenho sono. Tenho sentido vontade fumar também. O cigarro, às vezes, parece mais uma pausa do mundo do que um vício. Queria assistir, coloquei uma série, mudei para outra, por fim desliguei tudo. Nenhuma me convenceu, nem a beleza do Bank Nuttawat, um dos meus favoritos, em Destiny Seeker, e nem a fofura do romance de Cherry Blossoms After Winter. Quando nem nossos refúgios preferidos funcionam, é porque alguma coisa importante se deslocou. Espero conseguir dormir, já sinto meu pescoço grudento de suor. Droga. O que há de bom em tudo isso?

As cidades de todo o estado estão em alerta devido à passagem de um ciclone que vai atingir toda a região e uma parte do sudeste. E já choveu a noite toda, numa mistura de umidade com calor. Desconfortável. O clima parece combinar com o que sinto: pesado, carregado, sem direção.

Quando olho pela janela, vejo que, ano após ano, as casas estão cada vez menos enfeitadas para o Natal. A ausência das luzes dói mais do que a presença delas um dia iluminou. Como geralmente é celebrado em família, é só mais uma vítima do desgaste da relação através do tempo. Enfim, não quero escrever um ensaio sobre como, com o passar dos anos, as festas em família se tornam recordação daqueles que já se foram e passam a ser insuportáveis. Mas é difícil não notar que o tempo rói tudo — até as tradições que deveriam nos manter de pé.

Eu, por outro lado, prefiro me concentrar na parte religiosa, fico feliz com a bela liturgia de Natal depois da espera do Advento, mas se as pessoas lamentam os entes que se foram, eu lamento como celebramos. A forma diz tanto quanto a fé, e quando ela se deteriora, a alma sente o golpe. No último domingo, véspera da solenidade da Imaculada Conceição, eu fiz o que pude para sair da cama, contra toda vontade do meu corpo e conseguir ir à Missa. Às vezes, a devoção é sustentada por pura teimosia — e ainda assim vale a pena. O desmantelo foi tamanho, que nenhum grupo parecia se entender. A liturgia foi definida em cima da hora, as músicas eram do tempo comum (nem mesmo do Advento). Nada mais triste do que uma festa espiritual desmontada, tropeçando em si mesma. Voltei para casa triste, me perguntando se devia ter me esforçado tanto assim. E essa pergunta pesa mais quando já se chega cansado de si.

Esses filhos da puta

os mortos vêm correndo de lado segurando anúncios de pasta de dente, os mortos ficam bêbados na véspera
de Ano Novo satisfeitos no Natal 

gratos no Dia de Ação de Graças entediados no 4 de Julho vadiando no Dia do Trabalho confusos na Páscoa 
sombrios em enterros fazendo palhaçadas em hospitais 
nervosos no nascimento; 

os mortos compram meias e calções e cintos e tapetes e vasos e mesinhas de centro, os mortos dançam com os mortos os mortos dormem com os mortos 
os mortos comem com os mortos.

os mortos ficam famintos contemplando cabeças de porcos. os mortos ficam ricos. os mortos ficam mais mortos. 

esses filhos da puta. 

este cemitério acima do solo. Uma lápide para a bagunça, eu digo: humanidade, você entendeu tudo errado desde o começo.


(Charles Bukowski)

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Anatomia do desespero

Sonata para piano N° 23, Op. 57 em Fm - "Appasionatta" de Beethoven 

“Tudo em mim é uma ferida viva.”
(Fernando Pessoa)

Há obras que possuem uma capacidade maior do que nos tocar o sentido: elas verdadeiramente atravessam nosso ser. A Appassionata é uma delas. Beethoven não a compôs como quem escreve música, mas como quem rasga a escuridão à procura de uma forma de existir. O que se ouve não é apenas o temperamento de um homem em confronto com o destino, é a própria estrutura interna da luta humana, exposta sem cortes, sem misericórdia, sem explicações.

O primeiro movimento emerge como quem abre uma porta proibida. Não é uma introdução, mas uma descida: acordes abafados, subterrâneos, insinuam um mundo que respira antes de ruir. A tensão cresce como se tivesse pulsação própria, uma criatura que se forma no escuro. E quando finalmente se ergue, já não é música: é uma força. Beethoven trabalha a matéria sonora como quem golpeia metal incandescente — fragmenta motivos, os distorce, os ergue ao limite da ruptura. O movimento inteiro parece duvidar de si, como se cada frase fosse empurrada pela certeza de que não há escolha senão avançar.

Sempre achei um ato de subserviência intelectual o fascínio, proporcional ao desinteresse, que as pessoas têm pela música clássica, mas especialmente pelo piano. É comum que, ao verem de perto um longo piano de cauda, preto e brilhante com detalhes dourados, se encantam com sua beleza e dizem "eu acho piano uma coisa linda" com afetação. Mas, ao se depararem com uma música que não seja adaptação de algo do repertório pop, já se afastam aterrorizadas, pois, para elas, a música clássica é mais do que chata, é sonolenta, entediante.

Essa peça é só uma, dentre tantas outras, que mostram o quanto esse julgamento é absurdamente errado, expediente de alguém que se deixa levar pelo preconceito contra todo e qualquer produto de verdadeira intelectualidade, ou da contaminação profunda pelos estímulos contínuos da nossa arte contemporânea. Assim como fazem com a própria vida intelectual, apegando-se aos símbolos e desprezando o conhecimento que ele evoca, apegam-se a beleza do instrumento enquanto desprezam os tesouros que para ele foram criados. Beethoven não faz o pianista tocar uma instrumento, o faz arremessar um martelo sobre ele: é visceral. 

Me recordo da primeira vez que ouvi essa peça. Esperando aquela cadência romântica, doce ou melancólica, algo que encontraria mais tarde em um Debussy ou Chopin, mas encontrei uma verdadeira tempestade.

Há explosões, atropelos. Linhas melódicas brutalmente interrompidas por uma tensão que vai costurando por entre as variações do tema. É uma corrida em desespero, os pés sangrentos arrastados enquanto o vendaval destrói tudo por onde passa.

Ao atingir o segundo movimento, muitos esperam repouso. Seria natural que, depois da tormenta, viesse alguma espécie de serenidade. Mas Beethoven oferece outra coisa: um lamento contido, quase religioso, que tenta se sustentar sobre a própria fragilidade. O tema simples, quase despojado, parece pedir calma, mas suas variações são fissuras internas, pequenas rachaduras emocionais que revelam o quanto essa calma é uma mentira necessária. Não é uma pausa; é a consciência da própria exaustão.

Aqueles cortes brutais do primeiro movimento aqui deixam escapar fumaça e sangue, e então percebemos que se tratava de um buraco no peito do próprio homem que, agora, deixa fluir numa torrente sua tristeza, a raiva contida, e tantos outros sentimentos mesclados ali. A impressão de estranheza, no entanto, não acabou, Beethovem continua numa linha melódica tensa, desconfortável. Arpejos mostram um pensamento quase alucinado, não seria estranho se realmente o fosse. Repete-se numa busca, num olhar para o céu à espera de algo.

A transição para o terceiro movimento é como a perda súbita de um mundo inteiro. Quando o Allegro surge, ele irrompe como uma língua de fogo. Não deixa espaço para reflexão. Não permite dúvidas. É o triunfo da intensidade sobre qualquer tentativa de contenção. As mãos do pianista se tornam martelos e serpentes, construindo um espaço sonoro onde tudo é velocidade, combustão, desespero. Deslizam numa velocidade vertiginosa, mas ainda assim cada nota tem a sensibilidade de um soco no estômago. A famosa coda final, brutal, precipitada e inevitável, é Beethoven admitindo que não há salvação no controle, mas apenas no enfrentamento.

Ao fim, resta uma sensação estranha: a de que algo dentro de nós foi arrancado. A Appassionata não nos leva para lugar algum. Ela nos despoja. É um ritual de perda, uma explosão que continua a ecoar no corpo depois que o último acorde se desfaz no ar. Tudo aquilo que se esvaiu nos rasgos anteriores agora é iluminado, mas não de uma esperança bela e gloriosa, como novamente poderíamos esperar, mas apenas uma luz que evidencia ainda mais o que há exposto: um coração.

E talvez seja por isso que ela permanece tão viva. Porque existe uma verdade incômoda ali: no turbilhão que nos suspende entre o impulso de resistir e a vontade de desistir, há uma centelha, algo que brilha e fere, que ilumina e esvazia. Não responde à escuridão, a atravessa. E no rastro da sua passagem, descobrimos que também somos feitos desse mesmo fogo que consome e ilumina.

Entre os golpes e o silêncio, Beethoven não narra uma vida: ele a despedaça.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Crônica de um pária atraído por idiotas bonitos

É provável que ele nem tenha percebido meus olhares. Gente como eu não costuma acender radar nenhum, sei bem disso, mas costumo me lembrar diariamente. Fiquei ali, firme, acompanhando cada movimento, como se a presença dele fosse um vício velho e barato. Ele não era exatamente forte, não era desses caras que parecem esculpidos por um artista deprimido. Mas tinha aquele corpo de academia: ajustado, sem sobras. E aquele bumbum grande, projetado, que parecia desafiar a gravidade e a minha paciência.

Eu devia desviar o olhar, mas não desviei. Tem dias que o corpo do outro é a única poesia possível. Desejei por um cigarro naquela hora.

E o idiota nem vira o rosto. Caminha como se tivesse sido treinado pra ignorar o mundo inteiro, e talvez tenha sido mesmo. Alguns caras nascem com a certeza de que o universo tá no bolso deles, que qualquer olhar é aplauso, qualquer desejo é elogio. Ele passa, e aquele corpo, especialmente aquele rabo, insiste em existir na minha frente, me lembrando do quanto desejo ainda é uma coisa que me escapa pelos dedos. E é isso que irrita: como pode alguém provocar tanto sem sequer tentar? Como pode existir tão distante e tão perto?

A verdade é que caras assim brotam em todo canto. Cheios de mensagem com propostas indecentes, cheios de ego, cheios de nada. Sempre bonitos demais pra desperdiçar tempo com alguém como eu. Eles não enxergam as pessoas, só refletem o próprio brilho, embora esse nem pareça ser assim tão narcisista, essa reclamação é só um pouco de despeito meu. Talvez transem muito, ou talvez não. Existem sempre esses dois tipos: o pavão e o idiota.  

Talvez eu realmente seja um pária, como pensei. Mas, às vezes, fico com a sensação de que o mundo inteiro é feito para os outros, nunca para mim. Eles vivem, sorriem, batem uma, se escolhem entre várias opções como carne numa vitrine. Eu observo. Sempre observo. Como se minha vida tivesse sido escrita para ser segundo plano.

Eu existo assim, o sujeito que olha, deseja e pensa sacanagem, e sabe que faria aquele desgraçado perder o rumo se ele encostasse um dedo em mim, ou se eu colocasse as mãos naquela bunda maravilhosa. Imagino se seu pau também é gostoso, com a cabeça rosada e babando de desejo de meter em alguém como eu.

Tem dias que quero simplesmente sair na rua e foder com o primeiro que encontrar. Mas as experiências aqui não foram muito boas. Me lembro de ter parado num barraco, baixo e úmido, e o cara ainda parou pra receber uns amigos enquanto eu esperava pelado atrás da porta. O pau dele ficou meia-bomba e gozou em poucos minutos. Voltei pra casa sem gozar, na chuva, e pensando em tantas outras coisas que poderia ter feito.

Me senti naquela noite como disse Bukowski: "estranhos no primeiro encontro, estranhos na despedida - um verdadeiro ginásio olímpico de corpos anônimos masturbando-se mutuamente." Mas, o trecho seguinte é de uma verdade cruel: 

"Gente sem moral normalmente se considera mais livre, mas a maioria carece da capacidade de sentir, de amar. Então, viram swingers, num troca-troca incessante de parceiro. Morto fodendo morto. Nenhum senso de humor, nada de brincadeira no jogo deles cadáver fodendo cadáver."

Parece que, às vezes, o sexo é a única coisa capaz de mover um homem. No entanto, acho que o máximo que posso fazer é fumar, tomar um trago de um vinho barato e, se meu pau subir, bater uma antes de dormir.

Fiquei ali pensando nisso, enquanto ele passava feito uma miragem, desses que suam bonito. Ele não sabe, mas bastou um só movimento seu pra acender alguma coisa em mim, uma mistura de fogo e raiva, dessas que deixam o peito apertado. Eu me peguei imaginando como seria se ele percebesse. Se ele travasse no meio do caminho e mirasse de volta com aquele olhar de “eu sei o que você quer”.

Mas ele não sabe.

E se soubesse, talvez não se importasse.

Ou importaria, fingindo que não.

Tem algo de cruel em desejar o inalcançável. E mais cruel ainda é saber que aquilo nem percebe que você existe. Ele caminha com a naturalidade dos que nunca precisaram lutar por atenção — enquanto eu carrego meu corpo como quem arrasta um móvel pesado por um corredor estreito.

No fundo, eu fico ali, encostado no mundo como quem espera um trem que não passa. Observando, desejando, respirando errado. É essa espécie de estupidez que me mantém vivo às vezes: o desejo de alguém que não dá a mínima.

E talvez seja melhor assim.

As tragédias pessoais sempre começam quando alguém olha de volta.

Ecos da condição humana na Ressurreição de Mahler II

 
III. In ruhig fließender Bewegung  - Des Antonius von Padua Fischpredigt
(Scherzo: Movimentado mas fluindo tranquilamente - Sermão de Santo Antônio de Pádua aos Peixes)

Inspirado em “Des Antonius von Padua Fischpredigt”, em português "Sermão de Santo Antônio de Pádua aos Peixes" é uma crítica feroz, mas envolta em ironia. A repetição quase mecânica do motivo do contrafagote, pesada, circular, sem direção, torna-se símbolo de um mundo que gira em torno vazio, da humanidade que repete seus gestos sem aprender nada. É o cotidiano transformado em espiral absurda. 

Mahler parece dizer: se o mundo é isso, então o sentido não virá de fora. É a prisão do Eterno Retorno. A “Ressurreição” de Mahler mescla um pouco da admiração temporária que o compositor teve por Nietzsche e deixa explícita seu fascínio pelas questões da imortalidade cristã, questões essas que o atormentaram de tal modo que vão aparecer novamente, de modo explícito, nas sinfonias 4 e 8, explorando uma mensagem universal de redenção espiritual. 

Os oboés e clarinetes apresentam ornamentos curtos, irônicos, que soam como comentários sarcásticos ao tema. O riso deste movimento é um riso amargo; e a coreografia interna da música é tão absurda quanto a própria vida quando desprovida de transcendência. As cordas reforçam a sensação de movimento incessante, uma vida que se repete sem finalidade. Há algo de louco nesse momento, uma ironia de quem já não crê no mundo, desistência. É a transição, o homem que, em face da morte, já não treme como antes, ri dessa concepção terrena da morte. Se aqui ele supera essa concepção terrena, mais adiante vai se deparar com o Juízo Final, e então encarar suas faltas, mas sem essa ideia puramente material da vida e da morte.

Tudo isso culmina em um clímax estrondoso que interrompe abruptamente todo o drama precedente. (Mahler descreveu esse momento como um “grito de morte”). A ironia quase vira raiva, o surto breve dos metais, que se desfaz imediatamente, como se a orquestra tivesse “lembrado” que é inútil protestar. À medida que esse grito de dor se dissipa, um súbito e inesperado vislumbre de luz solar surge, prenunciando os momentos finais transcendentais da Sinfonia. 

O movimento termina quase exatamente como começa; é musicalmente uma parábola sobre o vazio existencial do mundo moderno.

IV. Urlicht. Sehr feierlich, aber schlicht 
(Calmo. Muito solene, porém singelo)

É nesse ponto que, de repente, o sofrimento deixa de ser abstrato e ganha voz. Ela surge solitária, um contralto sombrio e velado, imbuído de tragédia e lamento humanos. De repente nos encontramos no mundo remoto e etéreo, uma luz mínima, ancestral, que fala com a timidez de quem não sabe se merece existir. Muito discreta, mas de forma belíssima: o clarinete muitas vezes “responde” à voz com um timbre mais terreno, a fragilidade humana conversando com a aspiração espiritual.

“O homem jaz na maior desgraça…”

A voz é de uma criança que envelheceu cedo demais. Não é uma fé triunfante; é uma fé ferida, cansada, que tenta se reerguer com o pouco que sobrou.

“Sou de Deus e quero voltar para Deus.”

É a primeira vez, em toda a sinfonia, que alguém afirma algo que não é ironia, luta ou memória quebrada. Mas ainda é uma afirmação frágil, quase um sussurro. A pequena luz que Deus concede não é uma visão beatífica: é o minúsculo ponto de resistência que impede a alma de se desfazer completamente. Nesse movimento ocorre uma das passagens mais secretamente belas de toda a sinfonia: o breve diálogo entre a mezzo-soprano e um violino solo, que Mahler introduz de modo quase furtivo, como se quisesse que apenas almas muito atentas o percebessem.

O violino emerge da massa de cordas, não é anunciado: surge como uma linha estreita, quase transparente, uma melodia doce. O restante das cordas criam um pano sonoro acinzentado, sobre esse véu que o violino aparece como um fio de luz. 

A mezzo-soprano canta uma linha quase falada e sua entrada da voz nesse ponto é íntima, tímida, de gravidade emocional. O texto fala de um encontro com um anjo que a repudia, um símbolo do desamparo espiritual.

O violino solo executa um gesto de elevação. A voz humana, ao contrário, move-se em intervalos curtos e contidos, melodias modestas, vulneráveis. O contraste cria uma dialética entre:

o impulso de ascender,
e a incapacidade humana de fazê-lo.

Mahler constrói, em menos de 30 segundos, uma imagem metafísica completa: o violino é o ideal, a pureza, a linha que aponta para cima. A voz é a criatura ferida, que arrasta consigo o peso da terra e a sensação de não ser digna dessa luz. O contraste entre os dois é o drama humano da salvação: uma alma que se dirige ao divino, mas encontra a porta fechada, e então canta, com humildade, sua súplica.

Por que esse momento é tão especial para mim? Porque não há ornamento, nem teatralidade. Mahler elimina tudo o que é supérfluo e deixa apenas uma linha de violino que sobe, uma voz que hesita,

e uma tensão espiritual feita de silêncio.

É um dos instantes mais discretos e mais profundos, e prenuncia, com delicadeza, a colisão cósmica do quinto movimento. Já este movimento termina como começou: sem garantias, sem promessas, apenas a persistência da luz.

V. Im Tempo des Scherzos. Aufersteh'n'
(Em tempo de Scherzo, "Ressurreição")

O quinto movimento é o desmoronamento do mundo. Sem pausa, o movimento final começa com outro grito violento de angústia. Mahler descreveu este dramático movimento conclusivo como “um colossal afresco musical do Dia do Juízo Final.”

Nessa abertura o compositor coloca trompetes fora do palco, ao lado ou atrás da plateia, representando como um grito ecoando pelo vazio.

Não é que Mahler descreva o Juízo Final, ele o encena como colapso interno. O início é uma explosão tectônica, como se as placas da alma se chocassem com os tímpanos, bumbos e pratos em força brutal. A orquestra inteira ruge como um universo que não consegue mais sustentar sua própria gravidade.

E então, algo mais terrível: o silêncio.

Não um silêncio pacífico, mas um silêncio que pesa como cinzas. É o instante em que a alma percebe que o cosmos não responderá.

É nesse vazio que o coro. O hino redentor começa como um murmúrio suave:

“Ressuscitar, sim, tu ressuscitarás, meu pó…”

O choque é espiritual: a primeira voz humana coletiva da sinfonia surge não como triunfo, mas como um sussurro que tenta reorganizar o mundo. Mahler pega o hino do poeta alemão Klopstock, teológico, quase litúrgico, e o prolonga com seu próprio texto, profundamente humano.

“Tu não nasceste em vão. (...) Nada em ti se perderá.”

É aqui que Mahler coloca sua tese pessoal: não é a eternidade que salva a vida, mas a reafirmação de que o vivido tem peso, tem temperatura, tem permanência. A ressurreição, para Mahler, não é apenas o triunfo sobre a morte, é o triunfo sobre o absurdo da existência.

A música cresce como um organismo vivo, respirando luz pela primeira vez. Os metais anunciam não vitória, mas abertura. As cordas não celebram, mas se expandem. O coro e as solistas se desdobram como quem tenta reaprender a linguagem da esperança.

Quando o texto final chega “com asas que conquistei para mim… Morrerei para viver!” O que se ouve não é heroísmo, mas libertação: a aceitação de que viver é cair, e que morrer é finalmente atravessar o limite do visível.

Mahler fecha a sinfonia com a luminosidade de quem não venceu a dor, mas a transfigurou. Os momentos transcendentais finais da Sinfonia são ampliados pela adição do órgão. Irrompendo com o estrondo dos tambores e o repicar dos sinos, a resolução final proporciona um momento visceral de transcendência. A música não grita “fui salvo”; ela diz, com a serenidade de quem finalmente compreendeu:

“Agora sei que a dor não foi inútil.”

É o caminho de uma alma que, depois de se perder inteira, encontra no próprio despedaçamento a força para acender, não como chama, mas como clarão final.

A luz que encerra a sinfonia não nega a noite:
é a própria noite que, enfim, é iluminada por dentro.

sábado, 6 de dezembro de 2025

Ecos da condição humana na Ressurreição de Mahler I

Sinfonia N°  2 em Cm - "Ressurreição", de Gustav Mahler

A Ressurreição de Mahler é, antes de tudo, uma anatomia do desamparo. Cada movimento parece tentar sustentar algo, uma memória, a fé e seus abalos, a incessante busca de sentido. Até que a própria estrutura cede sob o peso do mundo. O que resta é o que Mahler sempre buscou: uma fração da alma que resiste mesmo quando tudo mais parece se desfazer.

I. Allegro maestoso (Totenfeier)

Com a explosão tensa das gordas somos levados, de sobressalto, a um surto interno: uma alma que percebe que não consegue mais se sustentar dentro de si. A música tem o gesto de um corpo que cai repentinamente, como se a consciência fosse lançada para fora de seu eixo. É um susto, uma abertura pessimista. As cordas, especialmente violoncelos e contrabaixos, tão tensas que parecem feridas, traçam o início da vida e da morte no mesmo gesto. Eles abrem com uma figura violenta e abrupta, quase uma queda física. É uma das mais dramáticas aberturas do repertório sinfônico, e anuncia que toda a obra se moverá entre colapso e resistência.

Mahler tem, a meu ver, essa capacidade de ver a alma de modo tão profundo e expressar os seus afetos mais contraditórios em suas notas que sempre me pego imaginando como seria sua mente, em que seu coração se detinha continuamente.

E essa tensão entre queda e negação é o estado espiritual do movimento inteiro: uma alma que luta contra o próprio desaparecimento. Já nos primeiros compassos somos arrebatados: algo brutalmente sério está acontecendo. É a vida, essa sucessão de alegrias fugazes e finais que se anunciam no horizonte, seja o fim do dia ou dessa mesma vida.

Mahler constrói, desmonta, e constrói de novo, como alguém que tenta reerguer uma casa durante um terremoto. Entre uma tragédia e outra, cada silêncio é um abismo. Cada explosão, uma recusa. Passagens delicadas, mas que nunca perdem esse crescente pessimismo, se contrastam. Um brilho cor de rosa, aquele entardecer colorido, uma esperança longínqua que só veremos muito à frente. Para isso, as madeiras agem como um colapso da consciência: o clarinete e o oboé surgem como interrupções, pequenos lampejos mentais que não deixam o tema se estabilizar.  No entanto, agora, tudo que vemos é um corpo que cai na terra, no lamaçal. É o grito da existência quando ela percebe que vai morrer. 

Perdida, entre o desejo e o medo da morte, num tema lírico apresentado pelos violinos e as viola que se prolonga em paisagens, como se, mesmo no chão, o pobre homem avistasse uma flor distante, crescendo em meio ao pântano. Como ela veio parar aqui? Ah, próximo há um campo florido, e o moribundo pensa sentir o perfume dessas flores. O mesmo tema vai aparecer algumas vezes, sendo interrompido e retornando. Os trombones e trompas aparecem não para reforçar o drama, mas para interrompê-lo com blocos harmônicos que parecem perguntas metafísicas. Justamente por isso não poderiam ser colocadas em palavras, senão apenas na música, ensinada pela alma, como dizia Platão. Esses metais são como “paredes sonoras” que colocam freio ao impulso de tensão.

A reação do mentor de Mahler, o maestro Hans von Bülow, quando o compositor tocou a partitura ao piano em 1891, atesta a natureza radical da música. O maestro mais velho tapou os ouvidos e insistiu que a peça era tão incompreensível que fazia Tristão e Isolda, de Wagner, soar como uma sinfonia de Haydn. “Se o que acabei de ouvir ainda é música”, disse ele, “então não entendo mais nada sobre música”.

No fim, temos a transição antes da recapitulação, em que a orquestra inteira parece mergulhar para dentro de si mesma, num tutti que se desfaz subitamente em cordas trêmulas. A alma oscilando na beira do abismo, daí o título "Totenfeier", rito fúnebre. O rito da alma que pende ao fim.

II. Andante moderato (Ländler)

No segundo movimento, Mahler faz algo desconcertante: introduz uma dança. Uma dança depois de algo declaradamente fúnebre. Um Ländler, dança popular com poucos movimentos, suave, pastoral, quase doce, mas que nunca se acomoda por completo. É a memória idealizada da vida simples, não a vida em si. De algo singelo como uma breve troca de olhares, os morangos silvestres num canto escondido do jardim. O tema retorna sempre ligeiramente distorcido, como se o passado não pudesse mais ser reproduzido sem rachaduras. Sempre me pareceu uma valsa, sem realmente o ser. 

Quando ouvi esse movimento pela primeira vez, isolado do restante da peça, para um trabalho escolar, me perguntei por qual razão uma obra chamada "Ressurreição" me soava como uma espécie de dança macabra. Não entendia naquela época que se tratava de uma construção: não pode haver ressurreição sem antes passar pela morte, e a ressurreição aqui é justamente construída lentamente, como um grande dia de tempestade, numa manhã nublada, depois pequenos raios de sol que conseguem transpor aquela muralha de nuvens iluminam as pétalas das flores, depois a chuva brutal a destruir tudo para, finalmente, abrir o sol, lentamente, porém iluminando todo.

Os violinos apresentam o tema doce, quase ingênuo, com vibrato controlado, criando uma cor rósea, mas antiga. Mahler marca explicitamente na partitura: sehr gemächlich (muito tranquilo), para saturar a música com nostalgia. Não são todos os maestros que conseguem conter o ímpeto da orquestra e manter esse sentimento, já o ouvi por vezes acelerado demais, dando a impressão de ansiedade em demasia. De todo modo, ele nos leva a contemplação, como a participação breve, mas simbólica da harpa em pontuações que soam como lampejos de memória idealizada. Talvez seja como um sono da tarde, aquele em que deixamos cair o livro no colo e nos entregamos a uma fantasia entre sonho e realidade.

A seção central mais turbulenta, em que o Ländler quase se desfaz, com pizzicatos secos contrastando com arcos longos, mostra memória que, aos poucos, se torna um fantasma. A ansiedade está presente, mas é etérea. 

É a alma ainda tentando lembrar-se de um lugar onde havia ordem, onde o tempo fluía sem resistências. Mas o mundo já não permite essa inocência. A beleza aqui é sempre ferida, ou pelo menos ameaçada. Os fagotes e o contra-fagote entram discretamente em momentos-chave, lembrando que a doçura tem um fundo de peso, como uma sombra na borda do quadro. Mas, ao menos, há beleza para ser recordada. 

O segundo tema traz oscilações rítmicas mais irregulares, que parecem querer “romper” a ilusão pastoral do primeiro. É a lembrança que começa a rachar. A tensão que as mesmas cordas, outrora sonhadoras, agora ameaçam e criam como uma moldura ao do passado. Mas é tarde demais. O movimento é como olhar uma fotografia antiga enquanto se sabe que nada daquilo volta. Talvez ela esteja em chamas, queimando lentamente enquanto, sentado numa cadeira velha, o homem observa os últimos traços de seu passado se esvair em cinzas e fumaça que some por entre seus dedos.

Daí talvez a grande incompreensão de Mahler. Muitos o julgam difícil, embora seja um dos compositores mais executados, mas suas peças são longas, cheias de detalhes que passam despercebidos, e nuances: cada compasso tem várias camadas de significado, mostrando mais uma vez a complexa profundidade daquela alma. Mahler meu caro, deixaste teu testamento, mas não conseguimos te entender completamente, apenas fechar os olhos e nos deixar levar pela cadência dessa valsa que, com poucos movimentos, nos envolve e nos leva pela mão até partes mais escuras da pequenina vila em que estamos festejando. 

continua

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Dissolução

Já faz algum tempo que não escrevo sobre mim. Há momentos em que até o silêncio se cansa de me ouvir. Queria partir para uma fase menos autorreferencial que, finalmente, condensasse aquilo que venho observando em tantos anos de enriquecimento do imaginário por meio das séries que costumo ver. Consegui até traçar o esboço do que pode vir a ser um estudo sobre a sociologia do entretenimento em alguns países da Ásia, relacionando as características dos povos e suas representações, no sentido reflexivo ou crítico da coisa, ou seja, aquelas que querem mostrar o lado íntimo e verdadeiro e aquelas outras que buscam na arte um meio de alertar para alguns aspectos culturais.

Mas bem, tem uma pequena pilha de livros na minha cama, e não tenho conseguido ler. Na verdade, não tenho conseguido escrever direito também, e isso tem mexido um pouco comigo, com aquela sensação de inutilidade, que só piora quando vejo o quadro geral da minha vida e percebo que, mesmo afastado do emprego desde fevereiro, ainda não me sinto pronto para conseguir outro trabalho, o que vai pesar ainda mais o orçamento de casa, que já não anda muito bom. Tudo o que sou escorre pelas frestas de um mundo que já não me suporta. Durante a agitação do dia, penso em aproveitar o silêncio da noite. Quando chega a noite, não encontro sentido em permanecer acordado. E o ciclo se repete indefinidamente.

Ando caminhando com um zumbi de um cômodo para outro, e tenho sido de bem pouca ajuda. Não é o abismo que me encara, é o eco vazio do que eu já fui. Ando meio deprimido por isso e só piora quando tento ajudar mais e não consigo. Acho que esse é um dos motivos de não querer falar de mim. Encarar essa realidade de modo cru assim é ainda pior. 

Fui testar o que acabei de dizer. Abri um livro e tentei ler um pouco, chegando ao fim do capítulo sem saber do que se tratava. É bem como eu temia. E agora o que eu faço com esse tanto de livros de filosofia, teologia, acumulados? É ruim me sentir inútil. Até as aulas de antes agora são apenas vozes que me fazem dormir e em nada se retêm. Dizem que é efeito dos meus episódios depressivos e também da medicação. ]

Consigo ouvir música. E, se conseguisse um pouco de silêncio, diria que consigo prestar atenção nelas. Mas, infelizmente, estou rodeado de pessoas que falam alto, crianças chorando, desenho animado tosco em volume alto no quarto ao lado e cães latindo, de modo que, se aumento a música até que consiga ouvir, só vou criar mais barulho e confusão, então nem mesmo as músicas têm sido opção. 

E assim vou permanecendo, imóvel, sem voz, como um caderno que nunca será aberto. O dia segue, mas nada em mim desperta. Sou apenas esta sombra que respira por hábito e que, mesmo respirando, não retorna. No fim, descubro que não é o mundo que se afasta, sou eu quem vai sumindo, pouco a pouco, até restar apenas a poeira de alguém que tentou permanecer desperto e falhou.

E, para além disso, não há muito o que dizer. 

Apenas o vazio que deságua na completa desesperança. 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Afeto e hábito

É uma noite inspiradora para um escritor que passou o dia inteiro buscando o silêncio, não o silêncio exterior, mas aquele raro, quase impossível, que às vezes se esconde nos cantos escuros da alma. Permaneci em casa, escondido do mundo, mas nem assim consegui escapar da tempestade interna que me acompanha quando a ciclagem se aproxima. A chuva fina, persistente, que cai lá fora como um murmúrio interminável, parece apenas reforçar esse contraste: por fora, delicadeza; por dentro, o peso de uma tormenta. Coloquei para tocar uma playlist de Ryuta Muneto, e o casamento foi imediato: os longos respiros das composições se misturavam ao som da chuva, como se cada pausa da música desse espaço para o céu completar a melodia.

Não queria falar sobre mim, mas talvez seja inevitável — um prelúdio necessário para que estas linhas não tomem a forma árida de um estudo sociológico ou de uma filosofia pretensamente sistemática. Há textos que precisam nascer da alma exposta, não do papel ordenado.

Comecei a rever I Saw You In My Dream por causa de um impulso quase intuitivo, um retorno movido por um vazio recente que pedia consolo. Lembrei da delicadeza com que essa série me tocou na primeira vez, da surpresa gentil que senti ao acompanhar a história de Ai e Yu. Talvez tenha encontrado neles um tipo de reflexo, já que no primeiro episódio vemos um cantando dos meninos cantando na igreja e outro tirando fotos, exatamente o que faço. Um fragmento da minha própria vida disperso ali, devolvendo-me à minha sensibilidade em um tempo em que eu mal lembrava de tê-la perdido.

E então, olhando novamente com mais calma, percebi algo que permeia tantas obras tailandesas, mas que nesta se torna ainda mais luminoso: aquele carinho que não precisa ser justificado. Um afeto que não se explica, não se prepara, simplesmente existe. Como um reflexo natural, uma linguagem aprendida antes da linguagem. Sou brasileiro, habituado à lógica do toque que rapidamente se erotiza, ao corpo que se antecipa ao sentimento; mas ali o toque é outra coisa: é humano antes de ser romântico. É a mão que ajeita o cabelo, a gola da camisa, o creme da sobremesa nos lábios. Gestos que antecedem o pensamento, como se o coração agisse primeiro e só depois a consciência corasse de timidez. Há algo profundamente verdadeiro nessa espontaneidade, como se amar fosse antes um hábito de cuidar do que uma declaração.

O amor, discreto e contido, carrega o respeito como sua moldura: o amado se torna quase um objeto de veneração. Os olhares se prolongam; o mundo ao redor desbota; a cena se reduz a dois corpos tentando decifrar o mesmo sentimento nascente. Essa demora do olhar é uma oração silenciosa. O toque, uma espécie de coragem. E juntos constroem um ritmo lento, sensível, onde cada pequena evolução é legítima, conquistada, necessária.

Essa construção se dá no terreno mais humilde e sagrado: o cotidiano. Comer juntos, dividir um prato; cozinhar lado a lado, dividindo o mesmo vapor; estudar até tarde, compartilhando cansaços e pequenas vitórias. Todas essas ações formam o que só posso chamar de liturgia doméstica — um sacramento silencioso onde o afeto vai se tornando presença, e a presença vai lentamente se convertendo em sentimento.

A beleza dessa história está no fato de que Ai e Yu crescem juntos, paralelamente, como duas árvores que se inclinam uma para a outra sem perder a própria raiz. Não é o amor que os molda; é o amadurecimento mútuo que refina o amor. Yu, que carrega a dor aberta do abandono e o peso da responsabilidade; Ai, que guarda seus medos infantis, sua vulnerabilidade exposta. Um vai preenchendo as frestas do outro sem sufocar, sem dominar, apenas acompanhando. O cuidado nasce das necessidades reais e se manifesta nas ações simples: correr até o quarto do outro na queda de energia, oferecer carona, ajudar no trabalho, estar presente quando ninguém mais está. Assim como o alvorecer salpica o céu de estrelas, o amor deles surge devagar, mas com a inevitabilidade de um fenômeno natural.

A natureza, aliás, é quase um terceiro personagem, não por conveniência estética, mas como espelho emocional. O mar é vasto e belo, mas também perigoso quando encarado de perto: a imensidão do sentimento sempre traz algum temor. O céu estrelado guarda momentos que só podem viver na memória e, por isso, tornam-se infinitos. A paisagem não decora: revela. Ela diz o que o coração ainda não sabe pronunciar. O sentimento sempre esteve lá, mas precisava da luz certa para se tornar visível.

Assim, aquilo que antes se expressava no cuidado infantil, a amizade, o apoio, a brincadeira, se transforma, quase sem que se perceba, em cuidado adulto: companhia constante, proteção discreta, compreensão profunda. A forma muda, mas a essência permanece: o carinho continua sendo o primeiro idioma.

Talvez seja isso que me faz voltar a essas histórias: a lembrança de que o amor, quando verdadeiro, não precisa anunciar-se. Ele se insinua. Cresce nos gestos mais simples. Aparece primeiro no que não se diz.

E, como a chuva desta noite, ele cai devagar, mas sem interrupção, até que de repente percebemos que tudo ao redor já está molhado de sentimento.

E talvez seja assim que essas histórias nos tocam: como sombras que deslizam sobre a memória, como chuva que cai sem alarde, como gestos que passam despercebidos até que, de repente, descobrimos que foram eles que nos sustentaram.

No fim, o amor de Ai e Yu me lembra, nessa madrugada, que o coração não desperta com estrondo, mas com constância. É na repetição do cuidado, no silêncio compartilhado, no olhar que demora um instante a mais, que ele encontra a coragem de existir.

E quando finalmente reconhece o próprio sentir, não o faz como revelação grandiosa, mas como quem abre a janela após a tempestade e percebe que o mundo ficou mais úmido, mais fresco, mais vivo.

Há amores que não chegam, eles emergem procurando a luz.

E talvez a maior beleza esteja nisso:

no que nasce devagar, mas permanece.

sábado, 22 de novembro de 2025

Materialismo Angustiado


Fugindo de mim 
cadáver consciente
escapo das Verdades que, pútridas, 
germinam no húmus do peito 
outrora efervescente,
erguendo-se como vermes que se animam.

Rodopiam pétalas mortas, 
levadas por ventos de agonia sobre a carne fria;
e nos silêncios das horas mutiladas
sepultam-se os amores de sangria.

Em verdade, meu tórax 
tumba exausta onde jaz oco 
como um órgão carcomido,
sem fé na vida, sem paixão, sem holocausto,
exaurido do Amor
e, mais ainda, do fingido.

Do amor-postiço, máscara apodrecida;
da hemorragia farsa dos afetos;
da imitação de chama, extinta e fingida, 
que só produz fantasmas incompletos.

Daquele "eu te amo" de saliva breve
que, dito à noite, amanhece esquecido,
como um cadáver morno que se ergue
apenas para morrer
sem ter vivido.

E vão surgindo, lúgubres, indecisas, 
as luzes que incendeiam quem ainda arde;
mas sobre mim só tombam cicatrizes
de astros mortos, dissolvidos em retarde.

Pois já se extinguiu, em meu deserto,
todo brilho, toda centelha, todo lume.
E os outros buscam no rosto descoberto
a claridade que em mim já não assume.

Por aqui, passam-se as horas 
que mastigam dias, devorando sua trilha;
e eu, em escombros, perscruto meus estragos,
sem encontrar, em parte alguma,
um só vestígio
dessa antiga maravilha.