quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Sobre manhãs irremediáveis

Sonata para piano N° 8, Op. 13 em Cm - "Patética" de Beethoven

Alguns dias já amanhecem como dias difíceis. Há manhãs que nos encontram antes mesmo de despertarmos, como se já houvesse um peso nos esperando na borda da cama ou no umbral daquele quarto. É o tipo de manhã que não nasce: apenas se arrasta. É como se a luz do sol, mesmo clara, fosse filtrada por um véu. Não me refiro às cortinas, mas a algo menos tangível, como se, ao me levantar, olhasse pela janela e visse não um dia que começa, mas uma tragédia que se anuncia. Aquele instante em que o corpo já sabe da derrota antes mesmo de o pensamento alcançá-la. E esse pressentimento silencioso é justamente o que a música expõe logo de início: a abertura é um Grave, quase litúrgico, uma Missa de Requiem que, depois, se transforma num Allegro, um contraste, a introdução lenta que cede lugar à pressa, aquele frenesi, aquele sangue fervente.

É o começo do fim. O tipo de fim que não precisa ser grandioso para ser devastador. Aquele fim silencioso, que ninguém vê. Não o fim do mundo ou algo assim, mas quando o coração acelera a tal ponto, quando não se consegue mais conter a ira que tudo se torna escuro, como se aquele véu da manhã cobrisse tudo. O Allegro cai sobre nós como uma verdade que não queríamos saber, mas que insiste em existir. A música traduz isso com seus golpes, suas frases empurradas ao limite do suportável. E então essa fúria se repete, num coração amargo, uma verdade impossível de se esquecer.

E então, quando cessa a corrida, ou a luta, o coração lentamente retorna ao Grave: um fantasma que não deixa a tensão morrer. Ele paira, retorna, e com ele vêm lembranças que preferiríamos não visitar. É como voltar a uma sala onde o ar nunca renovou, tudo ainda cheira ao que se tentou esquecer. É quando tentamos respirar, mas sem consolação. Estou sozinho, os olhos se fecham numa ternura ferida: é aquela melancolia por uma época remota demais para se recordar, mas que se sabe que não era tão dolorida como agora. Nesse ponto, a música fala com uma sinceridade que dói, não porque grita, mas porque suspira.

O homem busca em si uma cura para as feridas da batalha, mas não encontra, elas continuam abertas. Há feridas que não se fecham simplesmente porque desejamos que se fechem. Beethoven as expõe como quem vira uma cicatriz para a luz, não para curá-la, mas para analisar quanto tempo faz que ela ainda está lá,  para entendê-la. A confissão de sua incapacidade se encontra no famoso tema principal do segundo movimento. É uma confissão que se expande aos poucos, a ponto de tomar conta do próprio ser. Cada variação parece apertar um pouco mais o peito, como quem tenta ordenar sentimentos que não se deixam ordenar. Em algum momento ouve-se um canto, frágil, distante.

Esse olhar para dentro de si se transforma num movimento impaciente. A introspecção, ao invés de apaziguar, acende outra inquietação, e outra, e outra. É como se o próprio silêncio tivesse pressa. O mundo continua, ainda que eu não esteja pronto, ainda que corra, tropece e tente escapar de algum modo. A agilidade desse movimento contrasta com algumas passagens que aparecem como sombras, o final é repentino, cruel. Não há volta, nem remendo: a peça termina como certos dias terminam, cortando abruptamente o que não se resolveu. 

É propositalmente inacabado.

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