domingo, 7 de dezembro de 2025

Ecos da condição humana na Ressurreição de Mahler II

 
III. In ruhig fließender Bewegung  - Des Antonius von Padua Fischpredigt
(Scherzo: Movimentado mas fluindo tranquilamente - Sermão de Santo Antônio de Pádua aos Peixes)

Inspirado em “Des Antonius von Padua Fischpredigt”, em português "Sermão de Santo Antônio de Pádua aos Peixes" é uma crítica feroz, mas envolta em ironia. A repetição quase mecânica do motivo do contrafagote, pesada, circular, sem direção, torna-se símbolo de um mundo que gira em torno vazio, da humanidade que repete seus gestos sem aprender nada. É o cotidiano transformado em espiral absurda. 

Mahler parece dizer: se o mundo é isso, então o sentido não virá de fora. É a prisão do Eterno Retorno. A “Ressurreição” de Mahler mescla um pouco da admiração temporária que o compositor teve por Nietzsche e deixa explícita seu fascínio pelas questões da imortalidade cristã, questões essas que o atormentaram de tal modo que vão aparecer novamente, de modo explícito, nas sinfonias 4 e 8, explorando uma mensagem universal de redenção espiritual. 

Os oboés e clarinetes apresentam ornamentos curtos, irônicos, que soam como comentários sarcásticos ao tema. O riso deste movimento é um riso amargo; e a coreografia interna da música é tão absurda quanto a própria vida quando desprovida de transcendência. As cordas reforçam a sensação de movimento incessante, uma vida que se repete sem finalidade. Há algo de louco nesse momento, uma ironia de quem já não crê no mundo, desistência. É a transição, o homem que, em face da morte, já não treme como antes, ri dessa concepção terrena da morte. Se aqui ele supera essa concepção terrena, mais adiante vai se deparar com o Juízo Final, e então encarar suas faltas, mas sem essa ideia puramente material da vida e da morte.

Tudo isso culmina em um clímax estrondoso que interrompe abruptamente todo o drama precedente. (Mahler descreveu esse momento como um “grito de morte”). A ironia quase vira raiva, o surto breve dos metais, que se desfaz imediatamente, como se a orquestra tivesse “lembrado” que é inútil protestar. À medida que esse grito de dor se dissipa, um súbito e inesperado vislumbre de luz solar surge, prenunciando os momentos finais transcendentais da Sinfonia. 

O movimento termina quase exatamente como começa; é musicalmente uma parábola sobre o vazio existencial do mundo moderno.

IV. Urlicht. Sehr feierlich, aber schlicht 
(Calmo. Muito solene, porém singelo)

É nesse ponto que, de repente, o sofrimento deixa de ser abstrato e ganha voz. Ela surge solitária, um contralto sombrio e velado, imbuído de tragédia e lamento humanos. De repente nos encontramos no mundo remoto e etéreo, uma luz mínima, ancestral, que fala com a timidez de quem não sabe se merece existir. Muito discreta, mas de forma belíssima: o clarinete muitas vezes “responde” à voz com um timbre mais terreno, a fragilidade humana conversando com a aspiração espiritual.

“O homem jaz na maior desgraça…”

A voz é de uma criança que envelheceu cedo demais. Não é uma fé triunfante; é uma fé ferida, cansada, que tenta se reerguer com o pouco que sobrou.

“Sou de Deus e quero voltar para Deus.”

É a primeira vez, em toda a sinfonia, que alguém afirma algo que não é ironia, luta ou memória quebrada. Mas ainda é uma afirmação frágil, quase um sussurro. A pequena luz que Deus concede não é uma visão beatífica: é o minúsculo ponto de resistência que impede a alma de se desfazer completamente. Nesse movimento ocorre uma das passagens mais secretamente belas de toda a sinfonia: o breve diálogo entre a mezzo-soprano e um violino solo, que Mahler introduz de modo quase furtivo, como se quisesse que apenas almas muito atentas o percebessem.

O violino emerge da massa de cordas, não é anunciado: surge como uma linha estreita, quase transparente, uma melodia doce. O restante das cordas criam um pano sonoro acinzentado, sobre esse véu que o violino aparece como um fio de luz. 

A mezzo-soprano canta uma linha quase falada e sua entrada da voz nesse ponto é íntima, tímida, de gravidade emocional. O texto fala de um encontro com um anjo que a repudia, um símbolo do desamparo espiritual.

O violino solo executa um gesto de elevação. A voz humana, ao contrário, move-se em intervalos curtos e contidos, melodias modestas, vulneráveis. O contraste cria uma dialética entre:

o impulso de ascender,
e a incapacidade humana de fazê-lo.

Mahler constrói, em menos de 30 segundos, uma imagem metafísica completa: o violino é o ideal, a pureza, a linha que aponta para cima. A voz é a criatura ferida, que arrasta consigo o peso da terra e a sensação de não ser digna dessa luz. O contraste entre os dois é o drama humano da salvação: uma alma que se dirige ao divino, mas encontra a porta fechada, e então canta, com humildade, sua súplica.

Por que esse momento é tão especial para mim? Porque não há ornamento, nem teatralidade. Mahler elimina tudo o que é supérfluo e deixa apenas uma linha de violino que sobe, uma voz que hesita,

e uma tensão espiritual feita de silêncio.

É um dos instantes mais discretos e mais profundos, e prenuncia, com delicadeza, a colisão cósmica do quinto movimento. Já este movimento termina como começou: sem garantias, sem promessas, apenas a persistência da luz.

V. Im Tempo des Scherzos. Aufersteh'n'
(Em tempo de Scherzo, "Ressurreição")

O quinto movimento é o desmoronamento do mundo. Sem pausa, o movimento final começa com outro grito violento de angústia. Mahler descreveu este dramático movimento conclusivo como “um colossal afresco musical do Dia do Juízo Final.”

Nessa abertura o compositor coloca trompetes fora do palco, ao lado ou atrás da plateia, representando como um grito ecoando pelo vazio.

Não é que Mahler descreva o Juízo Final, ele o encena como colapso interno. O início é uma explosão tectônica, como se as placas da alma se chocassem com os tímpanos, bumbos e pratos em força brutal. A orquestra inteira ruge como um universo que não consegue mais sustentar sua própria gravidade.

E então, algo mais terrível: o silêncio.

Não um silêncio pacífico, mas um silêncio que pesa como cinzas. É o instante em que a alma percebe que o cosmos não responderá.

É nesse vazio que o coro. O hino redentor começa como um murmúrio suave:

“Ressuscitar, sim, tu ressuscitarás, meu pó…”

O choque é espiritual: a primeira voz humana coletiva da sinfonia surge não como triunfo, mas como um sussurro que tenta reorganizar o mundo. Mahler pega o hino do poeta alemão Klopstock, teológico, quase litúrgico, e o prolonga com seu próprio texto, profundamente humano.

“Tu não nasceste em vão. (...) Nada em ti se perderá.”

É aqui que Mahler coloca sua tese pessoal: não é a eternidade que salva a vida, mas a reafirmação de que o vivido tem peso, tem temperatura, tem permanência. A ressurreição, para Mahler, não é apenas o triunfo sobre a morte, é o triunfo sobre o absurdo da existência.

A música cresce como um organismo vivo, respirando luz pela primeira vez. Os metais anunciam não vitória, mas abertura. As cordas não celebram, mas se expandem. O coro e as solistas se desdobram como quem tenta reaprender a linguagem da esperança.

Quando o texto final chega “com asas que conquistei para mim… Morrerei para viver!” O que se ouve não é heroísmo, mas libertação: a aceitação de que viver é cair, e que morrer é finalmente atravessar o limite do visível.

Mahler fecha a sinfonia com a luminosidade de quem não venceu a dor, mas a transfigurou. Os momentos transcendentais finais da Sinfonia são ampliados pela adição do órgão. Irrompendo com o estrondo dos tambores e o repicar dos sinos, a resolução final proporciona um momento visceral de transcendência. A música não grita “fui salvo”; ela diz, com a serenidade de quem finalmente compreendeu:

“Agora sei que a dor não foi inútil.”

É o caminho de uma alma que, depois de se perder inteira, encontra no próprio despedaçamento a força para acender, não como chama, mas como clarão final.

A luz que encerra a sinfonia não nega a noite:
é a própria noite que, enfim, é iluminada por dentro.

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