quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Entre escombros: a tragédia do encontro

A arte tem como esse magnetismo capaz de nos fazer conectar com ela para, numa troca, experimentarmos essa identificação. Por vezes ela nos toma pela mão, pois diz ou mostra, aquilo que não conseguimos dizer, mas que sentimos de forma poderosa e até devastadora. Talvez por isso Walter Benjamin insistisse que a obra de arte verdadeira “nos lê” antes mesmo de a lermos; ela se antecipa à nossa consciência e desvela aquilo que mantemos escondido até de nós mesmos.

Burnout Syndrome é uma das grandes apostas da GMM TV para esse ano. Após duas séries medíocres, a galinha dos ovos de ouro da empresa, o ship formado por Off Gun viria com mais uma produção com uma temática madura, como aquelas que consagraram os dois, que acabam de completar 10 anos como parceiros. Theory of Love e Not Me foram, cada uma a seu modo, marcantes na indústria BL a seu modo, mas tinham esse fator em comum: não eram produções simples, isto é, fugiam completamente da abordagem da maioria dos projetos, inclusive da própria empresa, sendo um ponto de virada para experimentações cada vez mais profundas, o que nos traz exatamente a Burnout Syndrome, que além do ship conta com a adição de Dew Jirawat como terceiro elemento. Há algo de Dostoiévski nesse tema do trio, as três personalidades que se chocam, se entrelaçam, se dissolvem uma na outra, criando um campo de forças onde cada gesto tem um eco moral e psicológico.

Como diria Blanchot, toda obra genuína exige esse trânsito entre o lúcido e o indizível, entre o comentário e o delírio, por isso esse breve ensaio vai flutuar da análise à poesia sem aviso prévio, não creio que possa falar de uma obra de arte de outro modo. E é bom que seja assim.

Como sempre, o simbolismo empregado nas obras audiovisuais são a chave de interpretação do todo por meio de suas partes: os símbolos fecundam nossa imaginação, ainda que não os interpretemos de forma consciente. Bem, aqui temos três personagens mostrados de forma visceral: todos estão absolutamente destruídos. Mas estamos apenas no terceiro episódio, enquanto escrevo, e o que virá adiante? Superação e queda? A psicanálise diria que, quando um personagem aparece quebrado logo no início, a narrativa o conduz não rumo à cura, mas ao reconhecimento, aquilo que Lacan (acho) chamaria de “encontro com o real”, o ponto duro onde nenhuma fantasia salva.

De todo modo, como dizia, todos estão destroçados. O que não é surpresa a partir do próprio nome. Mas somos apresentados a diversas formas dessa síndrome de exaustão que deixa nossos personagens à beira do completo colapso. Exaustão não só como falência emocional, mas como esvaziamento do desejo, e aqui há ecos de Kierkegaard: “o desespero é a doença do eu” e não apenas doença, mas "doença até a morte".

Jira, o personagem de Gun Attaphan, é um artista fracassado. Não só não consegue trabalho para pagara as dívidas crescentes como se encontra estagnado em sua própria obra, sua inspiração se foi. Ele lutou, e muito, mas continua pedindo dinheiro emprestado, pulando de bico em bico e ainda assim não consegue sair de uma linha abaixo do medíocre, por mais que se esforce. Não posso deixar tecer os elogios ao Gun que sempre entrega personagens incríveis com grande densidade emocional. Jira encarna o arquétipo do criador ferido, um Orfeu sem lira e sem Eurídice, preso naquilo que Freud chamaria de “inibição da função”. Sem criação, ele perde não só função, mas identidade. Não consegue nem mesmo interpretar num comercial qualquer. 

Dew, na ordem de apresentação na série, me deixou completamente chocado desde a primeira cena como Pheem. Claramente um homem em seu limite, incapaz de dar os passos necessários para sair de sua situação, mas prestes a explodir. Ele chega, se senta junto de Jira e, com um sorriso algo forçado, quase desesperado, inicia um diálogo com claras conotações de duplo sentido. Seu tom de voz, os pequenos trejeitos com as mãos, a forma de beber, o arrumar os óculos, o próprio sorriso: tudo aponta para um homem que mostra apenas uma pequeníssima parte de si. Uma pequena bola de luz flutuando num oceano de escuridão, com toda a violência que essa comparação implica. Ele será certamente o personagem a colapsar. É o tipo de personagem que me lembra o Raskólnikov antes do crime: tensão acumulada, um coração que ainda não sabe que já quebrou, mas que já se encontra nos umbrais de uma manão escura.

Enquanto Pheem tenta equilibrar a carreira e uma amizade aos frangalhos, Koh é o homem que criou tantas proteções ao seu redor que pode se dar a liberdade de ser quem é e agir como quer. Mesmo sendo bem-sucedido, aplicando técnicas lógicas de mercado às custas de um peso maior em cima de seu amigo e funcionários, ele quase não sai de seu refúgio pessoal. O personagem de Off não usa nada feito sob medida, comprando as coisas mais sem graça: a originalidade, o coração, o afeto, lhe tomaram tudo. Ele não dorme, não encontra paz e não tem força para mostrar o contrário. Num restaurante de luxo onde todos usam terno de alfaiataria, ele usa uma camiseta surrada de banda pop-rock. Em casa, anda de cueca ou simplesmente nu, ou enrolado num roupão. Abusa dos remédios para dormir e do álcool, aliás garrafas, copos e remédios se encontram jogados por toda parte. Usa os outros para fazer e falar. 

A relação entre esses três, para além de uma bomba relógio, mostra a ambiguidade do coração de cada um, revelando nuances que não esperavam. Há também muitos elementos visuais à disposição, mas talvez eu deve rever anotando para conseguir descrever todos. Em especial notei a óbvia placa de "cuidado, piso molhado" que é tirada da frente de Jira quando ele decide voltar a trabalhar para Koh, mesmo desprezando-o. Jira vai tirar proveito da inspiração que aquele homem lhe dá, Koh vai descobrir no jovem artista algo que o faz sentir vivo depois de muito tempo, no sentido terno do termo, afinal ele conseguiu dormir em cima das roupas não porque elas lhe lembravam a infância, mas porque uma presença afetiva ao lado das roupas lhe lembravam a infância. Quando ele percebe que não dorme tão bem sem a presença do outro, toma consciência do ponto que o fere, que escapa ao discurso e atinge direto a memória afetiva.

A tensão sexual dos três também é óbvia, e nenhum deles faz questão de disfarçar. Aqui, o eros é ferida, não força vital, é o eros de Bataille, o eros que sempre beira o sacrifício, eros envolto em luto e melancolia. Pheem assusta ao revelar que se apegou tanto a Jira que deseja que ele fique ainda pior para que volte para ele. Destroçado, ele se faz uma companhia agradavelmente necessária para pessoas exaustas, pois parece ter relacionamentos casuais recorrentes, a fim de barganhar seu afeto. Fazer com quem Jira o queira o coloca numa posição que preenche o vazio em que ele se afundou ao destruir sua carreira em nome de uma amizade com Koh que também se deteriorou. Koh sabe que Jira olha para ele de modo sexual, Jira assume ficar excitado, com os sentidos artístico e literal do termo confluindo, mas não consegue reagir. 

Por isso, se existe um pensador capaz de iluminar o tipo de relação que se desenha entre os três protagonistas, esse pensador é Bataille, talvez o único que colocou eros, morte e ruptura interior como partes inseparáveis do mesmo gesto humano. Em Bataille, o erotismo nunca é apenas sexual; é sempre um movimento de atravessamento, um impulso que faz o sujeito perder algo de si para entrar em contato com o outro. É uma ferida aberta que pede outra ferida. É sempre excesso, risco, desordem. O eros ali não aparece como romance, nem como desejo puro, mas como busca desesperada por dissolução, como se cada um deles precisasse abandonar uma parte de si para suportar a própria existência. 

E é aqui que entra o luto, outro pilar batailliano. Cada um desses personagens está em luto por algo que não sabe nomear: Jira pelo artista que não conseguiu ser. Pheem pelo homem que destruiu tentando salvar o amigo. Koh pela versão de si que um dia ainda acreditou por conta do afeto de seus pais para com os outros e que foi a causa da falência e destruição deles.

Eles não apenas choram seus mortos. Eles os carregam seus dentro do corpo, como um peso constante. E quando esses mortos internos encontram o eros que circula entre eles, o resultado é o que Freud chamaria de melancolia, mas o que Bataille nomearia como uma forma de sacralidade profana: a sensação de que só existe verdade quando algo dentro de nós se rompe.

A melancolia aqui não é contemplativa; é febril, inquieta, lascada. É a melancolia de quem se deseja e, ao se desejar, se ameaça. A tríade toda se move nesse território: Eros tenta costurar o que o luto rasgou. O luto aprofunda o buraco onde o eros tenta se enfiar. A melancolia é o estado intermediário, o ponto de partida. 

Ao passo que Koh devolve a inspiração para Jira, o ambiente tóxico, melancólico e depressivo, achatado, cinza e com cheiro de whisky e carvalho envelhecido do apartamento do milionário é opressivo demais, e ele encontra nos olhares provocantes de Pheem um lugar para usar a alegria que lhe é concedida ao ver retornar sua capacidade de produzir arte. É como se ele se recarregasse em um para aproveitar com outro. É com Pheem que ele ousa brincar de jogar vinho na camisa para criar uma obra espontânea, é com ele que canta e grita e sorri, é com ele que aceita ir para a cama. A cena em que Gun e Dew estão no sofá carrega o peso que será o mote principal, embora não fisicamente presente, as ligações de Off interrompendo os beijos e toques dos dois mostra o dilema: Jira não pode perder sua fonte de inspiração. Pheem não pode perder aquele que o faz ter vontade de dar um passo a mais. Koh não pode perder essa sensação tão estranha, mas ao mesmo tempo, tão familiar. 

É por isso que essa tríade não é romântica e não é trágica apenas, ela é transgressiva. Eles não se encontram para curar. Eles se encontram para se expor, para violar a superfície dura da própria solidão e descobrir, no instante do contato, que eros e luto são duas faces do mesmo movimento de perda. A melancolia é o preço, e a revelação. No fim, o que liga esses três não é o desejo, nem a dor, nem a dependência, mas a experiência quase sagrada e ao mesmo tempo dolorosamente mortal de encostar a própria ruína na ruína do outro, e sentir, por um instante, que esse toque os mantém vivos.

Essa relação coloca em evidência, pelo aumento e cessar do som, seja da música ou do trânsito, em cena várias vezes, de modo a mostrar a linha tênue que agora os separa do que eles querem, daquilo que eles precisam. A  literatura está cheia de “triângulos” que não são exatamente amorosos, mas forças humanas que se chocam, como placas tectônicas afetivas, morais ou espirituais. E ninguém fez isso com mais brutalidade lúcida do que Dostoiévski e, por isso, acho que vale a pena aprofundar um pouco mais nisso. 

Para esse gigante russo, mestre do moralismo (no sentido filosófico do termo), sempre que três figuras se cruzam, não se trata de um triângulo comum. É um campo de batalha espiritual, um encontro de mundos interiores que não se encaixam, mas se precisam. Temos Raskólnikov, Sônia e Porfíri em Crime e Castigo. Em O Idiota acompanhamos Íppolit, Míchkin e Rogójin e os Irmãos Karamázov, Aliocha, Ivan  e Dmitri. Cada trio é composto por aquele que busca redenção, o que está à beira da destruição e o que tenta mediar, compreender ou sobreviver ao choque entre os dois. Eles não se completam: eles se fraturam mutuamente. Um vive a partir do buraco do outro, um deseja o que o outro teme, um tenta salvar aquilo que o outro é incapaz de conceder. Isso é o que captei, de algum modo, em Burnout Syndrome.

Quando três figuras se colocam no mesmo espaço, existencialmente falando, algo maior do que elas começa a se mover. Não é só relação: é fricção. Não é só narrativa: é colisão de estruturas internas.  Pheem é o desejo de ser visto, no sentido de não decepcionar os amigos e ajudar desconhecidos que encontra no bar. Jira é o desejo de criar sentido. Koh é o desejo de controlar o caos. Os três desejos coexistem em qualquer pessoa, mas, separados em personagens, tornam-se forças vivas, independentes, famintas. E é justamente por estarem divididas dessa forma que elas entram em conflito. Cada uma busca aquilo que as outras duas ameaçam. Cada uma revela, sem querer, o ponto de ruptura das outras.

E aqui entra a tensão central: Esses três homens não se relacionam apesar de suas feridas, eles se relacionam por causa delas. Embora Koh afirme não sentir nada por Jira, é exatamente o que ele sente que o faz se aproximar, mesmo quando seu comportamento corriqueiro o diz para fazer o contrário.

Isso que a literatura sempre soube: quando três personagens se encontram num ponto de exaustão, o que se cria não é um triângulo amoroso, mas uma espécie de organismo psíquico coletivo, onde cada parte depende da dor das outras para permanecer de pé. Em Dostoiévski, isso aparece em todas as grandes tríades, o que busca redenção, o que está à beira da destruição, o que tenta mediar ou manipular o choque , e o efeito é sempre o mesmo: ninguém sai ileso.

Com Pheem, Jira e Koh, vê-se claramente essa relacão emocional devastadora. Pheem precisa do desespero de Jira para preencher seu próprio vazio. Jira precisa da dureza de Koh para reacender a fagulha criadora que perdeu. Koh precisa da vitalidade de Jira e da amizade competitiva com Pheem para não desmoronar por completo. Cada um se alimenta da fragilidade do outro, não por maldade, mas porque é ali que encontra a peça que lhe falta.

É o que Freud chamaria de circuito de desejo. Lacan chamaria de dependência ao olhar do Outro, e que Dostoiévski chamaria simplesmente de destino.

E é por isso que tudo aqui se dá como tragédia, não no sentido de algo “ruim”, mas no sentido grego, estrutural, inevitável: quando três forças incompatíveis se atraem, o resultado não pode ser harmonia. Só pode ser tensão. O encontro dos três é o encontro de três modos de existir que se precisam e se devoram, três necessidades que não se completam, mas se ferem. Cada aproximação é um risco e cada toque é um corte. 

Assim, talvez a melhor imagem não seja a de um triângulo, mas de uma arena. O campo minado onde o humano, dividido em três, tenta sobreviver ao choque de si mesmo.

É um triângulo que também lembra Marcel Proust mais do que qualquer romance contemporâneo: ninguém deseja o outro, mas sim o que o outro desperta, o desejo se torna reflexo, eco, espelho quebrado. As longas descrições de Proust que são como a composição psicológica dos seus personagens se mostram aqui nas complexas construções visuais: o apartamento destruído, a obra de arte em cores revividas, os trejeitos e olhares. Se em Swan, Proust usa as longas descrições aparentemente banais da paisagem, de dias claros ou chuvosos, na construção da personalidade e das memórias do personagem, aqui nós vemos essa relação na expressão visual deles. Pheem é elegante, social, sedutor mas sem ser indelicado, revelando em pequenos pontos o seu interior. Koh já desistiu, não se veste em casa, casa esta que está sempre uma bagunça mesmo sendo luxuosa, e Jira muda a forma de se vestir conforme sua situação melhora, não no sentido de usar roupas melhores, mas por perceber que reencontrou inspiração e trocar a aparência cansada e opaca pelo casaco cor de rosa.

E talvez seja justamente aí, nesse ponto em que nada se resolve e tudo permanece suspenso, que a história, a arte, me captura de vez, mais uma vez. Os três seguem ali, rondando abismos, presas, e eu, seguindo junto, sem respostas, sem garantias, caminhando entre ruínas que ainda não sei se serão reconstruídas. Há histórias que não avançam em linha reta, mas se aprofundam, como areias do tempo que escondem séculos embaixo de si. E enquanto cada um deles tenta sobreviver ao próprio cansaço, sinto que o que virá não será continuação, mas queda ou voo, ou aquele território estranho entre os dois, onde só a boa arte nos permite permanecer sem desespero, ou que nos conduz diretamente a ele.

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