segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Afeto e hábito

É uma noite inspiradora para um escritor que passou o dia inteiro buscando o silêncio, não o silêncio exterior, mas aquele raro, quase impossível, que às vezes se esconde nos cantos escuros da alma. Permaneci em casa, escondido do mundo, mas nem assim consegui escapar da tempestade interna que me acompanha quando a ciclagem se aproxima. A chuva fina, persistente, que cai lá fora como um murmúrio interminável, parece apenas reforçar esse contraste: por fora, delicadeza; por dentro, o peso de uma tormenta. Coloquei para tocar uma playlist de Ryuta Muneto, e o casamento foi imediato: os longos respiros das composições se misturavam ao som da chuva, como se cada pausa da música desse espaço para o céu completar a melodia.

Não queria falar sobre mim, mas talvez seja inevitável — um prelúdio necessário para que estas linhas não tomem a forma árida de um estudo sociológico ou de uma filosofia pretensamente sistemática. Há textos que precisam nascer da alma exposta, não do papel ordenado.

Comecei a rever I Saw You In My Dream por causa de um impulso quase intuitivo, um retorno movido por um vazio recente que pedia consolo. Lembrei da delicadeza com que essa série me tocou na primeira vez, da surpresa gentil que senti ao acompanhar a história de Ai e Yu. Talvez tenha encontrado neles um tipo de reflexo, já que no primeiro episódio vemos um cantando dos meninos cantando na igreja e outro tirando fotos, exatamente o que faço. Um fragmento da minha própria vida disperso ali, devolvendo-me à minha sensibilidade em um tempo em que eu mal lembrava de tê-la perdido.

E então, olhando novamente com mais calma, percebi algo que permeia tantas obras tailandesas, mas que nesta se torna ainda mais luminoso: aquele carinho que não precisa ser justificado. Um afeto que não se explica, não se prepara, simplesmente existe. Como um reflexo natural, uma linguagem aprendida antes da linguagem. Sou brasileiro, habituado à lógica do toque que rapidamente se erotiza, ao corpo que se antecipa ao sentimento; mas ali o toque é outra coisa: é humano antes de ser romântico. É a mão que ajeita o cabelo, a gola da camisa, o creme da sobremesa nos lábios. Gestos que antecedem o pensamento, como se o coração agisse primeiro e só depois a consciência corasse de timidez. Há algo profundamente verdadeiro nessa espontaneidade, como se amar fosse antes um hábito de cuidar do que uma declaração.

O amor, discreto e contido, carrega o respeito como sua moldura: o amado se torna quase um objeto de veneração. Os olhares se prolongam; o mundo ao redor desbota; a cena se reduz a dois corpos tentando decifrar o mesmo sentimento nascente. Essa demora do olhar é uma oração silenciosa. O toque, uma espécie de coragem. E juntos constroem um ritmo lento, sensível, onde cada pequena evolução é legítima, conquistada, necessária.

Essa construção se dá no terreno mais humilde e sagrado: o cotidiano. Comer juntos, dividir um prato; cozinhar lado a lado, dividindo o mesmo vapor; estudar até tarde, compartilhando cansaços e pequenas vitórias. Todas essas ações formam o que só posso chamar de liturgia doméstica — um sacramento silencioso onde o afeto vai se tornando presença, e a presença vai lentamente se convertendo em sentimento.

A beleza dessa história está no fato de que Ai e Yu crescem juntos, paralelamente, como duas árvores que se inclinam uma para a outra sem perder a própria raiz. Não é o amor que os molda; é o amadurecimento mútuo que refina o amor. Yu, que carrega a dor aberta do abandono e o peso da responsabilidade; Ai, que guarda seus medos infantis, sua vulnerabilidade exposta. Um vai preenchendo as frestas do outro sem sufocar, sem dominar, apenas acompanhando. O cuidado nasce das necessidades reais e se manifesta nas ações simples: correr até o quarto do outro na queda de energia, oferecer carona, ajudar no trabalho, estar presente quando ninguém mais está. Assim como o alvorecer salpica o céu de estrelas, o amor deles surge devagar, mas com a inevitabilidade de um fenômeno natural.

A natureza, aliás, é quase um terceiro personagem, não por conveniência estética, mas como espelho emocional. O mar é vasto e belo, mas também perigoso quando encarado de perto: a imensidão do sentimento sempre traz algum temor. O céu estrelado guarda momentos que só podem viver na memória e, por isso, tornam-se infinitos. A paisagem não decora: revela. Ela diz o que o coração ainda não sabe pronunciar. O sentimento sempre esteve lá, mas precisava da luz certa para se tornar visível.

Assim, aquilo que antes se expressava no cuidado infantil, a amizade, o apoio, a brincadeira, se transforma, quase sem que se perceba, em cuidado adulto: companhia constante, proteção discreta, compreensão profunda. A forma muda, mas a essência permanece: o carinho continua sendo o primeiro idioma.

Talvez seja isso que me faz voltar a essas histórias: a lembrança de que o amor, quando verdadeiro, não precisa anunciar-se. Ele se insinua. Cresce nos gestos mais simples. Aparece primeiro no que não se diz.

E, como a chuva desta noite, ele cai devagar, mas sem interrupção, até que de repente percebemos que tudo ao redor já está molhado de sentimento.

E talvez seja assim que essas histórias nos tocam: como sombras que deslizam sobre a memória, como chuva que cai sem alarde, como gestos que passam despercebidos até que, de repente, descobrimos que foram eles que nos sustentaram.

No fim, o amor de Ai e Yu me lembra, nessa madrugada, que o coração não desperta com estrondo, mas com constância. É na repetição do cuidado, no silêncio compartilhado, no olhar que demora um instante a mais, que ele encontra a coragem de existir.

E quando finalmente reconhece o próprio sentir, não o faz como revelação grandiosa, mas como quem abre a janela após a tempestade e percebe que o mundo ficou mais úmido, mais fresco, mais vivo.

Há amores que não chegam, eles emergem procurando a luz.

E talvez a maior beleza esteja nisso:

no que nasce devagar, mas permanece.

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