sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Vox Ecclesiae: O Canto Gregoriano como Herança e Regra da Fé I

Com toda a agitação que nos rodeia, falar sobre beleza ou, de modo mais específico ainda, de uma música sagrada, talvez seja algo até mesmo absurdo para alguns. Entretanto, justamente por conta dessa absurdidade, que é símbolo de algo muito maior e mais importante que perdemos, é que se torna necessário falar. Ou melhor, silenciar e depois falar. 

De um lado podemos imaginar não um mosteiro, não sou um idealista, mas uma igreja em que as pessoas chegam em silêncio, ajoelham-se ou sentam em oração. Rezam um terço se chegam muito cedo ou algumas breves jaculatórias de modo a preparar o coração para o mistério celebrado. De outro, temos uma comunidade em que todos chegam às pressas, inclusive a própria equipe que prepara a missa. Os ministros correm com os vasos da credência, os acólitos se trombam e discutem sobre quem desempenhará qual função, os músicos ensaiam poucos minutos antes da celebração e, enquanto isso, toda a assembleia, se encontrando ali após uma semana, resolve colocar a conversa em dias. A segunda realidade é, na verdade, a regra que seguimos. Portanto, falar de música sacra é, antes de tudo, falar de ordem. 

São Bernardo de Claraval aponta a Beleza e a ordem como caminhos para Deus. Para ele “a alma é conduzida por meio da beleza sensível à beleza invisível.” Embora não trate diretamente de música litúrgica, oferece uma fundamentação estética que sustenta sua importância. Já tratei da ordem, bem como da estética, em outras ocasiões, querendo me deter aqui na música como um dos aspectos dessa beleza que deve conter a música na Liturgia.

Minha experiência com a música na igreja é dupla: se, por um lado, eu amo e busco sempre aprender novas peças, bem como estudar como melhor adaptar as músicas com as diversas necessidades do da Liturgia, em primeiro lugar, e do povo, por outro, a completa displicência dos grupos sobre o assunto, somada ao orgulho dessa classe, fazendo da música na liturgia não um serviço, mas um palco, acabam por me tornar quase contrário a presença da mesma nas nossas paróquias. Não raras às vezes eu pensei ser preferível que a missa transcorresse sem canto, em silêncio sacro, do que com as tragédias que somos obrigados a ouvir. Isso porque a música, ao invés de ajudar a rezar, muitas vezes atrapalha, por não corresponder aquilo que se pede dela.

O canto é visto pela Igreja como expressão ordenada da interioridade e veículo da oração. Santo Agostinho, em suas "Confissões" e sermões, descreve o canto litúrgico como meio pelo qual a alma se eleva a Deus, mas também alerta para o perigo do canto sentimentalista que desvia da finalidade cultual. Sua posição fundamenta a visão clássica: o canto não emociona por si, mas pela verdade que carrega.

Ao tratar a música, no âmbito sagrado, como beleza que conduz a Deus, ele diz: “Quão profundamente me comoviam os seus hinos e cânticos, ressoando suavemente na vossa Igreja! Penetravam-me os ouvidos, derretiam-me o coração e corriam lágrimas dos meus olhos, e nisso encontrava grande consolo.” No entanto, já apontava para certos riscos: “Quando acontece que o canto me comove mais do que aquilo que canto, confesso ter pecado.” Assim, ele afirma que a beleza litúrgica deve ser ordenada à verdade. Sua crítica ao sentimentalismo ilumina os problemas contemporâneos da música litúrgica emocionalista e horizontal e fala da necessidade de que o canto não seja mero prazer sensível.

Infelizmente a mudança foi um giro total do que já afirmava o bispo de Hipona: hoje a música, se não provocar prazer sensível, não vale. É preciso fazer o coração bater, as lágrimas escorrerem, só assim é que podemos reconhecer que a missa está "tocando" as pessoas, quando, na verdade, está apenas estimulando. Não raras vezes encontramos missas em que se cantam músicas protestantes, aquelas bandas com composições horrorosas e tutti quanti vindos dos recessos da Renovação Carismática, por aqueles que nunca leram uma linha sequer sobre canto litúrgico ou, se leram, tanto pior, já que o fazem com desonestidade intelectual, literalmente roubando da comunidade o direito que lhe é devido ter local propício à reunião da comunidade para oração, como fazemos desde os tempos das catacumbas. 

Já em sua época, São João Crisóstomo criticava os modismos musicais na igreja: “Os cantos da Igreja não são teatros, mas mistérios espirituais. Não estamos aqui para agradar os ouvidos, mas para elevar as almas.” Com sua fala já podemos antecipar a crítica moderna à espetacularização litúrgica, aplicável a bandas, ritmo excessivo, protagonismo musical e a teatralização em contraposição a dignidade da Liturgia.

Isso porque, na Santa Missa, o canto não tem o mesmo objetivo que em outros lugares. Na verdade, em cada lugar ocupa o canto um espaço diferente. Num filme, a trilha sonora dita o tom das cenas, numa festa, o ânimo dos convidados, e assim por diante. O primeiro aspecto acerca do canto na Liturgia é aquele apontado por São Basílio Magno, como instrumento pedagógico e de unidade espiritual: “O Espírito Santo juntou ao salmo uma melodia agradável, para que todos nós aprendamos com mais facilidade e guardemos na memória as doutrinas.” Basílio explica que o canto dos Salmos educa o coração e, assim, disciplina os afetos. Para tal, a música litúrgica deve servir à Palavra, não substituí-la por sentimentos vagos ou mensagens de gosto pessoal.

Ainda no âmbito da fundamentação teológica, Santo Tomás complementa São Basílio ao apresentar a música como arte subordinada à virtude da religião. Na Suma Teológica, Tomás entende o canto litúrgico como uma oferenda vocal que deve mover à devoção: “O canto é instituído na Igreja para suscitar a devoção e tornar mais suaves os afetos espirituais.” Daqui deriva o princípio clássico: tudo o que não suscita devoção — ou que a impede — é impróprio à liturgia.

O marco mais atual acerca da regulamentação da música litúrgica é o de São Pio X em seu Motu Proprio Tra le Sollecitudini (1903), considerado o texto magisterial mais importante sobre a música litúrgica desde o Concílio de Trento. Ele começar por definir o fim da música sacra com "acrescentar maior eficácia ao texto litúrgico, a fim de que os fiéis sejam mais facilmente movidos à devoção e melhor preparados para receber os frutos da graça.” Para que isso seja possível, um modelo que acompanha a Igreja desde muitos séculos é novamente reafirmado: é o Canto Gregoriano.

“O canto gregoriano foi sempre considerado como o canto próprio da Igreja romana. É, portanto, o modelo supremo da música sacra.” Por modelo, entende-se que, todo canto deve ser, em algum nível, inspirado no gregoriano, de modo que “é ilícito introduzir na Igreja o que quer que tenha sabor profano.” Que diria São Pio X ao ver que hoje nossas Missas são ao som de músicas sertanejas, protestantes e até mesmo puramente profanas (já ouvi Roberto Carlos, Ana Vilela e outros artistas, cujo valor não cabe aqui julgar, mas que são absolutamente inconciliáveis com o culto divino).

Um pouco mais tarde, Pio XII, na Mediator Dei, reforça seu papel da como participação ativa interior, não espetáculo: “A música sacra deve contribuir para a maior dignidade e beleza do culto, de modo que os fiéis sejam atraídos suavemente à piedade.” Refutando uma compreensão puramente performática da música na liturgia.

O Concílio Vaticano II afirma que “O canto sacro, unido às palavras, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene" (SC 112) e, portanto, deve ser uma das prioridades daqueles que preparam a celebração, desde os sacerdotes, obviamente, os cantores e demais envolvidos. A Sacrosanctum Concilium continua, ainda no mesmo parágrafo, que “a música sacra será tanto mais santa quanto mais intimamente estiver unida à ação litúrgica."

Uma vez mais, o Magistério afirma o valor único do canto gregoriano: “A Igreja reconhece o canto gregoriano como próprio da liturgia romana; por isso, em igualdade de circunstâncias, há de conservar-se para ele o primeiro lugar.” (SC, 116) Não há ruptura com a tradição, antes disso, uma reafirmação, completamente ignorada em cada Santa Missa das nossas paróquias.

Esse é ponto principal, e mais delicado de todos. 

Continua aqui

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