Esse artigo é o segundo de uma série que aborda a estética de produções audiovisuais de alguns países. Você pode encontrar os outros artigos aqui: I - Introdução, III - Japão e IV - Tailândia.
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As obras coreanas sempre me encantaram, sejam os doramas ou os famosos MVs, vídeos musicais, que foram meu primeiro contato com esse país. Me recordo de ficar horas e horas assistindo e ouvindo música, sem entender direito o motivo desse encantamento. Mais recentemente, com o país entrando na onda das produções BL, percebi também esse mesmo deslumbramento, no entanto, hoje, quase vinte anos depois, entendo que se trata de uma incansável busca pela perfeição a partir de um ideal estético muito bem definido.
A cultura coreana valoriza a harmonia, a aparência polida e o autocontrole emocional — reflexo de uma sociedade orientada pela disciplina e pela busca da excelência. Na fotografia, isso se traduz em enquadramentos limpos, luz fria e personagens visualmente impecáveis, mesmo em momentos de dor.
Todos precisam ser perfeitos: pele sem nenhuma mancha ou espinha, o que faz com que a indústria dos cosméticos coreanos cresça mais e mais a cada ano a despeito da genética desse povo, cabelos e roupas impecáveis... Até mesmo em séries que mostram a destruição ou a decadência, como "Sweet Home" (2020), com a estrela Song Kang conquistando corações mesmo sujo e maltratado na primeira temporada e, mais tarde, impecável mesmo em meio a um cenário apocalíptico, "All of Us Are Dead" (2022), "Weak Hero Class" (2022) onde um Park Ji-hoon física e emocionalmente destruído ainda é uma das pessoas mais lindas já vistas: também a maquiagem do sofredor é bela, como um quadro ou uma escultura da Virgem Mãe das Dores.
A imagem do ator coreano é a imagem do homem perfeito. Ainda que com o objetivo de parecer imperceptível, a maquiagem coreana busca apagar todo traço de imperfeição, ao passo que, no campo moral, a personalidade é que recebe uma grossa cobertura.
As pessoas são ensinadas a serem discretas, sempre e em todo lugar. Demonstrações de afetação de personalidade são não desencorajadas, mas até mesmo punidas, formalmente ou não. A beleza se torna, assim, um dever social. A aparência não é apenas individual, mas um dever coletivo — um reflexo da honra e do esforço pessoal. Daí que o rosto perfeito, a pele clara, o figurino elegante: todos reforçam a ideia de que a beleza é uma forma de virtude moral e social. Alguns doramas exploram bem essa pressão, como "True Beauty" (2020), em que a protagonista só é aceita quando consegue atingir uma beleza perfeita por meio da maquiagem e de uma pesada rotina de cuidados faciais.
Em vez de explosões dramáticas, há uma contenção expressiva, onde o silêncio e os gestos mínimos têm grande carga simbólica. Isso reflete uma influência confucionista — o respeito, a hierarquia e a emoção mediada pela razão. Por esse motivo, os doramas foram, num primeiro momento, vistos como chatos, sem graça, justamente por darem lugar a demonstrações de afeto bem diferentes daquelas que estamos habituados no Brasil. Enquanto aqui cenas de nudez, beijos apaixonados e cenas de sexo quase explícitas são comuns, lá não é raro que a cena mais apaixonada seja um pequeno beijo acompanhado de uma trilha sonora mais impactante do que a cena em si.
Um BL que, dentre outros, mostra essa cobrança por uma personalidade contida é "Semantic Error" (2022): o personagem de Park Seoham se destaca e irrita o outro protagonista justamente por não ser discreto. Ele se veste todo de vermelho, enquanto o outro se sente satisfeito em usar cinza, não conversar muito e ser excelente em tudo que faz. Também o trabalho e a excelência são vistos como demonstração de virtude. Na mesma série, o personagem de Park Jae-chan, em contraposição ao outro, é o exemplo dessa virtude: o apego aos prazos, aos resultados dentro das expectativas e também a forma sóbria no vestir.
Em obras que retratam ambientes de trabalho, esses fatores são multiplicados. Estagiários recebem uma imensa carga de trabalho e cobranças como os funcionários efetivos, para que se acostumem logo ao ambiente que deverão frequentar pelo resto da vida. Doenças ou qualquer falha, por menor que seja, são inaceitáveis. O “workaholismo” é retratado como parte da identidade nacional: esforço, mérito e sacrifício. Muitos protagonistas são definidos por sua dedicação e pela luta para se afirmar em uma sociedade competitiva. "The Director Who Buys Me Dinner" (2022) e "To My Star 2" (2022) mostram isso de forma bem convincente, o segundo com um peso dramático ainda maior: todos precisam corresponder ao esperado pela sua profissão e, quando isso não acontece, o resultado é o fracasso emocional.
Num ambiente corporativo isso é medido pela eficiência, no mundo da arte é pela aparência. Fora das séries, a cobrança pela perfeição na vida dos artistas é sufocante: não podem namorar, não podem fumar ou se tatuar, não podem dizer coisas que não estejam num roteiro estritamente desenhado. Qualquer um que fuja a esses padrões está condenado. Atores casados escondem sua vida por anos, aqueles que corajosamente revelam relacionamentos são perseguidos e boicotados. As questões de sexualidade são ainda mais complexas: o número de artistas que falam disso é mínimo. Alguns poucos o fazem apenas discretamente, como numa única linha musical, e isso após uma carreira consolidada inclusive internacionalmente, onde isso não será motivo de cancelamento.
"Melancholia" (2021) mostra isso de forma brutal: a personagem de Lim Su-jeong, mesmo sendo uma professora brilhante, é condenada ao ostracismo depois da denúncia, nunca provada, de ter seduzido um aluno. Ela passa então a dar aulas particulares sob forte vigilância de uma instituição que omite sua identidade. O aluno, interpretado por Lee Do-hyun, que se torna ainda mais bem-sucedido que a mulher por quem se apaixonou, também se vê rodeado pela ameaça de destruir ainda mais a outra, assim como dar fim a própria carreira.
Aqueles que tratam da própria sexualidade disso desde o início têm suas carreiras dificultadas: a despeito da qualidade de seu trabalho, o cantor e ator Holland até hoje conseguiu poucas oportunidades, atores que fizeram BLs fingem que isso nunca aconteceu, ao passo que só muito recentemente atores consagrados, como o Rowon, começaram a timidamente se arriscar em interpretar personagens gays. "Ocean Likes Me" (2022) mostra um pouco da solidão do homem gay, ainda que numa camada discreta, mas que, com um pouco de atenção, se revela em imagens belas e melancólicas, como o frio intenso do inverno e a imensidão azul-acinzentada do mar.
Antes do sucesso estrondoso que fazem hoje, os doramas apresentam um ritmo diferente ao que estamos habituados. Ainda que nos BLs as histórias sejam bastante limitadas pelo tempo. Esse contraste com a cultura brasileira, sempre tão intensa, é interessante que as obras tenham finalmente feito sucesso por aqui. Um dos elementos mais contrastantes e, por isso mesmo, interessantes, é que apesar da aparência tecnológica e do progresso, há um sentimento constante de vazio, solidão e saudade. Essa tensão entre o moderno e o emocional cria a “melancolia limpa” típica dos K-Dramas — bela, mas distante. "Blueming" (2022), trabalha isso de forma excelente, assim como "The Eighth Sense" (2023): os personagens escondem suas verdadeiras personalidades, seja pela busca de um corpo perfeito ou de uma personalidade agradável que esconda a depressão, revelada nos momentos de introspecção que permeiam o contato social que, aqui, parecem ser apenas o intervalo entre duas melancolias.
Ainda pouco abordado nos BLs, mas explorados até a exaustão nos doramas, a pressão da família é sempre presente e ronda os protagonistas como um fantasma sempre a rodear. As expectativas familiares e sociais moldam as decisões individuais, especialmente em temas como casamento, carreira e reputação. As narrativas exploram frequentemente o conflito entre o desejo pessoal e o dever coletivo. As famílias esperam parceiros perfeitos, planejam casamentos que trarão um futuro estável ou um sucesso empresarial. Mais do que a união entre pessoas, o casamento é uma possibilidade de consolidação social. Os exemplos são intermináveis, mas "Record of Youth" (2020) e "Hierarchy" (2024) mostram bem como pessoas de classes sociais diferentes não deveriam se envolver e nem mesmo amizades são toleradas.
Mesmo nas tramas mais contemporâneas, o amor é frequentemente representado como algo puro, quase intocável. Há um romantismo contido, mais voltado à cumplicidade do que à paixão física. No entanto, o mesmo sempre se confronta com essa pressão externa pela perfeição, e é claro que a sexualidade é um fator determinante: aceitar o sentimento por uma pessoa do mesmo sexo é aceitar ir contra todos. Embora alguns BLs suavizem essa questão, até porque o gênero de comédia romântica leve continua sendo mais explorado, personagens com a coragem de se mostrarem são mais comuns nesse gênero do que nos demais doramas, onde os gays são geralmente um alívio cômico ou um assunto tratado de modo discretíssimo. Felizmente isso parece cair um pouco com a chegada dos BLs que tratam o amor entre pessoas do mesmo sexo com mais leveza, como vimos em "Our Dating Sim" (2023) e "Jun & Jun" (2023) que colocaram o romance dentro do ambiente corporativo, equilibrado com as obrigações do trabalho.
Por falar em trabalho, cena comum, seja nos BLs como nos doramas, é o famoso happy hour. Não é incomum que os personagens saiam dos escritórios e se embriaguem com enormes copos de cerveja, numa tentativa de aliviar a pressão desses ambientes, o que nos dá espaço para falar da cidade: os ambientes urbanos — grandes, frios e luminosos — servem de metáfora para a desconexão afetiva. A arquitetura minimalista e os tons azulados reforçam a ideia de isolamento e introspecção. Os personagens bebem em meio a essas selvas de pedra, buscam uma constante fuga da opressão do ambiente.
Há uma redefinição dos papéis de gênero, mas de forma sutil: o masculino sensível e o feminino racional aparecem como novas formas de equilíbrio. Essa suavização dos contrastes cria espaço para a empatia e para novas representações de afeto, inclusive nos BLs coreanos. "Why Her?" (2022) traz uma mulher forte, no auge de sua carreira, temida por todos, enquanto o protagonista é apenas um estudante tentando reerguer-se de um passado dramático. É essa relação entre ambos, que vai se tornando cada vez mais sinuosa conforme avançamos e vemos o lado sensível da protagonista em comparação a coragem e a proteção que o homem simboliza, que vemos a evolução e a exaltação da cultura do esforço e da redenção pela dor. O sofrimento é visto como caminho para o crescimento e a redenção — tanto moral quanto estética. A dor é bela quando purifica; um traço que, uma vez mais, aproxima os K-Dramas da espiritualidade e da ética confucionista.

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