sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Vox Ecclesiae: O Canto Gregoriano como Herança e Regra da Fé II

Durante séculos a igreja dedicou-se, por meio de alguns dos maiores nomes da música ocidental, a buscar a maior intimidade possível entre as diversas partes da ação litúrgica, comunitária por excelência. O canto gregoriano continua ocupando o primeiro posto daquilo que mais aproxima o povo do mistério celebrado. Com ele, as palavras proferidas, as orações e o canto entram em tal sintonia que verdadeiramente tornam-se um só: o canto se torna a oração do povo.

Aqui um pequeno excurso: o Concílio afirma que o canto na liturgia deve favorecer uma participação ativa da assembleia na celebração. A palavra "ativa" é aqui compreendida de modo ambíguo. O brasileiro, como característica do povo, a entende como fazer algo, externamente, visivelmente. De modo que, cantar algo que a assembleia não conheça e não consiga cantar exatamente como o coro, está errado. Essa concepção é equivocada por vários fatores: se podemos cantar apenas aquilo que é conhecido, em algum ponto do passado cantou-se algo desconhecido para que o povo aprendesse, então por qual razão não se pode inserir novas, ou melhor ainda, antigas composições que lamentavelmente caíram em desuso, de modo a torná-las novamente conhecidas? Quem disse que a única coisa ativa na liturgia é o exterior, aquilo expresso em voz alta? Aquele que escuta a música, como escuta a leitura e a proclamação do Evangelho, pode e deve, unir-se por meio da oração, seja vocalizada ou interior. 

Quem defende que apenas os gestos exteriores são válidos estaria invalidando a própria presença real de Cristo na Eucaristia, afinal, como canta Santo Tomás, "na cruz se escondia sua divindade, mas aqui também se esconde sua humanidade." Se formos crer apenas no que é visto, como acreditaremos no mistério da Eucaristia. 

Caindo assim num problema teológico infantil, defendem as mais perversas deturpações. Não há cuidado na escolha do repertório: desde que seja música católica, é válida. Não importa o tempo ou o momento. Com frequência vejo cantos próprios da Quaresma, com seu caráter piedosos, no Tempo Comum. Cantos próprios do ofertório no lugar da Antífona da Entrada, e tantos outros quase inumeráveis, incluindo, cantos completamente avessos ao espírito celebrativo mesmo, como as da deplorável Colo de Deus, cantores protestantes e até cantores seculares, inclusive aqueles abertamente contra a fé católica. 

Em espírito de continuação fiel da linha defendida por Pio X e o Concílio Vaticano II, São João Paulo II defende, uma vez mais, que “o canto gregoriano e a grande tradição polifônica são patrimônios que deve ser conservado com cuidado, promovido e usado oportunamente.”

Ignoram, por desconhecido e desonestidade, aquilo tantas vezes repetido através dos séculos, como o dito por Bento XVI na Sacramentum Caritatis“O canto e a música devem respeitar o sentido da liturgia e sua beleza intrínseca, evitando improvisações que deformem o Mistério.” (n. 42) Ainda nesse mesmo ponto o santo padre acrescenta: "O canto gregoriano continua sendo referência de forma e espírito para toda a música litúrgica. Ele une, educa e eleva.” Isto é, a inovação, a adaptação, não são proibidas e nem tampouco demonizadas, como dito anteriormente, em algum momento as músicas tradicionais foram novidade, no entanto, deve-se ter em mente a referência primeira.

Aliás, a crítica magisterial mais profunda à música litúrgica contemporânea é feita pelo próprio Santo Padre Bento XVI. Sobre o perigo da música sentimental e subjetiva ele afirma: “quando a música se torna mera expressão de sentimentos pessoais, perde sua relação com a fé e com a Igreja.” Infelizmente, para os músicos da atualidade, isso invalidaria todo seu pavoroso repertório, pois “onde a música é convertida em produto de entretenimento, ali a liturgia degenera.” Mas, ao invés de apenas criticar, ele, e também eu, pequeno servo, ensina qual deve ser o caminho a seguir, apontando a forma perene de música para o culto divino: “o canto gregoriano não é uma forma estética entre outras; é uma norma pela qual se mede a autenticidade da música litúrgica.”

Qual a razão, afinal, de tamanha insistência no canto gregoriano como forma musical própria por excelência da liturgia?

Ele é uma forma diferente de todas as outras que ouvimos atualmente, pelo menos no Ocidente. É executado de modo uníssono, mesmo quando cantado por um coro. Com isso, de modo simbólico, evidencia a unidade da Igreja que se une a multidão dos anjos e santos para cantar a uma só voz. Ele também não possui um compasso ritmado e regular como os outros estilos musicais, ao contrário, possui um ritmo livre, como que flutuante em movimentos ascendentes e descendentes. 

Enquanto a música secular, por conta da variação das escalas maiores ou menores, acaba por ter características de alegria, tristeza, euforia, grandiosidade, os modos gregorianos são mais sutis, equilibrados, o que frequentemente soa aos ouvidos não habituados como monótono, morto, como dizem. Contudo, apesar de sua aparência simples, ele carrega uma riqueza imensa, tendo uma relação tão íntima com o texto sagrado que o coloca em tal evidência que se tornam um. 

Infelizmente o que vigora hoje é aquele sentimentalismo vazio. Vazio porque, embora emocione no momento, é deixado ali na saída, não enraíza no coração humana, enquanto a perene tradição, na sua simplicidade solene, fala de modo calmo ao coração, encontrando ali, sem violência, a terra boa que, a seu tempo, Deus fará germinar. A nossa cooperação no plano da salvação deve, portanto, ser guidada pelos ensinamentos da Igreja, Mãe e Mestra, por meio do Papa, em primeiro lugar, em seus documentos, e também de uma formação sólida, em música e na teologia litúrgica.

Desde os tempos antigos os povos buscam na música formas de expressar os mais diversos afetos da alma. Trata-se de uma inclinação natural do homem. Portanto, era natural que, com o advento e posterior difusão do cristianismo, se formasse uma nova forma de cantar o sagrado. Três mundos distintos se uniram para formar esse canto sublime: a teoria musical grega, a língua e as regras da métrica literária dos romanos e os livros sagrados dos judeus, em especial os salmos.

As palavras no canto gregoriano são ouvidas de tal modo e com tal nível de expressividade que conquistam e abrem o acesso à alma. Soam doces ao ouvido, e não só criam uma atmosfera que conduz a oração e a virtude por meio de um ambiente de moderação e serenidade, mas também facilita a memorização da Palavra, quando repetidos. Por isso, antes da difusão dos livros, os cânticos eram de grande importância como instrumentos didáticos. Santo Atanásio e Santo Hilário, no Oriente e no Ocidente, respectivamente, usaram os cantos para fortalecer a fé do povo contra as heresias, por meio da musicalização da doutrina, de modo que as verdades cristãs eram mais facilmente assimiladas por uma população em sua maioria analfabeta.

 São Gregório Magno, de quem não poderia deixar de falar, era forte defensor da arte sacra, e defendia as suas formas afirmando que as imagens eram para os iletrados o que as escrituras eram para os eruditos, mas, em terras distantes onde a evangelização ainda dava seus primeiros passos, era o canto que lhes tocava o coração e abria para receber as verdades da Fé. Exemplo disso foi a conversão dos anglos, ordenada pelo próprio pontífice a Santo Agostinho de Cantuária a entrar naquela terra de bárbaros entoando os cânticos solenes, sendo tal ordem decisiva para a conversão do povo em pouco tempo. O papa, cujo nome deu origem a denominação deste estilo, possuia tamanha compreensão da força que a música exerce sobre as almas com mais eficácia do que as palavras que fez ela ser capaz de convertes povos bárbaros e camponeses que desconheciam completamente a refinação dos sons. 

Com essa sabedoria, Gregório compôs os primeiros cânticos que seriam entoados pela cristandade e enriquecidos através dos séculos. São Bernardo foi autor de inúmeros hinos em estilo gregoriano, assim como Santo Tomás, que uniu seu conhecimento musical adquirido durante a juventude, com sua refinada teologia, para criar alguns dos mais valiosos hinos da Igreja, como o Lauda Sion Salvatorem.

Voltando ao âmbito da característica musical, o canto gregoriano não termina como uma peça musical comum, na nota tônica, mas sua melodia quase sempre não faz essa resolução na última nota, evocando um sentido de infinito, de eternidade. Além disso, a leveza do canto, embora ainda no domínio dos sentidos, remete a uma realidade espiritual. São essas sugestões do canto gregoriano, que indicam a eternidade e imaterialidade, que ecoam no coração dos fiéis, ajudando na formação de um estado de espírito mais salutar ao Evangelho e a virtude. Seja na profunda reflexão penitencial do Dies Irae, num recolhimento solene do Tantum Ergo ou ainda na exultação do Te Deum, a música possui essa capacidade de incomparável de exprimir a disposição do espírito diante de Deus na Liturgia.

Falar isso parece ser um exagero ou utopia. Mas, pensemos: o aprendizado de um instrumento musical não é fácil. Tampouco da técnica vocal. As músicas modernas são de uma dificuldade ainda maior que peças comum do gregoriano. Se muito do tempo pode ser usado para o aprendizado do instrumento, não devia ter também lugar no estudo de seus ministros o estudo de seu serviço, para além da técnica musical? Como os grupos de canto se recusam a aprender, os pastores se recusam a corrigir, acabamos vítimas, sempre reféns de um repertório pueril, irritante e que dificuldade ou até mesmo impossibilita oração, não só indo contra seu objetivo mesmo, mas fazendo seu contrário.

Apesar de não tratar extensivamente do assunto, o Papa Francisco reafirma a necessidade de música verdadeiramente litúrgica a partir de um critério de nobreza e dignidade: “A música deve ser capaz de elevar a mente a Deus, e não de distraí-la.” 

“A liturgia exige de todos nós uma formação do coração: é preciso reaprender o encanto da fé, deixar-nos tocar pela sua beleza viva.” (Papa Francisco)

Referências

BENTO XVI. O Espírito da Liturgia, cap. 3. Discurso à Associação Italiana Santa Cecília, 2005. Sacramentum Caritatis, n. 42

CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum Concilium, n. 112, 116.

FRANCISCO. Homilia na Casa Santa MartaDesiderio Desideravi, 36

PIO XII – Mediator Dei

SANTO AGOSTINHO. Confissões, IX, 6, 14. X, 33, 50 

SÃO BASÍLIO MAGNO. Homilia sobre os Salmos, PG 29, 212

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Sermões sobre o Cântico dos Cânticos, nº 36

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilia sobre o Salmo 41, PG 55, 158

SÃO JOÃO PAULO II – Chirographum de música Sacra, n. 9

SÃO PIO X, Motu Proprio Tra le Sollecitudini 

SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 91, a. 2

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