segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Adagio Cinza em Vazio Maior

Antologia breve sobre o fardo da convivência e a claridade da solidão

Depois de muito tempo eu resolvi dar uma olhada no catálogo de um dos serviços de streaming que pago, e quase não uso. Me surpreendi com várias sugestões promissoras, como séries intimistas, cinema indiano e até uma produção de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, um de meus livros favoritos. Pensei comigo, num sorriso quase mórbido, que só me falta a disposição necessária para assistir. Entre a possibilidade das descobertas das histórias, num prazer semelhante, guardadas as devidas proporções, ao da literatura, e a minha completa apatia diante das possibilidades, não apenas dos programas, mas de toda a vida. Parece que estou diante de um imenso muro pintado com o mais tedioso cinza já inventado. 

Não quero fazer um discurso motivacional sobre como ou de onde deve fruir a inspiração de um artista. Até porque, da convivência que tive com eles, isso pode vir dos mais diversos lugares e se transmutar nas mais diversas situações. Mas, enquanto vagava entre vídeos na internet, me deparei com um pequeno corte de uma entrevista do pianista Yunchan Lim, além de achá-lo bonito, gosto muito de sua interpretação do 3° Concerto para Piano do Rachmaninoff. Ele falava brevemente sobre como o chamavam de prodígio, até porque tocar essa peça com dezessete anos, enquanto muitos pianistas maduros a consideram um verdadeiro desafio, e de como começou a tocar muito novo, aos onze anos. Quando perguntado sobre a diferença em como tocava antes e agora, ele diz, num tom sério, sem ser ríspido, que sua habilidade piorou desde então, porque aos onze ele tocava de maneira pura. Não consigo descrever o negro profundo dos seus olhos e nem de seu semblante fechado, como um diamante opaco. Talvez a única forma de compreender o que ele disse seja ouvindo-o tocar. Quem sabe algo de puro flua por seus dedos, como as lágrimas de uma criança que não existe mais. Decerto aquela gravação dele ao lado da regente Marin Alsop em 2022 vai ter outro impacto em mim quando a ouvir.

As palavras dele ecoaram em mim, como sussurros metálicos numa grande caverna fria. O som do concerto, um dos mais melancólicos do repertório erudito, agora me soa ainda mais triste, solitário, cinza. É como se o jovem e belo Yunchan conseguisse transmitir por seus dedos uma vez mais aquela depressão que o Rachmaninoff imprimiu a sua peça.

Retomei a escrita dos dois parágrafos anteriores ao acordar por conta de uma dor. Precisei levantar e aplicar remédio sobre a ferida. Ah, um belo modo de dizer que precisei passar pomada nas hemorroidas que praticamente floresceram no meu rabo depois de uma cagada! E nem eu esperava assumir esse tom depois de uma reflexão sobre os dedos cinza de um pianista deprimido. Por alguma razão, enquanto abria uma das minhas nádegas com uma mão e passava o creme amarelo-doente com o dedo nas erupções ao redor da borda, eu lembrei daqueles amigos que tinha antes de me mudar para. Três deles ficaram comigo até quase o fim, mas acabei por afugentá-los também. A mulher e o de cabelo afro começaram a namorar escondidos e, embora uma parte de mim soubesse, acabei bancando o louco quando resolveram me contar, no dia em que ela saiu da minha casa. Algo naquilo me cheirou a uma grande filhadaputagem e eu preferi banir os dois da minha vida, o que certamente já haviam cogitado, afinal me deram essa opção expressamente. O terceiro, que tinha o pau maior e que consegui chupar uma vez, não tinha mais carona para ir me ver em outro bairro com frequência e paramos de nos ver. Hoje, com o cérebro sequelado das enormes quantidades de álcool e maconha de que ele usa já nem curte mais as fotos que posto online. 

“O tédio é não poder ter sequer o consolo de se estar só. A pior maneira de sentir a vida é ter de a sentir em convivência com os outros.” (Fernando Pessoa)

Em algum ponto anterior eu tinha mais amigos do que jamais havia sonhado aquele jovem estranho e cheio de espinhas que, no primeiro ano do ensino médio, conhecera um leque de pessoas tão diferentes que teve coragem de assumir alguns estilos até mesmo duvidosos, na busca da construção de uma autoimagem que, hoje, mais de dez anos depois, eu já não reconheço de modo algum, senão que apenas aceito a continuidade histórica que, até ela mesma, vem se desfazendo aos poucos também por efeito da depressão e das drogas. Mas éramos muitos, e cantávamos bem nas missas, éramos bem recebidos. Jovens que chegavam na capela animados, nove da manhã de domingos ensolarados e secos de Valparaíso, irmão da capital do Brasil. Uma vez fomos aplaudidos de pé numa missa, impróprio, mas gratificante. Também esses amigos foram embora, não podiam suportar a hipocrisia que eu sustentava em estar com eles num momento e, horas depois, publicar textos como esse, falando sobre como é insuportável viver e conviver com pessoas. De todos sobraram apenas aqueles que citei anteriormente, que no fim deu no que deu. E hoje, embora converse com duas ou três pessoas, daqui de Joinville ou de outras partes de Goiás, já não sei mais a que passo andam minhas amizades.

“O estar só é duro, mas o estar entre os outros é ainda mais duro. Pois a solidão é um espaço puro; já a multidão é ruído que dilacera.” (Rainer Maria Rilke)

Tenho medo das pessoas de quem me aproximei aqui. De algum modo eu sei que eles vão embora mais cedo ou mais tarde, e por isso não quero me apegar muito. Quanto a um deles já comecei a perder o controle dos sentimentos. Acho que sua personalidade aparentemente tímida, escondendo um rapaz normal, com desejos e curiosidades sexuais normais, atiçou algo em mim que me descontrolou, e tento rever esses sentimentos agora. Não tenho em vista outras amizades. Saio com duas amigas queridas com quem tenho longas e gostosas conversas, e certamente sairia mais se tivesse um salário melhor, afinal ainda gosto de uma boa conversa e ambas conseguem me manter interessado por muitas horas. Não é o caso das outras pessoas, principalmente as da igreja ou as que tinha no trabalho que, além de erguerem um muro encimado por grossos cacos de vidro entre nós, possuem não raras vezes a profundidade de um pires. Essas pessoas são chatas, e já estão fechadas em seus ciclos de amizade, onde não há espaço para mim e, francamente, eu nem suportaria também. Outras ainda me causam um tédio que beira repulsa física. Me identifico cada vez mais com o fronteirismo do Transtorno Borderline, aliado ao meu já conhecido Transtorno Bipolar. Alguns idiotas colecionam bonecos de personagens de filmes e histórias em quadrinhos, eu coleciono transtorno mentais e cartelas de remédios.

“O problema é que as pessoas são estúpidas demais. Não é que eu seja um gênio, mas estou cansado de ouvir as mesmas coisas ditas do mesmo jeito, todos os dias.” (Charles Bukowski)

Uma coisa eu não posso negar, esse concerto de Rachmaninoff é magnífico. O som daquele piano, surgindo em melodia simples que pouco a pouco começa a se confrontar com a orquestra, como uma luta violenta entre um pobre homem e o mundo que insiste em engolir sua existência para cuspir depois. Em momentos de suspensão, o piano dá lugar a uma ternura. Até o mais deprimido de nós ainda consegue encontrar beleza, ainda que transfigurada da dor, entrevendo um mistério inefável expresso apenas pela música. Realmente magnífico, um desespero sublime, das primeiras notas tristes e arrastadas até seu final, não glorioso e apoteótico, mas como um grito de afirmação do eu. A fera que gritou Eu no coração do mundo, revivida no dedilhar de jovem e belo pianista deprimido. 

Essa reflexão tornou minha madrugada um pouco mais bela. Uma paixão sem cruz, minha alma e minhas feridas expostas à nudez das minhas palavras até o último ponto. Ou última nota.

"O que me fere não é a solidão, mas a obrigatoriedade de estar com os outros." (Clarice Lispector)

Nenhum comentário:

Postar um comentário