"Sou tão misteriosa que não me entendo. (…) Há um certo prazer na solidão, mas também uma dor profunda de não caber no mundo do outro." (Clarice Lispector)
É um dia cinza. Sombrio, nas palavras de um amigo, mas o achei lindo. Não queria dormir. Queria ler um pouco, assistir. Mas sei lá, é como se a confusão ao me redor me sugasse e, ao entrar no frenesi das pessoas que me cercam, entre a burocracia de documentos, datas, prazos... Acabo por voltar sempre pra cama. Disse que queria ficar distante das redes sociais e da internet hoje para não descontar em ninguém o desarranjo libidinoso que senti, mas acabei indo pra compulsão e gastei o que não tinha em livros e presentes. Acordei no meio da madrugada, assisti até o amanhecer e, quando finalmente consegui dormir, já era mais tarde do que planejara. Regular meu sono é absolutamente essencial.
Agora, no meio da tarde, fiquei deitado com esse pensamento: assistir mais um episódio e dormir no horário em que o pessoal de casa está mais ativo ou dormir direto, acordar a noite e maratonar, deixando pra amanhã o desconto de sono acumulado nos últimos dias e adiando mais a missão de reeducação dos meus hábitos, para me adaptar a nova dose de estabilizante de humor. Acabei levantando pra escrever um pouco e dormir de novo, aproveitando a nova onda de frio do inverno.
Sinto que estou me matando. Já venho sentindo sintomas de refluxo e dores no estômago há algum tempo. É claro que uma hora abusar de tantos remédios ia me cobrar um preço. Mas não acho ruim, se isso significar que posso aumentar ainda mais a dose. Não preciso dizer que não estou me esforçando nem um pouco para estender minha vida.
Meu amigo disse que era um dia sombrio. Eu acho esse céu cinza lindo, acompanhado de ventos frios. A única coisa sombria é minha concepção da existência, e creio que isso ele não viu. É, definitivamente não viu, nem quer ver. Ninguém quer.
Passei um chá quente Pu-erh com ameixa e, enquanto isso, vou me entregado ao sono. A bem da verdade, nada consegue me apagar mesmo ou me deixar chapado como antes, e era tão bom quando podia escrever sob efeito deles e saiam textos incríveis, tão diversos das repetitivas reclamações atuais sobre como estou sempre sozinho e tudo e tal. Mas bem, o chá é leve e a brisa fresca devem ser o bastante. Talvez acompanhe com alguns concertos para piano. É acho, que é um bom plano. Quem sabe de madrugada eu volte a essa página e termine com mais alguma contribuição.
Não queria dormir tanto, mas ficar acordado é sempre um suplício gigantesco. E há tantas coisas que quero fazer, tantas histórias para conhecer, lugares para visitar. Mas a visão de cada manhã, do início de outro dia terrível, por Deus, me desanima só o fato de levantar e ver a bagunça pela casa. Percebo como a depressão ataca todos aqui, ainda que eles consigam fingir que não. Ou talvez eu tenha me acostumado com isso. Mas vejo que minha mãe não consegue mais cuidar da casa, minha irmã não parece disposta a ajudar, eu incapaz até de cuidar de mim mesmo, apenas indo do sofá pra cama, como uma boneca de trapos carregada por uma criança metódica. Meu pai começa a se preocupar com a própria idade e saúde que avançam, tenta disfarçar, mas seus nervos estão aflorados. Por vezes ele ou minha mãe quebram um copo enquanto lavam a louça. Será que eles se dão conta de que tudo está quebrado nessa casa?
Não queria ficar tanto tempo sem estudar. Queria poder redirecionar um pouco minhas forças nesse campo. Embora esteja lendo os artigos daquela Coleção Cadernos do Concílio, mas admito que demoro bem mais do que deveria. Fiquei feliz por ter lido um dos volumes das Crônicas de Nárnia em dois dias. No dia seguinte peguei um livro do Viktor Frankl que ganhei do meu afilhado e me frustrei por não passar da introdução. Decidi voltar ao C.S. Lewis, mas agora o segundo volume está acumulando poeira com o marca-páginas ainda longe do número cem. Achei que estava conseguindo voltar ao meu ritmo de estudos. Lembro que num dos períodos mais obscuros de depressão, quando ficava semanas de cama e não conseguia nem tomar banho ou comer direito, eu ainda conseguia ouvir as aulas do Prof. Olavo, que sempre me davam o que hoje percebo ser a força para continuar naquele caminho por ele guiado. Acho que, assim como preciso ter paciência e retomar a prática da leitura a começar por volumes menores e de mais fácil entendimento, talvez tenha que retomar as primeiras aulas do Seminário de Filosofia, de modo que recupere aquele vigor do qual depende a vida intelectual.
Não queria gastar tanto, inclusive o que não tenho. Mas tem sido difícil controlar a compulsão. Multiplicam-se os livros, as canecas, os itens de cuidados faciais. São úteis, é verdade, mas não necessários nessa quantidade. E em dias como hoje eu simplesmente entro nas lojas online e saio comprando, no crédito, no cheque especial, no cartão dos meus pais… No momento parece que aquilo vai me acalmar, e que a espera da entrega será satisfatória, mas todos os dias chegam coisas novas e todo dia é igual. Como dizia Santo Agostinho, "seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam senão em ti." Venho buscando fora, nas coisas que, de modo algum, podem me ajudar realmente, porque não é delas que eu careço. Não são elas que vão preencher a parte que falta em mim. Mas que parte é essa?
Não queria ceder e acabar ficando onde não quero. Queria que algumas pessoas me deixassem quieto, mas parecem não se importar com o fato de que eu não as respondo porque não quero contato, porque as considero desagradáveis ou simplesmente banais demais. Venho ignorado há várias semanas uma coordenadora que insiste em ignorar todas as orientações superiores e eu preciso me adaptar a isso para que ela fique satisfeita, o que não pretendo fazer, pois esses são alguns daqueles meus valores inegociáveis.
Não queria depender do outro pra ser feliz e, justo por isso, se absolutamente infeliz. A necessidade do outro me machuca à medida que quanto mais próximo, mais distante e vulnerável eu me sinto. E forçado a cooperar em convenções sociais que me incomodam. Eu não quero ir num show de uma banda que eu desprezo para agradar uma pessoa que não iria a um recital de piano comigo. Mas parece que se eu não fizer isso, vou ficar sozinho, e se fizer, embora acompanhado, não será a companhia que esperava. A todo momento penso que logo serei trocado, e serei mesmo. Se eu não vou com alguém, essa pessoa arruma outra companhia. Se eu fico sozinho, tenho de ir sozinho mesmo. Parece, guardadas as devidas proporções, que também tento completar com a presença do outro algo que falta em mim e que nem sei o que é. E, como provavelmente esse não é o modo correto de resolver esse problema, continuo no ciclo vicioso de me frustrar sempre.
Acabei não conseguindo dormir como queria, apenas desperdicei um punhado de remédios. Droga, a cada dia meu organismo está mais resistente a eles. Ficar girando na cama ficou incômodo demais, acabei levantando e me dedicando a essas palavras, como se as colocar pra fora me ajudassem a tirar um peso do peito, me ajudasse a respirar melhor da brisa fresca que entra pela janela e agita a delicada fumaça que levanta do meu chá carmesim. Mas, embora sejam como um arrancar de pele, não sinto que me livrar dos demônios presentes nessas palavras me façam mais vivo. Ao contrário, elas pintam um enorme mural que, observado direito no afastamento devido, é apenas uma parte que permanece de um gigantesco mausoléu em decadência.
Meu amigo disse que era um dia sombrio. Eu acho esse céu cinza lindo, acompanhado de ventos frios. A única coisa sombria é minha concepção da existência, e creio que isso ele não viu. É, definitivamente não viu, nem quer ver. Ninguém quer ver ruínas.
"A vida é um processo cadavérico. (…) Senti-me só, e a solidão me apodreceu os ossos." (Augusto dos Anjos)
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