domingo, 31 de agosto de 2025

Sexta-feira em ruínas malditas e zolpidem

"O álcool é provavelmente uma das melhores coisas que chegaram à Terra, além de mim. Nos entendemos bem. É destrutivo para a maioria das pessoas, mas eu sou um caso à parte. Faço todo o meu trabalho criativo quando estou intoxicado. O álcool, inclusive, me ajudou muito com as mulheres. Sempre fui reticente durante o sexo, e ele me permitiu ser mais livre na cama. É uma liberação porque, basicamente, eu sou uma pessoa tímida e introvertida, e ele me permite ser este herói que atravessa o espaço e o tempo, fazendo uma porção de coisas atrevidas… O álcool gosta de mim.”

(Charles Bukowski)

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O que o velho Buck diz sobre o álcool eu digo sobre os meus remédios para dormir. Embora eles pareçam querer me abandonar, fazendo cada vez menos efeito, devo admitir que foi sob efeito deles que consegui escrever algumas de minhas páginas mais memoráveis. Não que eu seja um escritor memorável, não sentado no chão da sala ouvindo os roncos do meu pai aos trinta anos, desempregado e fazendo tratamento psiquiátrico. 

Mas eles me deram a oportunidade de fugir, por pouco tempo que seja, dessa droga de mundo. 

Se as coisas que digo são um incômodo a todos, a quem ouve e a mim que sofro as consequências, o que pode haver de melhor do que a oportunidade de não dizer? De me calar diante do mundo? 

Por isso queria ser mais independente do outro. Aquelas pessoas que não precisam de ninguém, que sentam numa mesa de bar e tomam sua cerveja sem ligar para nada. Eu fui ao cinema sozinho duas vezes e, esperando ter a mesma experiência das pessoas na internet que disseram ser libertador, acabei achando excepcionalmente deprimente.

Se já não acreditam mais quando falo sobre meus planos para meu próprio fim, não falarei mais a ninguém. Essas páginas serão minhas únicas confidentes onde, em letras escarlates, registrarei com meu sangue a minha dor existencial. 

Sozinho enquanto outros enchem a cara, trepam com suas namoradas ou amantes, comem com os amigos. Lembrarão de mim na necessidade, apenas. Mas eu não quero mais ser assim, e se for preciso ficar completamente sozinho, o que não seria muito diferente de agora, eu vou ficar.

Só queria que as drogas continuassem funcionando. Que pudesse dormir sem preocupação. Me encanta estar inconsciente desse mundo.

Rivotril. Diazepam. Zolpidem. Cloridrato de Ciclobenzaprina. Dramin, Fernegan. Celestamine. Hidroxizina. Todos ao mesmo tempo, e ainda assim dormi por menos de seis horas. Gostava de quando metade disso me apagava por oito ou até doze horas. Era delicioso. E com isso podia ignorar as mensagens, aliás naquela época todos me odiavam, ninguém me procurava. Talvez devesse voltar a ser assim. 

Bem, eu só queria um bom sono, desses que apagam completamente. Tão profundos que sequer sonhamos. Só queria uma dopada candura que me permitisse não mais acordar. Não mais ver o amanhecer de outro dia terrível. 

É uma ilusão, no entanto, acreditar que isso faria alguma diferença para os outros. Não. Os remédios me fazem dormir, mas eu também serei aquele a ficar doente por isso. 

Meu silêncio apenas deve me proteger dos outros, não vai incomodá-los ou preocupá-los. As coisas que digo não tem a menor importância. 

É como quando alguém falece. Na família alguns cuidam dos documentos, outros choram, mas o resto do mundo continua. Se a pessoa trabalhava, começam imediatamente a buscar um substituto. O Papa Francisco nem havia sido velado e já se falava no próximo conclave, com especialistas e idiotas dando suas opiniões. Portanto, essa minha opção, e isso precisa ficar claro para mim mesmo, é apenas e tão minha e para minha proteção. Eu simplesmente não quero mais me incomodar e sofrer pelo outro. 

Ensaiei dizer que não queria sair, o convite foi cancelado. Menti quando disse que estava tudo bem, mesmo mudando minha forma característica de escrever, e bem, ninguém ligou. Então, essa é uma ação que serve apenas para mim. 

Dormir serve para aliviar minha dor ao anestesiar as chamas da realidade que me consomem. Serve para me afastar do outro, para me proteger do peso de conviver. Não serve ao outro senão para aliviar o peso da minha incômoda companhia. 

Alguém até poderia me questionar: mas por que raios uma pessoa poderia querer isso? E então eu fecho os olhos tentando me concentrar em vão no Concerto para Piano N° 3 do Rachmaninoff e o barulho ao redor mostrou que é simplesmente impossível. Também não consegui me concentrar nas leituras. Aumentam os números dos livros que não consigo ler. Além de incapaz, cada dia mais doente da cabeça, serei burro também. E eu acho que isso já é motivo mais do que suficiente para querer me isolar no sono. Meu sono. 

Finalmente começo a sentir algum sono. Espero que durma todo o resto do dia. 

Bom mesmo seria nunca mais acordar.

X

"(...) A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece." (Clarice Lispector)

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Homeopatia do Fim


"Alma minha gentil, que te partiste 
tão cedo dessa vida descontente,
repousa lá no céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste."
(Camões)

Não estou surpreso. Um pouco triste, talvez, mas surpreso não. Sei que logo chegarão mais mensagens, pedidos. Sempre assim. Mas esta será mais uma sexta em que passarei sozinho, sem ânimo até mesmo para assistir às séries que, antes, me faziam tão bem.  Ninguém vai lembrar de mim, no entanto, para os embalos de sexta à noite. Mas, bem, não vou fazer nada, continuo quietinho no meu mundo fechado, pois, como disse Machado de Assis: "há coisas que melhor se dizem calando." 

Eu só não quero mais lutar. 
Embora triste e humilhado, 
reconheço a derrota. 

Sempre a derrota.
Não apenas de uma batalha,
mas toda minha guerra.

Sempre derrota.

Não há lugar para mim nesse mundo. 
Não há onde possa me deitar em colo.
Vivo exilado em mim. 

Como se a um reino
tivesse atentado à soberania.
De fato tentei invadir,
mas o coração não era meu. 

E então, quando decido recuar
percebo que estou tomando
um remédio homeopático.

Em pequenas doses 
vou morrendo, 
em cada pequena dose de desamor.

De solidão, desesperança
de frial indiferença.
Enquanto de mim se lembram na precisão.

Não estou surpreso. Um pouco triste, talvez, mas surpreso não. Sei que logo chegarão mais mensagens, pedidos. Sempre assim. 

É curioso quando ofereço ajuda, ou quando aceito um pedido. Dizem que sou lindo, que sou um sonho. E então devoram cada pedaço com uma fome voraz, violenta. Mas quando eu preciso de ajuda, quando peço por alguma demonstração mínima de amor, quando quero companhia pro cinema ou pro concerto de piano, bem, aí é incômodo demais. Engraçado, não é demais quando sai de mim. Mas, de todo modo, esta será mais uma sexta em que passarei sozinho.

São João da Cruz disse, em certo lugar, que "ferida de amor não se cura, senão sem a presença ou figura." Tomarei o oposto como realidade, quero buscar agora o afastamento por iniciativa minha. Quero ser eu a dizer não. Não quero pular com os jovens, não quero ouvir besteiras sobre garotas, detesto garotas, não quero ser obrigado a estar sem querer. Estar vivo já é mais do que eu queria. Estar acordado, então, é um absurdo a minha vontade!

E eu só queria dormir nessa droga de dia! Mas nenhum dos remédios funcionou, e gastei o resto que tinha na conta para comprar outros dois e, quem sabe, conseguir apagar. Não aguento mais ficar acordado. Simplesmente. Sei que já é um quadro de dependência, mas que importa? Não consigo pensar numa razão para querer me manter sóbrio. A sobriedade me inspira uma preguiça existencial. Eu  observo o ser, a vida, tudo com total e absoluta desesperança. Minha única vontade é a de ser completamente destruído, deixando de existir. 

Voltar ao nada. 

X

O trabalho que eu havia feito por prazer e praticamente de graça estava sendo recompensado com dinheiro vivo. Me senti como o jovem Hemingway. Deve ser uma maravilha ser um escritor verdadeiramente bom, mesmo que isso signifique um tiro de espingarda no fim da linha.

E talvez seja por isso que eu, Bukowski, ainda estou aqui, não menos sagrado que Gandhi e, doçura, talvez um pouco menos morto, disparando histórias que talvez só as pessoas interessadas em sexo possam entender. 

Eu bebo,
minha cabeça tomba sobre a máquina de escrever,
ela é meu travesseiro!

Eu sou o Underground, sozinho. E não sei o que fazer.

(Charles Bukowski)

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Um copo de chá esquecido entre mil garotos

Antes de me sentar aqui no chão, com uma caneca de chá fumegando ao meu lado e perfumando levemente o ambiente, ouvindo algumas músicas do Stray Kids baixinho, me veio a ideia de um texto menos óbvio, com imagens etéreas, quase como sombras e luz apenas. Infelizmente, como parece ser a sorte de alguns espíritos criativos menores, as primeiras palavras desapareceram no ar como a fumaça leve do chá. Com as gotículas de água nas bordas da caneca, eu começo a escrever com o que sobrou. 

Estou no fundo do poço do desânimo, mas não engano, sei que ainda posso ir mais fundo, cavando com minhas próprias mãos, manchando minhas unhas de lama e arrastando os pés sangrentos. 

Caminho com uma profunda desilusão estampada nos olhos opacos. Meus olhos são como bandeiras, mas não acredito que alguém os veja tremular ao vento. Estou sempre em busca da poesia ao redor, que possa fazer com eles brilhem novamente, se é que um dia brilharam, não me recordo dessa época que, embora tenha hoje trinta anos, parece ter sido há tantas eras que não sei se de fato existiu ou se é obra da minha imaginação. 

Sinto-me como um espírito, o corpo pairando de modo etéreo. Não é possível afirmar que há vida em mim. 

Não sabia ser possível para alguém acabar tão sem perspectiva assim. Muito embora minha condição financeira seja melhor que de muitas pessoas, não é a isso que me refiro. Penso nas pessoas que passam fome, frio, abandonadas por suas famílias e esquecidas pela sociedade. Elas, por vezes, tem esse olhar vazio, de quem já não vê possibilidade. Elas sobrevivem a um dia depois do outro, e isso é tudo. 

Menti na terapia quando disse que já pensava no próximo emprego, em voltar para a sala de aula. A verdade é que tenho medo de acabar achando tudo aquilo insuportável como nos dois últimos lugares em que trabalhei, o que significa que o problema sou eu. Não excluindo, claro, a boa parcela de culpa daquelas duas vagabundas. 

Gostaria de algo que me desse liberdade. Eu consigo se produtivo e responsável, mas tenho dificuldade com os horários fixos, com certas cobranças idiotas e superficiais. 

Também comentei na terapia essa semana da imensa dificuldade que enfrento nos relacionamentos. De como sempre busco e desejo companhia, mas, ao fim, acabo por afastar as pessoas, me isolando novamente. Acabei por me aproximar de um amigo que, na semana passada, acabou me deixando bem paranoico quanto ao estado da nossa amizade. Como era de se esperar, eu havia confundido tudo. O estado de nossa amizade não mudara, e nem mudaria. Mas qual foi minha surpresa quando ele se aproximou de um jeito ligeiramente mais íntimo. Conversamos sobre sexo! Achei, mais uma vez erroneamente, que algo havia mudado, apenas para, alguns dias depois, ser novamente surpreendido com a verdade simples: tudo continuava igual. 

Busquei companhia.
E encontrei o abismo do meu próprio gesto.

Um amigo, quase íntimo,
quase amor.
Conversamos sobre sexo,
e eu pensei que o mundo mudara.

Mas nada mudou.
Era só a minha tola esperança
vestida de engano.

E fiquei sozinho,
com a ternura que espanta
aquilo que mais desejo.

Ele vai se apaixonar pelas próximas mil garotas que surgirem na vida dele e eu, bem, pelos próximos mil garotos. Negócio inteligente para ambos se ele percebesse que o carinho que tem por mim e o amor que tenho por ele poderiam superar as barreiras de orientação sexual entre nós, mas a ideia é utópica demais. 

Eu nem sempre consigo identificar os gatilhos, e há cada vez menos pessoas para me ouvir. Meus amigos, que sempre contei nos dedos, estão piores que eu. Falar em voz alta ajuda a organizar pensamentos, quase como escrever. Mas falar dá a possibilidade de perceber absurdos com mais facilidade. Até as minhas sessões com a psicóloga do Centro de Apoio Psicossocial estão contadas, e não tenho dinheiro para pagar terapia em outro lugar. Então sempre estou fugindo de um monstro, mas onde quer que eu vá, ele está lá. E então busco um lugar onde ele não possa entrar. Ao menos durante o inverno, ficar na cama não é tão desconfortável quanto ficar suando sem roupa no verão, com o ventilador soprando um ar pesado, úmido e quente sobre meu corpo. Mas agosto está no fim, e logo o tempo vai esquentar. E eu vejo essa passagem de estações com profundo pessimismo, como se o universo olhasse pra mim em tom zombeteiro e dissesse: "não há nada que você possa fazer, seu verme."

De fato, não há nada que eu possa fazer. 

X

"Eu podia ver a estrada à minha frente. Eu era pobre e ficaria pobre. Mas eu não queria particularmente dinheiro. Eu sequer sabia o que desejava. Sim, eu sabia. Queria algum lugar para me esconder. Um lugar onde ninguém tivesse que fazer nada. O pensamento de ser alguém na vida não apenas me apavorava como me deixava enojado." (Charles Bukowski)


Que se foda, eu só queria não acordar

Alguns sentimentos conflitantes surgiram numa combinação misteriosa. Por um lado, ao assumir o meu ímpeto luxurioso ao entrar no que, me parece, um episódio misto de oscilações de humor, apareceu também, como numa contraparte, um ou "Eu" em contraste com a fera, que sentia vergonha daquilo que queria vir à luz. 

Que pode um canteiro de delicadas flores contra uma fera destruidora? É assim que me sinto ao tentar refrear os impulsos que aparecem nesses dias. Como se eu pudesse quase literalmente devorar a carne dos rapazes que me cercam. E quando esses rapazes são pessoas próximas ou importantes, e me vem a mente todos os que se foram porque horrorizados com esse monstro não puderam mais olhar para mim... Bem, isso me enche de vergonha. 

E então eu pedi desculpas a um amigo, na pessoa dele queria me desculpar com todos com quem já fui grosseiro, desrespeitoso, por conta dessa intensidade hipomaníaca que tantas vezes me faz falar e fazer coisas horríveis. 

Mas, que pode um jardim de delicadas flores contra uma fera violenta? Apenas esperar que alguma outra força aprisione a fera para que não as destrua de todo. 

Bem, é mais ou menos isso que acontece comigo nesses dias em que é melhor dormir e me afastar do que acabar perdendo mais um amigo. Acho que já estou sozinho demais para perder mais amigos por conta desses impulsos incoercíveis. 

Por fim, já que, me parece, faltar-me-á lirismo para me demorar mais, fica nos recessos de minha mente o questionamento da terapia dessa tarde: o que há por trás desse duplo movimento meu em relação ao outro, em querer obsessivamente quando não posso ter e, ao contrário, quando sinto, até mesmo de forma intuitiva, que há uma chance real de aproximação efetiva que vai demandar um verdadeiro esforço emocional, eu me afasto, me protejo, fugindo como um gato medroso. Será que por trás de toda intensidade no sentir há, na realidade, medo de me comprometer, de me machucar mais uma vez, e por isso eu invisto apenas onde não posso vencer?

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MISANTROPIA

"Qualquer dia só nos damos com gatos."
(Manuel de Freitas)

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Hoje acordei praticamente incapaz de conviver. Sono, mau-humor, tesão misturado com um completo desinteresse pelo outro e até mesmo pela existência. Até tentei levantar, brincar um pouco com as misturas de ervas e frutas para algumas infusões, mas o barulho, uma certa fadiga que eu não sei se é apenas minha ou coletiva me fizeram voltar para a cama. Eu simplesmente não quero ver e nem falar com ninguém. Se fosse possível, para sempre. Infelizmente acho que, mesmo desejando o outro intensamente, eu quero apenas ficar sozinho. Se não tenho quem quero, não quero ninguém. Pensar no outro me causa náuseas. Eu sou o amigo do desabafo, mas são as meninas medíocres que recebem foto dos caralhos duros. Essa verdade me enche de uma ira genocida, ou suicida. Como não é nenhuma novidade, vou apenas encher a cara de remédio e torcer para que, dessa vez, algo dê errado e eu não acorde mais. Acordar é um porre. Viver é uma droga. O tesão acumulado é uma merda. Tentar fazer algo para me distrair é inútil. Então só me resta dormir. Me recordo, ao pensar nas minhas drogas, do velho Buck falando sobre a bebida: "Quando você bebe, o mundo continua lá fora, mas, por um momento, é como se ele não o trouxesse preso pela garganta."

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"Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?" (Charles Bukowski)

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A cidade dorme às nove

Jo Metson Scott

Tive uma crise alérgica desde as duas da madrugada de ontem (são quase duas da madrugada de hoje), e passei todo o dia revezando entre uma dopada candura, misturando remédios para dormir e para a alergia, com os episódios de crise respiratória. Uma droga. Culpa, aparentemente, da queda de  quinze graus na temperatura, voltando ao normal do inverno joinvilense depois de um irritante veranico, que durou uns três dias, e me ficar de cuecas em pleno mês de agosto.

O fato é que agora estou absurdamente cansado, como se cada fibra do meu corpo protestasse, resultado do esforço demasiado para respirar.

Mas, apesar dos pesares, consegui aproveitar alguns momentos, além do sono profundo. Por exemplo, um fato que me deixou contente é que o Marc Thanat, que conheci anos atrás como músico bem novinho na Kamikaze, extinto e renascido selo musical tailandês especializado em artistas jovens/mirins, retornou ao mundo do entretenimento. Passei anos acompanhando a vida simples dele depois do fim da empresa. Ele não parecia ter desistido da música, sempre aparecia com um violão entre um passei e outro com os colegas da faculdade, mas não deu a sorte de outros nomes da empresa, como o Gavin D que continua com produtor, ou o Third que conseguiu um baita sucesso num grupo musical temporário e algumas séries. Poder vê-lo como protagonista de um BL me deixou bem feliz, ainda mais ao ver o quanto ele ficou bonito, conservando o mesmo sorriso num rosto pouco mais velho. 

Pude aproveitar um pouco disso tomando um chá quentinho. Tenho gastado mais do que deveria com chás recentemente, mas isso tem sido um momento de prazer. Não chega a ser um hiperfoco, apenas um passatempo. Não tenho estudado sobre eles nem buscado soluções em ervas milagrosas, muito embora os chás me ajudem muito em dias como esses de crise respiratória, ou agora a noite, incomodado por gases por conta da quantidade de remédios que tomei. Apenas passo um chá, provavelmente do jeito errado, e aproveito o aroma, o sabor, o calor da xícara em minhas mãos, fechando os olhos e deixando o perfume penetrar assim com o som de um concerto de piano, como o n° 1 de Chopin que escuto nesse momento na interpretação do fofo Seong-Jin Cho.

O lado bom da doença é que ela redefine nossas prioridades, e isso é excelente. Um professor certa vez disse que poucas coisas fazem tão bem a um homem do que tomar um soco na cara, e eu concordo plenamente. Com tantas dores pelo corpo e a realidade desacelerada, eu posso dizer que quase não penso nas coisas que disse nos últimos dias. De novo me recordo da música e penso 

"Quantos mistérios que você sondava? 
Quantos você conseguiu entender? 
Quantos segredos que você guardava? 
Hoje são bobos ninguém quer saber... 
Quantas mentiras você condenava? 
Quantas você teve que cometer? 
Quantos defeitos sanados com o tempo 
eram o melhor que havia em você?"
(Oswaldo Montenegro)

É com reequilibrar um pouco a mente, ainda que às custas de uma doença. O trabalho, quando não nos rouba totalmente ou nos corrompe, também o serve. Discordo quando dizem que o trabalho dignifica o homem. Vi o bastante para notar que ele o destrói. E nem preciso ir longe atestar isso. Morando numa cidade onde tudo fecha às vinte e uma horas porque todos estão cansados demais, comerciantes e clientes, da jornada exaustiva das fábricas. No fim de semana o cansaço fica impregnado no ar de tal modo que, se esticar a mão, é quase possível sentir, como uma chuva densa de verão, o peso da umidade, aqui sendo o da fadiga. Parece que a todo momento uns tentam devorar os outros. Assim com na figura do ourobouros a cobra devora a si mesma. Assim como pareço alimentar a todo tempo aquilo que mais me destrói. 

Não devo ir para a terapia amanhã. Preciso começar a pensar em uma alternativa a todo esse consumo de remédio para dormir. Nas duas últimas semanas eu já dobrei a dose que derrubaria até um elefante, e nem assim tenho conseguido dormir o dia todo. Também tentei ficar longe completamente das mensagens, sem sucesso. Mas isso eu também já sabia como seria, ou tinha vaga ideia. Talvez termine esse texto depois, pois as dores estão voltando com o sono. Ou não. 

"Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida." 
(Clarice Lispector)

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Mais um punhado de remédios

"... e essa é uma boa lição para aprender na vida: Deixe ir." 
“Liv and Ingmar” (2012)

Essa é a verdade simples que eu preciso aceitar: a sua inevitável e inadiável solidão. Jamais vou conseguir me conectar. O outro é inalcançável. 

Somos inalcançáveis. 
Distantes demais. 

Vamos morrer de frio. 

E a tristeza em dizer isso é ainda maior ao ver o outro se afastando sem poder dizer ou fazer nada. É como se eu gritasse e ninguém me ouvisse. E por isso ele continua se afastando, sem olhar para trás, sem olhar para mim. Porque, em última instância, eu nada significo para ele. 

Para ninguém. 

Até pensei em escrever numa métrica mais bonita, mas percebi que não há razão para isso. Se o que eu digo e como digo já não tem mais nenhuma importância, posso apenas voltar ao objetivo inicial de tudo aquilo quanto escrevi: apenas colocar para fora o que sinto, sem nenhuma outra preocupação estética a mais. 

Não vou mais usar de uma linguagem que tente trazer ao outro algum tipo de percepção da verdade. De como superada a barreira da sexualidade, o sentimento verdadeiro, o amor, essas coisas poderiam suprir tudo o resto. Não adianta dizer se apenas eu creio nisso. É a maldição do oráculo de Cassandra.

Também não quero florear nada, a forma impregnada na minha mente a essa altura será o bastante para traduzir em palavras aquilo que se remexe no meu peito, a saber, um sentimento de rejeição, culpa, com explosões de fúria seguida de melancolia. 

É que eu achava, grande idiota que sou, que se conseguisse convencer as pessoas de que o amor pode superar tudo, elas aceitariam. Ou melhor, abandonando também esse ridículo plural majestático, típico dos que arrogam para si a autoridade de falar em nome da humanidade. Voltando, achava que se eu o convencesse da sinceridade de meus sentimentos, as barreiras criadas sobre a sexualidade seriam desfeitas. Mas quantas vezes eu cometi esse mesmíssimo erro? Esse maldito erro de crer que meu sentimento é capaz de algo?

Não, a verdade é que ele não capaz de nada. Nada. 

Continuo sendo um homem, nojento e desprezível, aos olhos dos outros. E isso o digo atestando sua atitude para comigo. Por trás da imagem de belas moças recatadas e discretas, porém de inteligência aguçada, eles só buscam pelos seus corpos. Querem comer bocetas. Apenas. E não os culpo, nem tampouco os demonizo, afinal nunca escondi que também desejo suas rolas dentro de mim, seus gemidos em meus ouvidos e no olhar uma expressão de desejo e depravação que normalmente espera-se de uma prostituta barata, mas que, a bem da verdade, também nunca escondi estar presente nos meus próprios olhos.

Sexo e boa companhia, sim, esperava por isso. Queria, desejava mais do que qualquer outra coisa. Mais do que minha saúde, mais do que qualquer outro tipo de realização, profissional, intelectual... E sei que com isso traí justamente a intelectualidade que prometi buscar. Não me surpreende que eu seja um hipócrita. 

A minha retórica da superação das distâncias pelo amor mostrou-se falsa. Não existe sentimento capaz de superar a vontade de um homem de enfiar o seu pau numa boceta. E há bem poucas coisas que eu poderia dizer para convencê-los a enfiar no meu rabo. Bem, é assim que as coisas são. Mesmo sabendo que existe, por outro lado, um número sem fim de homens que procuram exatamente o que eu quero, acho que já me desiludi demais para continuar a tentar. 

Há esperança, só não para mim.

E é claro que eu também sei que me ouvir reclamando continuamente da vida, do amor, do tesão acumulado, cansa, então acho que é melhor eu simplesmente não dizer nada. Não quero mais ser o coitadinho. Por isso, já que esse confronto me seria desnecessário, na impossibilidade da vitória, eu prefiro apenas tomar mais um punhado de remédios para dormir. É preferível simplesmente não ver esse dia. O pouco que tenho visto dos dias anteriores já me machucaram o suficiente. Ontem eu fiquei completamente destroçado, e ainda fui acusado de dizer palavras duras.

Mas e o silêncio diante da minha sinceridade em não esconder o que sinto por ele? E o silêncio dos últimos meses, devo continuar fingindo que está tudo bem? Não está. Simplesmente porque ele se nega a enxergar o óbvio diante de nós: estamos distantes demais (literal e figurativamente). E não será o esforço de apenas um de nós capaz de mudar isso. Tudo isso não foi também duro demais?

Sempre começa assim, a distância física precede um afastamento afetivo que, por fim, dá lugar a distância física definitiva. Quantas vezes isso já me aconteceu? Quantos amores se foram e hoje nem sequer lembram meu nome? E eu não nego que fui sincero com cada um deles. Mas talvez a sinceridade só sirva quando se refere aos desejos mais baixos do ser. 

Talvez eu devesse reativar aqueles aplicativos onde os homens buscam apenas um buraco para enfiar seu pau. Como vi que amor, sinceridade, tudo isso é uma grande besteira, que mais eu deveria buscar senão alguém pra enfiar o pau em mim? 

Diante desse cenário, que mais eu posso fazer? Apenas observar, à distância, até que todos se afastem. Só me pergunto quantos mais eu verei partir dessa forma. Vamos novamente: Fernegan, Dramin, Ciclobenzaprina, Zolpidem, Diazepam. Acho que esse punhado de remédios talvez seja pouco para tanta desilusão.

Queria adormecer lentamente, com um livro no colo, sentado na varando, ouvindo algumas crianças passarem sorrindo, sem saber que o futuro que as espera 

é uma desgraça. 

A vida é uma desgraça. 
Isso que chamam de amor é uma desgraça. 

Ao fim, 

ficarei apenas a fitar o horizonte, 

coração vazio, 

em silêncio,

o sol se pondo,

pela última vez.

Fecho os olhos, sentindo o calor que toca meu rosto pouco a pouco diminuir. Junto as mãos e faço uma única e breve prece: que eu não acorde mais. 

E fim.

Final Único

A aceitação radical da realidade é um traço básico da maturidade, faz parte do crescimento como pessoa não se perder em idealizações de modo que elas falem mais alto do que aquilo que se mostra diante de nós. É apenas diante da realidade, que podemos encontrar algum meio de ação, que só surge, ipso facto, depois da compreensão mesma da situação. A negação da realidade em detrimento de um devaneio gera o desespero, cumina em niilismo, pois se funda nas areias de uma praia a mercê de tempestades incontroláveis que derrubam essas convicções como se não fossem nada. E de fato não o são.

É a constatação de que, diante do mundo, nossos meios de ação são bastante limitados e que, na maior parte do tempo, podemos apenas lidar com situações que se apresentam a nós.

Veja que minha posição não é a da aceitação estoica, que também termina por desembocar no niilismo, e nem a que pularia essa etapa e aceita o niilismo de modo a buscar superá-lo, como colocava Nietzsche, sem grande sucesso. Talvez se equilibre entre ambas, no entanto, não sendo um realismo, ao modo aristotélico-tomista, pois encontro certa dificuldade em crer no transcendente frente ao lodaçal da realidade que se antepõe a mim. 

Pois bem, esse excurso serviu única e tão somente para aprofundar e marcar, em minha própria pele, isto é, a minha consciência, da aceitação do meu lugar. Seja diante de amigos, distantes, embora presentes, ou de (im)possíveis pretendentes, que eu reconheço a minha solidão como condição inerente a minha existência. As fugazes conversas sobre sexo, prazer e até mesmo sobre aproximação e favores sexuais, são apenas uma espécie de aceno, talvez até mesmo um engodo maligno, que eu não posso permitir que me leve a pisar em terrenos resvaladiços. 

A verdade, simples e bruta, é que ninguém nunca, jamais, olhará para mim. Eu sou alguém com uma imperfeição fundamental, alguém que repele os outros, que os afasta com asco. Por isso, não se iluda jamais Kaoru Gabriel: os que sorriem para você, os que até falam alguma sacanagem com você, jamais deixarão que você sequer os toque e, ao menor sinal dessa sua intenção, eles lhe darão as costas. Como tantos outros já fizeram. 

Você conseguiria ao menos enumerar todos que já se foram e hoje nem sequer recordam da sua existência miserável? Quantos homens transaram com você e nem sequer souberam seu nome e nem você os dele? Quanto mais aqueles que nem mesmo cogitaram essa opção, não porque você é homem, sabe bem que outros homens podem conquistá-los, mas porque é você. E você é nojento.

Recorde da música e faça uma lista de grandes amigos: quem você mais via há dez anos atrás? Quantos você ainda vê todo dia e quantos você já não encontra mais? Quantas pessoas que você amava? Hoje acredita que amam você?

Enquanto me perco nessas reflexões, preciso dar um passo. Não uma superação daquele nada sobre o qual comecei esse breve texto. Mas aceitação, ainda que dolorida e, não raras vezes, revoltosa dessa verdade brutal que me confronta a cada dia. 

A cada mensagem lida, 
a cada espera,
a cada sorriso difícil de interpretar,
a cada abraço confuso atrapalhado num beijo.

Nem sequer deveria prestar atenção a esses detalhes. E o fato de ter notado já mostra, por si, que uma vez mais permiti ao meu coração aquele sentimento que, um dia, jurei, que não ia mais entregar a ninguém. Porque amar é uma droga. Ser dependente é uma droga, não muito diferente das que eu todo quase todos os dias. Esses sentimentos que me prendem, que me fazem crer incapaz, são um inferno. Amar é um inferno. Voltar a amar depois de tudo que já passei é saltar sozinho no abismo que cavei com os meus pés, agora sangrentos.  

Pelo menos percebi antes de colocar outro ídolo no altar da adoração. Assim posso deixá-lo vazio, como deve ser. Suportando, amparado pela realidade, essas verdades porque sei que elas não dependem de mim. Como disse, o que controlamos é bem pouco em face do mundo que nos rodeia, nos molda e nos ataca como quem, bem como nos consola quando quer também. Portanto, devo apenas aceitar, mudar o que for possível e o que não for, bem, não tem o que fazer, ainda que possa reclamar e me irritar.

Essa é a verdade simples eu preciso aceitar: a sua inevitável e inadiável solidão. Jamais vou conseguir me conectar. O outro é inalcançável.

Estou escrevendo sozinho, numa sala vazia, sob efeito de uma dupla dose dos remédios que normalmente uso para dormir por seis ou oito horas, discorrendo sobre o vazio que é o sentimento dos homens por mim. Tantos deles passam por mim todos os dias, tantos sorriem e cumprimentam, mas continuo só. Estão com amigos, comendo, sorrindo, jogando, se beijando ou se masturbando, enfim, sendo amigos, sendo amantes, sendo qualquer coisa que não o são comigo, pois eu não sou nada para ele. Essa é a verdade simples eu preciso aceitar: a sua inevitável e inadiável solidão. 

Esse é o único final possível.

"Devo estar envelhecendo para começar a soma das compensações. Mas a alegria simples de sair em silêncio para visitar um amigo. De amar ou deixar de amar sem nenhum medo, nunca mais o de empobrecer, de me perder, já estou perdido!" (Lygia Fagundes Teles)

domingo, 24 de agosto de 2025

O gesto do recuo


Acredito que este seja o instante —
enquanto ainda conservo algum fio de lucidez —
de escolher a distância.
Não a fuga,
não o exílio completo,
mas aquele espaço mínimo
onde ainda respiro
sem ser ferido pelos espinhos.

O dilema posto diante de mim 
é sempre o mesmo,
o ouriço e seu inverno:
aproximar-se é dor, quente como brasa
a marcar a pele,
afastar-se é frio, aço cortante e vil.
E no meio há uma linha tênue
onde talvez eu possa existir.

Já passei dela, sei disso.
Elevei o coração além do suportável
e a queda foi motivo de grande depressão.
Banhada ficou minha face,
por meu amigo traído, 
tinha por inimigo agora.

Agora, diante de uma conversa banal,
sinto-me incendiado 
como se fosse revelação.
E isso, mais do que tudo,
me mostra:
eu deveria ter erguido fronteiras antes,
ter inventado o gesto discreto do recuo.

Pois, ao vislumbre do desejado posto
de um homem querido
pondo-se disposto a unir-se com ele em gozo
percebe que se trata apenas
de um desejo, do tema de um poema.
E que, voltando ao real
precisa proteger-se da projeção
que colocou ele e seu desejo 
em corpo branco tal.

Muralha da consciência,
campo de absoluto terror. 
Aquele orbe que por sobre os homens,
os separam de todos os outros homens,
fazendo de todos esses homens
pobres seres incapazes de se compreenderem.

Existe esse vazio no âmago de cada homem,
e o homem teme esse vazio,
desde o primeiro pensamento,
desde o primeiro momento em que, 
olhando ao redor
se viu sozinho no meio de uma infindável multidão.

Temendo esse vazio, 
temendo a multidão,
temendo o silêncio no coração,
temendo a dicotomia 
entre a proximidade e a solidão,
o homem em desespero 
busca preencher esse vazio,
ou, na maioria das vezes, 
esquecer simplesmente sua condição.

Que infelicidade a sua visão,
vê aquilo que deseja, 
o outro ao alcance da sua mão.
Mas, ao mesmo tempo, 
distante como um pequeno observatório,
a fitar o céu,
de toda uma constelação.

Por fim, essa constatação, 
olhar o outro, 
e ver o quão distante estão.
A impossibilidade total,
completa, absoluta e irrevogável, 
da compreensão.

Carinho que finda em palavras,
que nunca encontra ternura
na demonstrada afeição.
A união que nunca se perpetuará,
o toque que nunca se dará;
O jorrar daquela forma nívea
que nunca por mim será.

Entregando-se aos braços de outra,
sorrindo em seus seios,
ao contato de seus dedos,
descendo cada vez mais a procurar
o prazer e o frêmito daquela apoteose,
úmida no outro sexo a buscar.

Encheu de terror, 
a totalidade dos filhos de Adão.
Um útero primitivo que se perdeu,
e uma vontade de poder em,
apenas um só, 
tornarem a ser.

Pois somente assim, 
em completa e total união, 
preenchendo uns aos outros, 
o homem encontrará 
alguma forma de realização.

Mas tal possibilidade é apenas isso,
devaneios de uma mente em depressão
e um coração que já não suporta mais
a verdade dessa solidão.
Buscando no absurdo, 
a completude do ser, 
a finitude de sua condição.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ao Nada que persiste

Em alguns momentos tem sido difícil escrever. O barulho, as ocupações. Vejo que minha família está no limite aqui. O bebê já está engatinhando e, logo, vai começar a andar, e moramos num apartamento pequeno, além de que temos muitos móveis. Estamos todos nos sentindo sufocados. De minha parte, queria um apartamento pequeno, mas só meu, à imagem daquele que comentei anteriormente, que possa ser disposto de modo a ser aconchegante, acolhedor. Mas, bem, graças ao meu atual estado de desempregado, isso não vai ser possível tão cedo.

Então, mesmo me sentindo sem ar, preciso escrever, preciso dizer, ainda que não raras vezes eu sinta a ideia se esvair no exato momento em que me deparo com a página em branco. Mas ainda assim escrevo, sobre a frustração da inspiração que se foi. 

Mas também preciso encontrar um modo de falar da atual dicotomia, uma contraditória seleta de sentimentos que vem me dando trabalho para manter sob o mínimo de controle. 

É uma relação que nasceu da simples cumplicidade, da necessidade da proximidade com alguém num ambiente onde os círculos sociais se encontram já consagrados e fechados. Daí a união de dois excluídos. No entanto, como era de se esperar de alguém como eu, logo essa cumplicidade se transmutou em algo de dependência. 

Quando vi outro lado dessa pessoa, no entanto, senti enorme decepção ao ver que a confiança que ela dizia devotar a mim era diferente daquela que devotava a breves desconhecidas, com quem não se eximia de abrir-se e falar de seus desejos, de seus medos e coisas assim. Não fiquei triste por ter uma imagem destruída, como se esperasse que ele fosse sempre virtuoso, não. Mas fiquei triste porque, como amigo, entendo que confiar ao outro também suas fraquezas ou aquilo que não queremos que o todo saiba, mas apenas um pequeno círculo íntimo. Fiquei triste por descobrir que eu nada sabia da pessoa que dizia me ter em tão altíssima conta.

Mas, talvez, aos poucos consiga conquistar essa confiança, ainda que parta de mim a iniciativa de compartilhar minhas dores, misérias e baixezas. É que continuo acreditando na sinceridade, ainda acho que, numa realidade onde jamais podemos conhecer o outro inteiramente por conta da separação de nossa consciência, dessa muralha que sempre vai haver entre nós, a sinceridade encontra aqui o único modo de dois corações se aproximarem. 

Infelizmente, aumentar a proximidade também significa aumentar a dependência, e uma posterior paixão, que gera ainda mais dependência. E é com essa dicotomia que eu tenho lidado, com querer a aproximação, a intimidade, mas sem que dela crie uma dependência a ponto de machucar como já o fiz tantas vezes. 

Continuo, em busca de sinceridade, de conexão simples, porém verdadeira. Que faça sentir que estou um pouco menos sozinho nesse gigantesco oceano de consciências fechadas em si. Sem que dele passe a depender, sem que me apaixone, sem que sofra por saber que, em outra instância, não importa a sinceridade do meu amor, ele não será o bastante para vencer uma barreira que ele levantou ao redor de si.

Me tornei um caminhante. Alguém que não tem terra, que não se apega a um lugar. Percebi que aqui e lá eu sou dispensável, percebi que eu sou aquele moribundo que aparece repentinamente num dia excepcionalmente quente, em que todos se escondem do calor, ainda que precisem trabalhar. Buscam a proteção da sombra de uma árvore, de uma marquise. Escondem o rosto, a pele machucada pelo sol, enquanto não há escapatória da umidade que pesa o ar. 

Esse homem, eu escondido debaixo de tecido que me protejam do calor, apareço sozinho no horizonte, quase como uma miragem. Quem seria louco de andar ali aquela hora? "É a loucura do homem que ainda tem esperança", poderiam dizer. Mas não, é apenas a loucura niilista que, não enxergando valor em nada, tenta, ao menos, da destruição de si, encontrar algo. Alguém cujo nada é "não" e "sim" ao mesmo tempo. Não ao sentido do ser, sim ao continuar, em busca de algo que, se tentasse dizer, seria apenas um balbucio qualquer. 

Ao se aproximar das pessoas, que não se incomodam em sair da sombra para melhor entender aquela triste figura, cria nelas a impressão de um homem absolutamente vazio, mas que caminha a passos firmes, como se buscasse encontrar, enfim, um abismo real que correspondesse ao que há em seu peito. Caminha sem esperar chegar, mas também sem parar. Traz consigo apenas um remorso, culpando a si, pelos amores que nunca deram certo. 

 “Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.”
ajuda-me a negar

(Rui Pires Cabral)

Luz da Manhã, Cortina ao Vento, Você

"O amor é uma forma incondicional de hospitalidade." (José Tolentino Mendonça)

Já disse uma porção de vezes que gosto daquela atmosfera calorosa de algumas imagens, especialmente dos dramas japoneses que acompanho. Isso porque eles passam essa ideia de acolhimento, de um abraço quentinho e confortável. 

Como não sentir um renascer da esperança ao ver um novo casal descobrir a vida a dois. O apartamento no tamanho certo para duas pessoas, sem ser grande demais a ponto de parecer solitário, mas apenas o bastante para que ambos tenham seu espaço e o de ambos ao centro, como um eixo onde a vida deles vai girando. 

Acordam com um abraço de ternura, cabelos bagunçados, um beijo nas costas, o café da manhã partilhado. Ao retornarem, o cheiro da comida quentinha que o outro preparou ou que pediram, o cansaço do dia se desfaz no sorriso do outro, na troca de momentos, o peso se transmuta em leves plumas. Os prédios cinza dão lugar as camisetas coloridas, canecas de chocolate quente no inverno e latas de cerveja no verão. 

Ali dentro os tons mais naturais, como a madeira dos móveis, alguns pôsteres na parede e enfeites na prateleira dão sinal de um vida pulsante em meio aquela selva incansável de Tóquio. A imagem de duas canecas de café fumegantes e um sorriso pela manhã, iluminado pelo sol que passa pela janela com uma brisa fresca, agitando o fino tecido da cortina clara, é uma imagem simples, é verdade, mas que contém um amor incondicional.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Prece na Tentação

Deus, não permita que minhas ilusões sejam para mim mais do que a realidade que criastes. Dai-me a virilidade de aceitar com coragem aquilo que as coisas são, como elas são, sem que minha mente infantil queira mudá-las. Que as pessoas do mundo não sejam nada para mim, além de almas a serem salvas, e que eu nada seja para elas, sem a necessidade e o desejo profundo de querer moldá-las à minha imagem e semelhança. 

Que eu não me apegue, que eu não me apegue, que eu não me apegue. 

Pois o preço de todo apego é a decepção de uma ilusão destruída, restando apenas a ruína, dessa idealização maligna. Que eu não queira a aprovação, o amor, a admiração e o desejo daqueles que nem sequer olhariam para mim. Que eu não deixe esse desejo pervertido tomar minha atenção, tomar meu coração, de modo que eu já não consiga ver a verdade. 

Que eu não deixe de sentir a tristeza, mas que ela não me paralise jamais, que eu possa continuar andando, ainda que em lágrimas, que eu possa continuar andando olhando pro céu, ainda que esteja rastejando. Que eu não chore em vão, que eu não me abale a ponto de perder a esperança, não de um mundo onde seja amado, mas de um mundo onde possa amar. 

Que eu não deixe de admirar a luz da rua refletida nas gotas de chuva à noite, ou o orvalho pela manhã. Que a brisa fresca ainda possa beijar minha face, que o perfume da terra molhada ainda possa inebriar. Que tudo que é belo me recorde, que eu não posso colocar nas criaturas as minhas esperanças, mas que delas apenas aprenda a ver a transcendente verdade de Tua presença.

Deus, me dê coragem de viver, e não apenas animado eu, pois, de tamanha falta de virtude, que me sinta feliz com as conquistas terrenas que nada significam diante da eternidade. Deus, que eu não coloque os homens em Teu lugar. Deus, que as carícias não sejam para mim mais valiosas que o Teu amor na cruz por mim.

Deus, não permitais que me separe ainda mais de vós, pois quanto mais distante de Tua luz, mais fortes são os tentáculos das trevas ao meu redor se estendendo em direção aqueles que amo; A eles, acabo não fazendo o bem que quero, mas trazendo o mau que não quero. E, mesmo sabendo que são pecadores como eu, não quero eu ser eu causa de juízo e condenação, mas apoio na fragilidade para, caminhando nas estradas deste mundo rumo ao céu, possamos cruzar os agrestes escarpados do amor humano em busca da perfeita alegria e, sabendo usar os bens que passam, dentre os quais nosso próprio corpo, desejos e vontades, possamos abraçar os que não passam. 

Deus eterno e onipotente, fonte de toda beleza e bondade, não permitais que me engane com as belezas deste mundo e de teus homens. Que eu reconheça neles uma fração de Ti, que aponta e me leva a Ti, mas que não me fixe neles, que não lance sobre eles as flechas inflamadas de luxúria que minha vontade decaída faz inebriar os ares dos odores putrefatos de uma humanidade decaída em si mesma.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Monstro de Duas Faces

A euforia passa pela minha pele
como eletricidade
fechando os olhos consigo ouvir
orgasmos por toda a cidade.

Talvez seja apenas minha imaginação
enquanto me toco por sobre a calça
mas sei que muitas pessoas agora
compartilham essa sensação.

Com um tremor seus corpos 
se contorcem de gozo.
Com um sorriso sacana,
elas se viram e dormem.

Mas eu sou apenas tomado de euforia
e palavras irresponsáveis que saltam 
da minha boca como torrente
e então fico no escuro em noite ardente.

De vez em quando sou tomado
como que por espírito ludibriado,
mas sei que é apenas outro ciclo
mostrando ao mundo a face feia de um quebrado.

Monstro de duas faces, 
morto por dentro, 
outras vezes desejoso do sangue
e do gozo.

Apenas questão de tempo
até que outro ciclo comece
e a chama se extinga novamente
deixando apenas as cinzas.

Do que um dia se ergueu
e até mesmo o branco jorrou
mas ficou apenas a lembrança
naquela frieza quase inorgânica.

A métrica e o estilo do poeta
eu não consigo imitar.
A performance dos atores 
não consigo imitar.

Só posso então aceitar,
que eu, monstro de duas faces
fui pelos deuses todos condenados
a nessa vida inteira apenas desejar.

Costas de Mármore

Decidi hoje privar da minha boca o mundo,
não responder ninguém, calar-me em absoluto,
no túmulo do sono mais profundo
sepultar meu espírito, por inteiro dissoluto.

O dia morreu em mim — cadáver mórbido —,
s eu, quase saciado, despertei como um ressuscitado,
tomei nos lábios o chá-preto, cálido,
que exalava a baunilha em aroma sagrado.

Na tepidez do quarto, a música rasteira
vinha lamber-me a alma com língua de espectro,
e, por um segundo, senti a vida inteira
suspensa num bem-estar apodrecido e neutro.

Não me recordo, entre tantos escombros mentais,
quando foi a última vez que, em calma breve,
senti o perfume efêmero dos mortais
e não apenas o pus da miséria que em mim ferve.

Na noite escura, longe daquele por quem a luxúria clama,
a cruel realidade da alcova solitária e fria
fazia me contorcer a carne ao imaginar
as imagens que aquela candura me trazia,

Mais forte que minha imaginação
sempre tornava, como uma maldição
a me tomar e a controlar o sexo que eu buscava 
em vão esforço acalmar.

Aquela pele clara estendida sobre ossos,
os olhares tímidos como de uma virgem
entregue ao amante que tanto desejou
quase podia senti-lo sob minha pele.

O rubor aumentando na face,
os lábios cor de sangue, 
marcas pelos seios e costas de cândido mármore,
causadas pelas minhas unhas num combate de morte.

Finalmente quando a avulsão da forma nívea
e os gemidos calaram da noite todo ruído,
deixando apenas a ofegante respiração
de dois amantes naquela cela escondidos.

Olhos fechados simbolizavam o segredo 
que deveriam guardar até deles mesmos
nos profundos recessos de uma consciência
que não se atreverá a dizer que seu sonho se realizou.

Num jato branco escorrendo,
por entre as fileiras de suor
a felicidade antes contida
agora finalmente se aliviou.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Prelúdio à Solidão Inevitável

É um fato, observado ao menos comigo, que não somos tão importantes assim. Passamos boa parte de nossas vidas tentando parecer limpinhos, baluartes resplandecentes da razão e da moral, pináculos de evolução. Mas, no fundo, ninguém se importa. 

Esteja você feliz com as suas conquistas financeiras, viagens com excelentes programas culturais, ou absurdamente deprimido, sentido dor por causa de qualquer palavra, a verdade é que você continua invisível aos olhos de todos. Ainda que alguém te olhe por alguns instantes, e sorria ou lhe cumprimente em tom de admiração, não se engane, no instante seguinte esse olhar poderá se converter em desprezo absoluto. 

Trabalhe competentemente, chegue sempre pontual, faça mais do que lhe peçam, e pode ser que te elogiem, sem aumento é claro, mas no momento que ficar doente, você deixa de ser um funcionário e passa a ser um pária. As mensagens que transmitiam confiança, e que na realidade era apenas um abuso de poder, agora foram substituídas por silêncio. Qualquer coisa será dita por intermediários medíocres. É que, no fundo, somos todos assim. Eles apenas estão enganando a si mesmos que são mais importantes, mascarando o medo de serem, como todos os outros, ridículos.

Amantes, se entregam aos abraços apaixonados. Aqueles que ainda sonham, sonham justamente com o inalcançável, negam o que está diante dos olhos e que não lhes parece ser o que buscam, sendo exatamente o que querem. Tão logo terminam, sofrem em silêncio ou buscam conforto em outros braços. Também são esses ridículos.

Amigos, muitas vezes vivem apenas uma relação de conveniência. Enquanto o outro lhe é útil de algum modo, ainda que sutil, como massageando o ego ou lhe dando o conforto que não encontrou nos seios fartos das mulheres. Mas, quando mostram a imagem de uma realidade diferente daquela querida, também converte-se em indiferença. Abafam a voz do a amigo com o ruído da multidão sem perceber que tentam abafar a si mesmos, a voz profunda que espreita a sua consciência e que mostra com cruel riqueza de detalhes a verdade que não querem ver.

E, por fim, eu digo a mim todas e cada uma dessas palavras. Me vejo como o cego, o ridículo, enganando a mim mesmo que a próxima vez será diferente, que as coisas serão melhores, que alguém vai se importar, que alguém vai perceber que eu sou capaz de dar o amor desejado.

Mas nada disso vai acontecer. 

Continuarei sendo única e tão somente esse miserável, mendigando afeto, buscando nos lugares e nas pessoas mais vazias e torpes algo que preencha um vazio que eu nem sei do que é. Continuarei me irritando com o outro e suas decisões idiotas, e as minhas decisões mais idiotas ainda ao esperar desse mesmo próximo, que seja diferente de todos os outros. Continuarei a me sentir traído e abandonado, quando, na verdade, eu me traí e abandonei ao menor sinal de atenção, me julgando merecedor de uma atenção que, em si mesma, não tem valor algum a não ser o de abafar a minha própria voz, que grita o quanto eu sou ridículo.

Estou sozinho, e a solidão é inevitável. É inerente a condição humana. E essa é a verdade que tento encobrir, dando amor a quem me entrega um pouco de atenção. Mas a verdade é uma das coisas que não ficam escondidas por muito tempo. Logo se revela que, aquele melhor amigo escondia de mim sua verdadeira personalidade, revelando apenas o que lhe era conveniente. Outros, se mostram próximos apenas quando fui útil. E digo isso não com soberba, mas até com certa ironia, porque não acredito que nada do que eu faça outra pessoa não possa fazer melhor. Ou talvez por isso pediram que eu fizesse, por ser tão ridículo e sem importância que ninguém mais, além de um idiota como eu, aceitaria fazer. 

"eles não contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios

ou do terro de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer

intocada
incomunicável

regando uma planta.

as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.

suponho que nunca serão."

(Charles Bukowski)

domingo, 17 de agosto de 2025

Concerto para Piano e Solidão em Dó Menor

Sobre os primeiros compassos de uma distância irremediável,
 em memória de um afeto reduzido à presença indesejada

É claro que as coisas ficariam estranhas. Com a mesma facilidade com quem nos aproximamos, nos afastamos. Amigos de antes, estranhos agora. Os olhares já não se encontram, ficam distantes um do outro. É sempre assim. Eu sempre estrago tudo mesmo. Quando um homem diz a outro que o ama, as reações são bem limitadas. Dificilmente encontra reciprocidade, mas é fácil de achar uma evasão gradual ou violenta.

Caminhei sem olhar para trás, com uma determinação silenciosa, cabeça baixa na expectativa de que ninguém desse pela minha presença, porque essa era minha vontade, voltar para casa e me esconder, longe da vista de todos. Se a minha aparência e presença for ao outro incômoda como é para ele agora, e como é para mim, é melhor que eu fique sozinho mesmo.

Foi uma caminhada solitária, e algo me diz que eu não vou mais receber tantas mensagens de agora para frente. 

Mas também me entristece a visão do outro onde, mesmo amigo, eu sou um estranho. E nada mais. Me recordou algo daqueles primeiros compassos do piano no 3° Concerto de Rachmaninoff. Embora a igreja estive iluminada por um sol que penetrava violento todos os vitrais, eu fazia uma prece baixinha, ao canto, escondido de todos, na penumbra de uma coluna, em dúvida se ao menos Deus poderia me ver ou ouvir. Acho que não. Me sinto abandonado, como aquele homem no alto da cruz. 

Tudo bem, eu já devia estar acostumado a ficar sozinho, a ser deixado quando as pessoas descobrem meu verdadeiro eu, ainda que eu não o esconda de ninguém. E não as culpo, não. Eu também me abandonaria se fosse possível. Se me fosse dada a chance de ser um estranho a mim mesmo, de atravessar a rua ao me ver caminhando na calçada, e desviar o olhar para longe, num ato de absoluto desprezo, como se faz a um cão doente que espera a morte.

Não, isso está errado. Já vi muitas pessoas terem compaixão dos cães moribundos.

"Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e a suas limitações. Quem recusa aos outros a sua pequenez, comete um dos mais infelizes gestos de prepotência. E porque aí se rejeita, aos outros não poderá dar senão o sofrimento da perda. Querendo-se sem falha, será o mais incompleto dos seres." (Daniel Faria)

sábado, 16 de agosto de 2025

Quando a vida pede uma última pausa

Cheguei ao fim de mais uma semana. Mas há algo a comemorar? O que pode haver de bom nisso? A semana que vem será outra sucessão de golpes duros e feridas abertas, amores não correspondidos e encheção de saco. Estou cansado, à beira de um colapso. Não acho que uma breve consulta com a psicóloga resolva. Não acho que as técnicas aprendidas no grupo de terapia serão eficazes, elas apenas adiam o inevitável. Esse é um dos muitos finais possíveis, mas parece ser o que está traçado para mim, consoante as escolhas que fiz: de desistir, de amar, de buscar, e até mesmo de querer, porque tudo que pedimos à vida ela não apenas nega, como destrói todo e qualquer sonho, reduzindo as ilusões a pó. E quando nos iludimos com falsidades ou medo, nos odiamos no final. E é aqui que me encontro, no ponto exato em que me odeio.

Sinto um gosto ruim na boca, mais um dia que me entupi de remédio. Mais um dia sozinho dormindo. Sem força alguma. Como um homem pode ser tão fraco? Deveria ajudar meus colegas a cantar a Missa amanhã, mas meu corpo rejeita qualquer ideia de se mexer ou se esforçar, ou encontrar o outro.

Não quero ver ninguém, e não quero compaixão. Não creio mais no amor. Meus lençóis fedem como o meu corpo. Morri e fiz poesia com as coisas que me mataram. A imagem de cada um dos homens que amei estampam as lápides de um vasto cemitério onde, em cada cova, coberta de cal, se encontra meu próprio cadáver, rejeitado até mesmo pelos vermes das ruínas.

Penso que neste momento
talvez ninguém no universo pense em mim,
que só eu me penso,
e se agora morresse,
ninguém, nem eu, me pensaria.

E aqui começa o abismo, 
como quando adormeço.
Sou o meu próprio apoio e dele prescindo.
Contribui para decorar tudo de ausência.

Talvez seja por isto
que pensar num homem
se parece com salvá-lo.

(César Augusto)

Tragédia em Modo Adagio

"Convencido eu mesmo, 
não procuro convencer os demais." 

(Edgar Allan Poe)

Para uma amizade inexistente e um amor morto-vivo

Alguém que trabalha num hospital postou as imagens daquela aparelhada que fica ligada a alguém que está em observação, e os gráficos indicavam queda e dos batimentos cardíacos. Na legenda, algo como "do lado de cá vemos o quanto a vida se vai rápido, então ame enquanto é tempo."

Discordo. Minha vida tem transcorrido numa velocidade irritantemente lenta. Não quero amar enquanto é tempo, pois no tempo em que amei, o que recebi em troca? 

Entendo que isso já implica uma discrepância na compreensão mesmo do amor que, por definição, não pede nada em troca, mas dá sem medidas. Como dizia Santa Teresinha, "porque quem ama não sabe calcular."

Mas o amor me machucou, e muito. Portanto, não me seria penoso partir imediatamente. Algumas perdas, sim, me machucariam, mas essas não se enquadram ao amor que digo aqui. E ainda assim, acredito que eu partiria com gratidão. Se eles, no entanto, se fossem agora, ai, sim, me doeria.

Queria escrever sobre coisas menos melancólicas, na falta de palavra melhor. Mas se a lembrança dos últimos dias persiste em despertar em mim a fúria, não há o que fazer. Queria poder falar dos sabores que descoberto nos chás. Nos perfumes dos óleos essenciais, nos detalhes da decoração que em nada mudam a horrenda aparência da minha casa. Sobre como é bom poder estar só numa manhã nublada e fresca. Acredito que seriam temas ótimos. 

Mas, bem, não será possível. Queria mandar mensagem para ele dizendo que não precisa se conter perto de mim, somos humanos, homens, pensamos provavelmente as mesmas coisas, embora em níveis diferentes, mas ainda partindo da mesma experiência. Mas isso também seria me humilhar demais. Se ele mostra esse lado a uma desconhecida.  Mesmo que isso signifique aceitar de modo radical que nossa amizade não é real.

De súbito me veio um lampejo de energia, para que me arrumasse, levantasse, comesse algo e assistisse de modo a não depender do outro a minha felicidade. Talvez seja o único instante de lucidez das últimas semanas. Não sei de onde ela veio, ou melhor, sei que foi apenas outra oscilação de humor, não um indicativo de que estaria recuperando alguma força. Não sei se algum dia terei forças novamente. 

Os últimos golpes que levei foram doloridos demais, não sei quanto tempo levará para cicatrizarem, e nem se vão um dia se tornar apenas uma mancha em meu corpo, uma cicatriz, e não uma ferida aberta e apodrecida como agora. 

Eu realmente espero que a morte seja menos que isso.

" - Quanto desrespeito pode-se suportar até cortar um laço?
- Quanto veneno é necessário beber para morrer?" 

(Lothian Andrade)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Aforismos em frente ao espelho

"Tão desfigurado estava que havia perdido a aparência humana. (...) 
Não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, 
e seu aspecto não podia seduzir-nos. 
Era desprezado como a escória da humanidade." 

(Is 52, 14; 53, 2-3)

Onde é que há alguma fonte de energia que eu possa encontrar e ligar em mim? Um desânimo extremo toma conta de mim, como se tivesse carregando o mundo nas costas. Mas não, tudo que tenho é uma imensa e profunda decepção. 

Eu nem sequer consigo descrever como é. Talvez se tivesse essa habilidade poderia escrever uma obra monumental, como uma enciclopédia da melancolia ou uma sinfonia que se comparasse com a Trágica de Mahler ou a Patética de Tchaikovsky. 

É só como se, um cristal fosse quebrado em mil pedaços e esperassem que eu o remendasse. Assim. Como consertar uma dor tão profundamente marcada na minha alma que poderia dizer que foi gravada a ferro e fogo? 

Meu próprio coração foi despedaçado, e eu remendei como pude. O resultado foi uma aberração. Me tornei um arremedo de ser humano. Vejo que, ao mesmo tempo em que reclamo de não ter amigos, acabo por me afastar de outras pessoas. Mas é que o relacionar-me com o outro se tornou penoso. Eu sempre acabo criando dependência das pessoas e, como isso não pode ser recíproco, eu me decepciono.

Reconheço, por exemplo, que os golpes que levei essa semana doera, e me derrubaram, mas eu já devia esperar, e mais: devia saber que não foram estritamente golpes porque não foram direcionados a mim. Eu apenas esperava algo impossível, de novo, pela enésima vez. 

O que me resta depois disso é apenas olhar no espelho e me fazer aquela dolorida pergunta de sempre: por que eu não sou bom o bastante? Por que eu sou apenas aquele que procuram quando precisam de algo? É porque nasci homem? É porque estou gordo e feio? O que há de tão errado em mim que me torna tão repulsivo ao outro? Por qual razão nunca olham para mim como olham para as belas meninas? 

Perdoem-me a tautologia, mas mesmo sendo algo de obviedade gritante, ainda desperta em mim profunda revolta. 

Autópsia dos Lábios Rosados

Notas sobre luxúria, ingratidão e outras feridas incuráveis

Tentei assistir um pouco, era a série de um dos meus casais favoritos, mas nem os lábios rosados do Dunk Natachai me convenceram a ficar acordado mais tempo. As coisas são assim. 

Os lábios rosados ganham fama, alguns buscam satisfação nas drogas, no álcool. Alguns se enganam com o trabalho e o cansaço e encontram nisso o sentido de sua existência. Alguns tentam encontrar uma foda pra noite. Vejo então que não há muita diferença entre os outros e eu. No fim somos todos simples. Do mesmo jeito que fui várias vezes me encontrar com desconhecidos pra transar e me esquecer deles no dia seguinte. Somos todos iguais. Ridículos. E nos negamos a ver aquilo que é óbvio. 

Tudo bem, é melhor para de falar nesse falso plural de humildade, que de humilde não tem nada, mas falar em nome do único que posso falar: eu mesmo! Eu sou ridículo, e me submeto as mais diversas situações na tentativa de frear os instintos libidinosos, naturais da luxúria masculina e da queda do homem. Mas eu não sou o único. Muito se submetem ao prazer em locais sujos e inapropriados, que só não são mais nojentos que meu próprio coração e a minha vontade, arrastadas no mais putrefeito lodaçal. 

Sair com um amigo que ficou ao seu lado num momento difícil? Não. Encontrar uma desconhecida para foder em qualquer lugar? Que horas devo sair? Somos assim. Gays ou héteros. Mas quando nos chateamos, quando precisamos de algo, recorremos ao amigo que ignoramos ou até mesmo ao amor que dele rejeitamos. É, as coisas são assim. 

E algumas outras, quando se quebram, nunca mais têm conserto. A madeira, se não for de bom porte, logo enfraquece e se esfacela. Um cristal quebrado, como o da amizade, não se cola. E eu vivi essa mesma lição anos atrás, quando aquele homem me obrigava a aceitar que ele não me amava, mas sim uma mulher vil que o desprezava. Depois, amei outro que, a despeito de toda minha devoção, ignorou meu quebranto e o faz ainda hoje, perdido em seus pensamentos e compromissos, sem nunca me dar uma resposta firme sequer. Hoje, me deparo com isso, a visita da ingratidão, a pantera que, na visão do poeta, é minha única companheira inseparável. 

A vida se resume a esperar: esperar para foder, esperar para morrer, esperar para ver se no meio do caminho aparece algo que valha a pena. Tem gente que bebe para esperar esquecer, tem gente que fuma para relaxar… ou fode para adiar o tédio. Mas a verdade que poucos dizem, mesmo que todos saibam, é que você pode foder todos os corpos da cidade e ainda assim sentir aquele vazio brutal te consumir sozinho, seja na mesa de trabalho ou na cama com os lençóis fedendo a corpos que nunca mais se verão. 

O problema é que todo mundo quer foder, mas ninguém quer encarar a bagunça que sobra depois. Isso porque foder é a moeda mais barata que circula por aí. O difícil é encontrar algo que compre o resto. A gente fode por querer, por carência, por tédio… e ainda chama isso de amor. No fim da noite o bar fecha, o copo esvazia, a pele esfria… e então você percebe que foder não resolve nada. Você chega em casa e percebe que a velha cadeira continua quebrada.

E, por falar em coisas quebradas, tudo nessa casa está quebrado. Mas continuamos buscando alguém pra foder.