em memória de um afeto reduzido à presença indesejada
É claro que as coisas ficariam estranhas. Com a mesma facilidade com quem nos aproximamos, nos afastamos. Amigos de antes, estranhos agora. Os olhares já não se encontram, ficam distantes um do outro. É sempre assim. Eu sempre estrago tudo mesmo. Quando um homem diz a outro que o ama, as reações são bem limitadas. Dificilmente encontra reciprocidade, mas é fácil de achar uma evasão gradual ou violenta.
Caminhei sem olhar para trás, com uma determinação silenciosa, cabeça baixa na expectativa de que ninguém desse pela minha presença, porque essa era minha vontade, voltar para casa e me esconder, longe da vista de todos. Se a minha aparência e presença for ao outro incômoda como é para ele agora, e como é para mim, é melhor que eu fique sozinho mesmo.
Foi uma caminhada solitária, e algo me diz que eu não vou mais receber tantas mensagens de agora para frente.
Mas também me entristece a visão do outro onde, mesmo amigo, eu sou um estranho. E nada mais. Me recordou algo daqueles primeiros compassos do piano no 3° Concerto de Rachmaninoff. Embora a igreja estive iluminada por um sol que penetrava violento todos os vitrais, eu fazia uma prece baixinha, ao canto, escondido de todos, na penumbra de uma coluna, em dúvida se ao menos Deus poderia me ver ou ouvir. Acho que não. Me sinto abandonado, como aquele homem no alto da cruz.
Tudo bem, eu já devia estar acostumado a ficar sozinho, a ser deixado quando as pessoas descobrem meu verdadeiro eu, ainda que eu não o esconda de ninguém. E não as culpo, não. Eu também me abandonaria se fosse possível. Se me fosse dada a chance de ser um estranho a mim mesmo, de atravessar a rua ao me ver caminhando na calçada, e desviar o olhar para longe, num ato de absoluto desprezo, como se faz a um cão doente que espera a morte.
Não, isso está errado. Já vi muitas pessoas terem compaixão dos cães moribundos.
"Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e a suas limitações. Quem recusa aos outros a sua pequenez, comete um dos mais infelizes gestos de prepotência. E porque aí se rejeita, aos outros não poderá dar senão o sofrimento da perda. Querendo-se sem falha, será o mais incompleto dos seres." (Daniel Faria)
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