terça-feira, 12 de agosto de 2025

Adagio Lamentoso para um Moribundo Esquecido

Pedi tão pouco à vida
e esse mesmo pouco a vida me negou.
Uma réstia de parte do sol,
um campo,
um bocado de sossego com um bocado de pão,
não me pesar muito o conhecer que existo
e não exigir nada dos outros
nem exigirem eles nada de mim.

Isto mesmo me foi negado,
como quem nega a esmola não por falta de boa alma
mas para não ter que desabotoar o casaco.

(Fernando Pessoa)

Em memória de um abraço sem testemunhas

Estou sensível por conta de uma situação que eu mesmo aceitei entrar e que sabia que podia me machucar. Enfrento pura e simplesmente a consequência do desvelamento de algo que eu já sabia, mas que não queria aceitar, que não queria ver. Essa é a pior cegueira, como o dizem, não é? Aquela que o homem não quer ver. Eu sou assim, sempre vejo, mas não quero ver. É como se eu mesmo conseguisse criar um nevoeiro ao meu redor, louco, alucinado, e vendo conscientemente apenas aquilo que me agrada. 

Mas, se eu mesmo crio a barreira que me impede de ter contato constante com aquilo que machuca, talvez não seja a criação dessa barreira, desse Campo Anti Terror, uma ação também consciente e, no entanto, discreta?

Me recordo então de algumas justaposições à situação que me machucou. Parecem que datam de décadas, e não apenas alguns dias atrás, mas já estes mesmos, os últimos. O abraço naquela noite fria, as palavras de "eu te amo" que, mesmo agindo como se fossem normais, ainda assim reverberaram em mim, esperando, como quem toca um címbalo, que fosse dado outro toque, que a música continuasse, que desse origem a uma valsa, quem sabe.

Mas não. Eu ignorava que esses eram apenas os compassos que eu tocava sozinho com o meu clarinete. A orquestra até seguiu com a melodia, mas ela engoliu o som dantes proclamado como por um velho moribundo e arrependido de suas escolhas, aos convivas que aguardam, com velas em mãos, por sua morte.

Também isso é um engano. Não há ninguém nessa casa solitária. E essa constatação é o despertar de um sonho.

Dirijo o olhar brevemente ao quarto imundo, iluminado apenas pela luz que entra por frestas de uma janela de uma madeira que, ao que parece, se tornará apenas um monte de farelos caso seja tocada por algo mais que um dedo. Não há mais ninguém naquela casa nem em seus arredores. Talvez aquele fosse apenas um casebre antigo, usado como depósito, o que explicaria os sacos de estopa com conteúdo desconhecido empilhados num canto do cômodo ao lado, ou as ferramentas de jardinagem, todas com sinais de envelhecimento avançado, largadas ali, porque já não vale mais a pena consertar ferramentas em tal estado, tão tomadas pela ferrugem que aquele lugar lhes é mais apropriado por isso. Porque ninguém usa ferramentas quebradas.

O velho moribundo já não se levanta. Apenas se mexe para um lado ou outro conforme a luz do dia avança ou diminui. Às vezes vira-se para que o sol não pegue em seu rosto, mas em suas costas. 

Não sente mais fome. 
Não sente mais frio ou calor. 

Tais coisas são próprias das pessoas, e de animais, ele já não é mais isso. É apenas espectro de um passado inexistente. O fedor daqueles panos velhos colados ao seu corpo não incomodam mais. Ele apenas fecha os olhos, que também quase não enxergam, leitosos, desgastados pela dor que viveu, e se deixa entregar mais uma vez a uma visão inexistente, jogando-se no vazio frio de uma alucinação. Dançando uma valsa sem que, na verdade, o seja, parece algo como uma marcha fúnebre, que ninguém tocará quando ele morrer. Ficará ali, e talvez nem mesmo os vermes ou os animais o comam depois de morto, já não tem valor nem mesmo para aquelas criaturas podres que nas carnificinas se banqueteiam. Não se petrificará, perpetuando-se no tempo. Não. Apenas, pouco a pouco, sua pele se tornará mais clara, depois translúcida, até que enfim desapareça por completo, sem que reste naquele ar sequer um último sussurro.

Partirá dessa existência como viveu, se é que se pode chamar essa existência patética, miserável, que esperava dos homens a grandeza, a beleza, o amor recíproco e poderoso de que falam os poetas, os filósofos e os cantadores. Amou, mas os homens nunca o amaram. Negaram-lhe que andasse entre eles como iguais. Vagou pela terra sem par. Levando sempre consigo esse amor, como uma velha mochila às costas cheia de nada, mas um nada pesado, um nada tão sólido quanto a enorme lápide de mármore preta lascada para um defunto desconhecido. Mas não um ilustre desconhecido, como o Príncipe Ignoto que desposou Turandot, não. Este é apenas alguém que jogaram ali por pesar de jogarem em local menos digno a algo que, tendo certa semelhança com gente, não tinha, de fato, aparência humana para receber tratamento melhor que o desprezo.

E, por fim, antes que suas pálpebras se fechem de vez por sobre seus olhos leitosos, ele já não enxerga a parede de barro cozido, mas um sorriso amarelo, antigo e que, não era para ele. Sorriso, corpo, espada e alma, entregues a uma ilustre mentira. 

Fechadas de uma vez para sempre, assim como sua voz que, uma vez calada, nada mais dirá e nem lhe será perguntado, entrega-se então ao último movimento: o adágio lamentoso que o fará retornar ao nada. 

~

Sob a inspiração da Sinfonia N° 6 de Tchaikovsky, Op. 74 "Pathétique"

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