"As águas, que estão debaixo do céu, juntem-se num só lugar, e apareça o elemento árido. E assim se fez. E Deus chamou ao árido terra, e ao conjunto das águas chamou mares. E Deus viu que isto era bom." (Gn 1, 7-8)
O homem moderno parece cada vez mais incapaz de ler símbolos, no entanto, estes continuam a exercer influência sobre a mente, muito embora de modo difuso. Não é incomum perceber que as pessoas apenas aceitaram a confusão do mundo em que vivem, ou não conformarem de modo algum, buscando compreender uma ordem oculta por métodos próprios: Marx faz isso com a luta de classes, Jung com os arquétipos, Kant com as estruturas da razão… E tantos outros que tentam encontrar alguma ordem no caos que nos rodeia.
Aparentemente esse é um problema antiquíssimo: o caos primordial assusta o homem desde seu primeiro pensamento. O Enuma Elish, o mita da criação babilônico, já tratava de uma explicação para a origem e ordem das coisas milhares de anos atrás. Deus e forças cósmicas lutando entre si e, como resultando, usando corpos dos inimigos para criarem o mundo em que vivemos. Também os filósofos gregos trataram disso, buscando nos elementos a origem de tudo. O caos assusta, e é natural e instintivo que o homem busque uma ordem ao seu redor.
Infelizmente, parece que a deficiência na percepção dos símbolos, assunto tratado por mim anteriormente, advindo de uma bifurcação entre o sensível e o objetivo, passando por várias fases até chegar num moralismo protestante que deu fim, de uma vez por todas, ao imaginário simbólico que, até então, era comum a todos. O mundo que era compreendido como criação passou a ser entendido apenas como percepção, impossível até mesmo de afirmar a validade da mesma. O homem agora parece querer abraçar o caos e a completa incompreensão, adicionando ele mesmo mais doses de caos e lutando contra qualquer ordenamento.
Embora isso tenha acontecido após a bifurcação, assim chamada por Wolfgang Smith, difundida por Galileu, muitos teólogos de peso já haviam tratado do assunto, reconhecendo não apenas a ordem criada mas também, ipso facto, a nossa capacidade de percebê-la. Não a abarcar na sua totalidade, coisa que só seria possível ao intelecto superior dos anjos, e ainda assim de modo análogo a Deus.
Santo Agostinho de Hipona (354 - 430) afirma após sua conversão que "Deus, autor da natureza, criou todas as coisas em número, peso e medida." Ele entende que a criação não é caótica: ela foi feita com ordo (ordem) e mensura (medida). Essa harmonia matemática e racional do cosmos é sinal da presença de Deus, que é Sabedoria eterna. Mais tarde, avança em dizer que a ordem e a beleza da criação refletem a sabedoria do Criador. Essa passagem inspirou a tradição cristã a enxergar na ordem natural um espelho da ordem divina.
Por falar em ordem e sua relação com a beleza, logo recordo de Santo Tomás de Aquino (1225 - 1274) que, ao tratar se a diversidade e a ordem das coisas procedem de Deus, afirma que “A beleza do universo consiste na variedade das coisas e na ordenação delas entre si.” Para ele, a Beleza não é algo meramente estético ou subjetivo, mas uma propriedade objetiva do ser, profundamente ligada à bondade e à verdade.
Segundo o Aquinate, a beleza só é realmente quando possui consigo três atributos, a saber: a integridade, a proporção e a claridade. A integridade indica que o ser deve estar completo, sem falta nem deformação. O que é mutilado ou incompleto não é belo. Uma cadeira que não mais se sustenta de pé deformou-se, por mais bela que seja sua madeira ou seus ornamentos, não é tão bela quanto seria quando estava completa. A proporção trata da harmonia entre as partes; ordem e simetria. Cada elemento deve estar em relação justa com o todo. A mesma cadeira precisa que o assento, o encosto e as pernas estejam proporcionalmente dispostos para ser uma cadeira. Por fim, a claridade é a manifestação luminosa da forma; aquilo que revela a verdade interior da coisa. É o “brilho do ser” percebido pela inteligência.
Embora pareça demasiado confusa essa última afirmação, podemos simplificar com a definição clássica do próprio santo e doutor: “Chama-se belo aquilo que, ao ser contemplado, agrada.” Para ele o prazer estético não é meramente sensorial — é intelectual e ontológico. A beleza é o brilho da verdade no ser (splendor veritatis). Ou seja: algo é belo porque manifesta harmonicamente o que é,
Com a perda do imaginário que ligava a criação ao divino, perdeu-se então a ideia mesma de beleza, o que é facilmente constatado em muitas das obras de arte contemporâneas. O belo foi relativizado de tal modo que até mesmo seu contrário absoluto é normalmente dito belo. Se antes a mente humana buscava ordenar as coisas e compreender aquelas que já estavam ordenadas, isto é, transformavam o mundo a medida que o compreendia, o homem atual foge da ordem criando tal desordem que o lança nos poços da loucura e, até mesmo sinais sutis de ordenamento se tornam insuportáveis.
Santo Tomás ensina que a ordem da criação é reflexo da perfeição divina, pois cada ser criado participa de Deus de um modo próprio. A ordem natural não é apenas funcional, mas teológica: ela manifesta o Bem e a Inteligência de Deus. Não crendo em Deus e dominado por uma moral opressora, a saída foi a renúncia da ordem em detrimento do conforto de criar a própria desordem, é como se dissessem "já que não consigo entender o mundo e sua ordem, vou bagunçar, pois ao menos sei de onde veio a bagunça." Sem perceber que a incompreensão advém justamente daquela separação, bifurcação, que diz que apenas as coisas matematizáveis são objetivamente reais, sendo que o resto, inclusive o próprio Deus, se é que existe, é incognoscível, mas devemos viver como se ele existisse. Muito obrigado Kant.
“As criaturas do mundo sensível são vestígios, degraus que conduzem à contemplação de Deus, como espelhos nos quais a luz divina se reflete.” Essa afirmação de São Boaventura (1217–1274) me recordou a bela explicação de meu afilhado que, cristais encontrados na natureza, tem sua estrutura tão firmemente organizada que, mesmo quebrados, ainda conservam microscopicamente sua ordem. Em São Boaventura, a ordem da criação é um “espelho” da presença divina: ela, em si, não muda. Tudo o que existe — da ordem das estrelas à harmonia do corpo humano — fala da Sabedoria de Deus. O mundo é, portanto, um ícone que conduz à contemplação, do mesmo modo que, enquanto ele falava e alguns minutos depois, eu guardei aquela pedrinha no bolso.
Voltando a Santo Tomás, o retorno à ordem é algo incômodo, pois já desde tenra idade somos acostumados com o feio, o grotesco, como normais e até mesmo belos. Mas, para ele, “A ordem que vemos nas coisas criadas manifesta a razão e a sabedoria do Criador. Pois não há ordem sem razão.” Ordenar é próprio da razão humana. Uma vez passado o estranhamento que nos foi imposto pela moral de tipo kantiana propagada pelo protestantismo alemão, o homem encontra na ordem o reflexo de Deus, dos mais diversos modos: no trabalho, no ordenamento mesmo do mundo físico que o rodeia, mas também da sua vontade.
Uma vez compreendendo a ordem do cosmos plasmado por Deus e tornando-se participante dessa ordenação num diálogo interior-exterior-interior, o homem encontra sua realização. Não raras vezes quem busca a ordem é rejeitado pelos demais. São Gregório de Nissa afirma, nesse sentido, que “o universo, em sua ordem e harmonia, é um testemunho silencioso do Logos que o formou.” Ele entende, portanto, o cosmos como uma “liturgia”: tudo o que é ordenado canta a glória do Criador.
Por fim, São Máximo, o Confessor, ao dizer que “o Logos de Deus é o princípio e fim de todas as coisas, e cada ser criado contém um ‘logos’ particular que o ordena e o dirige ao seu Criador.” isto é, ele aprofunda a ideia de que há uma ordem interior (logos) em cada criatura, reflexo do Logos divino. Assim, a ordem natural é sacramental — conduz à comunhão com Deus. Sendo, portanto, o homem criação de Deus, carrega consigo esse princípio ordenador divino que, mesmo pervertido no mundo moderno, pode ser resgatado, purificado pela abertura ao próprio sacramental da ordem natural, ao que o homem responde ordenando a si mesmo.
Referências
"De Civitate Dei", livro XI, cap. 21–22
Suma Teológica, I-II, q.27, a.1 (sobre o amor ao belo).
Comentário ao De Divinis Nominibus de Pseudo-Dionísio, cap. IV
São Boaventura (1217 - 1274), "Itinerarium Mentis in Deum", cap. II
São Gregório de Nissa (335 - 395), Sobre a Criação do Homem.
São Máximo, o Confessor (580 - 662), Ambigua, 7

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