quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Solidões

Eu já escrevi tantas e tantas vezes sobre a solidão, sobre o estar sozinho, sobre o vazio que nos assusta e que existe no âmago do homem desde o primeiro pensamento. Mas quanto mais cavo, mais palavras me surgem, mais experiências se gravam no meu coração, e mais coisas parecem fluir de dentro de mim, às vezes como lágrimas, às vezes como palavras, às vezes como o sangue que escorre...

E olho como as pessoas tentam suprir esse vazio, cada um a sua maneira. Parece que falta um pedaço de todo mundo, parece que todos somos defeituosos e estamos constantemente em busca de algo que nem sabemos o que é. 

Eu não sei o que busco. Eu não sei o que pode me completar, eu não sei o que falta em mim. Mas falta algo, falta em todo mundo, e todos tateiam as cegas buscando, sem saber o que achar nem onde procurar. 

No entanto, por mais que todos estejam nessa mesma situação, parece que somos incapazes de compreender a solidão do outro. Não é como se todos estivéssemos no mesmo barco, não estamos, mas estamos cada um no seu próprio barco, navegando em águas turvas e muito, muito turbulentas. As vezes o vento impetuoso nos joga uns contra os outros, os cascos se chocam, dói, nos machucamos, mas ainda assim não conseguimos passar para outro barco. E parece que as águas nos levam cada vez mais o abismo na beirada do mundo. 

Estou convencido de que as pessoas estão sozinhas no mundo, e condenados a viver num rebanho solitários, com muitas pessoas ao nosso redor, mas ninguém ao nosso lado. Claro, não significa que vivamos no maus absoluto isolamento, aliás eu mesmo estou sempre rodeado de pessoas que me fazem bem, e me sinto bem com elas, mesmo, mas é como se não vivêssemos na mesma página. Ficamos juntos, comemos e sorrimos juntos, mas eles não fazem ideia do que se passa na minha cabeça, não sabem o que eu amo, não me conhecem realmente e eu também admito que não os conheço. Somos completos estranhos aos olhos uns dos outros. 

Por exemplo, no momento estou ouvindo  os primeiros compassos da Sinfonia N° 1 do Brahms, e acabo de ouvir o seu Concerto pra Violino Op. 77. Eles sabem que eu gosto de música clássica, inclusive alguns como meu ex já foram comigo assistir a orquestra, mas mesmo sabendo disso, não sabem o que a música significa pra mim, não sabem o que é sentar e sentir dezenas de milhares de sensações ao ouvir uma música com a complexidade de Brahms ou Bach. E isso é importante? 

Bom, isso pra mim é a vida. Música pra mim é vida. E se algo que pra mim tem a maior importância, para os outros não passa de um algo a mais, uma diversão momentânea, algo pra preencher o silêncio e nada mais. 

Como posso então confrontar essa minha realidade com aquela que diz que amigos são aqueles que querem as mesmas coisas e rejeitam as mesmas coisas, como dizia S. Tomás de Aquino? 

Marchamos pra lá e pra cá o dia inteiro. Entramos em organizações, igrejas, pastorais, empregos. Fazemos amigos, inimigos, colegas. Encontramos pessoas que nos fazem bem, pessoas que nos irritam que queremos bem longe, pessoas que queremos ao nosso lado mas não que não querem ficar, ou que querem mas não podem... Temos uma ilusão de preenchimento, com nossos livros, nossas tarefas e obrigações, nossos compromissos. Rimos das aves que parecem voar sem direção, sem destino, mas esquecemos que também não temos destino, não sabemos pra onde vamos, nem o que queremos...

Ou só eu estou perdido assim? Só eu ando vagando sem direção, fazendo o que faço por inércia, por não ter nada melhor para fazer, enquanto todos os outros tem plena consciência de seu lugar no mundo, de seus sonhos e interesses? Será que apenas eu não sei quem sou e nem o que quero? Será que sou o único a flutuar daqui pra ali sem rumo, sem destino, sem orientação. Desnorteado. 

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Corpo

Acordei com uma incômoda dor, pouco abaixo do estômago e também nos rins, nessa manhã. Depois de pouco tempo eu percebi que estava suando, ainda debaixo do cobertor, e que a brisa fria que entrava no quarto não era suficiente para me deixar aliviado. 

Tentei, por alguns instantes, fazer um tipo de exercício que vi na internet. Deitado de olhos fechado eu me concentrei na dor e na música que tocava, um concerto para piano da Clara Schumann, e então tentar entender o que meu corpo me dizia.

Toquei onde doía, e a pressão dos dedos me tornou um pouco mais consciente do meu próprio corpo. Foi uma experiência interessante. Senti meus músculos, ouvi meu coração bater quase que no mesmo compasso da orquestra, e a dor foi sentida com toda a intensidade. É estranho saber que somente às vezes me torno consciente de meu próprio ser, e triste é perceber que só faço isso quando algo não vai bem.

Não consegui compreender o motivo da dor, mas tive uma experiência enriquecedora, de me tornar consciente de mim mesmo. Depois de alguns minutos eu resolvi tomar um remédio e adormeci, no meio da manhã, acordando algumas horas depois, sem dor nenhuma, mas ainda consciente da experiência. 

Levantei e vi minha imagem no espelho, e foi uma outra surpresa, quando notei a imagem do corpo do qual me tornei consciente. Gostei do que vi. Os poucos músculos, a pele magra, as cores, as tatuagens... Gostei do que vi. Me senti bonito, me senti vivo. 

sábado, 27 de outubro de 2018

Amor e veneno

Eu estou doente. Meu corpo dói como se tivesse feito um esforço hercúleo por um longo período de tempo. Minha mente se desfaz como se meu ser não fosse mais do que um pedaço de gelatina. Meu coração, em pedaços, tenta sobreviver em meio a uma tempestade com uma pequena centelha de vida que lhe restou. 

A sua figura apareceu, me enchendo de luz e calor, e logo se foi, me abandonando na frialdade obscura da terra. O seu silêncio, a sua distância, me matam, me ferem pouco a pouco, me reduzem a um emaranhado de machucados sem sentido. 

A sua figura apareceu, me abraçando carinhosamente, e o mundo se resumiu no pequeno espaço em que estávamos. Seus braços ao redor do meu corpo, minha cabeça em seu peito, seus lábios em meu cabelo. E logo você se foi, me deixando sozinho e desamparado numa imensidão de vazios. Apenas eu e minha sombra, e ela a rir-se de mim.

Eu olho as cicatrizes no meu braço, linhas finas e claras, que mostram que há poucos dias ali havia sangue e que o sangue que delas escorreu fez sair de mim um pouco da dor que sentia. Mas não saiu tudo, e sinto como se me afogasse agora no meu sangue, contaminado de amor por você. 

Isso porque não há mais como mentir e dizer que meu amor é algo bom, puro. Não. Meu amor é veneno, meu amor é um incêndio que destrói, é tsunami que arrebenta e mata por onde quer que passe. E tal é a gravidade de minha doença que a cada imagem sua, a cada palavra sua, um pouco de mim morre aqui dentro. E já não sei quanto mais de mim ainda resta, para morrer um pouco a cada dia... 

Trovoadas

Os trovões ressoam pelos ares, como os tímpanos de uma orquestra grandiosa. Sempre gostei do som dos trovões, bem como dos tímpanos. Acho que tenho uma certa preferência por tudo aquilo que soa poderoso, transcendente. 

Quem dentre os homens pode ficar indiferente ante o som de um trovão? Ele estremece até mesmo as rochas mais duras, e o homem está longe de ser uma das coisas mais firmes do mundo. 

Não há, tampouco, como alcançar a grandeza sublime desse som que se espalha sobre toda a terra, e que todos os homens do mundo podem ouvir. Nos compassos da natureza o céu consegue trazer as sonatas mais poderosas a nós, pequenos ouvintes. 

O que podemos fazer diante dessa grandeza senão tremer e nos recolhermos a impassibilidade de nossa modesta existência? O céu nos torna conscientes de nossa posição no universo. O peso da terra sob nossos pés, a força dos ventos que tocam nossa pele, tudo é prova de um algo muito maior. 

Algo maior do que nossa extrema pequenez, que no entanto ainda significa tudo para nós. Não há homem que, mesmo diante do universo, possa ignorar sua existência e viver sem amor.

O amor, diz Ortega é o imprescindível; quer dizer, quando amamos algo, pensamos não poder prescindir disso, não podemos admitir uma vida em que nós existimos e o amado não; consideramo-lo, em suma, como parte de nós mesmos. Ou, quase com as mesmas palavras: meu ser não sou só eu, mas eu o amado, eu e o imprescindível. (Julian Marías)

E eis que então atrevo-me a comparar o amor ao trovão. O som do amor não pode ser abafado, faz estremecer até o homem que se julgue mais firme. O amor não pode ser ignorado e faz-se ouvir até nos cantos mais remotos do coração. A diferença é que, logo quando passa a trovoada, nos esquecemos dela, ao passo que o amor deixa uma marca, marca esta que as vezes nunca desaparece, por isso diz-se que o amor é imprescindível, pois torna o amado uma verdadeira necessidade para o amante. 

E voltando minha breve reflexão para o céu, que agora contemplo da janela do meu quarto, vejo o quanto ele se torna cinza para se fazer ouvir o trovão. Também o amor, para mim, tornou-se cinza, para fazer me estremecer antes os anúncios tenebrosos da tempestade. O amor é então essa força que faz-se ouvir, que faz estremecer, que empalidece o céu e entristece o horizonte, mas que não pode ser alcançado, senão que apenas pode ser sentido, quando faz-se trovoar por aí... 

No meu bairro

Por José Vitor

O meu bairro é engraçado. Lá se encontra de tudo!

Eu sempre via um rapaz em que a anos criei teorias sobre suas aparições. Sempre no mesmo local e nos mesmos horários, meio dia e seis horas da tarde. Com a mesma roupa, faça chuva, faça sol, frio ou calor, e com um molho de chaves em suas mãos, balançando como se fossem sinos. A princípio eu achava que estava esperando alguém chegar. Depois achei que fosse um louco, ou um drogado que só ia lá pra bater perna...

Eu descobri. Ele é um louco, mas não usa usa drogas, e está ali todos os dias esperando o retorno de sua amada. Ele a amava muito. Sonhava em ter filhos com ela, construir uma família com ela. E todas as vezes que ela saia do trabalho (às 12:00 horas) e logo após seus expedientes, ia para sua casa (18:00 horas).

Ela se foi. O deixou, e ele nunca soube o motivo, e o deixou com um grande buraco no peito, com uma tremenda saudade. Ele ficou louco. Não aguentou.

E todos os dias ele acordava feliz, preparava um almoço, como se fosse o último. E enquanto o tempo passava, mais essa alegria tomava conta dele, até os meio dia, quando ele ia para a sua esquina, com a roupa que ela adorava, com as chaves nas mãos, esperar ansiosamente sua amada para almoçar. Mas ela nunca aparecia. Ele chora, enquanto sabe que ela não vai vir. E volta para casa. Mas de novo, a alegria vai tomando conta dele de novo! Ele arruma sua cama, para abrigar com todo aconchego a mulher da sua vida! E ansiosamente ele corre para sua esquina, com a roupa que ela gostava e com as chaves nas mãos. E novamente caia em si, conforme os minutos se passavam, que sua querida não viria para sua casa... Então ele retornava a sua casa, chamando e ia para sua cama, com o seu mundo destruído, caído.

Seu coração partido, aos pedaços, aos mais pequenos pedaços, com os olhos vermelhos de tanto chorar. Com a roupa que ela tanto gostava encharcada pelas suas lágrimas. Ele chorava e chorava, até em fim adormecer sem perceber. E no outro dia... tudo voltava a ser como no dia anterior.

O amor cura. Mas também é capaz de transformar o homem mais sábio do mundo num louco estúpido.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Wilderness


Reflexão livremente inspirada na audição de:

Álbum: Have You In My Wilderness
Artista: Julia Holter
Gênero: Alternative, Indie
Gravadora: Domino Records, 2015.

Imagens etéreas surgem em minha mente. Inconscientemente levando a mão para tocá-las, e elas se dissolvem por entre meus dedos como se fossem fumaça. 

A firmeza do chão frio e molhado embaixo de mim enrijece meus pés e me faz estremecer, mas caminho sem destino, vendo não mais do que borrões disformes ante meus olhos. Esparsas figuras aqui e ali me dão a impressão de que não estou sozinho, e eu as chamo, eu as clamo, mas elas são tão impassíveis a minha voz como foram ao meu toque. 

Por vezes eu comecei a correr, na busca de uma parede, ou uma pedra que fosse. Meu coração quase vacilou duas ou três vezes, e eu caí, rolando na lama, manchando minha camisa branca e ralando os meus joelhos. Levantei cambaleante, e voltei a rodar ao redor de mim mesmo, em busca de algo além da pedra e mais firme do que as imagens de fumaça que me assombravam com suas cores. 

Um mundo amarelo, salpicado de azul e vermelho no horizonte. Um pôr do sol que deu errado? O que é esse sangue que se vê no céu? O suor escorre pelas linhas do corpo, a respiração pesada, o sal das lágrimas que se mistura com o sal da pele, derretendo em dezenas de tons pastéis diferentes. Um cenário surreal. 

Um mundo preto, com fumaça branca. Vazio.

Um mundo cinza, com bolinhas rosas e verdes que piscavam como no natal. Um mundo de sonhos, com penas coloridas sem pássaros flutuando por ali. Um longo piano de cauda, branco e límpido, seu som doce não encontra barreiras, não encontra limites, e toca os corações mais distantes, até os que foram despedaçados pelo abandono.

Um mundo branco, com fumaça cinza. Vazio.

Andei lenta e sem direção. Tentei me concentrar nos sons que as vezes ouvia. Um ritmo acelerado, uma festa de criança, um parque com suas luzes acesas e casais no carrocel sorrindo com um algodão doce nas mãos. Um ritmo lento, uma brisa fria, um piano triste. Primeiro um, depois o outro. Depois o outro, e em seguida o um. 

Meu coração se acelerava, e eu corria. Meu coração diminuía, e eu andava em círculos. Um sentimento esquizofrênico tomou conta de mim quando percebi que já não mais entendia o que sentia, nem o que me acontecia. 

Fechei os olhos, e apertei com força, toda a força que tinha. Cerrei as mãos e as unhas cravaram fundo na carne. Apenas os abri quando senti que algo ao meu redor mudara...

Ao abrir os olhos uma escada surgiu a minha frente. Bem como toda a paisagem ao meu redor que se mesclara, em tantas combinações diferentes que eu sabia não estar em nenhum mundo daqueles, mas em algo que era tudo aquilo junto e misturado. O todo era maior que a soma das partes, e a combinação de tantas realidades distintas formava um mundo de verdade. Mas a escada, mesmo a minha frente, estava tão longe que não podia alcançá-la sem antes atravessar toda aquela selvageria.

Ali havia dor, mas também havia alegria. Havia vazio, mas também havia som. Havia uma realidade palpável, e um sinal que apontava para a transcendência pela qual passei. O som do coro dos anjos me disse para não desistir e continuar lutando, enfrentando as feras, caminhando, em direção a vida perene que em breve alcançaria. 

Do meu lugar

Eu não sou nada, e bem sei disso. Estou dolorosamente ciente de minha modesta posição frente ao mundo. Nada parece dar certo, mas isso não é verdade, algumas coisas mais significativas do que outras parecem não dar certo, e por elas terem mais peso em meu coração, sinto como se nada desse certo. 

Às vezes sinto como se o universo conspirasse contra mim, numa espécie de assembléia cósmica onde sábios discutissem sobre a melhor forma de me fazer sofrer. Obviamente isso é resultado de uma visão megalomaníaca de minha própria existência, colocando-me no alto de um pedestal que não ocupo. Quem sou eu para o universo conspirar contra mim? O universo verdadeiramente não está nem aí para mim!

Assim como ele também não está, e dessa posição eu não preciso recordar, em nenhum momento cheguei a crer que ocupava em seu coração um lugar de destaque, senão que sempre ocupei a margem, se é que se pode afirmar que ocupei algum lugar.

A verdade é que enquanto eu me isolo e sofro, chorando ao ser influenciado pelas letras tristes das músicas e pelo som alto da chuva que parece esmagar o meu ser, ele sequer considera o sofrimento que causa em mim. Alguns dias atrás, quando tolamente jurava declarar ao mundo minha existência ao traçar com um canivete as linhas frias de sangue que funcionariam como meu testamento, ele não sentiu minha dor. 

Eu me feri, levado de certa forma pelo desespero que era saber de minha posição em relação a ele. Eu me feri e derramei meu sangue, e algumas cicatrizes claras em minha pele me recordam disso. Mas apenas eu me feri, apenas eu chorei, apenas eu sofri, enquanto ele dormia confortavelmente, enquanto outra pessoa ocupava seu pensamento e principalmente seu coração. 

Não sou importante o suficiente para ser objeto de discussão daqueles que decidem as grandes questões do universo. Não sou tampouco importante para ocupar a mente de um jovem de uma terra esquecida no meio de uma nação de bacharéis imbecis. Meu lugar é tão modesto assim, que sequer mereço ocupar a mente de uma única pessoa num mundo tão repleto de idiotas que ocupam a mente de tantos? 

Daqui do meu lugar, que não é de cima do pedestal que me julgava digno, eu vejo a grandiosidade da estupidez daqueles que me cercam, e me pergunto em meu íntimo: qual a razão de querer eu ocupar o coração de quem sequer consegue compreender meu amor? 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Chamas luxuriosas

Dias difíceis de controlar o fogo impetuoso que arde dentro em mim. A vontade de me entregar torpemente as paixões mais baixas do meu ser me envolvem e me acariciam sinuosamente. Como uma mão pervertida os tentáculos gelados da luxúria vagueiam pelo meu corpo, estimulando constantemente meu cérebro num oceano de hormônios viscerais.

Se eu fechar os olhos contemplarei apenas as cenas mais sujas dos meus instintos mais primitivos. Verei não o homem que sou, mas a besta que anseio me tornar. Despido de todos os meus selos, com todas as vergonhas arrancadas pelos lábios ferozes de meus demônios, o corpo coberto pela saliva intoxicante das pestes que me lambem.

Os olhos giram, os músculos se retraem, o suor escorre, o rubor acontece e o gemido incendeia toda a atmosfera, que como o sangue se pinta de um vermelho lúgubre como as chamas bruxuleantes de uma lareira, que ilumina os corpos ensandecidos que ali se entregam não ao amor, mas aos braços das mais pavorosas orgias. 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Outro torpor

Sinto como se a risada do demônio ecoasse em meus ouvidos. Sinto como se um exército marchasse em minha direção. Sinto como se meu coração batesse mais rápido do que deveria. Sinto que minha hora se aproxima cada vez mais...

Passei o dia inteiro deitado, sem forças para me levantar, sem vontade de me levantar. Meu corpo entrou novamente num estado de letargia, como se aos poucos ele refletisse o meu desinteresse em viver, como se aos poucos a desesperança fosse se marcando na minha carne.

E por falar em carne, ela agora arde, como meu peito, em desejo. E o calor que há em mim a consome em cinzas, desgrudando-a de meus ossos. Meu corpo aos poucos deixa de ser corpo, passará a ser apenas a velha cinza, misturada a terra e aos vermes que nela habitam. 

Acho que ele se foi de vez, pois a cada dia sinto a distância entre nós aumentar e aumentar, e com sua ausência aumenta em mim o vazio de sua presença. Talvez as chamas tenham queimado também os laços que nos uniam, e me levado com elas para o limbo de torpor. 

Assim como em mim não encontro a continuidade de uma vida, não há como terminar devidamente estas linhas. Recorro ao baixo recurso da liberdade artística que a tudo releva na tentativa de me eximir a dar a estas palavras uma forma mais bem definida e um final arrematado, mas quando não consigo delimitar nem mesmo a minha forma, como vou fazer isso com o emaranhado de palavras confusas que brotam do meu coração? 

Ah, o coração... 

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Uma coisa me atropela

É preciso dizer
Quando olhas assim
Uma coisa me atropela
Dentro o peito
Como é que se faz
Elevado do chão
Eu flutuo nessa coisa
Do teu jeito.

Meu amor fez de mim um homem cativo. Eu olho as pessoas ao meu redor, pessoas livres, que andam pra lá e pra cá estarem presas a nada que as prive de viver, de voar livremente por aí, e quando me olho no espelho, só consigo ver um homem esmagado pelo peso das próprias correntes. 

Essa coisa dentro de mim, esse amor, também me suga, como um parasita, me consumindo, fazendo com que aos poucos eu deixe de existir. E ainda assim, mesmo não sendo mais quase nada, ainda carrego o peso dessas grossas amarras, que me ligam invisivelmente a pessoas livres, que em nada se prendem a mim. 

Essa coisa que me atropela, sai de dentro de mim, flui naturalmente. Mas machuca, corrói, consome. Me vejo então sozinho, nessa noite de domingo, com a neblina fria refletindo a luz fraca dos postes na rua, e não me sinto contente, nem completo, senão que me sinto vazio, desejando silenciosa e intimamente alguém aqui comigo, alguém do meu lado.

domingo, 21 de outubro de 2018

Eleva o pensamento

Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.

Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.

Deseje às coisas celestes, Que sempre duram;
Fiel e rico em promessas, Deus não muda.
Ama-o como merece, Bondade Imensa;
Quem a Deus tem, Mesmo que passe por momentos difíceis;
Sendo Deus o seu tesouro, Nada lhe falta.
SÓ DEUS BASTA!

Santa Tereza D'Ávila

sábado, 20 de outubro de 2018

De um sorriso

E tudo retorna ao nada. E tudo vai desmoronando.

E quando o barulho ao seu redor não consegue mais do que abafar os gritos do seu coração? E quando as pessoas conseguem te distrair, mas cedo ou tarde a solidão acaba por nos lançar novamente num abismo escuro, onde estamos sozinhos com nossos pensamentos mais aterrorizantes? O que fazer quando um sorriso te faz desejar morrer?

E tudo retorna ao nada. E tudo vai desmoronando.

O que fazer quando você consegue rir e sorrir, mas dentro do seu peito ainda sente a escuridão te chamando? O que fazer quando a dor e o cansaço dominam seu corpo, mas seu coração ainda quer chorar? O que fazer quando um sorriso te faz desejar morrer?

E tudo retornar ao nada. E tudo vai desmoronando.

O que fazer quando a morte deixa de ser uma perspectiva misteriosa e se apresenta como uma sedutora solução de todos os problemas? O que fazer quando um sorriso te faz desejar morrer? 

E tudo retorna ao nada. E tudo vai desmoronando.

O que fazer quando não há um objetivo a ser atingido, uma missão a ser cumprida? O que fazer quando a única coisa que se quer é algo que não se pode ter? O que fazer quando um sorriso te faz desejar morrer?  

E tudo retorna ao nada. E tudo vai desmoronando. 

O que fazer quando toda sua força serviu para te fazer continuar respirando, ainda que sua maior vontade seja a de parar de nutrir seu corpo com  oxigênio oxidante e deixar de viver de uma vez por todas? O que fazer quando um sorriso te faz desejar morrer?

E tudo retorna ao nada. E tudo vai desmoronando.

Fonte de amor

Há alguns dias me disseram que eu estava sendo egoísta, em guardar para mim tudo o que sinto, tudo o que sou, tudo o que sei. Admito que recebi a observação com certa estranheza, mas quando pensei nisso com um pouco mais de atenção eu percebi que na verdade é bem isso que tem acontecido realmente. 

Já não falo mais como falava antes, me abrindo completamente a todos, e com exceção desse espaço onde de fato digo tudo o que sinto sem filtros, não há alguém que me escute com sinceridade. Isso porque comecei a entender que as pessoas não conseguem compreender o que sinto, e isso causa nelas certa estranheza e às vezes até mesmo certa repulsa. 

Isso porque sinto demais, com intensidade demais, e qualquer coisa tem para mim um significado transcendente que os outros achariam absurdo se soubessem. Isso porque também amo demais, com uma intensidade obsessiva, com uma paixão tão assustadoramente arrebatadora que causa medo em quem não a compreende. E, digo isso com base no que já vivi, não creio que existam muitas pessoas por aí que sejam capazes de entender. 

Quantas vezes isso me trouxe dor e sofrimento? Quantas vezes eu desejei que o outro fosse capaz de entender meu amor? Quantas vezes eu me perguntei como podem as pessoas viverem sem amar apaixonadamente?

Cabe a mim a paciência e o entendimento de não esperar ser compreendido por aqueles que vivem sem amor, que não conseguem entender o que sinto, antes, eu devo compreendê-los, e me compadecer de suas vidas vazias. 

Eu percebi também, que não deixei de amar em nenhum momento, mas apenas de expressar esse amor de forma indiscriminada, me tornando motivo de risos para aqueles que sequer conseguem me entender, mas continuo amando, amando tanto, mais até do que gostaria, mais até do que considero certo... Mas talvez isso seja eu me deixando ser contaminado por eles, pelos incapazes de amar, que aos poucos venha considerando meu amor como um fardo. 

Mas ele continua fluindo livremente dentro de mim. Continua amando, apaixonadamente, mesmo quando não sou lembrado, quando sou insultado, abandonado. Continuo amando, e continuarei, até que se esgote essa fonte de amor que há em mim...

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Cântico Espiritual

I

Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
Havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.

II

Pastores que subirdes
Além, pelas malhadas, ao Outeiro,
Se, porventura, virdes
Aquele a quem mais quero,
Dizei‑lhe: que adoeço, peno, e morro.

III

Buscando meus amores,
irei por estes montes e ribeiras;
Não colherei as flores,
nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.

PERGUNTA ÀS CRIATURAS

IV

Ó bosques e espessuras,
Plantados pela mão de meu Amado!
ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei‑me se por vós ele há passado!

RESPOSTA DAS CRIATURAS

V

Mil graças derramando,
Passou por estes soutos com presteza,
E, enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
A todos revestiu de formosura.

ESPOSA

VI

Quem poderá curar‑me?!
Acaba de entregar‑te já deveras;
Não queiras enviar‑me
Mais mensageiro algum,
Pois não sabem dizer‑me o que desejo.

VII

E todos quantos vagam,
De ti me vão mil graças relatando,
E todos mais me chagam;
E deixa‑me morrendo
Um “não sei quê”, que ficam balbuciando.

VIII

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo onde já vives?
Se fazem com que morras
As flechas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

IX

Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, o não saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

X

Extingue os meus anseios,
Porque ninguém os pode desfazer;
E vejam‑te meus olhos,
Pois deles és a luz,
E para ti somente os quero ter.

XI

Mostra tua presença!
Mate‑me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura.

XII

Ó cristalina fonte,
Se nesses teus semblantes prateados
Formasses de repente
Os olhos desejados
Que tenho nas entranhas debuxados!

XIII

Aparta‑os, meu Amado,
Que eu alço o vôo.

ESPOSO

Oh! volve‑te, columba,
Que o cervo vulnerado
No alto do outeiro assoma,
Ao sopro de teu vôo, e fresco toma.

ESPOSA

No Amado acho as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As ilhas mais estranhas,
Os rios rumorosos,
E o sussurro dos ares amorosos;

XV

A noite sossegada,
Quase aos levantes do raiar da aurora;
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e que enamora.

XVI

Caçai‑nos as raposas,
Que está já toda em flor a nossa vinha;
Enquanto estas rosas
Faremos uma pinha,
E ninguém apareça na colina!

XVII

Detém‑te, Aquilão morto!
Vem, Austro, que despertas os amores:
Aspira por meu horto,
E corram seus olores,
E o Amado pascerá por entre as flores.

XVIII

Ó ninfas da Judéia,
Enquanto pelas flores e rosais
Vai recendendo o âmbar,
Ficai nos arrabaldes
E não ouseis tocar nossos umbrais.

XIX

Esconde‑te, Querido!
Voltando tua face, olha as montanhas;
E não queiras dizê‑lo,
Mas olha as companheiras
Da que vai pelas ilhas mais estranhas.

ESPOSO

XX

A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ventos, ardores,
E, das noites, os medos veladores:

XXI

Pelas amenas liras
E cantos de sereias, vos conjuro
Que cessem vossas iras,
E não toqueis no muro,
Para a Esposa dormir sono seguro.

XXII

Entrou, enfim, a Esposa
No horto ameno por ela desejado;
E a seu sabor repousa,
Ó colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

XXIII

Sob o pé da macieira,
Ali, comigo foste desposada;
Ali te dei a mão,
E foste renovada
Onde a primeira mãe foi violada.

ESPOSA

XXIV

Nosso leito é florido,
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de ouro coroado.

XXV

Após tuas pisadas
Vão discorrendo as jovens no caminho,
Ao toque de centelha,
Ao temperado vinho,
Dando emissões de bálsamo divino.

ESPOSA

XXVI

Na interior adega
Do Amado meu, bebi; quando saía,
Por toda aquela várzea
já nada mais sabia,
E o rebanho perdi que antes seguia.

XXVII

Ali me abriu seu peito
E ciência me ensinou mui deleitosa;
E a ele, em dom perfeito,
Me dei, sem deixar coisa,
E então lhe prometi ser sua esposa.

XXVIII

Minha alma se há votado,
Com meu cabedal todo, a seu serviço;
já não guardo mais gado,
Nem mais tenho outro ofício,
Que só amar é já meu exercício.

XXIX

Se agora, em meio à praça,
já não for mais eu vista, nem achada,
Direis que me hei perdido,
E, andando enamorada,
Perdidiça me fiz e fui ganhada.

XXX

De flores e esmeraldas,
Pelas frescas manhãs bem escolhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas,
E num cabelo meu entretecidas.

XXXI

Só naquele cabelo
Que em meu colo a voar consideraste,
‑ Ao vê‑lo no meu colo,
Nele preso ficaste,
E num só de meus olhos te chagaste.

XXXII

Quando tu me fitavas,
Teus olhos sua graça me infundiam;
E assim me sobreamavas,
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em ti viam.

XXXIII

Não queiras desprezar‑me,
Porque, se cor trigueira em mim achaste,
já podes ver‑me agora,
Pois, desde que me olhaste,
A graça e a formosura em mim deixaste.

XXXIV

Eis que a branca pombinha
Para a arca, com seu ramo, regressou;
E, feliz, a rolinha
0 par tão desejado
já nas ribeiras verdes encontrou.

XXXV

Em solidão vivia,
Em solidão seu ninho há já construído;
E em solidão a guia,
A sós, o seu Querido,
Também na solidão, de amor ferido.

XXXVI

Gozemo‑nos, Amado!
Vamo‑nos ver em tua formosura,
No monte e na colina,
Onde brota a água pura;
Entremos mais adentro na espessura.

XXXVII

E, logo, as mais subidas
Cavernas que há na pedra, buscaremos;
Estão bem escondidas;
E juntos entraremos,
E das romãs o mosto sorveremos.

XXXVIII

Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ali, tu, vida minha,
Aquilo que me deste no outro dia.

XXXIX

E o aspirar da brisa,
Do doce rouxinol a voz amena,
Ó souto e seu encanto,
Pela noite serena,
Com chama que consuma sem dar pena.

XL

Ali ninguém olhava;
Aminadab tampouco aparecia;
O cerco sossegava;
Mesmo a cavalaria,
Só à vista das águias, já descia.

(São João da Cruz)

Só Deus basta!

Meditando essas palavras de Santa Tereza eu gemo e me prostro diante de meus pecados. Vejo o quão distante estou das coisas do alto. Vejo o quanto deixo que as coisas vãs do mundo preencham o meu ser, tomando o espaço que deveria ser apenas de meu Senhor. 

Me recordo da música que diz "os homens fogem do amor, e depois que se esvaziam, no vazio se angustiam". Assim me sinto nesse momento, perturbado, angustiado, como a paga devida pelo desvario de buscar minha completude na imperfeita criatura.

Eleva o pensamento, ao céu sobe
por nada te angusties, nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue com coração grande
e venha o que vier, nada te espante... 

Meu pensamento está longe do céu, antes disso, chafurda no mais imundo lamaçal. Dei as minhas costas aos céus, e me joguei de cara na lama, como aquele jovem rico que desejava comer a comida dos porcos de seu patrão, já esquecido dos ricos banquetes da casa de seu pai. 

Meu coração se esqueceu do Cristo, mais uma vez, mesmo estando ele pesando sobre o meu peito, e por isso toda pequena brisa soa como tempestade no meu coração.

Vês a glória do mundo? É glória vã:
nada tem de estável, tudo passa!
Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa!

A beleza do mundo me cegou, me inebriou, me hipnotizou. Dizem que a beleza é a forma da verdade, mas também a mentira pode usar-se da beleza para enganar. A glória do mundo me cegou, a beleza do outro me hipnotizou. E a glória do mundo passou, a beleza evaporou, tudo passou...

Aspira às coisas celestes, que sempre duram.
Fiel e rico em promessas, Deus não muda.
Ama-o como merece, bondade imensa...
Mas não há verdadeiro amor, sem a paciência!

Oh como estou distante de buscar as coisas do alto. Meu coração está aqui, meu peito apenas deseja as coisas daqui, as pessoas daqui. Não desejo o criador, mas a criatura. Mas as promessas das criaturas são todas falsas, vazias, todas elas mudam, murcham. E com elas, a desesperança.

A confiança e fé viva mantém a alma.
Quem crê e espera, tudo alcança.
Deus não muda! A paciência... tudo alcança!

Minh'alma se encontra desesperada, perdida no vazio de uma noite escura que eu mesmo busquei. Perdida numa tempestade causada pela imperfeição das criaturas que eu julgava perfeitas. Não esperei, não acreditei, me coloquei no lugar de Deus, e quis usurpar-lhe o trono, quis decidir tudo por mim mesmo. Minha impaciência tornou-se minha senhora. 

Do inferno acoçado, embora se veja,
enganará seus furores, quem a Deus tem.
Que lhe venham desamparos, cruzes e desgraças...
Sendo Deus, o seu tesouro, nada lhe falta!

Agora caem as escamas de meus olhos, e vejo antes meus olhos que alguém cuida de mim. Não zangado por ter preferido as coisas do mundo, mas triste por tê-lo abandonado. Estendendo os braços para mim ele me oferece vida nova, nova esperança, e uma promessa real, de que a paciência, tudo alcança!

Ide, pois, bens do mundo, pois tudo é nada...
Ainda que tudo percas, só Deus basta!
Quem a Deus tem, nada lhe falta... Só Deus basta!

Passada a noite escura da alma, vem o sol grandioso, guiado pela linda Estrela da Manhã, Nossa Senhora, que a Deus tudo confiou, em Deus esperou e por Deus tudo suportou. E mesmo nos momentos mais difíceis, mesmo aos pés da cruz, mesmo após a ruz, só em Deus confiou, só Deus lhe bastou!

~

Nota: Reflexão baseada no poema "Nada te perturbe" ou "Só Deus basta" de Santa Tereza D'Ávila; No entanto a letra aqui usada é aquela musicalizada pela Ir. Kelly Patrícia, cuja voz me acompanhou e inspirou durante essa noite escura. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Prisão

Hoje foi um dia de barulho, 
muito barulho.

Há dias que só queria ficar sozinho
no escuro,
no silêncio.

Mas as pessoas continuam aparecendo,
aparecendo
e aparecendo.

Elas fazem barulho demais
tem barulho demais
tem gente demais.

Não consigo ouvir musica
não consigo ouvir meus professores
não consigo me ouvir.

Não consigo estudar, 
não consigo dormir,
não consigo me desligar.

Eu só queria ficar sozinho
no escuro,
no silêncio.

Mas as pessoas continuam aparecendo,
me chamando,
me gritando

As pessoas continuam me incomodando
me aprisionando
gritando

Eu só queria ficar em silêncio
ou dormir abraçado
ou sonhar acordado

Mas as pessoas continuam me interrompendo
elas continuam me rodeando
elas continuam me aprisionando. 

Não quero ficar rodeado por pessoas
não quero ficar surdo por conta de suas vozes
não quero me perder no meio de uma multidão

Eu só quero uma pessoa
uma voz, 
um abraço.

Triplo adeus

Adeus amor, 
adeus raça,
adeus ó extirpe divina.*

Aqueles que de perto assistem a esse banho de sangue choram aos amores que se vão, e despedem-se, do amor que nutriam, dos povos de onde vinham, e das extirpes reais a que pertenciam.

Adeus ao amor que um dia nos fizeram cegos, amor que nos levou a morte. Adeus ao que não passou de uma promessa. Adeus ao amor que nunca se concretizou. Esse amor se foi junto com o sangue que se derramou. 

Adeus à raça que um dia sonhavam em governar. Adeus a raça de todos os homens. Adeus a todos aqueles que um dia acreditaram no amor.

Adeus ó extirpe divina, adeus ao sangue real, adeus ao deus do amor, adeus a todas as coisas ditas sublimes e perenes que se extinguiram com aquele golpe de espada. Adeus a toda dor e sofrimento. Adeus a vida. 

~

Nota: Giácomo Puccini, Turandot. II ato. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Importância

O tempo finalmente melhorou. A maior parte do calor se dissipou, e um ar úmido e fresco é soprado agora, ao invés daquele bafo quente de antes. Me senti melhor quando acordei e vi que tinha mudado, as últimas noites foram difíceis para dormir, o suor, o cansaço, a fadiga... E claro, os pensamentos que viajavam na velocidade da luz e martelavam minha cabeça atrapalhavam tanto quanto o tempo ruim. 

O frio é mais agradável, mais aconchegante. Mas também é mais eficiente em nos mostrar a a solidão, em sua melhor forma. 

Geralmente o tempo frio me deixa melancólico, é quase automático, mas sempre que começa a chover eu sou levado desse mundo para o dos sonhos, e lá eu sou obrigado a rever o passado, a sonha com o futuro e a chorar. Eu esperava que ficasse assim também hoje, mas não foi bem isso que se deu. Eu estou dominado por um completo vazio. Inclusive não escrevia já há vários dias, por não ter o que dizer. 

Creio que os últimos acontecimentos tenham me esgotado completamente. Com efeito, eu me derramei tanto que vai levar ainda algum tempo para voltar ao normal. Ainda que aqueles dias agora sejam apenas uma lembrança cinza, o vazio daqueles dias ainda me preenche. 

O tempo está bom para dormir, mas eu não quero me deitar, eu não quero fechar os olhos. Eu não quero vê-lo. Eu não quero entrar nessa de novo, não quero perder o controle e fazer besteira. Se bem que também não me importaria se fizesse. 

Algumas pessoas se mostraram solidárias comigo. Provavelmente sentindo uma comoção coletiva, bem comum nos últimos tempos, quando viram os cortes no meu braço. Se disponibilizaram para ouvir, mas eu sei que elas não queriam ajudar, vi isso em seus olhos. Eu vi o julgamento em que me chamavam de fraco, que me acusavam de querer chamar atenção, apenas isso. 

A verdade é que ninguém se importa. A minha dor é importante só para mim. Se eu fizer alguma coisa extrema, é provável que vão chorar, se lamentar por não terem feito nada, mas já será tarde demais. E eu não me importo. Não me importo mais com o que vão dizer, o que vão pensar, o que vão fazer. 

Estou sozinho, e isso não vai mudar.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Antologia

Nossa história começa alguns anos atrás, numa Missa, em que te vi pela primeira vez. Não pude deixar de me encantar com seus olhos lindos, seu rosto sério, seu corpo perfeito escondido embaixo da túnica preta e da sobrepeliz. Poucos dias se passaram até que começamos a conversar, apenas em um grupo do WhatsApp, quase sempre indiretamente.

Ainda me lembro de quando marcamos de nos ver pela primeira vez, a timidez combinada com a já conhecida intimidade de quem conversava bobagens o tempo inteiro. 

Naquela época eu ficara encantado, mas minha cabeça estava concentrada em outras coisas, outras pessoas, e eu tinha colocado uma regra para mim mesmo: que não iria me apaixonar por outro amigo hétero, nunca mais. 

Não preciso dizer que falhei miseravelmente, mas devo acrescentar que por um tempo, muito tempo, eu consegui manter minha palavra. O via como um colega, um conhecido, excepcionalmente lindo, é verdade, mas apenas isso. 

Os anos passaram, nosso contato não aumentou até que um dia começamos a conversar a sós. Você estava machucado, precisava falar e eu me disponibilizei a ouvir. E assim passamos de colegas a amigos. 

Passamos a conversar todos os dias, por várias e várias horas. Íamos dormir tarde da noite refletindo juntos sobre as desgraças da vida, sobre amores impossíveis, sobre pessoas que se foram e nos deixaram.

O homem que antes era para mim a imagem da perfeição se mostrou frágil, humano e mortalmente ferido. Quanto mais nos abríamos um com o outro, mais estreitávamos os laços de amizade que aos poucos foram enforcando a promessa que tinha feito. 

Nossa amizade se tornou uma coisa bela. Uma rosa perfumada que cresceu no meio do pântano. Cumplicidade, confiança, esperança. Era o que tínhamos pra partilhar um com outro, e aos poucos o meu amor foi nascendo, timidamente, também como uma flor, que vai lentamente crescendo até desabrochar completamente.

Eu via o que estava acontecendo, mas quando me dei conta do perigo do sentimento que crescia, já era tarde demais. Ele já espalhara suas raízes em meu peito e já dominava completamente o meu ser.

Chegamos no ponto mais alto de nossa amizade quando, naquela noite de 13 de maio, você chorou copiosamente no meu ombro, se derramando completamente por aquela que amava. Ali eu vi seu lado mais secreto, que você não havia mostrado para mais ninguém. Ali eu vi que tínhamos uma ligação única. Você me beijou no rosto, como gesto de agradecimento e eu fui embora, com aquele momento profundamente marcado no meu peito. Como poderia alguém tão perfeito sofrer por outro alguém? 

E então eu passei a querer fazer você feliz. Passei a desejar do fundo do meu ser fazer você sorrir de verdade. E acho que foi aí que as coisas começaram a dar errado.

Trouxe você para mais perto de mim. Te apresentei os meus amigos, a minha família, e as pessoas que me cercavam. Você sorria mais, e a vida voltava lentamente ao seu olhar. As crises iam diminuindo, e você ia ganhando mais força, ao passo que eu ia me tornando mais dependente de você. 

E então aconteceu. Sem que eu pudesse perceber o amor bateu novamente a sua porta. Floresceu sem que você percebesse. E aquilo foi o início da minha morte, pois senti que eu apenas o entregava a ela, depois de tanto ter lutado para fazê-lo feliz.

Isso nos afastou. Você a colocou no meu lugar. Eu protestei e você a escolheu. E quando percebeu que eu não aceitar de bom grado, me declarou como traidor de sua confiança. A nossa flor murchou, embora meu amor só tivesse aumentado durante todo esse tempo, inclusive com a perspectiva de sua partida.

Ela não se foi, mas outras pessoas chegaram, e todas ocuparam o lugar que antes era só meu. Agora era tarefa de muitos fazer você sorrir, fazer você feliz.

Eu fui lançado a obscuridade. Um posto de honra me foi dado em consideração ao que fiz, mas não mais ocupava o mesmo lugar de seu coração. E essa obscuridade foi tomando conta do meu coração. 

As raízes de meu amor foram se tornando maiores e mais fortes, mas não mais nutriam, senão que me apertavam, me sufocavam, me faziam crer que ia morrer de tanto amor. 

E elas não cederam. Ainda me apertam, me sufocam. Não há um só dia que não pense em você. Não há uma só hora em que não me lembre de você. Não há um só momento em que não queira estar com você. 

Você se tornou o meu sonho mais doce. Mas a distância fez esse sonho se transformar num perigoso pesadelo. O medo de perder é agora tão real quanto o medo de não ter você como desejo. O desejo se tornou necessidade, a necessidade se tornou obsessão. 

Fui dominado não pelo amor, mas pelo demônio que me faz desejar aquilo que nunca poderei ter, e sofrer pela verdade da vida que me é lançada sobre a face em cada manhã. Você nunca vai me amar, e isso é tão certo quanto dizer que o sol vai ser pôr ou que o céu continuará sendo azul. 

As rosas se multiplicaram, se tornaram uma praga, me sufocam com seu perfume venenoso. Você, que antes me fazia sorrir e ser feliz agora me deixa desesperado, ansioso, por saber que um dia ainda serei lançado nos braços da morte por conta desse amor doentio. 

O meu amor por você me faz desejar a morte. A desesperança me faz desejar deixar de existir, para não mais sentir dor. Eu tentei fazer você feliz, e acredito que consegui, pois hoje o vejo mais realizado do que quando estava chorando em meu ombro, me apertando contra seu peito, mas eu é que me tornei destruído, pois me dediquei a alguém que nunca poderia entender o meu amor.

E agora, o que eu faço com esse amor? Não tenho a quem entregar, e se ficar comigo, morrerei envenenado. Deveria lança-lo ao mar, para ser levado pelas águas para qualquer lugar? Ou deveria me lançar ao mar, para não mais amar? 

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Estéril

Meu amor não surtiu nenhum efeito em você, que continua indiferente ao oceano de águas impetuosas que do meu peito clamam pelo seu nome. Mas eu não pude fazê-lo me amar, não pude fazê-lo entender o que eu sinto de verdade, e mesmo sabendo desse sentimento você não foi tocado por ele.

Meu coração é estéril. Meu amor é estéril. Não posso entrar em seu escudo, não posso alcançar seu coração. Tudo o que posso fazer é derramar meu sangue a distância, na tentativa de impedir que a dor se alastre ainda mais para fora de mim, uma vez que já me dominou por completo. A dor de não ter você é a pior coisa que já me aconteceu, e não sei porque ainda continuo aqui, sendo obrigado dia após dia a insistir numa vida miserável sem você.

Isso porque tudo em mim se resume em você. Seu olhar é a única luz que me guia, enquanto seu corpo é o único astro a me aquecer. Seus passos são os únicos que quero seguir. E eu simplesmente não consigo mais andar atrás de você. Não consigo mais conviver com o fato de que não sou amor para você. 

Não consigo mais.

Desde que você apareceu tem sido tudo cinza no meu coração. Tem chovido todos os dias. Uma chuva fria, triste, mortal. Tenho chovido amor, no chão, o amor de meu coração. E esse amor não cessou. 

Por mais que eu me derrame, dias após dia, de amor por você, o meu amor nunca acabe, antes disso, parece que a cada dia está maior e mais forte, me esmagando, me sufocando, me torturando, me matando.

E eu não consigo mais.

Eu não aguento mais.

De amigos

Me sentia absolutamente vazio. Não sabia o que mais pensar, não sabia sequer o que tinha de fazer. Tudo o que eu fazia era responder aos estímulos daqueles ao meu redor, como uma boneca de trapos nas mãos de sua criança. 

Já não haviam mais lágrimas, embora vez ou outra sentisse a vontade de chorar. O remédio que tomei no desespero da noite anterior ainda fazia efeito, o que me deixava numa letargia, mergulhado num oceano de névoa que me suprimia os sentidos. Não havia brilho em meus olhos, e nem mesmo eu reconhecia minha voz. 

As linhas finas dos cortes no meu braço começaram a secar. As gotas de sangue enegrecido racharam e se transformaram em lascas, que caíram no banho. Não senti nenhuma dor. 

Aos poucos, como o sol lentamente vai nascendo no horizonte, eu vou recobrando a vida, se é que algum dia eu a tive. Admito que sair um pouco, fazer compras, me animou. Comprei cosméticos, algumas roupas indianas que já há algum tempo tinha olhado, comprei estantes de partituras para usar na igreja, comprei o lip tint que há tanto procurava. Isso me animou um pouco, ou pelo menos me fez sorrir de verdade. 

Tive uma surpresa muito agradável a noite. Realmente não achei que fosse ser possível que algo assim acontecesse. 

Estava deitado, no escuro e no silêncio. Contemplando os abismos de minhas própria desgraça quando ouvi vozes, muitas delas. E de repente o silêncio sepulcral e escuro foi substituído pela clareza das risadas de meus amigos, que vieram ao meu encontro. 

Não posso descrever como me senti feliz por ver que todos eles tinham saído de suas casas e se reunido para vir aqui, me tirar da lama. 

Eles se sentaram ao meu redor, conversamos, sorrimos muito, brincamos. Eu esqueci completamente o vazio que me consumia e só me concentrei em sorrir.

Ainda que o demônio do vazio me rondasse, ele não me possuiu, pois estava cercado, protegido. 

Foi uma centelha de esperança, descobrir que sou especial para tantas pessoas. Foi uma grande surpresa, que me aqueceu o coração que já estava frio e prestes a parar de bater. 

Não posso escrever o quanto sou grato a eles por isso. Não sou capaz de dizê-lo, não há vocabulário suficiente. Mas eu sou grato, do fundo do meu coração, grato com as forças que ainda me restam, grato por não terem me deixado penar sozinho até a morte. 

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Linhas vermelhas

Não sei por onde devo começar.

Gatilhos? Ditames? A história completa? Mas eu conheço toda a história? 

Estava feliz, e feliz de verdade, com todas as coisas que tinham acontecido nos últimos dias. E quis postar uma foto, mostrando a alegria daqueles momentos. Nessa foto estava a pessoa que amo, mas ela não gostou da foto e então se desmarcou.

Algo simples, banal, mas que despertou em mim todos os sentimentos que tive em todas as vezes que percebi que meu amor não era amado. A foto não foi a causa, mas o estopim. A fagulha que fez explodir o barril de pólvora. Foi como se ela trouxesse à tona todas as vezes que eu me vi sendo não o objeto de seu amor, mas apenas um adereço decorativo na paisagem do seu amor.

Naquela hora como eu sofri. De certa forma eu também morri.

Percebi o quanto sou incapaz. Incapaz de conquistar até mesmo usando até a última de minhas forças em esforços para conquistá-lo. Incapaz de ser um bom líder, um bom amigo, um bom professor. Percebi o quanto sou absolutamente ruim em tudo que faço, e que não há razão para continuar a existir.

Naquele momento eu senti como se minha visão de felicidade fosse errada. Como se minha visão de felicidade fosse ruim. 

Eu me senti péssimo. Se estava rodopiando nos céus alegremente eu fui jogado com violência no abismo profundo. A queda destruiu todos os meus ossos, e a dor tomou conta do meu ser. 

No escuro e sozinho eu não conseguia mais raciocinar, nada parecia real, eu não sabia se minha existência tinha algum valor, se eu realmente era alguém, já que nem mesmo minha alegria mais genuína não era importante.

No escuro e sozinho eu só conseguia sentir dor.

A dor. De tantas formas, de tantas forças, de tantas armadilhas. A dor é elemento essencial na vida do homem, e não há um sequer dentre nossos gênero que não há de um dia experimentar a dor. 

Dor que existem de tantas formas, dor que se mostra de formas distintas, por causas distintas. Dores físicas, emocionais, dores existências. As dores estão em todo momento de nossas vidas, em maior ou menor grau. As dores nos ensinam os limites, nos mostram até pode podemos ou não nos aproximarmos. 

Dores, cada uma a sua forma particular, dói na carte e no espírito conforme a resistência de cada um. E sofremos, sofremos e sofremos. Esse é o nosso destino, destino que entre um silêncio e outro nos dá a oportunidade de nos disperdermos da existência. O fim da dor é a morte. Nela damos adeus para felizmente e finalmente voltarmos ao nada. 

Primeiramente damos adeus aos amores. Amores que se foram. Amorem que nunca foram. Amores que poderiam ter sidos. Nesta despedida os bons momentos vão se desvanecendo, sumindo, como grãos de areia que somem na imensidão do mundo. É uma despedida rosa, pelo amor vivido, e cinza, pelas chamas incineradas que destruíram o dito amor. 

O amor que nos iludiu com suas promessas cheias de sorrisos e abraços, para como num apunhalar pelas costas nos lançasse ao chão ensanguentado e frio, certo de minha completa e absoluta incapacidade de fazer o meu amor tocar o coração de quem amo. 

A dor de não conseguir tocar o coração de quem eu amo transbordou, em delicadas gotículas de sangue rubro, e é como se um pouco da dor fosse ali destilada e evaporada no ar. A dor de não ser por ele percebido, a dor de saber que ele sequer nota minha existência, faz com que eu necessite buscar uma outra forma de provar o meu eu, pois a cada dia sinto que eu desapareço mais, me tornando algo disforme, inumano, bestial. Afirmo a mim, a minha existência, já que os outros não conseguem me ver...

O sangue que escorreu trouxe consigo um pouco desse veneno que me matava. Expurgou parte do demônio que me atentava. Mas não me trouxe a tranquilidade, antes disso, trouxe apenas uma certeza profunda, gravada a aço na minha pele, de que vivo um sonho impossível, um amor impossível e uma vida risível. Tanto melhor seria se não tivesse ferido a superfície da pele, mas cortado profundamente, onde a hemorragia já não pudesse ser contida. E o que poria fim a tudo isso. 

A dor. De tantas formas, de tantas forças, de tantas armadilhas. A dor é elemento essencial na vida do homem, e não há um sequer dentre nossos gênero que não há de um dia experimentar a dor. 

Tentei dar o meu melhor. Expressar ternamente o meu carinho, a alegria que sinto ao lado de um certo alguém. Mas não deu certo. Ele preferiu se excluir. Não deu valor ao conceito, ao carinho que tive em demonstrar daquela forma o amor que tenho. Dei carinho, recebi descaso, e não posso reclamar, pois ja tenho muito. Mas seria impossível crer que há no mundo companhia para mim, que me faça esquecer? 

Mas a dor, quando é muita, nos leva ao desespero. E é isso que se encontra agora, em meu peito. Desespero! 

Aquilo me destruiu completamente. Eu não sabia o que fazer, o que pensar, como reagir. Não conseguia conter as lágrimas e, num momento do mais elevado grau de desespero eu percebi que estava ferindo meu próprio corpo. Foi o ápice da dor. O momento em que o horror tomou o lugar da razão e do bom senso, e fez com que fosse dominado pelo terror.

Percebi que ele não notava minha existência, mas eu precisava fazer com que minha existência fosse notada, precisava provar, ainda que para mim mesmo, que eu existo. Também queria fazer a dor diminuir, substituindo-a por outra, uma que tivesse sob meu controle, mas isso também não foi possível, eu não senti dor nenhuma enquanto me cortava, e apenas me sentia hipnotizado pelas gotas de sangue que surgiam em minha pele.

As linhas vermelhas e finas do meu braço me recordam daquela dor, e mais do que isso, me recordam que eu sobrevivi, que eu continuo aqui apesar daquela dor.

Cada traço fora um grito de amor abafado no meu peito. Cada gota de sangue um abraço ou beijo que se derramou sem tocar os braços ou os lábios de meu amado. E cada corte era um forma de dizer, que eu prefiro morrer do que continuar vivendo sem o seu amor.

Infelizmente não foi suficiente para trazer o meu amor, acho que nem se derramasse todo o sangue do meu corpo isso seria possível.

Mas eu ainda continuo aqui.

Sozinho.

Eu me tornei a fera que gritou EU no coração do mundo. 

Mas todos no mundo morreram.