terça-feira, 29 de setembro de 2020

Por causa de um parágrafo

Tem dias em que acho que chorar é uma das coisas mais libertadoras, como se livrar por meio das lágrimas do amargor ou de algum peso que possa haver aqui dentro. Em outros dias eu me sinto apenas vulnerável, fraco, impotente diante de algo tão grande quanto um tsunami. 

As lágrimas de hoje vieram quando menos esperava. Eu lia um livro, e um dos personagens justificava sua saída repentina da vida dos amigos com a perspectiva de que eles um dia o abandonariam. Antecipando a separação ele decidiu sumir por conta própria.

Eu me identifiquei com isso tão profundamente que engasguei na mesma hora. Uma lágrima escorreu. Uma imagem apareceu na minha cabeça. Eu dei um estranho sorriso estranho, numa careta mesclando a ironia e o pesar. Um retrato da loucura. 

Me senti, uma vez mais, impotente frente a qualquer grande mudança. Senti que minha sinceridade não serve para nada, que o sentimento mais puro não é capaz de nada. Aquela concepção platônica dos iguais, parece só existir numa possibilidade distante, um utopia imaginada pelo filósofo. Não é uma realidade e, se o for de algum modo, não é a minha realidade.

Sempre fui sincero quanto a tudo que sinto. Minha veia melancólica me faz demonstrar com clareza o carinho, o desejo, a alegria e a tristeza. Qualquer um sabe dizer como me sinto apenas olhando no meu rosto. Mas isso não é bem verdade, o exterior pode realmente expressar algo do que se passa no interior, mas apenas é uma conchinha com água num oceano inteiro de sentimentos, a esses ninguém tem acesso. 

Eu tinha a ideia boba e imatura de que quando dissesse algo com sinceridade isso teria algum tipo de poder, como se a verdade transformasse as coisas em realidade. Era um erro, um grande erro. Por mais sinceros que sejam meus sentimentos eles ainda estão e ficarão apenas no mundo das ideias, mas não das ideias perfeitas, mas daquelas fruto da minha mente distorcida por uma carência, por uma necessidade inexplicável que, por mais que tente, nunca consigo identificar qual a sua razão. 

Eu já quis partir, como Jonathan em Uma Casa no Fim do Mundo, partir para antecipar por minha própria conta o abandono que viria no futuro. Já quis, e admito que penso nisso todos os dias, ir para longe e recomeçar se nenhum vestígio do que vivo aqui. Talvez até mesmo conseguir construir uma nova personalidade, alguém que não se entregue tão facilmente, alguém que não seja tão dependente. Mas ironicamente eu sou dependente demais até para tomar uma decisão dessa. 

Estava ali, sentado no sofá vermelho da sala, tentando ignorar as vozes da novela e as imagens que surgiam teimosamente. Não notei antes de sentir os olhos umedecerem, me fazendo entender com mais profundidade o que acabei de dizer. 

Tentei me distrair preparando algo pra comer, um chilli, na expectativa que o sabor forte pudesse me tirar do torpor que esses pensamentos me trouxeram. É, foi uma boa tentativa, mas enquanto estava ali, comendo e ouvindo o crec crec dos nachos eu me senti ainda mais sozinho. Não era aquela solidão de que falei uns dias atrás, a solitude, mas solidão mesmo, no sentido mais solitário da palavra, como se soubesse que vou comer assim, sozinho, pelo resto dos meus dias. É uma expectativa um tanto quanto dramática não é? Infelizmente não consigo pensar de outra maneira. 

Me lembro que a última coisa que fiz ontem antes de dormir foi cantar aquele trechinho da música:

E na vida a gente tem que entender

Que um nasce pra sofrer

Enquanto o outro ri

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Simples

Eu gosto dessa sua foto, na verdade gosto quando você aceita tirar fotos, é que eu acho que de algum modo nelas você consegue se ver um pouquinho como eu te vejo. E você continua dizendo que está acima do peso, que não sente bem parecendo gordinho, e eu continuo achando tudo muito lindo, sorrindo e com os olhos brilhando cada vez que posso te olhar demoradamente. 

Acho que posso estar idealizando mais uma vez. Nossa amizade é de fato muito forte, isso não é idealização, todos reconhecem. E por isso eu penso que um relacionamento nosso seria igual. Sabe, fácil, tranquilo, que poderíamos no entender no cotidiano e no sexo como nos entendemos nas brincadeiras e conversar. Penso que poderíamos ficar para sempre naquele abraço apertado que damos toda vez que nos vemos. É assim que as coisas parecem para mim, simples. 

Mas sei que você não pensa assim, e talvez enquanto penso em você, você pensa na pessoa que está imediatamente ao meu lado. É, a vida sempre tem dessas coisas comigo. Me sinto aquele garotinho rico e mimado que reclama de nunca ter o que quer, com a diferença que eu realmente nunca tive o que quero. 

Talvez em outra ocasião eu faria uma cena, como nos BLs, chorando embaixo do chuveiro de roupa e tudo, deslizando lentamente pela parede, esbravejando e de punhos cerrados amaldiçoando o destino. Mas já fiz isso demais. Agora eu não olho mais para o quadro da minha vida com a ira de um vulcão, mas apenas com a lente cinza de quem nem se importa muito. As coisas são assim. A mim sobra a companhia dos livros, das musicas e dos personagens que vivem seus amores do outro lado do mundo, esbarrando com pessoas na porta da faculdade ou transformando uma inimizade em paixão. É, coisa de série, não de vida real, onde meninos continuam gostando de meninas e meninos que gostam de meninos não conseguem gostar de quem gosta da gente. Não que tenha muitas opções por aí, mas em se tratando de probabilidade, acho que meu destino realmente está contra mim. 

sábado, 26 de setembro de 2020

Aforismos de uma pequena mente distorcida

Mas será que isso é suficiente? Será que basta dar o meu melhor, esforçar-me a exaustão, buscar crescer, aprender? Será que no fim de tudo isso não se mostrará apenas mais uma ilusão? 

Como posso eu, que por tanto tempo vivi na ilusão, saber que agora estou de frente para a realidade? Como saber que estou diante da unidade do real, e não de outra dimensão criada pela minha pequena mente distorcida?

De novo me vem a sensação de não ser suficiente, de não ser capaz, de não conseguir ser bom o bastante... A frustração da derrota, o pesar pela incapacidade, ambos riem-se de mim ante meu fracasso. 

E eu dei o meu melhor, fiz tudo que pude, tudo o que estava ao meu alcance. Mas parece que não foi o bastante. 

Posso até me reerguer, e tentar mais uma vez, dessa um pouco mais experiente...

Mas será que isso é suficiente? Será que basta dar o meu melhor, esforçar-me a exaustão, buscar crescer, aprender? Será que no fim de tudo isso não se mostrará apenas mais uma ilusão? 

X

Como não se apaixonar pela gentileza? Como não se apaixonar pela palavra timidamente dirigida pensada em meu bem estar? Como não se apaixonar na primeira vez que dois corações se tocam num abraço apertado que, num átimo de segundo, fez o mundo parar?

Mas esse é apenas mais um engano, mais um engodo, para me atrair e me fazer desejar o que não poderei ter. Fugirei, para o mais longe que puder, sem olhar para trás. Não quero, nunca mais, viver o que vivi até alguns dias atrás.

Ainda quero viver o sol, que entra alegremente pelas janelas da minha vida, recém abertas. Ainda quero sorrir, sem me preocupar... Mas onde brilha o sol senão que nos agrestes escarpados do coração?

A liberdade do dia é a mesma quando fecho os olhos e ainda penso nele? A liberdade que quero manter é a de ainda pensar nele nos meus momentos mais íntimos?

E então, o que querer? O que desejar no íntimo de minh'alma? O que pode ser a alegria que busco no âmago de meu ser? O que é aquela coisa que tenho buscado todo esse tempo, cuja ausência me causa noites em claro?

Como não me apaixonar pela gentileza? Como não me apaixonar pela palavra timidamente dirigida pensada em meu bem estar? Como não me apaixonar pela vez em que dois corações se tocaram num abraço apertado que, num átimo de segundo, fez o meu mundo parar?

X

Impressões, fortes e impactantes. Uma sensação de que algo muito importante daria muito errado. Me senti fraco, vulnerável, como se fosse absolutamente incapaz de fazer dar certo aquilo que tanto batalhei para realizar. 

Quando ele chegou, imponente e poderoso, me senti ainda mais incapaz. Isso me maltratou. Cada palavra dele foi um golpe em minha cara, uma cusparada em mim, como se gritasse "você é um inútil, um incapaz!"

Não estava preparado para ouvir isso de você. Não esperava ouvir que pensava em mim enquanto olhava o céu. Do outro lado da cidade eu também olhava o céu cheio de nuvens, mas pensava no meu inquieto coração que, em partes, ainda sonha com alguém como você!!

X

Me vi num desejo pecaminoso. 
Um desejo de difícil alcance. 
É sempre assim. 
Sempre algo distante, sempre algo proibido. 
Nunca é algo fácil. 
Insisto em romantizar o sofrimento. 

O proibido encanta. 
O proibido canta, um canto novo, um hino esponsal. 
O proibido chama, e clama. 
A pele arde em chama, e a alma pelo amado clama. 

As dores são romantizadas, mas a dor sentida não. 
Aquele que de dor padece só quer que cesse a sua dor. 
Aquele que da dor se esquece a alma por ela pede. 

As dores são romantizadas. 
A corrida é romantizada. 
O esforço é romantizado. 

O que é isso que nos desperta o interesse no impossível? 
O que é isso que nos faz desejar sempre o que não podemos ter? 

Um céu inalcançável.
Estrelas distantes.

Que instinto estúpido, 
que mania ridícula, 
que sina terrível, 
que existência abominável...!

E a espada do destino cai novamente! 

Mais uma vez a roda do amor parece ter ganhado força. 
E mais uma vez já prenuncia suas armas prontas para a batalha. 
Uma batalha que não posso vencer, que sequer deveria lutar. 
Uma batalha que só existe para me matar. 

X

Impressões, fortes e impactantes. Uma sensação de que algo muito importante daria muito errado. Me senti fraco, vulnerável, como se fosse absolutamente incapaz de fazer dar certo aquilo que tanto batalhei para realizar. 

Quando ele chegou, imponente e poderoso, me senti ainda mais incapaz. Isso me maltratou. Cada palavra dele foi um golpe em minha cara, uma cusparada em mim, como se gritasse "você é um inútil, um incapaz!"

Não estava preparado para ouvir isso de você. Não esperava ouvir que pensava em mim enquanto olhava o céu. Do outro lado da cidade eu também olhava o céu cheio de nuvens, mas pensava no meu inquieto coração que, em partes, ainda sonha com alguém como você!!



X

A incerteza de uma noite sem resposta. Um passado que ainda não foi sepultado. Um futuro que mais parece um quadro borrado de tinta, com as cores a escorrer sem precisão, sem razão, nada mais do que uma grande confusão. Rimas idiotas. Um poeta fracassado. Frases lançadas sem propósito algum além de servirem como catarse. Insegurança. Negação. Aceitação. Negação. Aceitação de novo. Insegurança. Um ciclo sem fim, mas não como a beleza selvagem, um ciclo sem fim onde os animais se transformam em bestas, onde as bestas se transforam em humanos e os humanos se transformam em deuses. Palavras que ganham vida própria e, não tendo sentido nem mesmo aquele que as escreveu, servem como um jarro onde se derrama o vinho que não foi bebido, aquele que não foi aproveitado na festa. Mas parece que até mesmo o jarro quebrou, e o vinho derramou-se no chão. Não pode mais ser sorvido. É, tudo isso é a incerteza de uma noite sem resposta. 

X

Ondas de excitação me vêm sem avisar, chegam de súbito fazendo subir, de meu ventre até o meu peito, uma sensação de calor, uma estupefação. Minha respiração fica forçada e, não raramente, eu tenho sobressaltos, esquecendo até mesmo de como se respira, sugando novamente com força o ar para pulmões que estão ocupados demais para respirar. Uma imagem aparece para mim, uma pessoa, e claramente ela se coloca a minha frente, em situações que aconteceram e que me recordo com um misto de saudade e raiva, outras situações nunca aconteceram, e são os recessos de pensamentos que tenho em momentos de carência. E assim a coisa se vai, rápida como um inspirar e desaparecendo como um expirar. A sensação some, o calor se dissipa e a minha respiração volta ao asmático ritmo de sempre. Parece que nada aconteceu, exceto pela sombra cor de rosa que ainda paira, misticamente,  nas bordas de um lago negro. 

X

Me sinto invisível, de duas maneiras diferentes. A primeira delas é que parece que ninguém me vê, e isso é muito bom. Passei boa parte do domingo no meu quarto, sentindo o ar quente do ventilador tentando aliviar um pouco a brincadeira do demônio que brinca com o termostato da região. Gosto de ficar sozinho, ouvindo trilhas sonoras de animes e lendo livros do cenário underground, ou quase isso. De outra maneira é aquela invisibilidade que tenho em relação aqueles que gostaria de chamar a atenção. A antiga ironia de uma paixão não correspondida? Nada tão esmerado assim, apenas um desequilíbrio de uma amizade de mão única, apenas a velha lei do mundo dos relacionamentos de que só damos valor a quem não nos dá valor, algo de uma imaturidade ímpar que se revela numa veia masoquista e demente. Amor próprio que é bom, nada. 

X

E eu cometi o mesmo erro mais uma vez. Me iludi. Achava, e algum lugar com base em alguma lógica paradoxal que isso daria certo, achei que me apaixonando por quem está todos os dias ao meu lado, por quem me abraça e que me faz sentir que aquele abraço é o melhor lugar do mundo. E de fato é o melhor lugar, mas não é o meu lugar. E essa é a diferença. Mas sabe, eu me sinto triste de novo, não com aquela tristeza desesperada, que me fazia chorar aos prantos, que me fazia me lançar ao chão, desesperar-me em lâminas. É uma tristeza conformada, uma tristeza que faz escorrer apenas uma lágrima pela face. Achei que amasse um amigo ele seria receptivo a um amor que apenas evoluiria. Mas o meu amor não é amado. E provavelmente algo se quebrou, algo se desfez e não pode ser consertado. Uma vez mais os meus sentimentos me pregaram uma peça, e saíram sorridentes, satisfeitos. Parece que me enganei, sobre isso e tudo o mais. 

X

Sabe, eu nunca me senti um sujeito muito ambicioso. Eu nunca desejei muita coisa. Pra ser sincero eu até me considero bem medíocre em aceitar qualquer situação, mesmo reclamando, sem fazer nada para mudar. Eu nunca tive grandes sonhos, como muitos ao meu redor que se enxergam no futuro como grandes empresários, advogados, nomes de influência. Eu nunca desejei nada muito grande, mas a única coisa que desejei verdadeiramente me foi negada, e da maneira mais cruel. 

Vejo que muitos simplesmente não conseguem o que querem pela distância entre a vida em que vivem e a que desejam, como de um lado a outro do oceano profundo. No meu caso eu sempre estive frente a frente com aquilo que queria, sempre segurando sua mão, preso em seu abraço apertado. Sempre estive cara a cara com o meu maior desejo, sem nunca poder possuí-lo. É uma forma bem cruel de negar o desejo. 

Por isso eu sou o retrato de um fracasso. Alguns contestam com as minhas qualidades acadêmicas. Pífias, que a nenhum lugar me levaram. Sou um fracassado com boas referências. Um fracassado, no sentido puro e genuíno do termo. 

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Um quadro

É uma bela casa, num bairro nobre e distante da confusão do centro da cidade. Ali as casas não têm altos muros, todos respeitam a privacidade do outro e a segurança não é mais uma preocupação, aliás, é preocupação apenas que estão para além daquele território. Mas isso aqui não é pra exaltar as glórias de uma classe abastada, não, era apenas para situar o leitor sobre onde se passa o quadro que irei pintar com os traços de cada uma dessas palavras. Se pareceu arrogância de minha parte, desconsidere e siga em frente, pois sempre é possível fechar os olhos aquilo que não nos convém. 

Eles vivem em uma casa grande, apenas os dois, e as vezes parece quem tem mais espaço ali do que eles realmente precisariam. As janelas são grandes, de um vidro tão transparente que os primeiros raios de sol da manhã são suficientes para banhar o ambiente com uma claridade delicada, que preguiçosamente aumenta a medida que eles acordam, um pouco sonolentos. O dia precisa começar.

As noites são sempre especiais, hoje vemos os dois na cozinha, um cômodo grande, com o cinza de pedras nobres no piso e acima do grande balcão que há no centro. As paredes tem um revestimento claro, e no grande armário que se estende sobre uma parede inteira há uma infinidade de produtos e apetrechos. De algum cômodo próximo soa uma música baixinha, pode ser um blues ou um jazz, daqueles que tornam o ambiente ainda mais aconchegante. É uma noite aconchegante. 

Um deles, o mais velho, está sentado num banco alto, com os cotovelos apoiados no balcão. A sua frente tem uma xícara de chá, fumegante, de morango e canela, perfumando o ambiente com um aroma doce. Ele usa uma longa camisa de um rosa clarinho, e a camisa claramente pertence a uma pessoa um pouco maior que ele. Por baixo usa um pequeno short, invisível debaixo da camisa, Seu olhar é meigo, seus olhos brilham, refletindo no castanho escuro o brilho da luz acima deles.

O outro é o responsável por preparar a comida naquela noite. Sem camisa e com uma bermuda folgada, que marca bastante algumas partes do corpo, ele habilmente corta, pica, refoga e tempera pedaços de carne numa grande frigideira. Logo termina e dispõe dois pratos sobre o balcão, comer ali é mais confortável. Os pratos têm uma aparência ótima, foi cuidadosamente montado, a carne ao centro, com algumas ervas por cima, ladeado de uma pequena porção de um molho escuro, bastante aromático. O outro pega, alguns passos dali, duas taças e uma garrafa de vinho, que haviam combinado de abrir naquela ocasião. 

Ah, eu não disse de que ocasião se trata, perdão pelo lapso. Essa é a primeira noite depois de uma semana que eles passaram a viver juntos. Finalmente desfizeram a última caixa, e encaixaram com cuidado as coisas que agora dialogam entre si, combinando dois mundos um tanto quanto diferentes numa harmonia inimaginável. Parece até que todas aquelas coisas foram feitas para estarem juntas, como eles. As roupas couberam facilmente no closet imenso, os produtos de cuidados pessoais se encaixaram no armário abaixo da pia do banheiro e sobre a bancada, agora dividida em duas por uma linha invisível: um deles, preocupado demais, com vários produtos, cosméticos, cremes e vários outros potinhos escritos em língua estrangeira que pareciam ser muito caros. Do outro lado, um barbeador e escova de dentes. Equilíbrio perfeito. 

De volta ao cômodo de baixo, descendo as escadas de um mármore rosa e delicado, eles sorriem e conversam, enquanto os pratos pouco a pouco se esvaziam e a garrafa de vinho chega ao fim. Após a sobremesa, uma panna cota habilmente preparada, eles se dividem: o cozinheiro da noite sobe para um banho enquanto o outro cuida da bagunça que ficou para trás, em tempo de entrar na ducha antes do outro sair. Ele se seca e espera pelo outro cantando baixinho a música que ainda toca, vinda de algum lugar. 

Os dois saem enrolados em toalhas, uma delas que logo cai, puxada pelo outro acompanhada de uma risadinha maliciosa. O que ele recebe como retribuição é um beijo, atrevido, que com um sorrisinho se afasta levando sua toalha e atirando longe. 

Virando-se ele vai até o lado em que guardam os pijamas, e escolhe uma peça de seda, cinza, que ele sempre se surpreende pela leveza com que ela cai sobre seu corpo musculoso. O outro dá início ao seu longo ritual. Cremes no corpo, outro nos pés, algo meio aguado no rosto, depois algumas gotas de vários daqueles vidrinhos e, ao invés do creme habitual, que é grosso e deixa a pela com uma aparência oleosa, ele opta por um perfume, docinho e leve, um aroma de corpo perfumado. Terminado o ritual ele logo vai até a cama. 

Fora dali aquela é a única casa com apenas uma luz acesa. Em toda a vizinhança há um pequeno movimento, mas como era de se esperar, tudo muito discreto. Duas ou três casas ao lado as luzes de uma jacuzzi brilham, e como a música toca num pop animado, dá a entender que alguns jovens fazem uma festa. Do outro lado da rua um homem preguiçosamente joga água no seu jardim com uma mangueira. 

Eu não cheguei a comentar sobre o jardim. Ah essa é uma das minhas coisas favoritas nesse lugar. Em todas as casas há um longo feixe de grama, sempre verdinha, e aqueles moradores mais atencioso cultivam flores aqui e aqui, que salpicam o verde brilhante com pequenos pontinhos rosas, brancos e amarelos. As árvores também são muitas, o ar ali é bom de respirar, graças também ao grande lago próximo, que a essa hora da reflete em suas águas negras as luzes dos parques e clubes nas suas margens,

Estamos de volta ao quarto do nosso casal onde, sem muita surpresa para o leitor, eles se beijam com delicadeza, deitados. Ao que parece nenhum dos dois resolveu usar os pijamas, caprichosamente dobrados sobre o banquinho no closet. Apenas as luzes de dois pequenos abajures estão acesas, dando ao quarto um clima romântico, ainda mais pelas velas aromáticas e a música, que agora toca acordes sensuais num saxofone. 

O beijo lentamente se torna mais intenso, abrindo os olhos eles se vêm brilhantes de alegria, o rosto começando a enrubescer. Com um sorrisinho um deles conduz com mão firme o outro a se sentar, e com um olhar sugestivo desse é melhor avançarmos a nossa cena em algumas horas. Vou deixar o leitor apenas com os sons abafados de gemidos, da respiração ofegante e da risada baixinha quando as coisas finalmente ficaram silenciosas.

Agora os dois estão deitados, um sobre o peito do outro. Algumas marcas vermelhas, que amanhã estarão roxas, em certas partes do copo. Embora seja mais velho, ele é magro e pequeno, com aparência frágil, alguns fios do cabelo suado levemente colados na testa. Seu corpo é coberto de pequenas tatuagens, todas profundamente simbólicas, o que contrasta com sua compleição delicada. Escuta atenciosamente as batidas do coração do outro, com a cabeça sobre o peito forte, abraçado por um braço grande e firme, e tem certeza que seu coração bate exatamente no mesmo compasso. O outro está com a bochecha apoiada sobre a cabeça do outro, enquanto a mão acaricia o braço, fazendo pequenos movimentos de vai e vem, sem perceber. De vez em quando eles se olham, se beijam mais uma vez e sorriem, satisfeitos, pelo dia, pela companhia, pelas coisas que finalmente estão dando certo. 

Quando as luzes se apagam, nós olhamos para cima, de frente para aquela casa onde dois amantes dormem, com um sorriso, sob a lua cheia brilhante e o grande caminho de milhares de estrelas que fazem desse quadro, o mais belo quadro que um pintor apaixonado já imaginou sonhar.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Agrestes e escarpados

Pra que falar? As palavras nunca pareceram me ajudar, antes disso, acho até que elas alimentaram de certa forma o que eu não queria crescendo dentro de mim. Cada vez que digo algo bonito, cada vez que eu transformo em dor uma poesia, cada vez que pinto um quadro, por mais melancólico que seja, inspirado no que sinto e no que vejo, cada vez que deixo transbordar meus sentimentos em forma de palavras, eu sempre me sinto ainda pior. É como se as minhas palavras tivessem sim um poder, mas de fazer exatamente o oposto do que eu quero, e como só consigo dizer aquilo que sinceramente quero, sequer posso mentir para tentar conseguir o que quero. 

Eu até penso em falar sabe? Mas aí quando estamos próximos eu perco a coragem, e sinto como se não quisesse estragar o momento, momento em que seguramos as mãos com os dedos entrelaçados com força, estragar e nunca mais ter a oportunidade de ser como somos agora. Eu não quero viver sem aquele abraço quente, sem as risadas altas e brincadeiras bobas. Eu não tenho coragem de arriscar tudo isso por causa de um devaneio, um pensamento obsessivo que sempre me faz apaixonar pela pessoa errada, que sempre me faz confundir o carinho. Carrego comigo essa maldição. Sou condenado a sempre sentir apaixonadamente, e a sofrer na carne as consequências do sangue fervente que corre em minhas veias. 

Esse é o mesmo impasse de sempre. Mas todas as outras vezes eu arrisquei a dizer o que sentia e tive de lidar com as consequências. O que me leva mais uma ver a crer que vivo num ciclo infinito, samsara, preso ao destino de sofrer nas mãos dessa loucura fronteiriça, desse sentimento de sempre precisar de alguém, de desejar alguém mesmo quando sinto que estou bem assim sozinho, de ter medo de dormir sozinho, sem ninguém para abraçar. E me imagino num futuro longínquo, quando se forem meus pais e meus amigos estiverem ocupados demais. Me imagino moribundo, entregue aos vícios e rodeado de sujeira, exalando o cheiro podre de uma existência que nunca foi. O fim do ciclo é também o fim do ser, e tudo retorna ao nada. 

É um baita drama não é mesmo? Começar sobre uma dúvida sobre uma paixonite platônica (no sentido popular do termo, esquece a aula de filosofia) e terminar numa reflexão sobre o futuro bucólico no melhor estilo niilista... É, e é exatamente disso que falava nos primeiros parágrafos: colocar em palavras o que sinto pintando um quadro cinza que, ao conferir a situação o status de um grande problema capaz de me fazer vislumbrar um futuro catastrófico, acaba por tornar ainda mais real o que antes podia ter ficado apenas na minha mente. Parece que ao tomarem a forma de caracteres numa página em branco eu dou também uma existência física a tudo aquilo que tentava manter preso nos recessos da minha mente. 

Eu olho profundamente para dentro de mim, e noto a presença quase intangível e invisível que espreita sob o meu desperto no interior dos meus sonhos mais sombrios. Eu olho profundamente e não vejo esse futuro apocalíptico, mas vejo algo tão patético quanto: vejo alguém que não nasceu para ser amado, que pode estar reforçando um já imenso voto secreto ao dizer essas palavras, um alguém que nasceu para desejar, para sentir, para querer sem jamais conseguir tocar no objeto de seus desejos mais profundos e genuínos, aquilo que se encontra onde não há mascaras, no espelho em que se olha a fera que gritou EU no coração do mundo e que, no entanto, é uma fera condenada a vagar sozinha, sem que ninguém nunca responda aos seus chamados. Um lobo da estepe, vagando por agrestes e escarpados seguindo o chamado do amor, sem nunca encontrá-lo. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A Rainha

Depois de dias de um intenso calor, sufocante, daqueles que nos faz perder as forças, que nos prende num vórtice impaciente incapaz de pensar com clareza, apenas fugindo para o girar rápido das hélices que pouco aliviam nosso incômodo. Depois de uma quase interminável semana agravada pelas labaredas que consomem a vida selvagem, que estragam o ar que respiramos 

O cheiro veio de muito longe, abafando as vozes cansadas, aliviando a sensação ruim. Todo o ar ficou tomado pela doce terra molhada, um perfume agradável e delicado que prenuncia boas novas. As primeiras visitantes chegaram tímidas, há muito reunidas na antessala do céu, esperando a hora de entrarem no seu próprio espetáculo. Tão logo deram inícios aos primeiros compassos de sua música o cortejo já estava formado: dançavam em profusão, rodopiando e lançando-se com violência graciosa rumo ao chão. Onde quer que tocavam pintavam a superfície com uma cor mais escura, úmida, e a secura que antes tanto nos maltratava se amenizou, nos deixando mais conscientes do quanto estávamos feridos. 

Elas se atiram contras as janelas, paredes e tetos. Os sons de cada uma se unem numa sinfonia, algo ainda maior do que qualquer compositor jamais se atreveu a tentar copiar. Não só fizeram de todos os sons uma lembrança distante como preencheram o mundo com suas vozes frias, anunciando uma breve pausa no calor do cerrado. O sol saiu para descansar de seus árduos dias de plantão em que mesmo à noite podíamos sentir o seu reinado todo-poderoso.

O sono, antes algo forçado que mesmo prolongado não era capaz de nos devolver o vigor agora é uma realidade que nos traz de volta a antiga disposição para ficar um pouco mais na cama, para deixar-se levar por sonhos tranquilos, em uma pequena cabana de madeira no alto de um amontanha, rodeada por um bosque de arvores altas e pedras cobertas por um musgo verde escuro, onde o único som é o dos pássaros que passam no alto alegres e o farfalhar dos pequenos bichinhos nas folhas secas que logo se decomporão no solo úmido quando a nova estação chegar. Ali, acompanhado de uma caneca fumegante de chocolate quente, os pés enrolados em meias em cima de uma mesinha, com um livro no colo e o ressonar de um amor dormindo ao lado, ali a vida encontra um significado feliz e singelo. O que mais poderia querer? 

Como um novo sentimento que vem para trazer alegria ao coração árido e traumatizado também ela, a rainha da misericórdia desce do alto de seu trono onde reina acima dos céus congelados para nos presentear com as finas flores de gelo que caem no chão espalhando suas pétalas em pequenas gotas que logo somem espalhando uma nova cor ao chão empoeirado, como a tinta traz nova vida ao espalhar belas palavras de um poema dedicado a pessoa amada nas páginas amarelas de um livro em branco.

sábado, 19 de setembro de 2020

Meu oxigênio

"Um homem com o coração vazio, um livro em branco, a este coração agonizante você trouxe vida, como a luz no meio do inverno."

O comecinho da música tema de MY OXYGEN - The Series é mais do que capaz de mostrar bem o que acontece com uma coração frio que finalmente conhece o calor do amor. Apenas o primeiro episódio já foi suficiente pra me fazer suspirar, ficar contente com o coração quentinho e, quem sabe, até mesmo voltar a crer um pouco na beleza de um amor puro, inocente. 

Acho que não é nenhum segredo do quanto fico feliz quando conheço uma obra nova que me deixa assim, absolutamente fascinado, contando cada minuto da semana para o lançamento do próximo episódio, esperando ansiosamente por mais momentos doces, por mais sorrisos, por mais dessa descoberta do que é o amor. 

Um homem calado, que tem muitos pesadelos e que não gosta da multidão, assustado por fantasmas do passado e que finalmente encontra, num sorriso doce e num copo de leite morno, o que precisava para dar um sentido a sua vida, o que precisava para descobrir o que é o amor. 

Eu sei, sei bem que prometi a mim mesmo que não me iludiria mais com esse tipo de coisa, mas não posso fingir que minha veia romântica se foi dessa maneira. Talvez por não conhecer esse amor é que ele me fascina tanto. Talvez por só ter visto uma pequena sombra do que ele é que me sentido tão assustado, tão hipnotizado por ele. 

Solo e Gui me conquistaram desde o começo. A construção de personalidades simples, sem afetação exagerada, é de uma beleza tão cativante. Não é preciso fazer barulho, ser colorido demais, para ser belo, aliás, a beleza do amor está nos pequenos gestos, num sorriso que acalma, num toque leve no cabelo que diz "eu estou aqui por você" ou uma companhia numa noite difícil de chuva em que é tão difícil pegar no sono. 

Vi muito de mim em tela, o jeito fofo do Solo mostrar que não nega o quanto está apaixonado, ele sorri com ternura, os olhos brilham de admiração e dizem em silêncio que ele quer a companhia do veterano pra sempre, que sem o carinho e a doçura que fizeram ele dar ao calouro aquele copo de leite morno ele não poderá mais dormir em paz. Gui deu a ele a tranquilidade que faltava num coração agitado e machucado. O veterano que trabalha no café e confeitaria é sério mas está sempre sendo atencioso e preocupado em cuidar e ver o outro bem, feliz. É preciso muita delicadeza para ver nos olhos de alguém o quanto essa pessoa sofre e do que ela precisa pra se aquecer: um gesto de carinho que possa trazer calor ao corpo e ao coração. 

Quem é que, em sã consciência, não deseja algo assim? Quem é que nunca desejou um amor perfeito, nem que fosse para satisfazer uma tristeza daquelas que nos fazem ver o mundo cinza? 

Não é de se espantar que ambos se tornaram a razão da existência um para o outro, sem esse amor já não podiam mais respirar, não podiam viver sem seu oxigênio. E isso é o amor, não a dependência, mas aquilo que traz sentido, aquilo que torna tudo colorido mais uma vez. E também é calmo e compassado como a própria respiração, que leva vida a todos os órgãos e mantém o corpo em movimento, fazendo a vida avançar mais uma vez, mesmo quando a noite chuvosa de pesadelos parecia não ter mais fim. 

Eu sorrio com uma ternura imensa, ao perceber que sequer consigo escrever o quanto essa história me conquistou, o quanto essa visão do amor me encantou de tal modo que senti um sorriso verdadeiro, como há muito já não se via estampado em meu rosto, e um brilho olhar que eu jurava que tinha se apagado pra sempre. Sorrio tanto que uma pequena lágrima escorre, não de tristeza, mas de uma alegria tão doce que transbordou de meu coração e decidiu beijar o meu rosto. 

Sei muito bem que é uma história, e uma história linda, e que não posso me deixar iludir por ela de modo que fique novamente decepcionado quando perceber que no mundo em que vivo esse amor não passa disso: história. Mas ela ainda trouxe um novo ar ao meu coração que há tanto parecia ter parado de respirar. E me sinto bem com isso, mesmo sabendo que aquele que aqui me faz sentir bem assim não sente o mesmo. Acho que é um tipo de consolo saber que, mesmo não sendo para mim, o amor existe em algum lugar, e é ainda mais bonito do que eu sequer poderia imaginar. 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Resposta imediata

A confusão é um estado quase permanente do homem. Aristóteles disse que todo conhecimento começa com o espanto, aquele estado de estupefação que faz o homem conhecer o objeto, o fenômeno que se apresenta e elaborar aquilo com a realidade de modo racional ou apenas apreender intuitivamente esse mesmo objeto. Não sei se isso está certo, com certeza meu professor (e Aristóteles) discordaria, mas eu não acho também que ele estava falando disso, só usei como ponto pra começar a minha reflexão. 

Particularmente um bipolar como eu não gosta de se sentir desorientado, justamente pelo fato de que a confusão é um estado constante que me causa muitos problemas, a maioria deles sem solução durante a própria confusão. Por outro lado os meus estudos me habituaram a um estado de dúvida e, consequentemente, confusão constante, ainda que sejam coisas completamente diferentes. 

De qualquer forma, me sinto muito desconfortável em não saber o que fazer, em não conseguir me distanciar o suficiente pra ver a situação de fora, enxergar com clareza e aí sim tomar uma decisão coerente. Como na maioria das vezes eu sei que isso é quase impossível de se fazer eu tento sempre ignorar os problemas e deixar que eles se resolvam sozinhos, afinal se me preocupar ou não no fim das contas é exatamente isso que acontece, não tendo eu poder algum pra mudar isso. 

Acontece que algumas vezes ainda fico a sensação de que preciso fazer algo, mesmo que algo continue me dizendo, e com toda razão, que pensar em problemas é uma das coisas mais inúteis do mundo, pelo motivo que acabei de dizer. Então essa é a dicotomia, o medo de não fazer alguma coisa e nada mudar ou de fazer e, por não ter poder sobre a situação, acabar por piorar tudo. 

É um impasse interno que se revela com uma ansiedade leve, se aproximando cada vez mais até me sufocar. É bom que tenha conseguido suprimir boa parte dessa ansiedade, ficando menos suscetível a ela, mas não posso dizer que consegui fazer o mesmo com os meus pensamentos. Mesmo sem ter o poder de causar grandes estragos ou grandes desestabilizações, eles ainda são constantes e, principalmente nos últimos dias, têm me incomodado justamente por ficar constantemente pensando em algo que não posso mudar.

Não sei bem se o que se passa comigo agora é mais uma daquelas milhares de paixonites que já relatei aqui e que sempre se revelam como uma resposta à carência, especialmente em épocas de relativa tranquilidade. Por outro lado também penso que pode ser algo mais forte, não foi algo construído do nada, mas que evoluiu de uma amizade que cresceu por vários anos, é algo que já vem crescendo aos poucos, e eu já tinha percebido antes, embora nunca tenha dado muita importância, afinal sempre estava ocupado pensando nas grandes paixões, aquelas arrebatadoras demais para me deixara ver algo simples e mais tranquilo, fácil até, de se viver. 

Também não sei bem como dizer como me sinto. Não sei dizer o que ele sente, e não sei dizer o que eu sinto sobre como ele se sente. Tenho medo de ser só mais uma coisa da minha cabeça, o que não seria a primeira nem décima vez que acontece, ou algo real, e não sou capaz de adquirir distância o suficiente pra enxergar com mais clareza, só me restando esperar, pacientemente (como se fosse possível pra um ansioso) até que algo aconteça. A verdade é que se for algo real, os sentimentos que parecem se recíprocos, a curiosidade, o amor crescente, eu posso acabar perdendo isso por falta de atitude. Por outro lado se fizer alguma coisa, como investir ou explicar o que se passa, corro o risco de acabar estragando uma amizade, o que também não seria nenhuma novidade já que com frequência eu venho estragando as coisas. 

Escrevendo eu sinto que consigo clarificar um pouco mais as coisas. É como se olhasse um quadro de provas de uma investigação criminal. Mas aqui eu só consigo detectar que pra todos os efeitos o crime já aconteceu, isto é, eu vou perder de qualquer forma. O bom senso pessimista me diz que devo desistir, se vou perder de qualquer jeito que ao menos poupe o esforço de fazê-lo e me humilhar, posso ficar sentado e vendo tudo dar errado ao invés de correr atrás e ver tudo dar errado. Algo do senso comum sussurra que deveria tentar, ao menos pra não me arrepender de não ter tentado, mas o senso comum é algo que sempre tentei sufocar dentro de mim. 

Pensar num problema só é útil quando se é possível resolvê-lo. O máximo que posso fazer é expor as coisas de modo a entender que sim, minha investigação apenas prova que não tenho poder nenhum sobre a situação. Quanto a que atitude tomar creio que não possa decidir de antemão, senão que vou agir de modo irresponsável como resposta imediata alguma situação de gatilho, como uma crise de ciúmes, coisa típica de um bom bipolar.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Sobre exitar

Os dias têm ficado mais longos desde que começou essa pandemia, isso pelo menos é o que todos dizem, e acho que nunca tinha me atentado diretamente pra isso até agora. Os meus últimos dias têm rendido bem mais do que o normal, nada daquele correria de quando trabalhava, em que chegava em casa meio dia, dormia, acordava e corrigia provas, conseguia estudar alguns dias, noutros estava tão cansado que só queria tomar um banho e descansar, pra dormir cedo e no dia seguinte começar tudo de novo. Agora consigo estudar, ler um ou dois livros, dormir e ainda assistir uma porção de séries, tem sido bastante produtivo.

Alguns dias estou mais animado que outros, acho que a medicação que estou tomando tem me feito muito bem. Mesmo nos dias que não estou muito disposto ainda consigo estudar ou ler um pouco, quase nunca ficando no ócio completo, como estava algum tempo atrás, tão chateado e tão desgostoso com tudo que sequer levantava, comia ou fazia mais do que ouvir música acompanhada do barulho do ventilador tentando amenizar o calor desagradável do centro-oeste, que piorou ainda mais com as queimadas gigantescas do pantanal, não muito distante daqui. 

Gosto ainda dos momentos de intelecção, de silêncio e de sonhos, momentos em que costumo compreender melhor o que ouvi nas aulas ou li nos livros. É quando as palavras daqueles que viveram antes de mim se encontram com meu ser, não sendo mais apenas palavras mas vivenciando-as criativamente, de modo a participar da mesma experiência real que eles tiveram um dia. 

É quando me deito, sinto o vento nos meus pés e nas minhas costas, e penso no que há embaixo de mim: um planeta inteiro, milhares e milhares de um terra sólida, onde pisam e repousam um número inabarcável de coisas, pessoas, animais. Penso nas estrelas, o quanto apenas arranhamos a superfície de um planeta minúsculo na vastidão de um universo que só podemos sonhar em conhecer. Isso me dá uma pequena noção de quem sou, como sou e onde estou. 

O tempo passa devagar, e isso me incomoda em alguns aspectos. Olho na tela do celular quando acordo, mais tarde ao findar a aula, um pouco tonto com tantas referências, tantos nomes, tantos pensamentos . Olho novamente quando acordo depois do sono, olho quando paro de ler, olho depois do banho, antes de dormir. E cada vez que olho pro relógio da tela eu sinto que meu tempo diminui. Ainda que possa chegar a viver 70 ou 80 anos, ainda assim diminui, de uma forma de outra o tempo um dia vai acabar, e não sei se estou pronto pra encarar o que vem depois. 

Não exito em encarar uma nova leitura, não exito em assistir aulas de várias horas direto, ainda que seja demais pra mente de qualquer um. Mas exito em tomar uma decisão que pode mudar os rumos do que vivo atualmente, ainda que sejam simples como dizer a verdade ou esclarecer algo que ainda se esconde no meio da névoa do comodismo. Fico parado reclamando, mas ainda não consegui dar um primeiro passo. Passos são sempre problemáticos não é mesmo? Não conheço bem aquela coragem daqueles que se jogam de cabeça em qualquer coisa, mesmo se arrependendo mais tarde. 

Por outro lado me orgulho muito de outras escolhas. Me orgulho de quando disse 'não' a tantas noites de festas, o quanto me poupei de pessoas falando alto e som tocando música ruim. Me orgulho de não ter encarado um grande número de relacionamentos sem sentido, me orgulho de ter dado tudo de mim, sabendo que fiz meu melhor, mesmo quando não tenham percebido ou dado algum valor. 

O avançar do relógio continua, no entanto, e eu ainda estou aqui, com as mãos suadas e o pensamento distante. Nos lábios um cantarolar baixinho, um sibilar de algo em latim distante ou uma balada, não sei bem. Penso num abraço, no meu riso, penso no que gostaria de comer mas tenho preguiça de preparar, penso onde gostaria de visitar, penso no quanto poderia ter dormido e não dormi, nas conversas banais que poderia ter evitado e aproveitado melhor o tempo. E penso, em muitas coisas, a maioria delas não podendo ser descrita pois não conheço palavras o bastante pra expressar. 

E mais um dia já vai terminando. O sol começa a ficar brando, daqui a pouco uma brisa mais fresca pode aliviar um pouco mais, quem sabe até mesmo não esfrie mais tarde? Não custa sonhar. 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Jornada

Rita nasceu num tempo diferente, 1961 para ser mais exato, signo de virgem, esforçada e perfeccionista. Naquela época, plenitude de uma explosão populacional, as famílias tinham muitos filhos, ainda que isso significasse uma vida de privações e dificuldade. No entanto isso não parece ter afetado muito a esses pobres mineiros que sempre muito esforçados chegaram a idade adulta com força e vigor que não observo em minha geração. 

Presidente Olegário, uma viela, um tipo de aldeia, não chega a ser exatamente uma cidade, de algum lugar quente e seco de Minas Gerais, ali ela nasceu ou foi registrada com alguns de seus irmãos. Os pais, Raimunda e José, tiveram muitos filhos, dezoito para ser mais exato, dos quais doze sobreviveram aos primeiros cinco anos de vida, numa época em que os moradores do interior não tinham acesso a acompanhamento da gestação e nem a partos saudáveis. A mortalidade infantil não é, no entanto, algo novo no mundo, antes que é um indicativo de uma medicina e de um desenvolvimento político ainda precário. 

Casaram-se cedo, os pais de Rita, mais ou menos aos quinze ou dezesseis anos. Ela não tinha muita paciência para as investidas do jovem e acabou aceitando o pedido inconveniente de casamento para se livrar das investidas. Viveram uma vida difícil, quase como retirantes que se mudavam com frequência em busca de terras mais férteis, condições mais favoráveis a manutenção da família. Não me recordo dos nomes dos lugares em que moraram, mesmo que os tenha ouvido inúmeras vezes nas rodas de conversa entre avós e netos ávidos pelas histórias e causos do interior. Amendoim, Pescoço Fino, brasileiro gosta de dar nomes estranhos aos lugares, falta ou excesso de criatividade, não sei precisar muito bem.

Criaram os muitos filhos com cerviz dura e disciplina de um colégio de freiras. As moças aprendiam logo cedo a cozinhar para muitas bocas e costurar para que as poucas roupas da família pudessem vestir várias gerações.  Além dos muitos filhos os mineiros são conhecidos por sua afabilidade em receber conhecidos e parentes. O número daqueles que comiam junto a família facilmente ultrapassava o número de dez ou vinte. Quando elas, raramente, podiam brincar o faziam com bonecas feitas de espigas de milho e pedaços de pano que sobrara das costuras. Os meninos logo cedo iam para a roça e aprendiam todos os segredos das plantações, de homens que, não tendo a educação formal que lhes permitisse ler e escrever, conheciam bem o que deveria ser feito para sobreviver. 

Dada ocasião em que recebiam uma conhecida em casa, esta se sentou próxima a uma grande peneira contendo uma boa quantidade de grãos de café que esperavam para serem torrados. Não se compravam certos gêneros que podiam muito bem ser cultivados no quintal ou na roça. Ela se empolgou em alguma conversa e esbarrou na peneira, derrubando tudo pelo chão. Duas das filhas, uma delas Rita, recebeu um castigo severo do pai que pensara serem elas as culpadas. Por dias não conseguiram direito e ficaram com grande marcas de cinto e cipó verde nas costas que custaram a sair. As marcas da surra na mente ainda estavam vivas na última vez que ouvi a história, pelo menos quarenta anos depois. Acho que isso ilustra por si só a sua infância. 

Os pais, analfabetos até o fim da vida, que somente nos últimos anos da quase nonagenária existência aprenderam a escrever em garranchos o próprio nome, esmeravam pela educação dos filhos Caminhavam por duas horas diariamente, levantando quando o dia sequer havia amanhecido ou sendo levados por um caminhão até a escola onde pouco a pouco foram dando rumos diferentes a família. Rita aprendeu a ler com facilidade e, depois de ajudar os irmãos mais novos, se dedicou a bons anos de ávida leitura, coisa que dela herdei com felicidade. 

Ter muitos filhos significa uma confusão em casa, pode-se imaginar as refeições e momentos comuns. Nem digo dos momentos de lazer que só são típicos dos jovens de minha geração, filhos únicos com pais em empregos estáveis com alguma sobra de capital, ainda que mínima. Atenção, afeto, coisas assim nunca foram comuns entre os pais e seus filhos, não tinham tempo o bastante, a fome precede os beijos e abraços, mas ainda assim o afeto dos irmãos é algo que admiro ainda hoje,. 

Depois de se mudaram para Brasília, e depois Goiás, em busca de novas oportunidades, seguindo o mesmo movimento de tantas outras famílias dos mais diversos estados que buscavam na nova capital oportunidades melhores de vida, as coisas foram pouco a pouco melhorando. Os homens descobriram-se capazes de se adaptar a vida na cidade, as mulheres também, ainda que de outra maneira. 

Rita passou a trabalhar em casa de família, que muitas vezes sequer pagava o ordenado merecido com a desculpa de que teto e alimentação era mais que suficiente para alguém que vivera na penúria e agora tinha a doce oportunidade de estar presa entre os muros da nova classe média. Muitas humilhações, noites sem sono, refeições frias e sem diversidade. Aprendera na as dificuldades e a sobreviver com o pouco. Cozinheira de mão cheia recebe elogios até hoje por todos aqueles que provam desde o simples pão de queijo até os pratos mais complexos, cheios de sabores e texturas de uma terra que, mesmo infértil, produz muito sob o esforço dos seus. Mas as coisas eram assim, e ainda o são. A vida não parece facilitar muito.

As suas irmãs e irmãos foram constituindo família, cada um a seu modo. Mães solteiras, número bem menor de filhos, ainda que os número de netos de Dona Raimunda e Seu José, ou Dona Preta e Seu Negrin, passe facilmente dos sessenta mancebos. 

Rita casou-se tarde para a época, já contava quase trinta anos, com um conhecido da família que já fora casado e que se divorciara depois de muitos acessos de loucura da primeira esposa, que chegou a ser internada em um hospital psiquiátrico por um tempo considerável. Casar-se com um homem separado não era algo muito bonito, ainda mais sob as suspeitas mais do que confirmadas de traição. Mas ainda assim se casaram, depois de ter sido expulsa de casa, sendo aceita somente anos depois quando o seu pai finalmente aceitou o marido. Ironicamente foi esse mesmo marido que, muitos anos mais tarde, segurava na mão do moribundo sogro, quase abandonado por filhos e netos e gemendo sob o peso das muitas surras, traições e brigas que dera a sua família. 

Planejavam melhorar a estrutura familiar antes de pensarem em filhos mas, como disse, já casara-se tarde e os anos já se avançavam com velocidade. Moravam num casebre quase sem a mínimas condições de sobrevivência, o que não os impedia de beber e reunirem-se com os amigos. A gravidez foi inesperada, um erro na tabelinha, e foi de alto risco por conta da idade e das poucas condições de fazer um acompanhamento adequado. Algumas coisas não mudaram. 

Nasci doente, porém grande, ainda que a situação financeira não tenha melhorado em nada. Precisavam agora aceitar, pra tudo dar-se um jeito, uma geração inteira de homens e mulheres extremamente fortes, sobreviventes numa terra que em tudo conspira contra sua subsistência. 

Anos mais tarde a situação melhorara consideravelmente. Ainda não tinham casa, o tiveram por pouco tempo depois de grande esforço empreendido na construção. Mas conseguiam morar de aluguel, ainda que tudo o mais fosse muito caro para seus padrões. Ainda usavam roupas aproveitadas, compravam os mantimentos mais baratos, economizavam onde podiam, e ainda hoje é assim. Sem ambições mas também sem aquela dificuldade de antes. O marido, Gabriel, como o mais tarde viria a ser o filho, conseguira estabilidade no funcionalismo público. Ela passou a se dedicar a casa, e já não lia mais, senão que desde o nascer do sol até o fim da tarde se ocupava de uma casa que nunca ficava arrumada. 

Adotou uma filha, antigo sonho de ter um casal de filhos correndo pela casa, abandonada pela mãe relapsa e o pai presidiário na época ainda com apenas dois dias de nascida. Essa fora, anos mais tarde (hoje) razão para intensas crises na família, tendo então herdado a rebeldia e descontentamento que as gerações passadas não ousaram demonstrar. 

Rita sempre suportou o peso da família, o marido apenas o peso do sustento financeiro. Preocupada ao extremo, em parte responsável pela indolência e insegurança dos filhos, viu-se muitos anos mais tarde depressiva e ansiosa, sem controlar as lágrimas que rolam pelo rosto com facilidade. Ainda é forte como sempre, mesmo com os braços flácidos e a pele do rosto já cansada, refletindo as dificuldades de antes. O pescoço vermelho e mais escuro do que o resto do corpo, muito branco, é resultado das muitas caminhadas para economizar o dinheiro do carro. As manchas nos braços denunciam muitos dias sob o sol quente sem nem sequer saber da existência de protetor solar, verdadeiramente artigo de luxo impensável a qualquer pobre.

Ainda não mora em sua própria casa, embora seja de um desprendimento material ímpar que a impele a sempre ajudar o próximo, mesmo na dificuldade. Suporta as traições e grosserias do marido, as crises depressivas do filho excêntrico e as rebeldias da filha. Uma vida inteira de lutas infindáveis, uma situação que há mais de meio século persiste em crise atrás de crise. Nunca podendo descansar, sem precisar fazer a janta, sem precisar lavar a louça porque ninguém mais o faz, sem comprar roupas para que os filhos comprem as suas frivolidades, sem nunca exigir e ambicionar, algo de uma conformação com a dificuldade. As coisas são assim, não adianta discutir, a paciência atravessa as décadas como uma chama fraca. Ainda assim, o não desistir da vida, a força para continuar levantando cedo diariamente, para não desistir dos filhos problemáticos, não abandonar o marido, enfim, continuar insistindo e persistindo, tudo isso é algo do povo que não desiste nunca. 

Não procuro uma lição aqui, tampouco acho que uma atitude conformista seja a melhor, mas ainda assim algo dessa história ainda me emociona. Talvez seja por ver todos os dias aqueles olhos claros, que sofrem silenciosamente uma dor que sequer posso imaginar, tentando sorrir e fazer do meu dia e de todos nessa casa o melhor dia possível. 

domingo, 13 de setembro de 2020

Fim de tarde olhando o mar

Eu nem sei como começar isso, tamanha a minha vergonha de mim mesmo... Eu tinha prometido a mim mesmo que isso não ia se repetir, que agora iria cuidar de mim a ponto de não me deixar passar por tudo o que já passei. Mas acho que não consegui, pelo menos não completamente. 

Percebi isso deitado num dos poucos momentos de calma e silêncio na minha casa: o fim da tarde de domingo. Quando todos estão cansados do fim de semana agitado, depois de muitas latas de cerveja, muitas partidas de dominó e pratos gordurosos no almoço as pessoas finalmente sucumbem ao peso de seus divertimentos e caem na cama, é ai que aproveito pra dormir com a paz que normalmente me é furtada. 

Pois bem, desculpe o devaneio, mas mesmo sabendo, e me lembrando bem, de todas as coisas que me aconteceram pelo descontrole dos meus sentimentos eu ainda não consigo controlar, não consigo deixar de sentir não uma ansiedade, como sempre o fora, mas uma tranquilidade em estar com você, em segurar sua mão, sentir o seu abraço apertado. 

É patético perceber que me apaixonei mais uma vez. A diferença é que, se não consegui evitar de todo, ao menos consegui segurar um pouco a intensidade do sentimento. Não sinto aquele incêndio que converte tudo em fogo, que abrasa o peito e reduz à cinzas as expectativas frustradas. Não, dessa vez é apenas um calor confortável, como o sol delicado que toca a pele fria, devolvendo-lhe a cor e vida. É assim que me sinto. 

Por isso sinto que nem tudo está perdido. Muito embora eu tenha visto esse sentimento nascido bem diante de meus olhos eu sei que tenho o poder, pelo menos, de impedir que ele cresça demais. Também estou de não alimentar esperanças, também estou firme no propósito de não me humilhar como antes. Mesmo que sinta, eu não deixarei me entregar mais uma vez, não serei tragado para as águas profundas das paixões que são como o mar revolto. Ou dessa vez eu consigo ficar na tranquilidade da praia, sem que nada me aborreça, olhando o mar e sua beleza, ou correrei para longe, o mais longe que puder. 

sábado, 12 de setembro de 2020

Um mundo distante

De repente, mas não por acaso, ele se tornou um homem diferente. Já não estava mais disponível para os outros como antes, já não respondia as perguntas senão com o mínimo de atenção, já não se importava muito com as opiniões toscas e com a flagrante ignorância dos pares. 

Não foi por acaso que ele parou de prestar atenção as pessoas, afinal ninguém vale a pena ser observado por muito tempo. São todos rasos, não razão para derramar sobre eles mares de sentimentos, de desejos, apenas transbordariam espalhando pelo chão aquilo que se dá. As mesmas palavras, os mesmos assuntos, algo que se esgota em poucos instantes. Talvez seja melhor guardar tudo isso de forma egoísta dentro de si. 

Ele se sente cansado, não no sentido de quem precisa descansar, mas como alguém que já tendo visto tudo o que havia para ver aqui já não se deixa impressionar com nada. É como se nada fosse mais capaz de lhe despertar o brilho no olhar. Com efeito ele se tornou apático. O sorriso é falso, não se observa nele a marca de Duchenne ao redor dos olhos. Prefere calar mesmo quando os outros lhe jogam absurdidades modernas de um progressismo burro e cego. 

Não sente coragem para sair, sequer vai até o portão. Recusa os convites para sair e inventa desculpas para que não venham visitá-lo. Se alguém bate na porta ele finge dormir, até que escute os passos se distanciarem. Cansa-lhe olhar, para onde quer que seja ao seu redor. Tudo lhe é feio, tão feio que lhe causa uma repulsa profunda, uma ojeriza apavorante, e não fosse a sua languidez e o torpor que o envolve, já teria fugido para longe, ao menos teria corrido até que seu coração não aguentasse mais e parasse de vez. De que vale continuar batendo, como se quisesse garantir que seu senhor viva ainda mais, se ele apenas sobrevive? 

Prefere ler, sobre terras distantes e vidas melhores que as suas, ou ouvir aqueles que conseguiram vencer essa realidade e que agora estão num plano superior. Seus professores, que já o inspiraram, agora não são mais do que ideais inalcançáveis, devas, superiores demais para que deseje ser algo mais do que uma sombra pálida ou uma poeira que insistentemente prende-se aos sulcos de suas sandálias.

O escuro torna-se o refúgio, talvez o único nesse exílio de privações. No escuro não precisa olhar, para as janelas de vidros remendados, que dão para um muro de alvenaria que sequer mereceu ser coberto com uma camada fina de cal. O piso vermelho, riscado e cheio de manchas, que não combina em nada com o ladrilho que foi colocado nos outros cômodos, cômodos estes que estão abarrotados com uma quantidade de móveis muito acima do que o necessário, ou do que seria visualmente aceitável. Reflexo de uma casa onde moram pessoas demais, que falam coisas demais, alto demais. Os poucos elementos que poderiam servir de consolo são engolidos por uma onda de breguice e falta de senso sem precedentes na história da humanidade. Será mesmo que podem dizer-se humanos? Até mesmo os animais possuem algum senso estético. Essas pessoas não. 

Até seus corpos refletem sua condição. A pele causticada pelo sol, dos muitos dias de labuta e das muitas andanças para economizar o dinheiro do carro. A barriga saliente, sem vergonha, que é um flagrante para a constante fuga por meio da cerveja barata do mercado. As tatuagens tostas, a pele macilenta, o cabelo disforme e sem vida, o suor que se mistura ao cheiro desagradável típico da classe inferior a que ele pertence.

As paredes estão cheias de furos, flores artificiais e fios que se cruzam em gambiarras que, embora busquem facilitar a vida ainda gritam com uma profunda acusação de que sua existência é apenas um atestado de mediocridade. Os muros altos numa selva de ferro e concreto, as construções sem sentido de unidade, as calçadas desiguais, não se vê uma árvore e o único verde são as plantas colocadas a esmo aqui a acolá, para suprir uma necessidade demente de um mundo que se perdeu há muito tempo. Tudo é muito caro, aliás isso é o que mais se diz. As roupas são caras, a comida menos insossa é cara, o perfume é caro, a dignidade é cara. Tudo é adiado para um futuro incerto, até mesmo as necessidades mais óbvias são postergadas para as calendas gregas, como se não fossem nada. É uma vida que sobrevive num mundo que jamais funcionou. 

Mesmo que o quarto também seja um amontoado de elementos desconexos, ao menos pode se tornar escuro, quando com a ajuda de benzodiazepínicos ele busca dormir sem precisar perceber com mais frieza e realismo brutal a verdade a que está submetido. A covardia lhe pede por esses arroubos de sono, pelos momentos doces de sonhos que, no entanto, sempre terminam com um gosto amargo na boca. Os remédios impedem, ou pelo menos adiam, o surto definitivo.

É como se alguém tivesse colocado uma lente em seus olhos. Tudo lhe parece sépia, sem vida, empoeirado, feio demais para ser visto. Pensa que tudo ao seu redor poderia ser lançado ao fogo, que todas as coisas de seu mundo poderiam virar cinzas, e ele próprio reduzido a pó. 

Agora ele também foge do mundo virtual, do mundo de mentira, que apenas aponta realidades que não existem senão em mundos distantes, do outro lado de um oceano violento e intransponível. Lá onde não há choro, onde não há coisas feias chafurdando a beleza na lama. Onde os olhos brilham, os sorrisos cativam e as peles brilhantes e claras são como seda, onde deslizam com delicadeza os dedos dos amantes a lhe explorarem cada linha fina do corpo. Onde as cores são vivas, as flores de verdade são presentes que mostram o carinho com delicadeza. Lá onde as histórias de amor são contadas não como lendas banais e repletas de uma frivolidade nojenta, mas com a clareza de que a próxima história acontece há poucos quarteirões dali, ou que pode estar acontecendo nesse exato momento entre as pessoas que caminham despreocupadamente pelas vitrines de um Siam Paragon. Lá onde a música não é um barulho, que se sobrepõe ao choro das crianças insuportáveis, onde as pessoas não apenas conhecem e reconhecem o belo, como também vivem em meio ao belo, elevando seus espíritos a um mundo de bondade, justiça e verdade. Um mundo distante, realmente muito distante.

"Da nossa geração não se pode dizer que viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo à decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra."

 (Tácito)

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Resenha - Still 2gether

Atenção, a seguinte resenha CONTÉM SPOILERS, prossiga por sua conta e risco.

E FINALMENTE TEVE BEIJO!

Essa com certeza foi a reação de metade do fandom BL que tanto reclamou da falta de beijos em 2gether (você pode conferir a resenha da season 1 aqui). Realmente eu também coloquei esse como um ponto negativo na temporada e os produtores se dedicaram a resolver esse problema. 

Antes de começar a falar do especial eu gostaria de fazer um pequeno adendo a toda a discussão que rolou na internet sobre o caso. Tá certo que a proposta era mostrar um relacionamento baseado no cuidado e no carinho, especialmente a dedicação que o Wat tem em cuidar do Tine e dos sentimentos que esse vai descobrindo sobre o músico. Isso eu entendi. O lance é que, na época em que vivemos, com a visibilidade que a comunidade gay tem é um pouco estranho mostrar um casal sem retratar esse lado afetivo, com beijos e carícias, com um pouco mais de realismo. Também entendi que não queriam ser apelativos, até pela classificação etária, mas é possível mostrar um relacionamento saudável sem soar excessivamente erótico. É esse o ponto: mostrar a realidade, e sabemos que um casal não vive só de sacanagem, mas também não são dois brothers né?. 

Dito isto, vamos ao que interessa. Still 2gether é um especial que a GMM lançou como complemento a primeira temporada, pegando carona na mega popularidade de Bright e Win. Claro que não iam deixar essa passar. 

Esse especial conseguiu, em 5 episódios, entregar até mais do que a primeira temporada inteira. Apesar da série ter sido realmente muito boa ela pecou em mostrar um desenvolvimento maior dos personagens, além do que já citei sobre o casal principal, os outros casais e personagens não tiveram nenhum desenvolvimento. Phukong e Mil praticamente não saíram do zero a zero. E aqui esses erros foram corrigidos. 

Houve uma troca de diretor, e o encarregado por esse especial foi o Backaof Aof Noppharnach (o mesmo de Dark Blue Kiss) e ele soube desenvolver muito bem a química entre os personagens. Finalmente o Phukong conseguiu alguma coisa do Mil, e convenhamos que desde My Tee o Frank e o Drake fazem um casal lindo e ninguém pode discordar (e se você discorda o problema ta em você, melhore). Man e Type também se mostraram, naquele jeitão de casal que combina um bobão apaixonado e o ranzinza ciumento. Green e Dim também foram mais do que um simples trampolim pro casal principal. Enfim, o que tinha faltado na primeira temporada pra elevar a série do patamar de muito bom pra excelente foi acrescentado aqui. 

Particularmente eu preferi colocar o especial junto da temporada, como um tipo de parte dois, porque acho que a coisa casou muito bem aqui.

Temos um Tine (Win Metawin) mais bobinho pelo salaleo, embora ele ainda tenha aquele jeitão dele de parecer que não se importa, mas ele se importa sim, e isso nós vemos numa cena belíssima e que o ator mostra um talento incrível numa atuação impecável. Além disso tem um Tine muito mais confiante a à vontade de dizer que tá namorando, a ponto de explanar o casal no YouTube e até de provocar o outro na hora do banho (safadinho). Sarawat (Bright Vachirawit) continua sendo o músico bonitão que é todo boiola pelo namorado. Sério, ele é atencioso, carinhoso e até safado quando precisa, é o pacote completo. Não podia deixar de comentar o mega beijo no último episódio, até eu fiquei com as pernas bambas com o Wat finalmente cumprindo a promessa de beijar o namorado até cair (aliás a promessa também sofreu uma promoção, vide foto abaixo). Se  eu queria mais beijos como qualquer casal? Queria! Mas admito que esse já valeu pra mim. 

Phukong (Frank Thanatsaran) abriu o jogo com P'Mil (Drake Laedeke) e fez ele sair da marcha lenta, o que já não era sem tempo. Ficou engraçado porque mesmo sendo mais novo Phukong é quem toma as rédeas da relação e dá o primeiro passo, bolando um plano todo pra fisgar o veterano. 

Eu não esperava que o plot de Man (Mike Chinnarat) e Type (Toptap Jirakit, que ta especialmente bonito por aqui) fosse tão bem feito também. Não foi só o Man correndo atrás do outro como um bobo sem um pingo de amor próprio, agora os dois já são um casal e agem como um casal, mesmo que a diferença de personalidade continue, o que é a essência de ambos. 

Green (Gun Korawit, trazendo representatividade pros atores assumidamente gays) e Dim (Guy Sivakorn) também tiveram mais espaço aqui. Se na primeira temporada tinha ficado no ar que o personagem principal não podia se apaixonar por ele por ser um gay afeminado mas podia gostar do outro que tinha pose de machão, aqui eles receberam um pouquinho mais de atenção. Green e Tine agora são amigos e se ajudam no clube de líderes de torcida, enquanto Dim continua enchendo o clube de música mesmo já tendo se formado. Os dois não ficam em cena por mais de dois minutos sem que comecem a brigar, mas eu gostei até que mostraram um lado mais maduro e até responsável dos dois. Isso em se tratando dos clubes, porque na vida amorosa os dois são tudo menos maduros, a revelação do último episódio mostra isso. 

A trilha sonora conseguiu superar também a primeira temporada, e olha que já tinha sido muito boa mesmo. Temos os personagens cantando e muita música do Scrubb. 

Por fim, a GMM também aproveitou pra fazer um pouquinho mais de propaganda de TonhonChonlatee, que estreia em breve e vai contar com o Khaotung no papel principal.O personagem dele aparece toda hora fazendo um monte de caras e bocas, mostrando a fofura e toda a expressividade do Khao. Um verdadeiro cristal.

No mais essa resenha é bem menor que as outras, visto que já tinha falado muito na da primeira temporada. Só o que tenho a dizer é reforçar que esse especial veio pra completar tudo aquilo que a gente sentiu falta antes, fechando a série com chave de ouro. Francamente eu acho que a GMM vai continuar explorando a popularidade de BrightWin, e não descarto uma próxima temporada ou até outra série. Dinheiro né meu bem. 

Nota 10/10

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Tensões

Num momento me senti perdido, como se quisesse fugir de todas aquelas vozes que cantavam sobre experiências tão vazias, sobre coisas tão banais. Tenho horror a tendência de refugiar-me na banalidade, a fugir do que importa, tenho horror a tendência de sonhar utopias tão distantes e falar delas como se fossem realidades próximas e necessárias, absoluta e irrevogavelmente necessárias. 

Para onde quer que olhe vejo pessoas que lutam contra forças invisíveis como cavaleiros dos valores de justiça e nobreza combatendo o dragão do capitalismo que a tudo destrói e persegue, do racismo que se vê em todas as situações, das milhares de fobias que surgem todos os dias, mostrando que não toleramos nada e nem ninguém, quando na verdade ninguém se importa realmente com o outro a ponto de se incomodar de verdade com alguém pela forma como ela se veste ou por quem ela leva para a cama. E num mundo onde milhares de pessoas morrem diariamente pela violência falam como se a preferência de beijar uma pessoa preta ou branca fosse o problema mais emergencial. É dessa banalidade que falo com desprezo, desprezo por quem já não sabe medir o que é prioridade e que raciocina com a mesma lógica psicótica de quem precisa encontrar um culpado no mundo para tudo aquilo que o incomoda por não saber o que realmente o incomoda. Enfim. 

A felicidade que sucede o medo e o incômodo pelo barulho, os sorrisos ao redor de uma mesa com batatas, molhos e brincadeiras. O filme de terror cheio de gritos e a cabeça reclinada sobre o peito de quem amamos, ouvindo as batidas do coração, sentindo o perfume doce do hálito, o calor dos braços num amplexo do emaranhado de braços e pernas, como se aquele abraço fosse o melhor lugar do mundo, e de fato era. Mas também era apenas um abraço, sem maior

es consequências. A vida continua sendo essa sucessão de tensões insolúveis, contra as quais lutamos como se não fossem parte integrante da realidade. 

Medo e coragem. Silêncio e o cantar alegre de quem quer calar o silêncio e não ouvir o coração. Dieta e gula. Sono e o despertar de quem poderia desmatar uma floresta com as mãos nuas. O sonho de saltar e destruir o chão com apenas um soco, a tranquilidade que é saber que não se depende das forças dos músculos e sim daquilo que se aprende pra viver. A permanência e o êxtase da transformação. v Tensões. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Ressaca

Tenho estado um pouco distante da letras nos últimos dias. Já faz algumas semanas, na verdade, que a frequência com que escrevo vem diminuindo. Já faz algumas semanas, inclusive, que tenho feito algumas mudanças na minha vida e, como sempre, essas são acompanhadas de consequências. Mudar é absolutamente necessário, ainda mais quando já não estamos mais satisfeitos com quem somos ou com o que fazemos. 

Isso porque as coisas cansam, ou nos cansamos delas, e por isso precisamos fazer a roda da vida girar uma vez mais. As coisas que me agradavam antes hoje me são de profundo incômodo. Percebi, e isso foi o mais importante, que vivia num grande limbo entre a solidão e a agitação do mundo. A solidão, que pode ser dolorosa mas ao mesmo tempo é capaz de profundos ensinamentos, me era apenas uma condenação injusta. Por outro lado, a confusão do mundo que também é necessária pois ninguém vive só, também me parecia uma condenação por motivos que já descrevi tantas e tantas vezes. 

Esse limbo, pois a internet nos oferece uma sensação de companhia constante mas sem que essa companhia seja real. Isso prejudica ambas a experiências, e assim me sentia, como se ambos os meus aspectos, aquele da solidão e aquele que se relaciona com o outro, se encontravam limitados por essa experiência incompleta. 

Quando percebi, não com poucas dificuldades, que essa era a causa, eu não pude esperar duas vezes antes de começar a me afastar disso. Tornou-se questão de primeira importância, imaginar que posso me prejudicar por estar vivendo num mundo virtual que, no entanto, não contribui nem mesmo para me ajudar a tornar a solidão em solitude como para ser alguém melhor na agitação do mundo, se tornou um martírio. Tão logo percebi isso eu comecei a sentir total desgosto pela vida online. 

Tenho, desde então, buscado o silêncio que já não é mais uma condenação, senão que é um refúgio para o aperfeiçoamento do talento. O silêncio me ajudou a descansar, o corpo e a mente. É nele que tenho conseguido estudar, ler e ouvir musica com uma profundidade que até então não tinha experimentado. O medo que tinha de estar só não me permitia notar que a vida virtual não era mais do que uma ilusão de funcionalidade, e que eu já estava só há muito tempo, e que isso não era um problema. Se já estava só e nem por isso havia morrido, por qual razão morreria agora que me dei conta? E se não morreria por isso é porque estar só não é lá tão mortal quanto pensava ser. 

É com certa ojeriza que observo agora como essa ilusão pode ser prejudicial aos outros. Observo com dor como as pessoas agem tentando usar os amigos online pra suprir um vazio real, que elas sentem no peito e que não pode ser preenchido com likes ou algoritmos. Não é uma bela visão, e por isso mesmo tenho preferido olhar o mundo com os olhos de verdade, sem as lentes, ou não olhar nada além de meu próprio quarto. O meio termo me enoja. 

Essa atitude gerou uma série de outras mudanças que, no entanto, ainda não compreendo a ponto de conseguir descrevê-las, mas o fato é que extinto um dos principais fatores de angústia, falar sobre a angústia tornou-se algo desnecessário, aliás, algo que já não me é tão caro assim. Claro que isso não impede que outras angustias se sigam de outros lugares, mas estancado um sangramento não faz sentido não limpar o sangue que dele escorreu. 

Talvez seja uma pausa criativa, uma ressaca ou um bloqueio, que se mostra num silêncio, já não do mundo mas meu para o mundo, e que logo mais deve explodir novamente numa profusão de palavras, mas até lá, tento falar sobre o que sinto, seja um deserto no sentido árido e pessimista do termo, ou um mar calmo e silencioso que não necessita fazer barulho para mostrar-se belo e senhor do mundo. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Vórtice



É um dia em que preferi ficar um pouco, mais, sozinho. Desde ontem que já não estava muito disposto a conversar, um pouco cansado e enjoado de tudo. É aquela velha coisa do sentir-se sozinho e vazio, e por isso mesmo não querer outra coisa além de ficar sozinho. 

Assisti mais aulas, aproveitei pra ler, mesmo com a atenção um pouco prejudicada, mas ainda assim tive um bom aproveitamento. Também dormi ou ao menos fiquei mais tempo deitado e de olhos fechados, e como sempre esses momentos são de um poder incrível para acalmar o espírito de certas potências. 

Essa vontade, ou falta de qualquer vontade, é na verdade movida por uma forte desesperança que se abateu sobre mim nos últimos dias. A ocorrência de inúmeros pequenos problemas me chamaram a atenção para o fato de que, ao que me consta, parece que tudo nessa vida tende a dar errado nos mais mínimos detalhes. É como se uma criança implicante estivesse no controle de tudo e se divertisse com a perspectiva de simplesmente azucrinar a vida dos pobres que não possuem tal onipotência. E, como o disse, é assim em cada pequenino detalhe: desde o barulho irritante de uma cadeira de escritório até o pane geral da fiação elétrica, tudo contribui para a completa loucura do homem que apenas tenta viver os seus dias nessa miserável existência com o mínimo de dor possível, o que me parece ser justamente impossível, pois o mundo sempre nos dá o máximo de motivos para desistir e mergulhar na completa loucura. 

É dessa loucura que a cada dia me aproximo mais. Já vislumbro os umbrais de sua residência. Já ouço os gritos alucinados daqueles que se entregaram e se deixaram vencer pelas cordas manipuladores do destino maldito que os corrompeu reduzindo-os a criaturas de ódio e saliva a gritar-se por entender, finalmente, que não poderiam vencer. 

E por isso jorram aqui as últimas palavras do que um dia foi um homem consciente de sua posição perante a força de um universo de vontades malignas invencíveis: o tratado irritantemente interminável que a cada diz se vê acrescentado de novas linhas que ninguém se dispõe a ler. Que a cada dia traça com caligrafia rubra o sangue escorre dos olhos, perfurados com violência para não mais verem a sujeira em que se encontra o mundo. 

Não há esperança, e por mais pessimista e quase niilista que isso possa soar é uma verdade facilmente observável por quem não tenha medo de encarar a crueza do mundo. Não há esperança. Só o que há é uma continuação dramática, uma repetição infindável de horrores, uma roda que lança seus raios obliterando a todos e que nunca cessa de girar. Não há esperança, há apenas o horror do fim que nunca chega, que nos lança na fogueira que nunca para de queimar, as águas revoltas que nunca diminuem sua fúria, ao furacão que nunca termina de girar e lançar sobre a terra com violenta ira a todos que um dia se atreveram a levantar os olhos ao céu clamando por piedade, mostrando que o nosso lugar é no chão, destruído, esmagados, quebrados ao meio e abandonados a própria sorte, sorte essa que não existe senão naquelas mesmas linhas do destino que nos comanda como aos seus bonecos, guiando-no no caminho da condenação eterna.