sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Um quadro

É uma bela casa, num bairro nobre e distante da confusão do centro da cidade. Ali as casas não têm altos muros, todos respeitam a privacidade do outro e a segurança não é mais uma preocupação, aliás, é preocupação apenas que estão para além daquele território. Mas isso aqui não é pra exaltar as glórias de uma classe abastada, não, era apenas para situar o leitor sobre onde se passa o quadro que irei pintar com os traços de cada uma dessas palavras. Se pareceu arrogância de minha parte, desconsidere e siga em frente, pois sempre é possível fechar os olhos aquilo que não nos convém. 

Eles vivem em uma casa grande, apenas os dois, e as vezes parece quem tem mais espaço ali do que eles realmente precisariam. As janelas são grandes, de um vidro tão transparente que os primeiros raios de sol da manhã são suficientes para banhar o ambiente com uma claridade delicada, que preguiçosamente aumenta a medida que eles acordam, um pouco sonolentos. O dia precisa começar.

As noites são sempre especiais, hoje vemos os dois na cozinha, um cômodo grande, com o cinza de pedras nobres no piso e acima do grande balcão que há no centro. As paredes tem um revestimento claro, e no grande armário que se estende sobre uma parede inteira há uma infinidade de produtos e apetrechos. De algum cômodo próximo soa uma música baixinha, pode ser um blues ou um jazz, daqueles que tornam o ambiente ainda mais aconchegante. É uma noite aconchegante. 

Um deles, o mais velho, está sentado num banco alto, com os cotovelos apoiados no balcão. A sua frente tem uma xícara de chá, fumegante, de morango e canela, perfumando o ambiente com um aroma doce. Ele usa uma longa camisa de um rosa clarinho, e a camisa claramente pertence a uma pessoa um pouco maior que ele. Por baixo usa um pequeno short, invisível debaixo da camisa, Seu olhar é meigo, seus olhos brilham, refletindo no castanho escuro o brilho da luz acima deles.

O outro é o responsável por preparar a comida naquela noite. Sem camisa e com uma bermuda folgada, que marca bastante algumas partes do corpo, ele habilmente corta, pica, refoga e tempera pedaços de carne numa grande frigideira. Logo termina e dispõe dois pratos sobre o balcão, comer ali é mais confortável. Os pratos têm uma aparência ótima, foi cuidadosamente montado, a carne ao centro, com algumas ervas por cima, ladeado de uma pequena porção de um molho escuro, bastante aromático. O outro pega, alguns passos dali, duas taças e uma garrafa de vinho, que haviam combinado de abrir naquela ocasião. 

Ah, eu não disse de que ocasião se trata, perdão pelo lapso. Essa é a primeira noite depois de uma semana que eles passaram a viver juntos. Finalmente desfizeram a última caixa, e encaixaram com cuidado as coisas que agora dialogam entre si, combinando dois mundos um tanto quanto diferentes numa harmonia inimaginável. Parece até que todas aquelas coisas foram feitas para estarem juntas, como eles. As roupas couberam facilmente no closet imenso, os produtos de cuidados pessoais se encaixaram no armário abaixo da pia do banheiro e sobre a bancada, agora dividida em duas por uma linha invisível: um deles, preocupado demais, com vários produtos, cosméticos, cremes e vários outros potinhos escritos em língua estrangeira que pareciam ser muito caros. Do outro lado, um barbeador e escova de dentes. Equilíbrio perfeito. 

De volta ao cômodo de baixo, descendo as escadas de um mármore rosa e delicado, eles sorriem e conversam, enquanto os pratos pouco a pouco se esvaziam e a garrafa de vinho chega ao fim. Após a sobremesa, uma panna cota habilmente preparada, eles se dividem: o cozinheiro da noite sobe para um banho enquanto o outro cuida da bagunça que ficou para trás, em tempo de entrar na ducha antes do outro sair. Ele se seca e espera pelo outro cantando baixinho a música que ainda toca, vinda de algum lugar. 

Os dois saem enrolados em toalhas, uma delas que logo cai, puxada pelo outro acompanhada de uma risadinha maliciosa. O que ele recebe como retribuição é um beijo, atrevido, que com um sorrisinho se afasta levando sua toalha e atirando longe. 

Virando-se ele vai até o lado em que guardam os pijamas, e escolhe uma peça de seda, cinza, que ele sempre se surpreende pela leveza com que ela cai sobre seu corpo musculoso. O outro dá início ao seu longo ritual. Cremes no corpo, outro nos pés, algo meio aguado no rosto, depois algumas gotas de vários daqueles vidrinhos e, ao invés do creme habitual, que é grosso e deixa a pela com uma aparência oleosa, ele opta por um perfume, docinho e leve, um aroma de corpo perfumado. Terminado o ritual ele logo vai até a cama. 

Fora dali aquela é a única casa com apenas uma luz acesa. Em toda a vizinhança há um pequeno movimento, mas como era de se esperar, tudo muito discreto. Duas ou três casas ao lado as luzes de uma jacuzzi brilham, e como a música toca num pop animado, dá a entender que alguns jovens fazem uma festa. Do outro lado da rua um homem preguiçosamente joga água no seu jardim com uma mangueira. 

Eu não cheguei a comentar sobre o jardim. Ah essa é uma das minhas coisas favoritas nesse lugar. Em todas as casas há um longo feixe de grama, sempre verdinha, e aqueles moradores mais atencioso cultivam flores aqui e aqui, que salpicam o verde brilhante com pequenos pontinhos rosas, brancos e amarelos. As árvores também são muitas, o ar ali é bom de respirar, graças também ao grande lago próximo, que a essa hora da reflete em suas águas negras as luzes dos parques e clubes nas suas margens,

Estamos de volta ao quarto do nosso casal onde, sem muita surpresa para o leitor, eles se beijam com delicadeza, deitados. Ao que parece nenhum dos dois resolveu usar os pijamas, caprichosamente dobrados sobre o banquinho no closet. Apenas as luzes de dois pequenos abajures estão acesas, dando ao quarto um clima romântico, ainda mais pelas velas aromáticas e a música, que agora toca acordes sensuais num saxofone. 

O beijo lentamente se torna mais intenso, abrindo os olhos eles se vêm brilhantes de alegria, o rosto começando a enrubescer. Com um sorrisinho um deles conduz com mão firme o outro a se sentar, e com um olhar sugestivo desse é melhor avançarmos a nossa cena em algumas horas. Vou deixar o leitor apenas com os sons abafados de gemidos, da respiração ofegante e da risada baixinha quando as coisas finalmente ficaram silenciosas.

Agora os dois estão deitados, um sobre o peito do outro. Algumas marcas vermelhas, que amanhã estarão roxas, em certas partes do copo. Embora seja mais velho, ele é magro e pequeno, com aparência frágil, alguns fios do cabelo suado levemente colados na testa. Seu corpo é coberto de pequenas tatuagens, todas profundamente simbólicas, o que contrasta com sua compleição delicada. Escuta atenciosamente as batidas do coração do outro, com a cabeça sobre o peito forte, abraçado por um braço grande e firme, e tem certeza que seu coração bate exatamente no mesmo compasso. O outro está com a bochecha apoiada sobre a cabeça do outro, enquanto a mão acaricia o braço, fazendo pequenos movimentos de vai e vem, sem perceber. De vez em quando eles se olham, se beijam mais uma vez e sorriem, satisfeitos, pelo dia, pela companhia, pelas coisas que finalmente estão dando certo. 

Quando as luzes se apagam, nós olhamos para cima, de frente para aquela casa onde dois amantes dormem, com um sorriso, sob a lua cheia brilhante e o grande caminho de milhares de estrelas que fazem desse quadro, o mais belo quadro que um pintor apaixonado já imaginou sonhar.

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