terça-feira, 31 de outubro de 2023

Olhares

Seu olhar era vazio, e eu não significava nada, era apenas um estranho no ponto de ônibus. 

Depois se tornou um olhar frio, eu era apenas um estranho que encarava demais. 

E aí o estranho que encarava demais passou a se aproximar mais, um pouquinho mais. 

Agora o olhar é afetuoso, brilhante, e ele se aproxima de mim com um sorriso discreto e meigo... 

Inclusive ele passou por mim esses dias e voltou para falar um pouco mais, e isso fez com que eu o sentisse quentinho. Ainda não era o calor no olhar que eu esperava, tampouco observo esse calor quando ele olha para o amigo próximo, bonito e forte, por quem qualquer um se apaixonaria... Mas já me sinto mais próximo. Quero, com sutileza, me aproximar ainda mais, daquele coração jovem e ansioso, que se diverte em jogos de futebol. Quero, quem sabe, conseguir conquistar o afeto e a confiança daquele jovem coração de alva e cíngulo. Por hora, já me sinto tranquilo com com seu aperto de mão quente, mas ainda sonho com o dia em que o seu olhar vai conter amor. 

Tomei mais remédio pra dormir esses dias do que qualquer um sobreviveria se não fosse tão forte quanto eu, e continuo firme e acordado, com uma boa dose de rancor consumindo meu coração, já me vejo como um Arrancar, replicando em minhas vítimas a minha morte violenta. 

Mas eu não sou violento, a não ser comigo mesmo, e meu corpo pagou um preço bem caro pelos últimos dias, e vai pagar ainda mais agora que eu vou precisar esconder também o que sinto. 

De todo modo encaro agora uma doce fantasia onde me deito na cama ao lado dele, seus olhos apaixonados encontram os meus tristes e marejados e, num abraço apertado, eu fecho os olhos e me entrego a dulcíssima escuridão do sono. Morrendo em seus braços, com lágrimas caindo sobre seu peito e a sua mão repousando sobre a minha cabeça. 

É, seria uma boa forma de partir.

X

Talvez seja uma daquelas coincidências do universo que, no dia seguinte após eu ter escrito os parágrafos anteriores uma cena* em particular tenha me chamado atenção justamente pelo carinho e a intimidade que demonstrava. 

Eles não podem ficar juntos, é o motivo daquela missão, o homem que voltou dez anos no tempo para evitar que seu namorado morra por conhecê-lo, e ele aceitou que deveria viver o resto de seus dias com  as lembranças de um passado que não aconteceu, enquanto faria também o outro sofrer por um futuro que não vai chegar. 

Mas eles encontram, numa noite fresca, a chance de deitar, um ao peito do outro, e observar a rua a sua frente, bem ali, próximos, num marco zero, sem medo do passado ou futuro, apenas o bater daqueles corações e aquela doce proximidade. 

Será que também eu poderei ter a alegria, um dia quem sabe, de tê-lo recostado em meu peito, enquanto olhamos a rua à nossa frente? 

Sabe que, mesmo em meio ao caos desses dias se, ao menos por um breve instante, eu pensar que estou encostado em seu ombro, já me sinto melhor? Por isso acho que meu amor é diferente. Não penso em momentos de intensidade apaixonante, mas apenas em ficar ao seu lado vendo o tempo passar, de segurar sua mão ou ouvir sua respiração. Será que ao invés de monstro eu posso te amar de maneira pura?

~

*A cena em questão é do episódio 5 de Absolute Zero, do Studio WabiSabi.

sábado, 28 de outubro de 2023

Da minha paz

Se o que fiz está certo, e reconheceram que está certo. Se as pessoas dizem que eu sou simpático e sei conversar, se, mesmo solitário, elas ainda sorriem e falam ao meu redor e se falam que eu sei tratar bem, que eu consigo resolver os problemas com calma e tranquilidade... Se os elogios chegam até por terceiros... Por que então que três palavras e um sorriso sarcástico me tiram a paz desse jeito como se tivesse sido humilhado publicamente?

Mesmo quando me disponho a ajudar, a ser atencioso e a facilitar o pagamento que recebo é apenas a mais brutal ingratidão.

Me vem então algumas reflexões: a primeira do meu saudoso professor que me dizia que não devemos agir como se a ingratidão fosse a exceção ou algo que não deveria acontecer. Geralmente quando fazemos aquela pergunta "por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?" partimos do pressuposto que não deveria ser assim mas, vendo a vida do próprio Cristo que, a despeito de tudo que ele fez ainda foi crucificado, é de se esperar que as coisas sejam assim mesmo. 

Talvez sejam algum tipo de força de compensação do universo, para manter o equilíbrio a positividade é repelida pela negatividade, mas isso é só um devaneio de um homem chateado. Outra coisa que me vem é a música do Pe Zezinho que tantas vezes escutei em que ele fala do perdão, ou a falta dele no caso, que é capaz de fazer perder a paz. 

E eu perdi a minha paz, tremia e chorava de dor e de raiva. E agora tenho fazer o movimento interno de conseguir dar o perdão, ainda que não me tenha sido pedido, de conseguir entender que, naquele momento, o ódio destilado era tudo que aquela pessoa tinha a oferecer e que talvez ela estivesse em maior sofrimento ainda. 

Sente comigo um pouco meu caro Augusto, já fazia algum tempo que não tomávamos um porre, enquanto olhamos o mundo cinza lá fora. Claro que já lhe disse isso várias vezes mas suas palavras continuam ecoando no meu peito vazio, e reverberam exatamente porque em toda essa mansão interior continuo tendo apenas a companhia da ingratidão, que nada vê do esforço e nada entende da bondade. 

Torno a repetir, é ridículo que me deixe abalar por coisas pequenas, três mínimas mas malditas palavras, enquanto ouvia tantas outras de elogios e agradecimentos. A gratidão devia ter mais força do que o ódio. Infelizmente eu fiquei olhando para o lado negativo, para os olhares de deboche e desprezo, mas estava cercado de pessoas que e ofereceram perspectivas incríveis para coisas que eu não conseguia ver ainda, ao mesmo tempo em que ficaram felizes com as minhas perspectivas também. Essas pessoas foram em número muito maior das negativas e, em muitos momentos, aqueles sorrisos, aqueles abraços, aquelas lágrimas que surgiam ao olhar aquelas peças, frutos de um processo de transformação intenso, uma prática alquímica mesmo, que se decompõe, se fixa e se finaliza, e essa finalização pode ser o início de uma nova transformação.  E tudo isso, essa leveza, sutileza, e a verdade das palavras e dos olhares brilhantes que vi, devem valer muito mais que aquelas palavras duras.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Fagulha

"Eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que não sei o que é, nem de donde, me afrontando." (João Guimarães Rosa)

Apesar da inspiração da frase e da atual euforia, que me fez carregar três mesas por dois lances de escada logo antes das nove da manhã, o sentimento geral corresponde ao da melancolia desse dia chuvoso. Fui dormir arrependido de me humilhar novamente e de me entristecer justamente pela falta de fagulha gerada. E em dias assim eu olho pela janela e vejo refletido no céu o cinza dos meus olhos, derramando-se em concreto. Donde estão as flores do meu peito?

Ao menos consigo parar alguns instantes, tendo nesses momentos mais sentido que em todo restante dos dias. Fecho as portas e janelas e perfumo o ar com óleos essenciais e adormeço docemente pelo tempo que me for possível. Assim, essas pausas, se tornam então momento de recarga, assim como nas noites as histórias de amor se tornam o mundo em que vivo por aquela hora... 

Daí esse sentimento, com o qual comecei a escrever, uma certa nostalgia mesclada em desejo, mas ainda sem forma, apenas um vazio mesmo, que me afronta, que constantemente me suga como um vácuo. Nem mesmo os doces pensamentos me fazem entender o que é... Dias assim são frios e disformes, vazios e sem nenhum contorno.

Até penso que se conhecesse mais e novas pessoas poderia ajudar, inclusive falei exatamente disso em algum momento nos últimos dias, mas o desânimo bate mais forte toda vez que sequer penso no assunto e me vem a mente toda sorte de diferenças e me sinto até nauseado em me esforçar e me fazer explicar, como acontece tantas vezes... Conhecer pessoas é muito difícil, conviver com pessoas é muito difícil, todos parecem cansados e machucados o tempo todo e eu estou cansado e machucado demais para tentar ser diferente. Mas então, qual a razão de ser assim, tão vazio e carente do outro e, ao mesmo tempo, tão distante?

Só queria que eu lhe pudesse despertar também as fagulhas que as estranhas lhe provocam. Se meu semblante melancólico pudesse formar o olhar que traz esboçado nas suas entranhas e trazê-lo próximo ao meu peito...

"Somente uma coisa me faria bem agora. Seria adormecer com a cabeça no seu colo, você me dizendo bobagenzinhas gostosas pra eu esquecer a ruindade do mundo. Vou dormir pensando nisso." (Clarice Lispector)

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Um quase dilema

"Eu vejo tudo perfeitamente; existem duas situações possíveis - pode-se fazer isso ou aquilo. Minha opinião honesta e meu conselho amigável é este: faça ou não faça - você vai lamentar ambas as escolhas. Ousar é perder o chão momentaneamente. Não ousar é perder a si próprio.” (Søren Kierkegaard)

Em meio a um dilema moral... E eu que pensei que não iria mais me preocupar com isso. Bem, como já me referi a isso várias vezes, e como gosto de certa estética sensual, decidi que vou fazer um ensaio fotográfico com esse conceito. Dito isso me alertaram sobre como isso pode impactar na minha vida profissional e pessoal. Vou tentar explicar sem expor ninguém em particular.

Como, de certo modo por atender, o meu nome está vinculado ao da empresa em que trabalho, um ensaio sensual pode ser confundido apenas com algo apelativo, haja vista que as pessoas dificilmente sabem diferenciar uma coisa da outra, em parte graças a maldita moral kantiana que nos cerca que nos foi relegada pelo puritanismo protestante, e em partes, reconheço, pelo excesso de sexualização da imagem do corpo que as nossas celebridades fazem e, em vista disso as pessoas não sabem reconhecer ou aceitar o sensual sem ter, já desde sempre, uma visão depreciativa disso. 

Além da vinculação ao trabalho há ainda a vinculação com a igreja, em que as notícias correm rápido e que, se no trabalho já há dificuldade de aceitar o sensual como arte, ainda mais no meio religioso.

Daí tenho muitos sentimentos envolvidos nessa situação, uma vez que, tendo problemas com meu corpo, é uma vitória que aceite fazer esse tipo de coisa, além de que, admirando muitos perfis que trabalham essa estética, queria conseguir ir adiante e ser um deles também... 

Daí me aconselharam a fechar os perfis, compartilhar de modo privado para evitar possíveis provocações, como tentativas de me derrubar ou atingir de algum modo. Compreendo bem esse lado, as pessoas realmente podem fazer isso, mas se minha intenção era chamar atenção então considero contraproducente diminuir propositalmente o alcance dessas coisas, o que seria uma espécie de caminho do meio. Por um lado compartilhar sem me importar com nenhuma consequência, o que seria exatamente inconsequente, por outro não postar nada e, ainda, postar de modo comedido...

Alguns podem dizer que eu devo fazer o que me faz feliz, e acredito que é verdade mas, e se isso me prejudicar? Eu sei que não sou responsável pelo que pensam de mim, mas e quando o que pensam pode me afetar?

Nem mesmo colocando as coisas aqui mais claramente eu consigo me acalmar. Deveria não fazê-lo? Deveria não fazer nada? Deveria não me importar com nada? Deveria sufocar esse desejo em mim como sufoco tantas coisas?

Símbolos por falta de símbolos

"Fenece toda a beleza, Sião, tão desfigurada. Seus chefes são cães sem dono, parecem rês enxotada, caminham cambaleantes, tocados qual vil manada." (Lamentos de Jeremias)

Esse é um lamento como aquele de Jeremias, pobre profeta ao ver a sua cidade gloriosa destruída e assaltada por inimigos. Esse primeiro verso da versão em português dos seus lamentos ecoa na minha mente durante quase todo o ano litúrgico mas, especialmente, na Sexta-Feira da Paixão quando entramos na igreja e encontramos o altar desnudo, sem as glorias das toalhas de linho branco, o canto da celebração sem o belo acompanhamento do órgão, a Cruz elevada no meio do povo e adorada num dia diferente de todos os outros, onde a liturgia apenas evidencia o mistério tão profundo que faz com que esse dia seja diferente de todos os outros. 

Mas isso já não me acontece mais. Não. Infelizmente todos os sinais de que a liturgia é algo diferente do mundo se foram... Tudo o que vejo é um costume terrível, de fazer a própria vontade, transformando os sagrados mistérios num teatro brega. 

Recentemente tenho tido o hábito de enviar para meu afilhado referências distintas que já não temos mais ao nosso alcance. São trechos de livros que não são mais lidos, igrejas antigas que ainda se conservam de pé pela forma do patrimônio e não pela fé dos fiéis, liturgias bem celebradas mas registradas em vídeos porque, hoje em dia, o que vemos é apenas uma infindável sucessão de abusos. Também envio ornamentos, coisas que contam para a criação de ambientes não apenas sóbrios mas também piedosos. E em tudo isso evidencia o descaso que vemos ao nosso redor. 

As igrejas se tornaram caixas brancas de celebração, quando há algum ornamento é desproporcional, o espaço é sempre inapropriado. Se em Brasília o pecado era o maldito minimalismo, aqui em Joinville é a febre dos murais com símbolos cristãos. Todos são belíssimos, realmente, inspirados na inconografia bizantina, mas todos são desproporcionais ao tamanho das igrejas em que se encontram. O critério usado foi apenas um: quanto maior, melhor... Nem sequer consideraram que ícones menores e em maior quantidade teria efeito estético melhor. Também não houve qualquer estudo de cores, o resultado é que temos espaços agressivos, coloridos ao extremos mas sem aquela harmonia que encontramos nas igrejas dos Arautos do Evangelho, por exemplo, que são modernas (novas) mas conservam os conceitos harmônicos que tornam o espaço apropriado a uma boa catequese e uma boa celebração. 

O excesso de símbolos é reflexo da ausência da compreensão dos seus significados. Colocam a Bíblia aberta, bandeiras, flores, velas, tudo isso junto, como se a comunidade fosse entender que, a bandeira é referente a Independência do Brasil, que a imagem de Nossa Senhora é porque ela é a padroeira e a Bíblia é porque estávamos no mês da Bíblia. O versículo em letras garrafais neon no painel é uma ofensa ao fiel que, sendo burro para interpretar esses símbolos, precisa de uma ajudinha que, na realidade, só atrapalha porque essa parafernalha toda só torna mais difícil olhar para o altar, o ponto central da Missa, que conta apenas com uma tolha simples, duas velas soltas e uma cruz ao lado sem nenhum harmonia com o conjunto. 

Que a imagem de Nossa Senhora fosse acompanhada de uma pequena bandeira, discreta, ou de um quadro em que ambas aparecessem, daqueles comprados em lojas devocionais, seria belo e mais do que suficiente. Quanto ao mês da Bíblia? A entrada solene do Evangeliário é a opção mais eficaz. Poderia ser feito um trabalho litúrgico-catequético nesse sentido, com a distribuição de material sobre a Sagrada Escritura, estudos sobre a Dei Verbum, volumes vendidos a preço popular, trechos do evangelhos distribuídos pela equipe de acolhida... Opções existem, falta apenas boa vontade e, claro, estudo. 

Temos a mania de colocar roupinhas nas crianças e colocá-las para fazer qualquer coisa. Crueldade com os pequenos. Tantos serviços são dignamente executados pelas crianças desde muitos séculos. Não há nenhuma necessidade de dancinhas e nem da presença piegas delas. Poderíamos ter um coral de crianças, uma bela missa solene em que a voz das crianças entoariam hinos da verdadeira liturgia. 

O que sonho é justamente uma realidade simples, porém que não enxergo em parte alguma. Uma comunidade pequena, o altar junto ao sacrário e um retábulo simples com o sacrário em destaque, duas pequenas lâmpadas vermelhas ladeando-o. O altar coberto de três alvas toalhas de linho e um frontal ornado para a solenidade da Ressurreição. Um cheiro leve do incenso entra pela janela, são os coroinhas a acender o turíbulo e, na sacristia, um cerimoniário depõe zelosamente uma casula enquanto o padre escuta as últimas confissões antes que se inicie a Santa Missa. 

O coro, alguns homens e mulheres com o Gradual Simplex nas mãos entoam uma antífona enquanto todos se dirigem ao altar, que o sacerdote oscula piedosamente, ladeado pelas imagens do castíssimo São José e da Santíssima Virgem Maria, enquanto toda a comunidade contempla aquela cena do céu que ali se desenrola em meio a nós.

"Imagine então o Sumo Sacerdote Cristo deixando a sacristia do céu para o altar do Calvário. Ele já colocou a túnica da nossa natureza humana, o manípulo do nosso sofrimento, a estola do sacerdócio, a casula da Cruz. O Calvário é sua catedral; a rocha do Calvário é a pedra do altar; o sol avermelhado é a lâmpada do santuário; Maria e João são os altares laterais vivos; a Hóstia é seu Corpo; o vinho é Seu Sangue. Ele em pé é o Sacerdote, mas prostrado é a Vítima. Sua Missa está para começar." (Venerável Fulton Sheen)

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Sob o orvalho e o vento

"Censurava-se intimamente, mas acabou por pensar que, no fundo, não se saber o que se deve querer é normal..." (Milan Kundera)

Não é que eu acredite que você me veja como monstro. A realidade é que eu me vejo como um monstro, uma besta tão horripilante que por isso afasto todas as pessoas de mim. E até no momento em que penso que essa própria atitude pessimista seja algo de bestial e que afasta os outros pela negatividade, eu vejo que acabo perdido então nesse ciclo, como um ourobouros, de novo, que morde a si mesmo, que se alimenta da própria carne. Eu me alimento desse pessimismo e, por ser a única coisa que eu dou aos outros, as pessoas já se afastam por isso, o que me faz gerar mais e mais desse sentimento negativo. Eu sou então esse dragão voraz que, desejando devorar você, devoro apenas a minha própria cauda, devoro apenas meu coração e, alimentado do meu sangue repleto de veneno, exalo pelos poros esse mesmo veneno. 

X

Tenho me cansado e desistido de tudo que me dá trabalho, de tudo que me força a ir além. E isso porque estou no limite. Estou sempre no limite. 

Todos são assim? Todos estão tão cobertos de compromissos e prazos que se sentem o tempo inteiro soterrados de obrigações? E, além disso, ainda preciso me preocupar com todas aquelas demandas as quais já me referi há muito, de que preciso administrar não somente os meus mas também os sentimentos daqueles que me rodeiam, que se ofendem, que se desgastam, que jogam sobre mim a sua ansiedade. 

E então, eu que gosto da calmaria, que amo o longe e a miragem, me vejo no meio de tempestades, de oceanos revoltos e terremotos... Como folha fico sujeito as pequeninas gotas de orvalho como também dos ventos impetuosos. Não gosto de dizer que os outros têm inveja de mim, afinal basta ler algumas linhas para ver que em nada eu sou invejável, antes disso. Mas ainda encontro coisas assim quando olho ao meu redor. Essa constante guerra por nomes, cargos e autoridades, essa coisa que parece alimentar a alma dos outros ainda que os corroa.

Mas também seja essa a forma de conseguirem a validação externa de que necessitam suas alminhas medíocres, assim como eu também busco de todas as formas. Minha reclamação é apenas a de que, sendo uma forma diferente de chamar atenção, me incomoda por me fazer participante de uma disputa que, em nenhum momento, eu pedi para participar. 

De que vale tudo isso? Afinal de que vale ser reconhecido, amado, querido se, ao fim de tudo, continuamos tristes, feridos e sozinhos? De que adianta toda essa ansiedade, todo esse anseio em agradar o outro? 

Bom, de todo modo preciso encontrar uma forma de descansar em meio ao caos, de conseguir fechar os olhos enquanto todos se enlouquecem ao meu redor e nem mesmo percebem que já estou no meu limite, ou melhor, que estou prestes a colapsar a qualquer momento.

Mas então que objetivos eu tenho que me fariam competir com o mesmo sangue nos olhos? Que me fariam apunhalar o outro pelas costas, que me fariam realmente querer conquistar algo? Não sei, realmente não o sei. Gosto de ver as minhas séries quando chego em casa de noite, só gostaria de aproveitar um pouco mais, e gosto de conversar sobre elas, sobre as coisas bonitas, sobre as reflexões que me dão. E gostaria de ser um pouco mais bonito, de também ser admirado, de também ser desejado. 

Porque, ultimamente, só me procuram quando precisam de algo, o que me fez acostumar a ser útil e ser usado. Mas ninguém parece me enxergar de verdade... Mas não sei se lutaria por isso...

Tanto que agora, aproveitando uma breve e chuvosa folga, com metade do estado debaixo das cheias dos rios e o mundo em novo furor internacional, na quietude da minha cama penso em como gostaria de prolongar esse sono indefinidamente, longe das disputas, dos olhos revirados e palavras de desprezo, longe do que torna essa humanidade podre e que faz com que até essa cama esteja infectada com minha própria sujeira. 

"Ninguém tem vida própria, ninguém constrói um mínimo de solidão. O sujeito morre e mata por idéias, sentimentos, ódios que lhe foram injetados. Pensam por nós, sentem por nós, gesticulam por nós." (Nelson Rodrigues)

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Espelho D'água

"Estou esperando por você a partir de agora e estarei esperando por você também enquanto a vida e o amor tiverem significado para você e para mim." (Albert Camus)

Claro que eu não poderia deixar de me dopar um pouco (muito) para aproveitar melhor essa tarde chuvosa de feriado. Sinto que a humanidade não é grata o suficiente à pessoa que inventou o tarja preta, se bobear eu mesmo não cometi vários crimes só por causa dela. Mas, deixando de lado minha apologia, me veio um certo ímpeto, antes mesmo de apelar para o charme da minha dopada candura. 

Me recordei de uma pessoa que não vejo há anos mas que, conversando brevemente algumas vezes, ainda faz meu coração palpitar de tempos em tempos, e foi assim hoje quando precisei me controlar para não dizer nada a ele. 

Mas eu quase abri o chat e despejei uma torrente de pensamentos que guardei por muito tempo e que só conseguia dar vazão apenas em breves conversas, sempre vazias e forçadas, e justamente por isso eu não falei nada, eu nunca disse nada além de alguns elogios que ele nem mesmo respondeu. E bem, exatamente por isso eu resolvi que deixaria quieto, lutando então contra esses impulsos e pensamentos intrusivos que me fazem crer, ainda que por breves segundos alucinados, que uma declaração sincera faria alguma diferença.

A verdade é que me encantou brutalmente desde a primeira vez que o vi, cabeça baixa, os olhos escondidos por trás da franja e a voz baixa, até um pouco ríspida pela timidez mas eu fui vencendo aos poucos... Nos aproximamos e, hoje, anos sem que eu o veja, percebo o quanto ele mudou. O corpo cresceu enormemente, começou a tocar violão, está ainda mais bonito, incrivelmente lindo na verdade, com a aparência forte, e continua com o mesmo semblante sério, puro. 

E eu seria uma perturbação nesse espelho d'água de sua força de vontade, mas até isso é um exagero, ele nem sequer olharia para mim. Então não há motivo nenhum para falar, porque nunca houve sequer um sinal ou rumor de que haveria alguma abertura para mim, nada, então não há porque tentar uma abordagem desesperada que, embora sincera, só vai gerar um afastamento geral, uma compreensão errônea do sentimento como falta de respeito, como loucura, como confusão mental. 

E então, como já aconteceu outras vezes, eu vou dormir. Levado pelas mãos doces dos remédios que já tornam minha mente anuviada, quase tão inebriante quanto o amor...

sábado, 14 de outubro de 2023

Um pouco de sol

"Sim; apaixonar-se é um talento maravilhoso que algumas criaturas possuem, como o dom de fazer versos, como o espírito de sacrifício, como a inspiração melódica... Nem toda a gente se apaixona e aqueles que têm essa capacidade não se apaixonam por qualquer um. O divino acontecimento ocorre apenas quando se reúnem certas e rigorosas condições. Muito poucos podem ser amantes e muito poucos amados." (José Ortega y Gasset)

Depois de uma semana caótica, entre reuniões e festas do padroeiro, eu finalmente posso aproveitar um dia, menos intenso. Também depois das chuvas que deixaram todo o estado de Santa Catarina em estado de alerta, o tempo parece firmar um pouco mais. Até vejo um sol tímido por entre algumas nuvens brancas, daqui da porta que dá para a pequena sacada onde moro. 

Finalmente pude abrir a casa, deixar um ar fresco tirar um pouco o cheiro de mofo depois de ficarmos fechados por dias, com a umidade nas alturas e um clima de preguiça impregnado nas narinas. Muito embora eu goste da melancolia de tempos assim eu admito que fiquei feliz em ver um pouco de luz, o céu mais claro mas as pessoas ainda com preguiça, ou melhor, com uma ressaca, dos últimos dias. Talvez a vida volte a um ritmo pouco mais animado agora. 

Também eu tive uma troca de ritmo rápida nesses dias. Talvez o esforço contínuo, bem como vários contrastes emocionais, tenham contribuído para um episódio misto. Na noite de sexta eu me via, além de cansado, entrando num episódio depressivo, com uma forte dor de cabeça, que me fez vir para casa pouco mais cedo para tentar estabilizar com a medicação. Depois de um sábado tanto quanto lento o domingo já foi de uma euforia maior. Fico feliz de ter conseguido ao menos ajudar um pouco na igreja, sem a sensação de completo deslocamento que, mesmo não tendo me abandonado, ocupou um lugar modesto na minha consciência. 

Também algumas coisas que aconteceram nos últimos tiveram um efeito em mim. Fiquei feliz por, finalmente, depois de quase, ter conseguido um progresso mais claro com aquele jovem que, desde as primeiras semanas aqui me chamou a atenção. Conversamos algumas vezes, ele me sorriu, cumprimentou, me procurou e respondeu, o que me fez vibrar de alegria nos últimos dias. 

Claro que isso também veio acompanhado de algumas percepções que, fico feliz também com isso, são mais maduras e não apenas uma reação do que me aconteceu. Trata-se da percepção da grande diferença de mundos, que vem não só dos meios sociais distantes mas também da idade distante. Ele sendo onze anos mais novo tem uma visão completamente diferente de mundo, e não vejo como poderia ou nem mesmo se deveria, ser diferente. Há nele ainda aquele ar inocente, de quem ainda não viu a maldade do mundo, de quem tem como maior preocupação a nota do fim do trimestre e ainda aquela energia inesgotável dos jovens. Ao fim da semana, enquanto eu não me aguentava de pé ele nem dava sinais de cansaço, e ainda falava de jogar bola com os amigos. 

Não sei se isso me desanimou, acho que o fato é que eu mesmo precisava ver isso com meus próprios olhos para, desfazer a idealização romântica, platônica mesmo, dele, ao passo que, se for decidir tentar algo, quem sabe me aproximar mais, eu vou fazer isso consciente da enorme diferença. Por exemplo, ele em pouco tempo vai começar a sair com amigos de noite e voltar de madrugada, coisa que eu já não faço há vários anos. Enquanto ele começa a descobrir um pouco da vida eu, que ainda não descobri muito, já me deixo tomar de um pessimismo que me faz querer ir dormir antes das vinte e duas horas. 

Isso, claro, não em dias como hoje em que, aproveitando breves horas de descanso, eu vou me entupir de remédio e capotar o dia inteiro, longe dos perigos, das ansiedades e das perspectivas e, quem sabe, quando eu acordar, eu decido se vou fazer algo. 

Permito-me enamorar, sabendo das distâncias que nos separam? Permito-me uma vez mais recorrer a esse que me parece ser um destino de condenação, como se amar fosse o meu pecado original, uma culpa tão feliz que me faz merecido a condenação de Tântalo? Devo me atrever a cobiçar o fruto proibido de lábios rubros? 

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Lutas inúteis

"A vida é atroz, nós o sabemos. Mas precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males, fracassos, incúria e erros." (Marguerite Yourcenar)

Tentando não sucumbir ao clima de intensa ansiedade que cerca nossa contemporaneidade. Já desde bem cedo as pessoa se bombardeiam com uma quantidade imensa de informações e estímulos, nos ônibus já penduradas nos aparelhos se colocando por dentro das últimas novidades sobre qualquer coisa, o último curso, o último divórcio ou traição, o próximo show com as mesmas músicas e mesmas pessoas, os últimos episódios daquela série em trechos recortados... As mensagens devem ser respondidas logo, os prazos cumpridos logo, as demandas imediatas. E todos acham normal, normal viver se sobrecarregando, normal querer atender imediatamente, e então se corroem em ansiedade, em estresse acumulado, se matam e aí? O que resta? Ser trocado por incompetência.

De que adianta toda essa peleja? De que adianta correr, se apressar, não permitir que as coisas se assentem. E não percebem que assim estão se matando! Não que essa vida valha de alguma coisa, mas justamente por isso eu não consigo entender o motivo pelo qual deveríamos nos esforçar tanto em morrer na miséria de um corpo exausto por coisas que, tão logo partiremos dessa vida, serão esquecidas. 

Os corpos dos maiores reis, das pessoas mais importantes que viveram cercadas de tantas outras, se corrompem na mesma velocidade, e aí há um prazo que não aceita prorrogação. Todos vamos apodrecer e nossa memória não será feliz, senão que imediatamente os mais próximos de nós evitarão até mesmo olhar nosso corpo sem vida. A simples menção ao nosso nome uma dor a ser evitada, muitos ainda se alegrarão brevemente com a morte antes de nos esquecer por completo. E assim se acaba a China! E assim se acaba a vida para todos nós. Então, de que vale juntar tantos contatos, no fim se ninguém houver que carregue nosso caixão ao menos os funcionários de algum cemitério o farão, ou ainda os próprios vermes se encarregam de dar um fim a essa carne inútil, e de que adianta se formos esquecidos rapidamente? Não sabemos nem mesmo quem foram os grandes reis de outros tempos que tiveram ao seu redor todas as cortes do mundo... De nada adianta, é tudo assim tão frágil, vazio e sem contorno. Essa é a condição do homem. 

Do mesmo modo tento sobreviver as disputas, desafetos, aos sentimentos e reações exageradas, sabendo que eu mesmo reajo desse jeito muitas vezes. Inclusive ainda ontem deixei algumas lágrimas rolarem enquanto ia embora, cansado, chateado, magoado e esmagado pelo peso da ansiedade generalizada que as pessoas não controlam e acabam jogando em cima de mim, de modo até cruel. E também a disputa por atenção e espaço que eu não concordei em participar e que eu não estou interessado em participar. 

Voltei para casa, depois de um longo dia, de uma longa missa, de não conseguir conversar com aquele moço por estar socialmente exausto, quando nem chorar mais eu conseguia... Voltei para casa e fui dormir. "Sem paz, sem lar, sem pousadas..."

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Do que compartilhamos

foto: Duong-Quan

Não sei bem como explicar isso, é sério, porque se trata de uma diferença tão profunda que, acho, dificilmente seria posta em palavras, tanto mais que, pelo visto, só eu a percebi. Trata-se da enorme diferença que há na nossa, minha e sua, percepção do belo que queremos para nós. 

De algum modo consigo apenas descrever o que vejo, e o que te mostro: são imagens de sombra e luz, que refletem uma intimidade pálida, uma pausa no ambiente caótico que nos cerca, por isso são imagens sempre íntimas, pessoais, particulares, iluminadas por uma luz artificial criada especialmente para registrar aquele momento, como se cada flash fosse justamente a captura de um sentimento, de um átimo que, não podendo ser repetido na loucura ao redor, se cristaliza numa imagem desses casais que, unidos num só, compartilham desses momentos. 

Por isso essas imagens refletem momentos que, normalmente, ninguém se importaria em mostrar. Como uma cueca lançada ao chão próxima das mãos que a tiraram, como um momento onde se escovam os dentes ou se banham depois de fazer amor, momentos que, entrecortados da realidade miserável e caótica, revelam que, por entre algumas paredes ainda existem pessoas que compartilham a intimidade, que compartilham momentos, que se sentem próximas...

E isso tudo se mostra em contrapartida aos momentos também únicos que você compartilha e que você mesmo registra. Muito embora esses momentos também sejam capturados pelo seu olhar, eles trazem consigo uma solitude, de certo modo, porque não são momentos compartilhados, são o seu olhar particular que você, depois, compartilha comigo ou que outros o fazem e você depois admira. Não consigo expressar exatamente essa parte, é aqui que se encontra aquela diferença que, de tão fundamental, é justamente a mais difícil de ser expressada.

E também há essa diferença que advém dessas imagens serem reflexo dos nossos próprios desejos. Os meus desses momentos de particular, do que é ao mesmo tempo artificial e tão profundamente íntimo que pode ser cristalizado, e do seu de admirar o que se vê externamente, e que então você faz esse movimento de internalizar em si e, eventualmente, compartilhar. 

sábado, 7 de outubro de 2023

Zero multiplicado

Não encontrei outra opção a não ser desdobrar aqui as emoções que tive ao primeiro episódio de Absolute Zero, a nova produção do Studio WabiSabi que, reconheço, mesmo tendo o Max Wanut de Until We Meet Again como protagonista e a direção do New Siwaj, não tinha despertado meu interesse completo e, como sempre, acabou me deixando sem palavras e em lágrimas logo nos primeiros minutos. 

Primeiramente eu continuo me surpreendendo muito com a direção do New Siwaj que conseguiu ter uma imagem própria nos seus trabalhos, de um modo intimista, equilibrando com as necessidades do mercado, como ele faz para as direções dos projetos da GMM TV e do próprio estúdio. A delicadeza da direção dele, bem como o espaço que ele deu para os atores assumidamente homossexuais no seu time enquanto as outras empresas apenas lucram com os BLs sem apoiar de verdade aqueles que têm dificuldade de se estabelecer no meio do entretenimento... Mas enfim, não é esse meu ponto, o fato é que eu gostei muito da construção mais lenta da narrativa, sendo uma série pra se ver com calma, longe do celular, e para acompanhar os personagens com a mesma paciência que se houve o coração de uma pessoa amada.

Mesmo falando assim, esse primeiro episódio não foi de modo algum arrastado, apenas mostrou a melancolia do protagonista e se acelerou lentamente conforme ele abria seu coração ao outro personagem. 

A cena do cinema foi então um divisor do episódio, quando Ongsa entrega o ingresso pro Suansoo depois de ter ficado ao lado dele numa sala de cinema quase vazia, e então, algumas cenas depois, quando ele entrega todos os ingressos que usou pra ir todos os dias na esperança de encontrar o outro, aquele choque que todos tivemos, nós e o personagem, como na sequência dos dois tomando sorvete e a clara declaração que o desconsertou, aquela emoção que transbordou em lágrimas... Tudo construído partindo da premissa da melancolia que lentamente é superada pela gentileza, pelo carinho... Me recordando aquele verso de São João da Cruz "Ferida de amor não se cura, senão com a presença e a figura." 

Suansoo estava sozinho depois da morte dos pais, por anos, se acostumou a ser só e até ia no cinema sozinho porque a presença das outras pessoas lhe dava a sensação de aplacar a solidão. E, de repente, aparece essa figura que é Ongsa que, sem violência, apenas com um leve sorriso doce e uma companhia silenciosa, consegue ir fazendo abrir o coração que havia se acostumado com a solidão. 

Também me emocionei com a relação do protagonista com o próprio nome, que significa zero e que, multiplicado por qualquer número continua sendo zero, o que mostra que ele acreditava que nunca poderia vir a superar esse estado de letargia. Essa construção toda em cinquenta minutos, somada a essa aura ao mesmo tempo quente porém vazia, as falas pontuais, o diálogo na sacada que já deu uma ideia do que vem adiante, já sabendo que a trama envolve viagem no tempo... Realmente um primeiro episódio emocionante. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Entre citações

Obra: "As Long As You'll Be Here", (2016) - Nickie Zimov.

"As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito extemporâneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo quase de contínuo: encontrar lugar. Nada mais. Há fato mais simples, mais notório, mais constante, na vida atual?" (José Ortega y Gasset)

Foi nesse espírito que encarei o dia todo, um certo caos num ar tomado de ansiedade, um incômodo com as pessoas ao meu redor, todas meio irritadas com a chuva, a rotina e sabe-se lá o que mais, um ambiente constantemente sufocante, então eu não tinha expectativa nenhuma para aquela noite.

Quando cheguei à igreja ele me deu um sorriso que quase me fez cair para trás e, num vislumbre, eu me lembrei de todas aquelas manhãs em que ela tomava o ônibus junto comigo, com uma camisa roxa surrada, cara de sono, enquanto eu me esforçava para ficar ao seu lado e, com sorte, tocar levemente seu braço durante a viagem, imaginando mil cenários em que isso poderia significar uma aproximação. Não passava de um devaneio matinal bobo mas de uma singeleza até cativante. Gostava dessa minha rotina, da magia de encontrá-lo de terça e quinta, a franjinha úmida na testa escondendo as espinhas e, depois de algumas semanas, a vozinha fraca a me cumprimentar. 

Pouco depois ele adotou uma postura distante diante de mim, quando poderíamos nos aproximar por causa de algumas atividades em conjunto. Acho que como eu ficava sempre olhando demais ele acabou estranhando... Chegou mesmo até a ser ríspido algumas vezes, arredio. Mas, agora, ele sorri quando me vê, conversamos algumas amenidades de vez em quando e até consigo me aproximar lentamente, de novo refazendo o caminho daquela antiga rotina matinal. Um amor platônico para aquecer o coração em meio aos dias de chuvas intensas. 

"O verdadeiro amor, porém, não permite a ponderação e a reflexão: distrai-nos de nossos pensamentos com nossos sentimentos; seu poder nunca é tão forte como quando é ignorado, e na sombra e no silêncio é que ele nos envolve em liames impossíveis de perceber ou romper." (Choderlos de Laclos)

Não vou enumerar os motivos que o fariam não gostar de mim, começando pelo fato de ele ser muito próximo do garoto bonito e atlético que o faz rir o tempo todo. Não, não farei isso, ele nunca saberá. Fico contente se ele me sorrir de novo. Fico contente se, assim como ontem, ele ficar alguns minutos conversando comigo, sobre qualquer coisa, num clima tranquilo e simples. 

Voltei para casa exatamente com essa sensação e, antes de dormir, encontrei essa passagem de Canto ao Sono que bem refletiu o que se passava no meu peito naquela noite fria e úmida:

"Nunca durmo tão profundamente, nem experimento um retorno mais doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro refúgio nas trevas...; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição ao dia e ao tempo?" (Thomas Mann)

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Falocentrismo

Acho que já me referi a isso em outras oportunidades mas, uma coisa que me chama a atenção, isso sem falar numa fina ironia, é a mudança que há em alguns aspectos físicos claramente delimitados, durante as mudanças de episódio no transtorno bipolar. A mais notável delas é que, ao contrário do que li em meus estudos (superficiais, admito) é que a minha libido diminui drasticamente durante os episódios maníacos. 

Pelo que vi o normal seria que nessa fase a libido aumentasse e muito, inclusive várias pessoas relataram que seus parceiros se tornaram infiéis, se envolverem em comportamentos de risco ou apelar ainda mais para a pornografia e masturbação, o que os especialistas chamam de hipersexualidade. O que observo em mim é justamente o contrário. 

Se durante os episódios de mania eu me encontro bem mais disposto, minha libido quase que se reduz a zero, sendo que até mesmo as reações físicas mais básicas (leia-se excitação involuntária) diminuem ou simplesmente desaparecem, enquanto que durante a depressão meu apetite sexual é que acaba me levando a comportamentos de exagero onde, não raramente, eu me enfio na cama de desconhecidos ou até mesmo faço coisas em locais públicos. 

Nos dias de euforia eu experimento exatamente esse excesso de energia e disposição que justamente me fazem ter uma maior atividade no trabalho, na Igreja e, não raro, me vejo em desentendimentos porque me encontro com todos os sentimentos à flor da pele, enquanto no outro extremo eu passo a não sentir nada, e apenas o corpo reage, e aí eu começo a apelar mais pra pornografia e masturbação. 

Em manhãs como hoje, por exemplo, me vi de pé logo cedo, aproveitando o barulho doce da chuva no telhado mas sem nenhum tipo de reação física, nem mesmo mesmo a excitação proposital, nada, zero. 

O resultado é que, independentemente de como eu esteja sempre me vejo inseguro e infeliz com minha sexualidade, como se sempre estivesse quebrado. 

Sou um homem que não fica duro ou que fica duro o tempo todo, errado, sempre errado. Tarado e inconveniente em alguns dias e completamente abstêmio e casto em outros, com o apetite voraz de uma prostituta barata ou de um santo eremita. É horrível em ambos os casos, horrível porque eu sempre estou em desequilíbrio, estou estou pendendo mais para um lado ou outro, sempre precisando ajustar alguma coisa.

Mas não é essa a condição normal da pessoa humana? Também as mulheres não experimentam um período de hipersexualidade que varia conforme o ciclo hormonal? Talvez eu apenas tenha também um pouco de consciência desse meu estado, e me incomode com isso, enquanto os outros apenas respondam a isso, sem problematizar como estou fazendo. Isso é realmente um problema ou eu só estou incomodado sem necessidade. Iria preferia ser sempre meio morto ou sempre safado? Iria preferir que minhas manhãs fossem sempre calmas e frias ou agitadas e molhadas? Iria preferia um pau sempre morto ou sempre pulsando? 

Só mesmo sendo homem pra achar que o próprio pau é um problema. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Adagio cansativo

De novo uma ciclagem rápida. Depois de vários dias no mais absoluto torpor de repente amanheci estranhamente irritado, e um ânimo destrutivo corria pelas minhas veias, um anseio violento e brutal pelo fim, pelo caos planejado. Claros os sinais de um episódio que eu nem vi chegar, e também um sinal claro de que talvez tenha feito certo em voltar ao tratamento psiquiátrico, ainda que só tenha concordado em fazê-lo para conseguir remédio para dormir de novo, já que meu estoque de Zolpidem e Rivotril se encontram perigosamente baixos. 

Mas veja bem, tudo que eu queria era esses remédios que me ajudam a apagar, a ter aquele sono profundo, mais do que reparador, que funciona como uma fuga mesmo, como um lugar onde posso simplesmente adormecer sem me preocupar com respostas a perguntas fúteis, sem pessoas me chamando todo o tempo, sem anseios e expectativas... É apenas um mundo onírico onde Morfeu tem a misericórdia de não notar a minha existência, e eu queria que assim fosse todo o tempo.

Mas é claro que as coisas não seriam fáceis assim, nunca são. E é incrível como as pessoas já tomam como aceitável o fato de que é preciso preencher uma ficha com meus dados, assinar, carimbar e colocar num sistema eletrônico que vai enviar essas informações para sabe-se lá quantos bancos que, usando de meios burocráticos multiplicados até a exaustão, controlam cada aspecto da nossa existência. E se fosse ainda uma existência importante, como se fosse eu um inimigo do Estado ou algo assim, mas não, um mero assalariado cuja maior ambição na vida é justamente ter uma boa noite de sono, me encontro então no meio dessa avalanche burocrática maldita que se disfarça de política de saúde pública. 

Como se alguém lá em cima realmente se preocupasse com isso. Ainda que o colapso da saúde nacional significasse um problema pra economia ele também seria a solução, já que não tardariam a aparecer soluções bem caras que voltariam a movimentar os bolsos dos mais interessados. E claro que, sem entrar no mérito de que tudo conflui para o constante enchimento do poder estatal a minha opinião já é, certamente, apenas a voz de um viciado em tarja preta que teve o azar de escolher um vício não permitido e nem incentivado oficialmente. Viva a democracia! E depois dizem que o cristianismo é que vende a liberdade de obedecer.

Mas Gabriel, isso é prejudicial para sua saúde? Viver é prejudicial. Viver é um saco. Não percebe?

Imagine que alguém se surpreendeu ao descobrir que estava voltando da clínica psiquiátrica e disse que achava que estava tudo bem comigo. Isso é sério? É sério que sair de casa cedo, voltar tão cansado que em alguns dias em nem aguento tomar um banho antes de dormir e que não ter vontade de fazer nada além de encher a cara e dormir é considerado com estar bem? Ai eu preciso ser franco, é cegueira demais. E pensar que a esmagadora maioria das pessoas vive assim. 

E então, depois disso me dizem que estou exagerando... Mas ainda me cobram que responda, que consiga organizar, que saiba mediar, que consiga dar conta de toda a demanda com um grande sorriso e sem ficar doente, afinal minha vida é maravilhosa. E o que eu deveria fazer? Como passar por isso sem encher a cara de remédio? Deveria mandar mensagem quando esta claro que só eu me importo e só eu tenho algum sentimento? Nem disposição para isso tenho mais e para què o tratamento? Para conseguir levar uma boa vida com essas pessoas? Não me parece suficiente.

Aliás, é só isso mesmo? Bom, é o que parece. Com a óbvia exceção de quem tem um pouco mais de dinheiro e, talvez, não precise se submeter a essa humilhação para conseguir dormir ou que se vicia em outras coisas. Há sempre a possibilidade de morrer de outros modos. A dor de cabeça absurda desse novo episódio tem sido um incômodo o dia todo aliada, é claro, a carga de trabalho excessiva, as cobranças por uma pontualidade que não existe e as palavras de conforto "você deveria dividir seu trabalho" e aí quando eu faço isso as pessoas simplesmente não conseguem fazer ou pedem pela minha supervisão constante, o que faz o problema retornar para mim. Padrão.

Nisso eu percebo mais uma vez o quão péssimo líder eu sou. Já desde a minha antiga paróquia eu tinha dificuldade em delegar, porque geralmente terminava com as coisas sendo feitas de modo errado e o problema voltando para mim. Acontece que, por trás da capacidade de fazer o que me foi ordenado e que me faz ter a imagem de eficiente, há uma incapacidade de liderar ainda maior, e aí entram os problemas. 

Apenas uma digressão rápida antes que o Zolpidem, finalmente, faça efeito. Nem vou falar de como até na dopada candura eu me sinto solitário, esse adágio agora já cansa. 

"Eu era feliz sobretudo quando, na cama e envolvido no cobertor, sozinho, no mais perfeito isolamento, sem ninguém ao meu redor nem um único som de voz humana, começava a reconstruir a vida à minha maneira." (Fiódor Dostoiévski)

Obra: "Man's Head, Self Portrait", 1963 - Lucian Freud

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Sentido

"A alma que não tem objetivo estabelecido se perde, pois, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar nenhum." (Michel de Montaigne)

Apesar disso eu venho tentando fazer um novo ritual que me dê ao menos alguns instantes de relaxamento. Faço um café agradável, coloco no ambiente alguns óleos essenciais e uma música aconchegante e assim dou um tempo da ansiedade geral que me cerca. É fechar os olhos por um tempo, sentindo o perfume da lavanda e da laranja doce, alguma voz delicada e o sabor marcante do café e então, ao abrir, com calma retornar aos afazeres normais, talvez sem me preocupar tanto com pequenos detalhes e conseguindo, senão ao menos levar um dia a dia mais leve, pelo menos menos estressante. De todo modo ainda me resta o mesmo semblante simples de sempre.

X

Foi uma noite, mais uma, das mais pessimistas e silenciosas. Conversamos antes de dormir mas, como de costume, não nos entendemos, pois tornamos a falar em diferentes níveis de predicação. De todo modo, não é como se me tivesse soltado a mão, antes disso, eu é que caminhava sempre só.

Ainda tento pensar em alguma coisa, mesmo que os remédios para alergia entorpeçam a minha mente e até mesmo minha visão. Uma vez mais a minha saúde torna ainda mais difícil a tarefa de conhecer. 

X

Ainda não sei o que pensar sobre esse sonho. Ela entrou naquele ambiente onde deveria estar o meu jardim e, de seus pés e movidas por mim, nasceram pequenas raízes que não vingaram e logo morreram. Depois tornaram a nascer novas raízes, brancas e viçosas que, ao invés de penetrarem rumo ao centro da terra formaram como que a linha de um caracol, se transformando num jardim em forma labirinto de densas folhagens. 

X

É chegado tempo de mínima maturidade em que o homem precisa ver-se responsável por mais do que escolhas errôneas movidas pelo coração. Também uma porção do intelecto deve debruçar-se sobre números e traçar projetos, coisas que possam lhe dar, senão um mínimo de segurança, ao menos, lhe dá um pequena sensação de ser mais responsável pelos seus atos e as consequências que recaem sobre ele. 

No entanto, é na contemplação da realidade, na abertura à presença total, que a consciência se vê esmagada por uma poderosa mão. E é sob o peso dessa mão que o homem se vê andando em círculos e acometido do desespero próprio de sua condição. 

Já deveria morar só, tomar conta de tudo sozinho, e agora vejo o resultado do meu descontrole anterior. Dívidas, medos, incapacidades... Aluguel, internet, roupas que já mostram sinais de desgaste, produtos que precisam ser repostos todo mês, superficialidades que nos dão a sensação tosca de que a vida vale a pena. Tudo isso é caro demais, o que exige organização, a culpa recai então em mim, claro, que desorganizado vou me comprometendo e afundado. 

Vejo que muitos dão conta de tudo isso, que conseguem tal organização que nem se desesperam e nem tampouco se enchem de remédio para dormir em cada oportunidade... Mas acho que me falta mais do que organização. Me falta talvez a cegueira para tudo isso, me falta aceitar um fim num barraco baixo e úmido, com as luzes piscando e madeira comida por cupim, o cheiro de podridão tomando conta do ar e o meu corpo apodrecendo sem que ninguém se dê conta até que finalmente comece a incomodar... É que no processo de amadurecer eu não cresci e apenas me tornei amargo e vazio. E de onde vem essa sensação?

Vem de continuar suportando uma vida de pequenos obstáculos e impossibilidades, esmagado sob milhões de probleminhas insignificantes e insolúveis, como que assediados por exércitos inumeráveis de mosquitos de ferro. Sinto que não há em todos os olhos do mundo lágrimas suficientes para chorar tamanho desperdício de energia humana, tamanha celebração do insensato e do absurdo. Fazendo minhas as palavras do Professor, claro.