sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Entre citações

Obra: "As Long As You'll Be Here", (2016) - Nickie Zimov.

"As cidades estão cheias de gente. As casas cheias de inquilinos. Os hotéis cheios de hóspedes. Os trens, cheios de viajantes. Os cafés, cheios de consumidores. Os passeios, cheios de transeuntes. As salas dos médicos famosos, cheias de enfermos. Os espetáculos, desde que não sejam muito extemporâneos, cheios de espectadores. As praias, cheias de banhistas. O que antes não era problema, começa a sê-lo quase de contínuo: encontrar lugar. Nada mais. Há fato mais simples, mais notório, mais constante, na vida atual?" (José Ortega y Gasset)

Foi nesse espírito que encarei o dia todo, um certo caos num ar tomado de ansiedade, um incômodo com as pessoas ao meu redor, todas meio irritadas com a chuva, a rotina e sabe-se lá o que mais, um ambiente constantemente sufocante, então eu não tinha expectativa nenhuma para aquela noite.

Quando cheguei à igreja ele me deu um sorriso que quase me fez cair para trás e, num vislumbre, eu me lembrei de todas aquelas manhãs em que ela tomava o ônibus junto comigo, com uma camisa roxa surrada, cara de sono, enquanto eu me esforçava para ficar ao seu lado e, com sorte, tocar levemente seu braço durante a viagem, imaginando mil cenários em que isso poderia significar uma aproximação. Não passava de um devaneio matinal bobo mas de uma singeleza até cativante. Gostava dessa minha rotina, da magia de encontrá-lo de terça e quinta, a franjinha úmida na testa escondendo as espinhas e, depois de algumas semanas, a vozinha fraca a me cumprimentar. 

Pouco depois ele adotou uma postura distante diante de mim, quando poderíamos nos aproximar por causa de algumas atividades em conjunto. Acho que como eu ficava sempre olhando demais ele acabou estranhando... Chegou mesmo até a ser ríspido algumas vezes, arredio. Mas, agora, ele sorri quando me vê, conversamos algumas amenidades de vez em quando e até consigo me aproximar lentamente, de novo refazendo o caminho daquela antiga rotina matinal. Um amor platônico para aquecer o coração em meio aos dias de chuvas intensas. 

"O verdadeiro amor, porém, não permite a ponderação e a reflexão: distrai-nos de nossos pensamentos com nossos sentimentos; seu poder nunca é tão forte como quando é ignorado, e na sombra e no silêncio é que ele nos envolve em liames impossíveis de perceber ou romper." (Choderlos de Laclos)

Não vou enumerar os motivos que o fariam não gostar de mim, começando pelo fato de ele ser muito próximo do garoto bonito e atlético que o faz rir o tempo todo. Não, não farei isso, ele nunca saberá. Fico contente se ele me sorrir de novo. Fico contente se, assim como ontem, ele ficar alguns minutos conversando comigo, sobre qualquer coisa, num clima tranquilo e simples. 

Voltei para casa exatamente com essa sensação e, antes de dormir, encontrei essa passagem de Canto ao Sono que bem refletiu o que se passava no meu peito naquela noite fria e úmida:

"Nunca durmo tão profundamente, nem experimento um retorno mais doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro refúgio nas trevas...; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição ao dia e ao tempo?" (Thomas Mann)

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