terça-feira, 31 de março de 2020

Casa

Uma casa escura, toda cinza, de madeira há muito devorada por cupins que, até mesmo eles, a abandonaram. Várias tábuas saltavam do chão e das paredes e o vento frio da noite que soprava para dentro dela fazia ranger o que sobrara das dobradiças enferrujadas nas janelas, presas por pouco. O barulho era assustador, lúgubre e pairava ali um ar de maldade. Ninguém se atrevia a se aproximar.

No entanto, nos últimos dias, após um grupo ruidoso de jovens bêbados terem entrado na casa, algo parecia diferente. A casa parecia convidar quem passasse por ela, no fim de uma grande rua que terminava numa ladeira ingrime. Era rodeada por uma matagal que já tampara a visão de boa parte do terreno. Não haviam muros, atrás da casa apenas mais mato num grande cerrado. Ninguém se atrevia a se aproximar. 

A lua cheia brilhava forte, como se contemplasse silenciosamente os mistérios mais sombrios da humanidade que repousava sob sua égide. O negrume da noite cobria a tudo enquanto o zéfiro soprava frio e impassível, sem nenhum interessa naquelas criaturas inúteis. 

Um dia, porém, algumas crianças se incomodaram um cheiro diferente que vinha dali depois que deixaram uma bola rolar para perto e, depois de reclamarem com seus pais, alguns homens foram até lá ver o que era. Até mesmo os adultos, sérios em sua missão de serem adultos, tremiam. Dentro da casa o cheiro era insuportável, e não demorou até que vissem de onde vinha. 

Estava já rijo e esverdeado. Uma camisa de flanela rasgada e trapos do que pudera ter sido uma calça. Um barulho baixo de vermes se movendo e se alimentando era a única coisa que se ouvia. Havia sangue, que já se tornara negro e virara lascas sob os seus pés. Aquelas pequenas criaturas nojentas rastejavam para dentro e para fora, numa coreografia grotesca e indecifrável. Pareciam, para maior espanto daqueles que viam com horror aquela cena macabra, se deliciar com um farto banquete. A barriga estourada, olhos cinzas e muitas marcas de cortes onde, aqui e ali, mais vermes rastejavam para provar daquela carne apodrecida. 

Os homens vacilaram e um deles não conseguiu conter o vômito que irrompeu violentamente de dentro. Não conseguiam acreditar no que viam, ninguém nunca pensa que pode acontecer perto de nós. Mesmo sendo uma casa que todos evitavam, não chegaram a imaginar que um dia pudessem encontrar ali o que encontraram. Ninguém nunca espera que a morte esteja há poucos passos, quase ao alcance das mãos das crianças. Ninguém nunca espera contemplar um quadro pintado pela mais crua das misérias humanas. 

Outros homens logo chegaram, em carros pretos e grandes, enquanto um pequeno grupo de pessoas saia de suas casas para observar, curiosidade o ocorrido. Queriam ver de perto mas sabiam que não deixariam. Tudo o que viram foi um grande saco preto sendo carregado para dentro do grande baú de um carro que parecia frio. 

No entanto, mesmo depois de alguns dias, e já esquecido o fato pela maioria, ainda permanecia aquele cheiro. Estranhamente adocicado, parecia ter se impregnado em cada tábua daquela casa imunda. O cheiro da morte, que fazia a todos se arrepiar quando o vento soprava em sua direção. 

Da angústia

A angústia veio de repente, não anunciou sua chegada, não enviou nenhum arauto, apenas chegou e fincou sua raízes no profundo do coração. A alma se enche de um tremor, sem explicação. Somos levados ao desespero, às lágrimas que caem sem nenhum controle. O que é isso? Como faz para passar? Como recuperar a sanidade? Parece que tudo vai desmoronar, como os prédios antigos que não são mais do que poeira. Até a montanha mais alta pode desaparecer com o passar dos tempos, o que nos impediria de desaparecer? Tudo nos ensina que a existência é passageira. Será que estaremos vivos amanhã ou no próximo ano? Será que deixaremos para trás aqueles que mais amamos? O que será de nós, confinados aqui, dentro de nossas próprias casas, dentro de nossas próprias mentes? Será que nossa consciência conseguirá nos proteger? O escudo que nos cerca se manterá de pé ou cairá, como poeira, deixando-nos expostos como crianças sem pais? Parece-me que aquela coisa que nos mantém distintos está caindo cada vez mais, se desfazendo, desmoronando... E tudo retorna ao nada. É o que parece acontecer com o mundo. Todos enlouquecendo, todos se desfazendo sem nem ao menos perceber. Feras tomando o lugar dos homens e escrevendo, com minhas mãos, esses aforismos. Os homens não percebem seu desespero, disfarçado de alegria alucinada. Apenas quando a angústia, uma das filhas do destino, recai sobre nós, é que percebemos em que buraco nos enfiamos, em que lamaçal estamos chafurdando. Ela parece que nunca vai embora, apenas sinto ser envolvido pelos seus tentáculos gelados, me puxando cada vez mais para baixo, para um poço escuro e fundo de águas imundas. Aos poucos já não vejo mais a luz da luz acima de mim e mesmo com a mão esticada ninguém veio em meu socorro. O que se supõe que eu deveria fazer? Acho que a única razão para eu ter nascido tenha  sido servir de brinquedo nas mãos de um Destino sádico, que me lançou na rodas das existências para, no decurso de algumas horas, me torturar em todos os mundos possíveis. Mas quem haverá de compreender essa angústia, que coração poderá corresponder os horrores que se passam quando olhamos para dentro de nós e vemos o abismo olhando de volta? 

domingo, 29 de março de 2020

No horizonte

Desiludido
Magoado
Ferido

O coração pulsa, não para dar a vida, mas de ânsias inflamado em amor, um amor não correspondido, um amor proibido, um amor que não é amor, senão que é apenas dor. Que amor é esse? Que faz com que o desejo pela vida se esgote num amargor que penetra a alma? 

Confusão
Irritação
Ilusão

A mente gira numa profusão de pensamentos desesperados. Ver aquilo que os outros não vêem, enxergar aquilo que muitos não enxergam, o peso de entender e não se compreendido. Mas como poderia o menor abarcar o maior? Ainda não aprendi a lição. A sabedoria não só abarca como transcende. Transcende a pequenez, transcende o corpo, transcende o tempo, é aquilo que levamos para a eternidade, e aqueles que não conseguem ver aquilo que está diante de seus olhos não conseguirão sequer imaginar a eternidade, muito embora dela também participem. Quão surpresos ficarão ao descobrirem que suas vidas, nossas vidas, não passaram de ilusões. Pra onde quer que olhe só uma confusão infernal, uma completa incompreensão. 

Amizade
Mentira
Deslealdade

Somos bons apenas enquanto somos convenientes. A partir daí nos tornamos fardos pesados, motivo de risos e escárnio. A mão que acaricia, os lábios que beijam e aconselham são os mesmo que escarram por nossas costas enquanto violentamente enfiam um punhal em nossas costas com um sorriso no rosto. Vencida mais essa traição alguém busca alçar vôos tão distantes que o fio vermelho do destino nunca poderá fazê-los cruzar novamente. Já que não há como romper, que ao menos a distância os mantenha afastados. 

No horizonte
Alguém parte sem levar lembranças ou sonhos
Apenas uma lâmina e uma desesperança.

sábado, 28 de março de 2020

Da pequenez

Dia de profundo incômodo, aturdido por aquela onda de inquietude causada pelo meio em que vivemos. Sei que o caráter só pode se formar no seio da sociedade, ao passo que a intelectualidade carece do silêncio para ser moldada pela sabedoria, mas parece-me que isso é algo que as pessoas não tenham se dado conta do quanto é desagradável. Começo minha exposição partindo da premissa de que trata-se de uma análise puramente expressiva de uma impressão, sendo então um discurso puramente emocional, quase poético, de uma realidade experimentada.

As pessoas, num âmbito médio e geral, não se dão conta da própria pequenez. Recordo daquele professor que disse que as pessoas, quanto menos se preocupam em aprender e adquirir contato com alta cultura, tanto mais se arrefecem em experiências imediatas e superficiais, beirando o vazio. Observe ao redor, tanto menos estudo mais se deixam levar por assuntos banais, pela simples descrição da realidade mais próxima, esquecendo completamente a capacidade humana de subir até o imanente, até o eterno. 

Não defendo, como podem pensar alguns críticos ditos mais realistas, que defendo uma viagem só de ida ao hiperurânio, abandonado o mundo ao redor, mas também não podemos esquecer daquele em função deste, e é exatamente o que presencio. 

A única experiência valorizada é aquela onde o corpo grita e a alma cala-se diante do mundo que tanto balbucia. Fecham-se em seus sentimentos, naquelas pequenas doses de prazer provocadas por uma noite de sexo, ou pelo desejo deste, ou ainda pela fuga que algumas doses de álcool podem causar. Isso se demonstra claramente naquilo que consomem o que nós chamamos de brasileiro médio. Pessoas que acreditam fielmente no significado de frases de efeito que não possuem nenhuma função além de atochar a mente num raciocínio psicótico de uma impregnação autoinfligida. Não acreditam naquilo que dizem mas o esforço que fazem para dizer faze-os pensar que é verdade. 

Não conseguem conceber sequer que, para além das fronteira mínimas do pequeno mundo em que vivem, possam existir expressões maiores e mais refinadas dessa mesma existência. Descrições tão profundas e vívidas da realidade que nos faz despertar para mundos inteiros que estão a nossa disposição mas que não nos atentamos ainda para sua presença. Ignoram portanto o próprio mundo em que vivem, personificando aquele provinciano incapaz de imaginar algo no mundo que seja diferente do que ele já viveu ou experimentou na sua província. 

Mesmo longe de querer empurrar esta ou aquela experiência em particular, sob o risco de parecer orgulhoso de modo afetado, eu me recuso a crer que as experiências descritas no que hoje consideramos música comercial estejam no mesmo nível daquela arte sublime ensinada pela alma, como nos diz Platão. Claro, enquanto o objetivo desta é justamente expressar uma visão da realidade, uma experiência de vida, algo que tenha de algum modo marcado profundamente a vida de quem a compôs, aquela tem simplesmente o único objetivo de vender, expressando não mais do que aquilo que qualquer pessoa sentada na cadeira de um bar conseguiria dizer, com mais ou menos talento para compôr. 

Seria presunção, ou infantilidade, querer que todos tivessem a mesma capacidade de um Tchaikosvky ou de um Rembrandt, ou ainda de um Wagner ou um Strazza, no entanto, é assustador como parecem ignorar o que de melhor há no mundo. Como podem se contentar com cerveja e sertanejo barato? 

Finda então o homem na sua pequenez de alma. Fecha-se ao mundo superior. Acredita firme e tacitamente naquilo que lê em qualquer publicação das redes sociais ou consegue encontrar-se em qualquer descrição supérflua da realidade. Contentam-se com a pobreza de espírito. Resta-nos apenas entoar aquele adágio lamentoso, por aqueles que nunca se deixaram levar pelo espanto que, como nos mostrou o estagirita, conduz ao conhecimento da verdade. 

De desejos e feras escondidas


Que essa noite não sonhe com quem não devo. Que não deseje comer do fruto proibido. Que não deseje tocar, deflorar, a inocência que há num doce olhar. 

Noite
Desejo
Olhar

Na noite escura eu busco a quem meu corpo clama. Um clamor num desejo animalesco, num insaciável apetite bestial. Mas eu ainda me lembro, daquele toque sensível, do medo, do tremor, do olhar luxurioso, dos lábios quentes no meu corpo.

Dois corpos entrelaçados no chão.
Dois desejos reprimidos que se encontram numa explosão.

Não posso voltar a sonhar, nem a desejar. Mas como negar um desejo? Como controlar um algo que fica no meu inconsciente? Eu não esperava sonhar, nem me dei conta de que deseja tanto assim. Como controlar aquilo que não habita a superficialidade do pensamento mas sim o mais profundo estágio da alma?

Do fundo, do profundo coração.
Sibilando, à espreita, está a fera.

As vezes sinto-me como um animal preso, uma fera desejosa de cravar minhas garras e presas no fundo da carne tenra de minhas vítimas. Como se dentro de meu coração existisse uma selva intocada, onde habita essa fera, ainda desconhecida da luz e dos homens. Sinto esse impulso bestial, meus instintos mais primitivos, gritando dentro em mim, rasgando as paredes de dentro para fora. 

Um rosnado gultural,
garras sendo arrastadas pela parede
um som assustador

Não gosto disso, não gosto de ver essa fera Interior e, no entanto, sinto que ela continua dentro de mim, apenas esperando pra se libertar. Esperando a hora certa de me dominar por completo, de espalhar pelo mundo seu rastro de sangue. 

O fim.
A fera que gritou EU no coração do mundo.

Dentro de cada um há uma fera esperando para ser liberta de suas amarras. Dentro de cada um há um Eu desconhecido até mesmo para o próprio Eu. 

sexta-feira, 27 de março de 2020

Dois

Um sol que brilha alegre e colorido num dia dia quente, mas não daqueles que deixam a gente mole e com preguiça, mas daqueles que nos faz querer encher o pulmão de ar e correr no meio do campo, por entre as árvores e flores. O céu de um azul claro e brilhante, inspirador a ficar aqui, deitado, olhando pra ele, vendo alguns pássaros passar em alguns momentos. 

Duas pessoas caminham, sozinhas, numa estrada distante. Embora mesmo longe de qualquer coisa elas parecem não ser daquele mundo, mas serem próximas apenas uma da outra. Andam com passo firme mas lento, não é preciso pressa. Nas mochilas apenas o indispensável, o essencial caminha ao 
lado.

O primeiro, mais velho, carrega algumas cicatrizes de batalha, há muito luta para proteger o seu pequeno tesouro. Ele caminha ao lado do outro, com um sorriso simples nos lábios, um olhar sempre atencioso e cabelos escuros.  O mais novo é também mais sério. Seu corpo pequeno e frágil esconde um segredo. Caminha olhando para baixo, preocupado, com o pensamento sempre fechado demais para que qualquer um possa adivinhar o que se passa em sua cabeça. Mas o outro nem se importa, contato que possa protegê-lo, ele se dará por satisfeito. 

É um mundo diferente, parece incompleto a quem escuta assim, mas eu garanto que na minha cabeça tudo o que é preciso saber está aqui. 

Eles andam, se escondem, cada dia num lugar diferente. Aprendem a ficar mais fortes e a se protegerem daqueles que os perseguem, daqueles que desejam separá-los. Não importa, porém, onde estejam, contanto que estejam um com o outro poderão enfrentar qualquer coisa.

Foram traídos, perseguidos e escravizados. Mas foram mais fortes, fugiram, lutaram, sujaram suas mãos com o sangue daqueles que os machucaram, banhadas ficaram de lágrimas suas faces por matarem aqueles que antes seus amigos. Não podem confiar em ninguém mais além um do outro. Seu único refúgio no mundo é o braço daquele que tanto ama. 

Em algumas noites, quando o medo os faz perder o sono, é no colo que encontram o consolo para fechar os olhos sem preocupação. O calor de suas mãos é capaz de dissipar a névoa fria do mundo que não entende o que eles são e nem qual o motivo daquela união. Não existe explicação. Foi apenas uma olhar, e tudo mudou. O mais novo desviou, fugiu por um tempo, mas não conseguiu escapar ao olhar de ternura daquele que tanto lhe procurava. 

Terminaram andando juntos, olhando o pôr do sol, dia após dia, em diferentes lugares, sem ter onde se ficar pois, para eles, só o que importava era estarem juntos. 

Apenas isso.

terça-feira, 24 de março de 2020

Um olhar no espelho

Nestes dias de isolamento social é inevitável um olhar mais voltado para dentro de mim mesmo. Fico observando o que os outros fazem durante esses dias. Alguns, como eu, estão se dedicando com mais afinco aos estudos, outros adotaram o Home Office, tem muita gente gravando vídeo de entretenimento, alguns de gosto um tanto duvidoso mas enfim, cada um faz o que pode. 

Além de estudar eu tenho assistido bastante também. Vendo séries e filmes, dos meus já conhecidos atores tailandeses. Mas isso às vezes me deixa um pouco chateado, a despeito do entretenimento num momento de tanta ansiedade, com o confrontamento da realidade que eu vivo aqui e o mundo apresentado lá. 

Uma vez mais eu me vi irado com o fato de desejar um ideal de beleza tão inalcançável e depois me sentir deprimido com algo que eu mesmo busquei. Me é objeto de desejo aquela pele clara, sem manchas e nem defeitos, aquele cabelo perfeito, corpo magro e definido. Me olho no espelho e, mesmo com as modificações feitas com as tatuagens ainda desgosto do que vejo. O cabelo ainda feio, o corpo ainda disforme. 

O espelho é cruel, e aquele que eu vejo refletido em minha frente me olha com olhar de frio julgamento, diz coisas que ninguém deveria ouvir

Pode-se perguntar por qual razão eu não tento mudar mais ainda: poderia entrar numa academia, tentar um tratamento estético mais forte. Mas não importa, nada disso consegue romper a grande muralha de desânimo e nem o ciclo vicioso da baixa autoestima: me olho no espelho e me vejo malcuidado, desanimo e passo a parar de me cuidar, o que só piora quando me olho no espelho de novo. E além disso, não há tratamento no mundo que possa me fazer melhorar, pelo menos não no nível do meu ideal de beleza. 

Alguns podem me dizer que eu deveria só estabelecer isso como meta. Mas como isso pode ser uma meta? Não há como alcançar isso senão de outro jeito que não seja nascendo de novo. É impossível e não há outra coisa a se fazer além de lamentar.

Parece uma preocupação banal, em tempos de coronavírus e tudo e tal, mas o que mais eu posso fazer? Depois de seis horas de aulas de filosofia é o máximo que eu consigo fazer. Parece que meu cérebro pouco a pouco se desfaz quando forçado tanto assim. 

Pensando um pouco mais sobre eu creio que isso ainda é um reflexo daquele ímpeto, daquele desejo ainda mais profundo de agradar alguém, na esperança de encontrar companhia. Vem da crença de que eu sou insuficiente, de que como sou eu nunca serei reconhecido por ninguém. Parece que nunca...

E isso me consome, como uma voz diabólica que sussurra essas coisas no meu ouvido. Toda vez que eu me olho no espelho ou que vejo um homem bonito eu escuto alguém me dizendo que nunca conseguirei ser alguém bom o bastante. Isso deprime, isso me pesa como uma grande mão me empurrando pra baixo, pro fundo do poço, que é de onde eu nunca vou sair. 

Medo

- Tenho medo de desaparecer.

- Eu posso desaparecer porque não mereço existir.

- Por que acha isso?
- Porque eu sou inútil.

Eu não sou desejado. Eu sou uma criança inútil. E você não se importa mesmo comigo não é?

- Usar isso como desculpa é a mesma coisa que fugir. O que você teme mesmo é falhar. Você tem medo de ser odiado pelos outros. Tem medo de reconhecer essa fraqueza até pra si mesmo. 

Como pode me criticar quando faz a mesma coisa?

 - Você tem razão. No íntimo somos todos iguais. 
- Nossas mentes carecem de algo básico.
- E tememos a carência.
- Nós a tememos.
- É por isso que estamos tentando nos tornar um.
- Nos fundiremos e preencheremos uns aos outros.
- Esse é o Projeto de Instrumentalidade.
- A Humanidade não pode viver sem estar cercada uns pelos outros.
- A Humanidade não pode viver sozinha.
- Embora você mesmo seja único.
Por isso minha vida é difícil.
- Por isso minha vida é triste e vazia.
- Você quer a afeição e a presença física e mental dos outros.
- É por isso que queremos nos tornar unos.
- A alma humana é feita de elementos fracos e frágeis.
- O corpo e a mente também são feitos de componentes frágeis. 
- Então através da Instrumentalidade a Humanidade deve preencher e complementar uns aos outros. Não pergunte porquê, não existe outra maneira de existir.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Realismo

Relutante, em pensar na necessidade de companhia. Toda vez que penso nessa necessidade eu começo a ficar suscetível. Suscetível a ser conquistado por quem sequer tentou. Suscetível a ver amor, carinho e atenção onde na verdade não há. 

Meu ardente coração continua querendo dar-se sem cessar, precisando demonstrar essa ternura. Mas já não creio que dentre as pessoas que me cercam alguém há de compreender meu amor ou entender o que sinto, o que sou. 

Tenho preferido ficar a me conhecer, dedicar-me ao estudo, talvez ainda mais sozinho, é verdade, mas também sem me expor a toda sorte de amores falsos. 

Mais cedo conversava com uma conhecida sobre o que se passa em nosso coração. Parece-nos que há uma tempestade dentro daqueles que, dentre nós, sentem demais. Mas as pessoas buscam a serenidade, a calmaria, ninguém quer entrar numa tormenta. 

E como é que se resolve isso? Ah, essa já é uma questão a ser tratada com uma taça de vinho e alguns comprimidos de Lexotan. 

Vejo que a cada dia mais pessoas se afastam, encontram outros interesses. Vou ficando sozinho, mas entendendo que posso usar esse tempo para aprender, sobre mim e sobre outras coisas. Talvez a metafísica possa me ajudar mais do que ter alguém para abraçar, do que ter alguém para dormir ao meu lado. Ainda que seja o desejo do ardente coração.

Coração tolo, que não consegue ficar só. Tu não fostes feito para amar. Ou talvez foste feito para amar mas não para ser amado. Coração tolo, não busques, não sonhe, não almeje. Deixe isso para aqueles que foram agraciados com o destino de encontrarem alguém. Seu futuro, no entanto, é contemplar o sol poente no horizonte sozinho. 

Não é desilusão, ou desesperança. Não sou um pessimista, apenas encontrei a verdade objetiva da realidade. Embora exista muita beleza no mundo, não existe a beleza da companhia para todos. Talvez não seja uma estrela, entre miríades de irmãs, mas um cometa, solitário a vagar pela imensidão do cosmos. 

Tento não pensar, não sonhar, não deixar que meus olhos brilhem como sempre brilharam, ao ouvir uma voz, ao receber uma mensagem. Ainda que isso me deixe apático, prefiro que essa apatia reflita o vazio do meu coração do que refletir as lágrimas de um amor não correspondido. 

Em quarentena 3

O número de casos no Brasil subiu 45% em apenas um dia. O Senado declarou estado de calamidade pública para que o governo federal possa liberar mais recursos para o país enfrentar o coronavírus. Governadores e prefeitos fecham cidades enquanto a esfera federal pede medidas mais brandas, mesmo com as estatísticas indicando que no mesmo ritmo logo vamos ultrapassar todos os países do mundo em transmissão e mortes. Alguns cálculos indicam que podem haver mais de um milhão de mortes se as atividades não forem paradas 100% imediatamente, como fez a China antes de registrar uma queda brusca nos contágios da nova doença. 

Nenhuma estatística é, no entanto, otimista. Todas apontam que ainda não vimos o pior, mesmo com o sistema de saúde beirando o colapso. 

As pessoas já têm dado os primeiros sinais daquela ansiedade reprimida pela quarentena. A agonia do confinamento, o medo. Outros, no entanto, ainda não se preocupam. Eu continuo saindo, todas as noites, para transmitir a missa online do outro lado da cidade. Tenho medo de que com a piora dos casos eu também não possa sair mais. Aliás, eu não deveria estar saindo. Só o faço pois, num momento como esse, se me afastar da Igreja fisicamente eu vou enlouquecer, já que é o lugar que mais estive nos últimos tempos.

Aqui em casa também sentimos o efeito de tudo isso. Uma ansiedade permanente que corre pelos nossos filamentos nervosos e nos deixa incomodados o tempo todo. A paciência diminui, o olhar assume um semblante triste. É como se, pouco a pouco, a desesperança fosse tomando conta de todos.

Um desânimo forte se abateu sobre mim, não que eu já não seja naturalmente desanimando e melancólico mas, de forma ímpar eu passei a não conseguir fazer mais nada. Fiquei algumas horas deitado, sem sequer mudar o canal de televisão mas também sem ver o que estava passando. Ao meu lado uma prateleira cheia de livros que ainda não li e, ao olhar para cada um deles, sendo que todos foram escolhidos especialmente, não senti a mínima vontade de abri-los, nem mesmo aqueles que já há vários meses estão sob minha cama, esperando o fim de uma longa ressaca literária.

Umas das poucas coisas capazes de me tirar da letargia causada por esse vírus, como se fosse um dos sintomas mais graves, é a beleza. Seja a das cores ou a de uma música ou até mesmo a beleza de um doce sorriso ou ainda de um belo rosto. A beleza é, neste momento, minha salvação.

Acho que sim, só a beleza pode nos salvar. De que maneira? O belo nos enche de esperança, elevando nossa alma para realidades superiores, onde não há dor ou sofrimento. O belo torna-se então presença de Deus em nossa vida, como um singelo convite à esperança. Talvez seja então uma das poucas razões para continuar, uma das poucas razões para não desistir. 

sábado, 21 de março de 2020

Em quarentena 2

19 de Março de 2020 - Solenidade de São José, esposo da Virgem Maria e padroeiro da Igreja

É estranho, todo o povo isolado com medo do coronavírus. O número de infectados sobe a cada dia e toda manhã acordamos com notícias de que a situação se agravou ainda mais ou que o governo tomou alguma medida desesperada para conseguir conter a pandemia. Em alguns momentos uma boa notícia: a curva de contágios diminuiu ou descobriram que algumas drogas já conhecidas são eficazes no tratamento. 

A todo momento vemos pessoas se manifestando, seja em redes sociais ou em pronunciamentos oficiais. Eu assisto a tudo isso impassível, com um nó na garganta e segurando algumas lágrimas. Admito que minhas mãos tremem quando me vejo sozinho no quarto a noite, pensando no que pode acontecer daqui pra frente. É ridículo, eu sei, não é momento de fraqueza, mas de altivez. Vejo o quanto sou fraco e covarde quando, como professor, deveria tranquilizar e demonstrar uma força inabalável. 

Me abalei, no entanto, ao participar da Santa Missa de forma privada. Apenas quatro pessoas, incluindo o sacerdote e o diácono assistente. O padre, um dos homens mais santos que já conheci, engasgou durante a homilia e não conseguiu conter o choro, como nós também não. É o momento em que a confiança na misericórdia divina é a nossa única saída. Todos em casa, rezando com fé. Que Deus tenha misericórdia de nós e que São José nos auxilie nessa batalha.

20 de Março de 2020 -  Uma sexta-feira de dualidades

É  bonito ver como nossa sensibilidade passa a perceber depois que observamos com atenção. Apenas alguns dias depois de declarada quarentena os rios já estão mais limpos, os índices de poluição caíram drasticamente e os animais foram vistos voltando para suas casas. Não exito em dizer que a natureza tem seus próprios meios de se recuperar, assim como um corpo tenta se livrar da infecção, mas, nesse caso, a infecção não é o coronavírus e sim o próprio homem.

De qualquer forma, o ar hoje amanheceu mais fresco, choveu a noite inteira. Foi bom poder ficar ouvindo as gotas na janela, era algo como se Deus dissesse que tudo vai ficar bem. Ele está cuidando de nós mesmo quando no alto da nossa cruz dizemos "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?".

Infelizmente nesses dias a angústia parece também infectar pelo ar. De novo o medo, aquela apreensão, os oficiais dizendo que ainda não chegamos a ver o pior. O que pode ser pior do que isso? O que pode ser pior do que o pânico que consome tanto quanto o vazio? Eu não quero descobrir. Não quero descobrir porque já tem sido ruim o bastante ver as pessoas mais fortes a minha volta mostrando fraqueza e medo, aquelas coisas que eu exalo por onde passo. Se elas estão assim, como eu vou conseguir resistir?

Queria poder dormir, e acordar quando tudo isso tivesse terminado. Mas, como sempre desejei isso, sei que não é assim que funciona; Preciso assistir a tudo acordado, sentindo cada pedacinho mínimo da minha consciência, da minha sanidade, se esvaindo por entre meus dedos como a fumaça de um cigarro, que some deixando no ar um cheiro de podridão e morte.

Como pode? No decorrer de vinte e quatro horas dar uma volta completa na roda da samsara? Será que as pessoas que me olham conseguem ver isso que se passa comigo? Com certeza não. Não se aproximariam de mim se soubessem o quão perturbadores são os pensamentos que eu tenho. Será que imaginam que a pessoa que entende tanto sobre liturgia e tem uma postura firme na missa pensa com tanta frequência na morte e está se tremendo de medo da pandemia global? Que passo boa parte da noite acordado para dormir durante o dia, ou ficar trancado ouvindo aulas sem parar, para não enfrentar a verdade?

Mas eu poderia pensar, é uma pandemia global, é razão mais do que suficiente pra ficar com medo. Mas eu não deveria ter medo, eu não posso ter medo, não quando os fortes ao meu redor estão com medo. Alguém precisa ficar firme, alguém precisa aguentar, alguém precisa segurar as lágrimas e ser o porto seguro no meio da tempestade. Mas será que sou eu essa pessoa? Eu consigo ser forte assim?

Talvez não seja questão de conseguir ou não, mas de simplesmente ser, sem a chance de escolher. 

quarta-feira, 18 de março de 2020

Em quarentena

É isto, todos isolados por causa da pandemia causada pelo coronavírus. Shopping fechado, missas canceladas, pessoas quietas em suas casas. O país inteiro comovido em conter o vírus que se propaga no ar sem escolher vítimas, ataca a todos. 

Como minha imunidade já não é das melhores eu estou em casa já desde os primeiros casos no país mas agora, com todo mundo entrando no mesmo estado de alarme, isso tem começado a me encher. Isso porque eu em casa o dia todo preocupado com uma doença é um ótimo gatilho pra minha ansiedade. E aí me aparecem as crises, mãos suadas, perda de sono, impaciência. Odeio ser tão suscetível assim as coisas, queria agora, mais do que tudo, ter a aquela resistência estoica de não me abalar com os problemas do mundo. Como bom pessimista que sou isso é evidentemente impossível.

Enfim, o jeito é tentar encontrar alguma saída, um passatempo talvez? Alguma válvula de escape, para que não enlouqueça dentro de minha própria cabeça. Será que os casos começaram a diminuir? Encontrarão uma vacina ou cura? Parece infantilidade esperar por isso agora mas, que posso mais fazer? 

Tentei me concentrar nas aulas. Em vão. Assisti a mesma aula duas vezes e tentei ver outras duas que me pareciam ser de mais fácil compreensão, mas nada ficou na minha cabeça. Minha disposição pra ler foi embora, saiu de férias e está numa ilha paradisíaca bem longe de qualquer contágio de vírus. A única coisa que consegui fazer com sucesso foi fritar na cama de um lado para o outro e ouvir música, tentando ignorar o calor intenso de março. Odeio calor. E odeio pensar demais porque eu nunca penso coisas boas. 

Seria ótimo se conseguisse usar esse tempo ocioso para trabalhar em compreender questões filosóficas, ou para me dedicar à alguma atividade mais produtiva do que ficar na cama olhando o teto e maquinando teorias da conspiração onde eu sempre termino num cenário pós apocalíptico sem as mínimas condições de sobrevivência. Não gosto disso.

Essa solidão e esse clima de apreensão aguçam a minha sensibilidade. Começo a perceber coisas que eu não queria perceber. A ignorância é uma bênção. Parece que eu absorvo tudo, e tudo me afeta com força e potência. É horrível ser assim, as pessoas dizem que é algo bom e que o mundo precisa de sensibilidade mas não, é doloroso demais. 

E aí as paranoias começam a brotar, como ervas daninhas, e eu vou ficando mais e mais aflito. A respiração vai apertando, a visão turva e, quando dou por mim, já estou chorando pesadas lágrimas sem nem entender a razão da aflição.

Acho que, no fundo de tudo, meu maior medo é o de ficar sozinho. Sempre digo isso não é? Pois é a verdade. Meu eu interior não é o do intelectual seguro dos livros e aulas que assisti, não, meu eu interior é uma criança pequena de joelhos ralados, chorando porque não consegue achar a mãe. Por isso sempre, em meus pesadelos, vejo as pessoas indo embora, por isso sempre fico triste quando vislumbro no horizonte alguém aos poucos me deixando. E infelizmente é uma visão bem recorrente. Parece que, em se tratando de mim, o destino não quer que ninguém fique permanentemente. Claro que eu tenho também minha parcela de culpa.

Meu borderline cria em mim a sensação de que estou sempre sendo deixado pra trás, isso me deixa paranoico e faz com que eu mesmo acabe afastando as pessoas ao meu redor. É, perceber e assumir isso é complicado, mas é a verdade e não se pode fugir dela. Tanto não se pode fugir dela como não se pode fugir das lágrimas que agora insistem em rolar, mesmo a contragosto. Não há como contê-las. Não há outra opção a não ser virar o rosto para o lado e deixar tudo sair, quem sabe quando as lágrimas acabarem as coisas estejam um pouco melhores.

terça-feira, 17 de março de 2020

O suplício de Prometeu

E se um demônio lhe dissesse que esta vida da forma como vive e viveu no passado você teria de vivê-la de novo. Porém inúmeras vezes mais e não haverá nada novo nela. Cada dor, cada alegria, cada coisa minúscula ou grandiosa retornaria para você mesmo. A mesma sucessão, a mesma sequência, várias e várias vezes como uma ampulheta do tempo. Imagine o infinito! 
(Friedrich Nietzsche)

Eu tenho um sonho, um pesadelo, que me assombra com uma certa frequência, muitas vezes sem nem mesmo ter dormido. Nesse sonho eu sempre estou com algumas pessoas, no meu quarto, na igreja, sentado na calçada, sorrindo e cantando. Eu pareço feliz, mesmo sabendo que trata-se de um efeito da companhia, ou às vezes do álcool. Duas pessoas então se afastam. Não consigo ver os seus olhos, apenas os sorrisos, estão bem felizes. Vão se afastando até lentamente sumirem de minha visão. 

Algum tempo depois uma delas retorna, não mais feliz, aproxima-se lentamente mas passa direto, indo embora na direção oposta. Eu já não vejo mais os outros que estavam ali, fico sozinho, sentado, olhando para um lado e outro, para a rua grande e vazia na noite, pro outro lado da plataforma do trem, num cruzamento da cidade grande. 

E pouco a pouco vejo cada um deles se afastar. 

Parece ser esse o meu ciclo do eterno retorno. Preso a essa roda da existência, onde quando um ciclo termina outro se inicia imediatamente. 

Sinto isso hoje, como se a espada do destino caísse novamente, fazendo a roda voltar a girar. O oceano do samsara me revolve em suas águas impetuosas com uma violência descomunal. Não tenho nenhuma chance de escapar. E vou de uma existência à outra. Como um Deva, sem me preocupar, caindo no mundo das preocupações logo em seguida, como um animal, como um Asura bestial, furioso e demoníaco. E a roda não para de girar.

O medo me paralisa. Medo do que? Olho ao meu redor e vejo amigos verdadeiros, sorrisos verdadeiros. Mas temo que a vida os separe de mim, como sempre parece fazê-lo com certa dose de prazer sadomasoquista. Esse medo já me impede de me apegar verdadeiramente, esse medo me impede de ir atrás daquilo que no íntimo ainda almejo: a verdadeira companhia. Medo do eterno retorno. Algum dia eu escolhi viver assim? Fizera algum voto secreto onde me condenara ao vazio?

Isso porque todas as vezes em que me senti feliz ao lado de alguém esse alguém se foi no dia seguinte. É como se o destino me seduzisse com o perfume de uma doce rosa, de um grande jardim, onde não me sinto mais sozinho, onde me sinto seguro em ser eu mesmo. E, tão logo me sento ao lado de um grande cedro, por entre as açucenas olvidado, sou mandado para longe desse paraíso. 

Qual tem sido meu pecado? Qual a minha culpa para ter sido excluído do Éden e lançado na terra da solidão? O que terei feito para ofender algum deus a ponto de ter sido amaldiçoado, como Prometeu, a ser devorado eternamente por um vazio que de dentro para fora me consome? Esse vazio, enorme e sempre faminto se mostra a mim como essa águia e suas presas monstruosas, meu corpo, trêmulo e fraco sente cada pedaço estraçalhado se regenerar, para que o ciclo se reinicie. Todas as noites meu corpo é devorado pelo vazio, e em cada manhã ele é refeito, para ser destruído novamente. Sempre encontro companhia, para logo ser abandonado novamente.

Não importa o quanto eu grite, o quanto me corpo se debata violentamente, o quanto meu sangue escorra pelos meus braços e pernas, isso não muda em nada a roda do destino. Ele continua se divertido as minhas custas, posso ouvir, com clareza, a risada do demônio que goza com minha dor, que se enche de prazer ao ver meus olhos marejados e meu coração destroçado como o coração do criador da humanidade, transpassado pelo bico da cruel águia ou pela lança de Longinus.

 “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça."
(Mt 8, 20)

segunda-feira, 16 de março de 2020

Dia seguinte.


O sentimento de frustração não passou, nem sequer desvaneceu um pouquinho. Antes disso, sinto-me ainda mais pesado. É como se todos os compromissos anotados em minha agenda com minha caligrafia desleixada gritassem que nada ali vai dar certo, tudo não vai passar de um fracasso porque eu não sou mais do que um homem fracassado vivendo entre pessoas capazes de fazer coisas realmente maravilhosas. 

Estou ainda deitado, sem a mínima vontade de comer ou tomar banho, ou de começar a fazer as coisas que preciso. Estudar, preparar celebrações. Viver. Nada disso parece ter sentido se, no fim, tudo será não mais do que um desastre. 

Quanta prepotência, quanta arrogância havia em mim para pensar que eu poderia realizar todas essas coisas. Fora tolo e cego e, talvez, o resultado seja a paga devida ao meu orgulho. 

Mas então, o que devo fazer? Esperar aqui pacientemente pelo fim? Me parece a única saída plausível, já que tudo o mais só me trará mais desgosto e decepção. Não há razão para sair daqui. Não há luz no fim do túnel, fora tudo uma mentira criada para aqueles que, assim como eu, mergulham pouco a pouco na escuridão abissal do fim.

Lágrimas, linhas finas de sangue carmesim, olhar distante e uma desesperança, é o que há em mim nesse momento.

De que adianta chorar? De que adianta me explicar? Ninguém é capaz de entender, nem mesmo eu entendo. Eu não sei mais nada, não sei nem mesmo porque me sinto assim. Eu só sinto. Essa angústia, essa raiva, inconformado por não ser bom o bastante, por não dar orgulho aqueles que amo, por não conseguir fazer aquilo que me propus, por ser trocado tantas e tantas vezes que agora já não consigo mais confiar plenamente, pois sempre tenho medo do que possam me fazer, pois sempre tenho medo de que vão me abandonar na primeira oportunidade, como todos os outros fizeram.

Ouço ao longe a marcha do exército e a risada do demônio. Meu rosto caído na lama, o corpo coberto de feridas, o líquido vermelho da vida escorrendo, a vida se esvaindo. Mas ela nunca se vai. Sempre fica uma centelha, por menor que seja, sempre fica algo há ser acendido novamente no sopro da próxima brisa.

- Chuva. Sombras escuras de melancolia pairam sobre mim. É assim que eu me sinto. Não é como eu queria que fosse. 

- O por do Sol. O fim da vida. Isso não é como eu gostaria que fosse. 
- Manhã. O começo de um dia. De outro dia terrível. Eu gostaria que isso não fosse do jeito que é. 

- Céu azul. Alguma coisa quente. Alguma coisa desconhecida. Alguma coisa que me enche de horror. Eu não quero isso. Eu não quero que isso seja desse jeito.

Eu não queria que nada fosse desse jeito. Eu só queria ser bom, só queria que as pessoas entendessem isso, que o que faço é o meu melhor. Mas nunca é o bastante para ela, estão sempre querendo mais e mais, mas não tem nada mais. Acabou, eu não sou mais do que uma casca vazia, uma boneca de trapos. Eu não sei mais nada.

Não me atrevo mais a sonhar pois os sonhos são a chave para a decepção. Não me atrevo mais a amar pois é só uma ilusão, aqueles que amo amam outras pessoas e nunca a mim. É patético. E, no entanto eu não posso deixar de existir porque isso também seria um incômodo para as outras pessoas. É tudo o que eu sou: um incômodo, vivo ou morto. E ninguém percebe o quão desconfortável eu estou por ter de me levantar todas as manhãs e viver como se concordasse com essa vida. Ninguém dá a mínima pra minha vontade de dormir, onde posso esquecer, ao menor por algumas horas, que existo. Ninguém dá a mínima, mas todo querem algo. Querem companhia, querem conversar... E o que eu quero? Eu quero desaparecer sem deixar rastros. Quero sumir da existência. Quero voltar ao nada, aquele útero primitivo que perdemos muito tempo atrás. Eu quero uma existência onde a compreensão exista, onde não seja fraco e incompetente. 

Mas é um desejo idiota. Um sonho? Tenho de esmagá-lo com todas as forças. Os sonhos são a porta de entrada da destruição do coração. E eu nem sei o que é isso, é confuso demais para minha pequena mente entender. Eu não sei mais nada, só sei que, no fim, tudo retorna ao nada. E eu quero voltar ao nada. 

domingo, 15 de março de 2020

Do fracasso


Tem uma música que diz "no dia em que você entrou na minha vida eu virei o menino mais sortudo do mundo, por isso fique comigo pra sempre". Bonito não é? Um amor eterno, capaz de vencer as barreiras do tempo e do espaço, um amor daqueles capaz de curvar até mesmo a grossa espada do destino. Um amor daqueles que nos fazem dizer "e toda vez que eu olho em seus olhos é como se visse o céu azul". É, uma bela imagem. 

Pena que é uma mentira. 

Assim como quando dizem "seu esforço será recompensado" também é uma mentira. A recompensa vem para alguns poucos que, caindo nas graças da Fortuna Imperatrix Mundi, foram por ela abençoados. Esforço quase nunca é sinônimo de recompensa, é na maioria das vezes seguido de decepção. O esforço nos faz crer que seremos recompensados, isso gera uma expectativa, que cresce em nosso coração como uma erva daninha, espalhando e sufocando todas as rosas, até que não exista mais flores, apenas o mato. 

O esforço pode, no máximo, no levar a este terreno baldio sem dono, sem perspectiva alguma. Pode ainda nos fazer percorrer um longo e árduo caminho, projetando nos otimistas, obtusos, uma ideia de que no fim encontrarão um grande pote de ouro, tolice! 

Morrerão à míngua. 

E como eu odeio isso! Como odeio as lágrimas quentes que estão escorrendo de meus olhos, aquecendo-me a face. Odeio chorar de frustração. Odeio olhar uma assembléia cheia e ver que meu melhor não merece mais do que risadas. Odeio não ser bom o bastante, em nada que faça. Odeio ser substituído. 

Mas, mesmo odiando tudo isso e desejando fugir, me esconder, para que ninguém nunca mais veja meu fracasso eu ainda tenho medo de ficar sozinho.

Não me deixe.
Não me ignore. 
Não me mate.

Continuo tendo medo de desaparecer, mesmo sendo, nesse momento, o meu maior desejo. Desaparecer e nunca mais obrigar ninguém a olhar o meu fracasso. Eu devia desaparecer porque sou um inútil. Não acerto as notas das musicas que mais escuto, não guio no caminho certo aqueles que jurei liderar. Perco meus amigos mais próximos por ter essa personalidade volátil que vai de alto a baixo num piscar de olhos. Chateio a única pessoa que fala comigo todos os dias. Sou a escória. 

Eu deveria desaparecer porque eu não mereço existir. E por que penso isso? Porque é verdade. Porque eu sou um inútil. 

Era só um Am, qual a dificuldade de entrar num Am? Eu não consegui. 

Shijo Ikari fugia de si mesmo, fugia de sua própria fraqueza, eu a encaro de frente, mas encarar a minha fraqueza não me torna melhor. Apenas um fracassado consciente. 

-Você tem razão. No íntimo somos todos iguais. 
- Nossas mentes carecem de algo básico.
- E tememos a carência.
- Nós a tememos.
- É por isso que estamos tentando nos tornar um.

[...]

Não pergunte porquê, não existe outra maneira de existir.

Verdade?

- Por que você existe?

Eu não sei

- Talvez eu exista pra descobrir porque eu existo.

Mas isso é verdade? E se eu existir apenas para fracassar? E se, no rodízio existencialista eu fora condenando a sempre falhar, a lutar, correr e nadar com todas as minhas forças, mesmo quando estas estão esquálidas, a morrer na praia? 

E se eu for condenado a ser trocado por qualquer menino ou menina mais inteligente ou bonito do que eu? Parece ser isso. Eu sou aquele que ocupa um lugar enquanto os outros esperam por alguma coisa melhor. Eu sou o confidente e conselheiro, até que encontrem alguém melhor. Eu sou parceiro, até que alguém mais animado apareça. Eu sou a segunda opção de todos. O último a ser lembrado na alegria mas o primeiro a ser buscado na necessidade, por saberem que faço o que mais ninguém quer fazer. Assim que alguém melhor do que eu surge no horizonte eu sou logo lançado na lixeira da miséria humana. 

Mas então por qual razão continuo fazendo o que faço? 

Essas coisas me dão um propósito, uma identidade. Eu não era ninguém antes disso mas... Mesmo agora, eu ainda não tenho importância. Eu me odeio. Eu faço isso porque porque é tudo que eu sei fazer. 

Eu só queria, uma vez que seja, me sentir orgulhoso de mim mesmo. Não por outros me aplaudirem, não, mas porque olhando para meu próprio eu, para meu coração, eu sinta que fui capaz de fazer não o meu melhor, mas o melhor, e assim ter encontrado algum propósito nessa existência que me parece tão misteriosa. A razão da existência. A razão que permite a alguém ser.

Mas tudo parece desmoronar. Todo esforço, cada acorde, cada nota. Tudo não passa de uma mentira, como o amor que diz "no dia em que você entrou na minha vida eu virei o menino mais sortudo do mundo, por isso fique comigo pra sempre".

E tudo retorna ao nada. 


~

Obs.: Textos entre aspas ou em itálico retirado de Neon Genesis Evangelion ou da trilha sonora de Until We Meet Again (Studio WabiSabi, 2019).

quarta-feira, 11 de março de 2020

Em todos os sentidos

Um ano atrás, eu sentado no chão, numa noite fresca, rodeado de pessoas. Estendi os pés, calçava meu surrado all star preto, e toquei os pés de uma pessoa que estava sentada na minha frente. Tirei uma foto do momento, me lembro do sorriso terno que eu dei ao ver o resultado publicado numa página na internet. Estava feliz ali, estava acompanhado, mas me sentia completo?

Um ano depois eu continuo me sentindo vazio, a diferença é que agora ninguém se senta na minha frente e nenhum pé toca o meu. Me isolo em meu quarto com medo de uma pandemia global, não que já ão estivesse isolado fugindo da infecção que é o vazio que há em mim. 

Aquele gesto foi uma mentira, como tantos outros risos, como tantos outros momentos. Fora forçado, uma farsa. E eu acreditava nela. Mas no fundo eu já sabia, sabia e fingia não saber. Cada vez que alguém desviava o olhar de mim, cada conversa sussurrada pelas minhas costas, cada frialdade no fitar. Tudo aquilo já indicava o que eu era para eles: um pária, uma simples escória.

Eu não deveria me importar, você sempre foi um mentiroso. Cada palavra, cada mínimo gesto de afeto sempre foi uma mentira, uma farsa que, na verdade, nunca enganou a ninguém. Você sempre me odiou, sempre teve nojo de mim, e eu podia sentir isso cada vez que me abraçava, cada vez que me tocava, cada vez que me olhava com desprezo, como se fosse forçado a conviver com um leproso, com medo de se contagiar com minha doença. Tentou me usar, tentou me fazer acreditar em palavras frias. Sempre um mentiroso. 

Mas eu também admito: gostava de viver daquele jeito, ainda que fosse uma mentira. Pelo menos por alguns breves instantes eu me sentia completo. Isso é verdade? Eu não escrevia todas as noites reclamando do imenso vazio que continuava se abrindo dentro de mim depois de tantas horas de risos e cantorias? 

Eu já nem sei mais o que pensar. Minha mente está tão debilitada que eu nem me lembro mais se algum dia foi feliz. Talvez quando ainda não sabia o que era tristeza mas, bom, desde que consigo me lembrar eu estou triste. Então por qual razão uma foto de anos atrás me entristece desse jeito? 

Me sinto substituível. Aquele que antes era o primeiro a saber agora não passa de um estranho. E não é a primeira vez que isso acontece. Parece que as pessoas sempre se aproximam de mim na falta de algo melhor e, tão logo encontram algo que desperte seu interesse, acabam por virar as costas para mim. Foi assim com todos os meus antigos amigos, tem sido assim desde que me lembro.

Sempre substituível,
dispensável,
trivial. 

E assim continuo, caminhando figurativamente, literalmente trancado no meu quarto com medo de que minha combalida imunidade me faça de refém num hospital, sozinho, em todos os sentidos do termo. 

segunda-feira, 9 de março de 2020

Agora


Veja, tenho estado de pé e feito o meu melhor, mas não por mim ou porque movido por uma força interior que me leva a querer continuar. Não, tudo o que tenho feito é para que não percebam que estou morto, que estou apenas esperando o momento de ser enterrado.

É bem frio e solitário aqui, onde a chuva cai com força e os ventos sopram com violência. Já nem sei mais se meu rosto está molhado pela água que vem do céu ou pelas lágrimas que transbordam de mim. Já nem sei o que faço aqui, com os pés descalços no meio da rua, sem rumo... É solitário e frio aqui, no meu infinito particular, de onde não consigo sair e ninguém pode entrar.

É escuro, e eu achei já ter superado o medo do escuro, mas se antes tinha medo do que podia se esconder ali hoje eu temo o que se revela toda vez que as luzes se apagam, toda vez que o sol se põe e eu me vejo sozinho.

Parece que estou num grande oceano, num pequeno bote sendo agitado pelas ondas. É apenas uma questão de tempo até que me afogue na água salgada. Tudo o que vejo ao meu redor é a imensidão azul, mortal, imponente como um deus invencível. 

Parece que ninguém sabe quem eu sou, todos me olham, querendo algo, mas são incapazes de perceber que não restou nada para levarem. Apenas algumas lágrimas quentes, fluindo com o pouco de calor que ainda me restou antes do último suspiro, que há muito tem se prolongado. 

Quando me dão as costas, quando fecham as portas, eu finalmente posso cair no chão. Ficar de pé e cantar uma missa, falar ou sorrir, tudo isso tem me sido demasiado dolorido. Tudo o que eu quero é o silêncio, pois parece que todo e qualquer barulho apenas ecoa no imenso vazio do meu coração.

E talvez eu esteja errado em não fazer nada para mudar mas... Nada até hoje adiantou, e tanto me decepcionei que já não consigo mais acreditar nem mesmo no meu amor.

Se fecho os olhos em prece, meus lábios delineiam um nome baixinho, um silvo imperceptível. Nem mesmo eu consigo ouvir. Mas parece-me o último desejo desesperado de uma alma assustada com a própria existência. Assustado que nesse imenso universo, com tantas miríades de estrelas, não haja um lugar onde possa me sentir em conexão com outra pessoa, onde a solidão não seja a única realidade conhecida. 

Dentro de mim tem, no entanto, esse impulso de continuar escalando, de continuar indo em direção as luzes do céu e, do outro lado, a sensação de que já estou no fundo do poço. Não sei quem tem razão mas a verdade é que, de um modo ou outro eu não consigo fazer mais do que me lamentar por um cansaço que, não importa o quanto durma, nunca cessa ou diminui. 

Em algum lugar, distante, uma grande locomotiva anda por trilhos que parecem não ter fim. Atravessa vales inteiros, planícies alagadas, jardins com perfume de flores, casas com um pequeno sino de vento pendurado sob o alpendre, longos campos de arroz e um céu azul que se estende como um véu sob a abóbada celeste. Haverá lugar para mim abaixo desse céu? 

Eu não sei, eu não sei, eu não sei mais nada, não entendo sequer as razões das minhas lágrimas. Eu só que, agora, tudo o que eu quero é chorar. 

quinta-feira, 5 de março de 2020

Desconhecido

Lembranças de um imenso recatado
Nos mares refletindo um tempo perdido
Caberia aos céus refletir o então passado
Brilho comedido em um tempo aturdido

Surgimento de algo antepassado
Contentamento já urgido
Fatos descontrolados, maioria errados
De tudo isso o ser vivo surgido

Mais conhecido que nossa casa
Profundos oceanos dispersos
Ainda continuando com águas rasas

Conteúdo que reflete um céu controverso
Faísca em meio de brasas
Nomeado primordialmente como universo.

Igor Murilo

Role os dados

Se você vai tentar, vá até
o fim.
Senão, nem comece.

Se você vai tentar, vá até
o fim.
Pode ser o fim de namoros,
casamentos, relações familiares, empregos,
pode ser o fim da sua própria
sanidade.

Vá até o fim.
Pode ser que você passe fome por 3,
4 dias seguidos.
Pode ser que você passe frio deitado
no banco de um parque.
Pode ser que você seja preso.
Pode ser que você seja desprezado,
zombado,
isolado.
O isolamento é seu presente.
Todo o resto é um teste
de resistência,
pra ver o quanto você está disposto
a tentar.
E você vai fazer
apesar da rejeição e das menores chances.
E vai ser melhor que
qualquer outra coisa
que você possa imaginar.

Se você vai tentar, vá até o fim.
Até o fim.
Não há sensação como
essa.
Você vai estar sozinho com os deuses
e suas noites irão arder em
chamas.

Faça, faça.
Faça.

Até o fim,
até o fim.

Você vai cavalgar a vida direto para
o riso perfeito, essa é
a única Cruzada santa
que existe.

Charles Bukowski
V.E.C. Dias (tradução)

Do lobo que vagueia

Acho que, algumas vezes, tenho de voltar atrás com algumas observações feitas. Nem tanto por uma errada forma de expressão, mas talvez por uma impressão equivocada. Algo que só tenha se revelado depois de desanuviada a visão, num momento de particular clareza. 

Penso que esses momentos se deem durante a solitude. É na solidão que encontramos o necessário para digerir aquilo que foi percebido na companhia das multidões. É na solidão que encontramos, como disse o filósofo, a dupla graça de estarmos sozinhos e de não estarmos com os outros. 

Agora percebo, e creio ter muita razão no que digo, que não fui abandonado, não. Não fui traído, apunhalado e largado sozinho para morrer. Não. Minha condição sempre foi a de solitário. Mesmo acompanhado minha alma ainda estava sozinha, tão sozinha quanto meu corpo agora, neste quarto fechado e escuro. 

E também percebo, pouco a pouco, os mundos em que cada um vive. Alguns como bestas sem nenhuma razão a não ser a luta constante, outros em intocável prazer e outros ainda em grande ignorância, disfarçada de forma e palavras humanas. Observe, por alguns instantes, o que um homem é capaz de fazer para conquistar uma mulher e me diga, com alguma razoabilidade, se pode-se afirmar que aquela pessoa encontra-se num estágio humano, senão que encontra-se num mundo completamente animalesco, exibindo-se como um pavão ou, mais apropriadamente, um bugio, para a fêmea com quem deseja copular. É patético. E não estou nem sequer um pouco acima disso. Não importa em qual estágio esteja ainda continuo preso a mesma roda de dor. Não importando se sou mais ou menos animal do que o lobo que vagueia em meio as estepes. 

Não vejo possibilidade de melhora, a não ser por alguns poucos que conseguem escapar desse ciclo, o que não parece ser meu caso pois estou longe de me desprender dessa realidade, senão que me sinto cada vez mais preso, ainda que pouco a pouco me liberte desta ou daquela corrente. Ando como quero, pinto-me como quero, canto e escuto o que quero, mas ainda não é o bastante. Ainda falta algo. Liberdade é pouco, o que eu quero ainda não tem nome, disse Lispector, atormentada. Lispector queria libertação dessa roda. 

Mas nada parece melhorar, tudo parece mergulhar cada vez mais fundo no oceano da destruição. Fome, doenças se espalhando, a ciência reduzida a um cientificismo barato que acredita que tudo se resolve com medições laboratoriais e artigos publicados em revistas que ninguém lê, barragens se rompendo, pessoas se matando e tudo o que consigo desejar é me conectar com alguém, tocar um coração verdadeiramente. Não digo um amor, um namorado, mas o que quer que seja, um amigo ou até um desconhecido. Só queria experimentar o que é a completude, o que não se sentir sozinho o tempo todo. 

Sempre estive a vagar sozinho, numa multidão de cegos que andam sem saber onde querem chegar num corre corre sem fim. Fora tragado pelo destino como uma folha revolvida pelas forças de um furacão, sem nenhuma chance de escapar. Termino sozinho, no sentido literal e poético da coisa, e sem perspectivas de sair daqui. Vislumbro-me como um Bukowski, com o rosto marcado pelas rugas e linhas profundas de descontentamento existencial, marcado por uma desesperança arraiga no recôncavo mais profundo do ser, rodeado de garrafas vazias de ópio ou cartelas de clonazepam, usados numa fuga momentânea da realidade para alguns poucos instantes de prazer. Um Tchaikovsky tuberculoso, sozinho no seu quarto imundo, chorando pelo seu amor impossível, sem nunca ter ouvido o réquiem que compusera para si mesmo. Mas será esse o meu fim? Infelizmente parece-me que não. 

Tão logo começo a adormecer as pessoas tornam a me procurar, entram sem bater, gritam sem parar, e eu me sinto novamente pressionado, pela solidão de estar preso numa multidão. E eu só queria fugir, dos encontros e reuniões, só queria poder ficar aqui, como um cão lambendo as próprias feridas, aproveitando minha solidão, onde não sou obrigado a contemplar esse quadro bizarro que é a vida humana. 

quarta-feira, 4 de março de 2020

De um observante participativo

E, no fim das contas não existem pessoas diferentes. Somos todos igualmente desprezíveis e dignos de pena. Insignificantes perante os deuses.

Humanos, sejam humildes perante os deuses. Assumam sua pequenez, aceitem que não são mais do que bestas que falam, que se iludem em sua ciência e filosofia como se fossem coisas grandiosas, mas não passam de seres patéticos, guiados por instintos e hormônios, fugindo eternamente do vazio de seu âmago. E sabem donde vem esse vazio? Da imperfeição fundamental da sua existência. Vem do fato de que foram criados com o único objetivo de perseguirem sonhos irreais, enquanto escondem seus joelhos trêmulos, adultos ou crianças, todos com medo do abismo escuro de dentro de si. 

Buscam então a completude, nos lugares mais imundos. Chafurdando na lama das bebidas, do sexo, dos sentidos mais animalescos, presos a samsara sem perspectiva de liberdade.

Me sinto, além de preso nesse ciclo de dor, um infeliz observante da miséria humana. Não que eu esteja fora dela, mas apenas consciente. É uma visão assustadora. Vejo pessoas com grandes bocas, desejosas de devorar o mundo numa ganância insaciável. 

Outras se parecem com demônios, andando nus e se entregando aos desejos mais torpes de suas lascívias, nadando num oceano de lava que queima os seus corpos. Anestesiados, porém, pelo próprio prazer, já não percebem que sua pele queima e já solta dos ossos, querem apenas mergulhar mais e mais fundo nesse oceano de orgasmos e gemidos. 

Vejo animais, ignorantes em sua brutalidade e monstros, bestas que apenas sabem lutar, sem se dar conta de nada além da vitória que anseiam. Andam por aí, bradando pesadas espadas e grossas lanças, destruindo exércitos de inimigos, nunca satisfeitos, sempre sedentos por mais sangue. Vejo barrigas vazias, corpos esqueléticos e olhos enormes, inveja. 

Claro, há um mundo melhor, pessoas felizes que vivem a sorrir e que não sentem tanta dor e nem se incomodam com o horror dos outros inferiores, senão que as vezes até mesmo os ajudam. Mas estes não alcançaram a perfeição, estão sujeitos a cair, e fazer girar novamente a roda da dor, a samsara, na qual estamos presos. 

E é isso, apenas isso. No fim das contas não existem pessoas diferentes. Somos todos igualmente desprezíveis e dignos de pena. Insignificantes perante os deuses.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Dos campos de canola

E algumas coisas acontecem tão de repente que nem sequer conseguimos nos preparar antes de sermos atingidos pelas violentas ondas do destino. De repente elas arrasam tudo, destroem os prédios por onde quer que passam.

E é de repente, não mais que de repente, que aquele brilho no olhar se esvai, as forças minguam, a carne desfalece e se enfraquece a tal ponto que parece desmanchar nos ossos. A única vontade é a de viver sem vontade, ou melhor, de não viver, de dissolver-se ao vento como fumaça, sem deixar nenhum vestígio de sua simples existência. 

E de repente deixamos de prestar atenção em quem somos, até que um dia nos olhamos no espelho e não reconhecemos aquele que acena. Os livros se tornaram emaranhados de letras sem sentido algum, as músicas são apenas barulho. Acho que aquele eu de antes desapareceu, sumiu como fumaça ao vento... Será que a fumaça, quando se esvai, viaja por outros lugares ou simplesmente desaparece para sempre? 

O tudo retorna ao nada? 

Eu queria voar por aí, sem destino, e ver aquilo que jamais vi, preso aqui, a estes ossos sem carne, a este corpo sem vontade. 

E de repente, não mais que de repente, a pessoa que falava com você todos os dias, virando noites sorrindo e brincando, sequer responde as suas mensagens de parabéns. É como a fumaça no vento, outra vez. Como aquele arpejo no piano que, depois de soar alto e forte, vai sumindo até não existir mais senão nos ouvidos de quem estava por perto. O som da grande orquestra vai sumindo, lenta e preguiçosamente, até desaparecer no horizonte, como o sol deixando de iluminar os campos de nossas queridas canolas...

E ele mudou tanto, cresceu tanto... E ele já tem um novo amor, uma nova casa, um novo sonho, um novo amigo, e eu aqui pedindo pra ele me salvar de mim. 

E tudo retorna ao nada.

Mas o dia cai e noite chega, uma vez mais. As pessoas me pedem uma luz quando tudo o que vejo é escuridão. Solene e silenciosa, majestaticamente ornada por ricos brocados salpicados de brilhantes. E já não há mas nem sombra daquela fumaça, apenas a brisa fria, balançando as pétalas das flores, levando ao longe seu perfume...

domingo, 1 de março de 2020

Resenha - Until We Meet Again

O amor pode superar qualquer coisa, seja o tempo, a distância ou até mesmo as maiores tragédias, eis a lição de hoje!


Existem algumas obras que já nascem aclamadas, e com muita razão! Until We Meet Again ganhou a atenção dos fãs de BL desde o anúncio, com um plot ousado e, logo depois, com o anúncio do cast se tornou uma das séries mais aguardadas por todos. Durante a exibição não foi diferente, a série esteve dentre os assuntos mais falados do fandom Bl desde a estréia até o último episódio. Mas vamos entender de onde vem todo esse sucesso.

Primeiramente a proposta da série já é interessante em sua sinopse: Intouch e Korn se apaixonam na faculdade, o primeiro, alegre e atrevido, faz de tudo pra conquistar o outro, sério e reservado. Korn é filho de uma família tica envolvida com a máfia tailandesa, o que se torna um empecilho para o relacionamento de ambos. As coisas se complicam, as famílias são contra o relacionamento de ambos e, depois de muitas tristezas, ambos acabam cometendo suicídio, num fim trágico. No enterro de ambos, as famílias se reconciliaram e, num gesto simbólico, uniram os dedos de ambos com um fio vermelho. Segundo antiga tradição asiática, pessoas ligadas pelo fio vermelho estão destinadas a ficarem juntas, não importando o tempo ou a distância que as separe. Anos depois Intouch e Korn renascem como Pharm e Dean. Pharm tem pesadelos com pessoas que ele não conhece sendo separadas de maneira cruel e Dean está sempre em busca de algo que ele ainda não sabe o que é, até que ambos se conhecem e percebem que há algo mais poderoso que os une e que os fez se reencontrarem. 

Bom, só esse plot já seria suficiente para um grande sucesso. Mas não parou por aí não! O anúncio do cast também surpreendeu quando Fluke Natouch e Earth Katsamonnat nos papéis de Pharm e In. Ambos atores são assumidamente homossexuais e, como se sabe, não é algo comum nas séries tailandesas que, embora pareçam para nós, não têm como público alvo a comunidade gay, mas sim o público feminino. De qualquer forma, ter atores gays interpretando personagens gays é uma baita representatividade pra comunidade. A direção ficou por conta do New Siwaj (de Love By Chance, dispensa apresentações).

Pharm (Fluke Natouch, de Red Wine In The Dark Night) é um calouro estudante de economia, apaixonado por culinária ele logo se junta ao clube de culinária da universidade. Tímido, fica vermelho toda vez que se encontra com Dean, que adora provocá-lo. Sorridente, logo faz amizade com Manow e Team, que são os maiores torcedores para que o casal principal fique junto. Sua vida muda quando ele se vê atraído por Dean de um jeito que ele não consegue entender ou resistir. 

Dean (Ohm Thitiwat) é um veterano, presidente do clube de natação. Sério e responsável ele está sempre à procura de alguma coisa, como se faltasse algo de grande importância dentro de si. Quando vê Pharm pela primeira vez ele sente o coração bater de um jeito diferente e, de repente, se vê apaixonado pelo novato. Dean, embora sério, está sempre sorridente e brincalhão com Pharm, que consegue mudar e muito sua personalidade. Ele é cuidadoso e muito atencioso com Pharm, se preocupando com o pequeno o tempo todo. As cenas dele carregando Pharm no colo são simplesmente a coisa mais fofa do mundo. 
Intouch (Earth Katsamonnat, de Love By Chance) é um jovem estudante, sorridente e nada tímido que, logo que se vê interessado por Korn, se declara pro rapaz sem rodeios. Corajoso ele sempre enfrenta o que for preciso para ficar junto de Korn, e insiste tanto que amolece o coração duro do rapaz, que se apaixona por ele perdidamente. Criativo e brincalhão é também um pouco desastrado, sempre queimando os pratos que tenta fazer pro namorado, ao contrário de sua reencarnação, que é um excelente cozinheiro. Sofreu com a desaprovação de sua família e também com a morte de seu namorado, a quem seguiu no suicídio, para que nunca se separassem e voltassem a ficar juntos, algum dia, como haviam prometido.

Korn (Nine Noppakao) é sério e discreto. Filho de membros da máfia tailandesa ele não concorda com os negócios da família e prefere se dedicar aos estudos. Sua atenção é desviada quando conhece In, que de tanto insistir consegue conquistá-lo e se tornar a pessoa mais importante de sua vida. Infelizmente seu pai proibiu seu relacionamento, o que levou Korn ao limite de cometer suicídio, já que não podia ficar ao lado de seu amado. 


Também temos outros personagens no elenco de apoio, como Win e Team (Boun Guntachai e Prem Warut) que fazem um casal que possivelmente será desenvolvido  num spin-off da série e Del e Don (Pannin e Mix), irmãos de Dean, com quem têm uma relação difícil, que muda com a chegada de Pharm à vida do jovem nadador. Também tem a icônica Manow (Samantha Melanie, de Love By Chance), a hilária melhor amiga de Pharm e Team, alívio cômico da série.

Enfim, depois das apresentações, o veredito: a série pode ser definida numa única palavra, e é "lágrimas". É impossível não se emocionar pelo menos uma vez por episódio, seja pelas recordações de In e Korn ou pelas descobertas do amor de Pharm e Dean. Todos os episódios apresentam uma narrativa dramática, com muitos momentos românticos. O choro é incontrolável, da primeira cena (literalmente) até o último episódio. 

Gostei da dinâmica entre os dois casais. Enquanto Pharm é um ótimo cozinheiro, Ir era um desastre na cozinha. Agora Dean cuida de Pharm toda vez que ele se sente mal, o que acontece bastante porque o menino é bem sensível mas, antes, era In quem cuidava de Korn, levando o moço para a praia ou para comer coisas novas. 

Algumas pessoas reclamaram do ritmo da história, que acaba ficando um pouco lento na segunda metade da série. De fato eu acho que eles passaram muito tempo mostrando coisas não tão importantes e cenas demasiado longas e deixado o clímax da história meio corrido. O enredo de mistério não é muito bem desenvolvido, afinal eles morreram e se reencontraram anos depois, a relação das famílias não é assim tão importante, ao eu ver, mas nada que comprometa a obra. Aliás, não ouve um episódio sequer que eu não tenha chorado e, ao ver o último episódio muitos minutos antes de escrever essa resenha eu já queria recomeçar a ver tudo de novo. 

As cenas são muito bem construídas, a química dos atores excelente. Fluke e Earth dão um show de atuação, estão simplesmente fantásticos. Fluke consegue chorar como ninguém, coitado, chorou em todos os episódios e não foi pouco, aposto que alguém da equipe andava com uma garrafinha de água atrás dele o tempo todo. Ohm e Kao, por outro lado, são mais extáticos, mas talvez seja por conta dos personagens, mais séries, mas ainda achei que faltou um pouco mais de emoção neles. A fotografia é bonita e a série tenta ao máximo não romantizar o suicídio, mostrando o tempo todo o quanto a consequência dele são horríveis para todos. 
A trilha sonora é impecável, de novo temos Boy Sompob nas faixas principais, e outras canções simplesmente maravilhosas. Quer música pra chorar pelo amor não correspondido? Essa é a trilha sonora ideal. Até a música tema, seja na voz do cantor ou do elenco ficou tão linda que aparece todos os dias no meu feed, de tanto que escuto. 

Por fim, temos então um drama daqueles, quase épico, que garante uma história linda, que mostra que o verdadeiro amor pode vencer qualquer coisa, desde o tempo ou a distância até as maiores tragédias. É ideal para quem quer uma série doce, com muitas cenas românticas e muitas, muitas lágrimas. Sem dúvidas entrou pro rank das minhas favoritas. 

10/10

"Desde que você entrou na minha vida eu me tornei o garoto mais sortudo,
 fique comigo para sempre."