quinta-feira, 5 de março de 2020

Do lobo que vagueia

Acho que, algumas vezes, tenho de voltar atrás com algumas observações feitas. Nem tanto por uma errada forma de expressão, mas talvez por uma impressão equivocada. Algo que só tenha se revelado depois de desanuviada a visão, num momento de particular clareza. 

Penso que esses momentos se deem durante a solitude. É na solidão que encontramos o necessário para digerir aquilo que foi percebido na companhia das multidões. É na solidão que encontramos, como disse o filósofo, a dupla graça de estarmos sozinhos e de não estarmos com os outros. 

Agora percebo, e creio ter muita razão no que digo, que não fui abandonado, não. Não fui traído, apunhalado e largado sozinho para morrer. Não. Minha condição sempre foi a de solitário. Mesmo acompanhado minha alma ainda estava sozinha, tão sozinha quanto meu corpo agora, neste quarto fechado e escuro. 

E também percebo, pouco a pouco, os mundos em que cada um vive. Alguns como bestas sem nenhuma razão a não ser a luta constante, outros em intocável prazer e outros ainda em grande ignorância, disfarçada de forma e palavras humanas. Observe, por alguns instantes, o que um homem é capaz de fazer para conquistar uma mulher e me diga, com alguma razoabilidade, se pode-se afirmar que aquela pessoa encontra-se num estágio humano, senão que encontra-se num mundo completamente animalesco, exibindo-se como um pavão ou, mais apropriadamente, um bugio, para a fêmea com quem deseja copular. É patético. E não estou nem sequer um pouco acima disso. Não importa em qual estágio esteja ainda continuo preso a mesma roda de dor. Não importando se sou mais ou menos animal do que o lobo que vagueia em meio as estepes. 

Não vejo possibilidade de melhora, a não ser por alguns poucos que conseguem escapar desse ciclo, o que não parece ser meu caso pois estou longe de me desprender dessa realidade, senão que me sinto cada vez mais preso, ainda que pouco a pouco me liberte desta ou daquela corrente. Ando como quero, pinto-me como quero, canto e escuto o que quero, mas ainda não é o bastante. Ainda falta algo. Liberdade é pouco, o que eu quero ainda não tem nome, disse Lispector, atormentada. Lispector queria libertação dessa roda. 

Mas nada parece melhorar, tudo parece mergulhar cada vez mais fundo no oceano da destruição. Fome, doenças se espalhando, a ciência reduzida a um cientificismo barato que acredita que tudo se resolve com medições laboratoriais e artigos publicados em revistas que ninguém lê, barragens se rompendo, pessoas se matando e tudo o que consigo desejar é me conectar com alguém, tocar um coração verdadeiramente. Não digo um amor, um namorado, mas o que quer que seja, um amigo ou até um desconhecido. Só queria experimentar o que é a completude, o que não se sentir sozinho o tempo todo. 

Sempre estive a vagar sozinho, numa multidão de cegos que andam sem saber onde querem chegar num corre corre sem fim. Fora tragado pelo destino como uma folha revolvida pelas forças de um furacão, sem nenhuma chance de escapar. Termino sozinho, no sentido literal e poético da coisa, e sem perspectivas de sair daqui. Vislumbro-me como um Bukowski, com o rosto marcado pelas rugas e linhas profundas de descontentamento existencial, marcado por uma desesperança arraiga no recôncavo mais profundo do ser, rodeado de garrafas vazias de ópio ou cartelas de clonazepam, usados numa fuga momentânea da realidade para alguns poucos instantes de prazer. Um Tchaikovsky tuberculoso, sozinho no seu quarto imundo, chorando pelo seu amor impossível, sem nunca ter ouvido o réquiem que compusera para si mesmo. Mas será esse o meu fim? Infelizmente parece-me que não. 

Tão logo começo a adormecer as pessoas tornam a me procurar, entram sem bater, gritam sem parar, e eu me sinto novamente pressionado, pela solidão de estar preso numa multidão. E eu só queria fugir, dos encontros e reuniões, só queria poder ficar aqui, como um cão lambendo as próprias feridas, aproveitando minha solidão, onde não sou obrigado a contemplar esse quadro bizarro que é a vida humana. 

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