sábado, 31 de outubro de 2020

O Meu Pé de Laranja Lima

"A angústia é a vertigem da liberdade." 

(Soren Kierkegaard)

É o sofrimento do homem, de toda humanidade, sob os olhos de um garotinho, um molequinho pequeno, como se nunca vira, mas muito inteligente, e que gostava de aprender palavras novas e brincar de filmes de cowboy. Vivia na pobreza, beirava a miséria absoluta, família grande, pouco pão, sem presentes no Natal.

O refúgio se dá no coração, no interior o homem encontra a paz que o mundo lhe tira. No interior o pirralho pobre com os pés cheios de poeira da rua pode ser um grande herói, lutar contra índios malvados, pode visitar um zoológicos com os animais mais ferozes do mundo, dóceis sob as jaulas de sua imaginação. Seu confidente é apenas uma pequena árvore, que ainda nem deu seus primeiros frutos. Entre uma surra e outra, pois nascera com o diabo no corpo e era muito levado, sentava-se a sua sombra e conversavam sobre as mais diferentes coisas, sobre como o copo da professora não tinha flor porque ela era feia, sobre como o Portuga fora o pai que ele escolheu para si, até ser levado por aquele assassino de ferro, e isso não era um sonho. 

O mundo é difícil demais para viver sem uma boa dose de imaginação. A fuga para esse lugar é quase inevitável, olhar ao redor sem essas lentes é doloroso, e nosso olhar se torna vazio porque aqui fora não há cores, mas há muitos dessabores. Há palavras duras, há mãos que machucam, sangue que escorre e marcas nas costas da ira descarregada sobre os menores e mais fracos. 

As vezes encontramos uma alma boa, uma alma que se interessa, que se compadece, uma alma que mostra algo de belo no mundo. Não é verdade que no mundo não há cores, mas é verdade que nem todos podem vê-las. Muitos estão ocupados demais tentando sobreviver, muitos estão ocupados demais com a realidade para enxergar a verdade por trás dessa realidade, a verdade que há um mundo, a verdade que nem tudo precisa ser ruim e feio. 

O sofrimento humano. Meditando esse sofrimento o homem pode entender um pouco de si. Kierkegaard foi quem trouxe de volta a prática de enxergar na experiência o que se pode usar para compreender até a metafísica mais complexa. É daí que parte tudo o que podemos conhecer de verdade. O desespero humano, diz ele, a vontade que temos de nos tornarmos nós mesmos, de a cada dia buscar construir mais e mais e esse Eu que há em nós. De toda experiência há um pouco do Eu, e de toda escolha há mais ainda um Eu. 

Mas o Eu às vezes encontra obstáculos, por isso o desespero, e no seu limite há a perspectiva do fim, da morte, do atirar-se frente ao trem para acabar com o sofrimento de ser tido por todos como não mais que um estorvo, um diabinho em corpo de menino franzino. Essa é uma parte difícil da vida, a mais difícil, e quando passamos por ela, frequentemente perdemos a capacidade de ver o mundo senão com outros olhos além do cinza, sem graça, sem vida, tristes pelo pé de laranja lima que fora arrancado. O fim do sonho, o encarar da realidade, o desespero humano, doença até a morte. 

A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas. Fiquei alisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor; ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor. 

(José Mauro de Vasconcelos)

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A Grande Porta

Tem algo de errado com você, sabia? Ou você sabe e simplesmente finge que não percebe? Tem algo de errado com você. Você é um objeto que pretende ser humano. Você é um vaso quebrado, sem utilidade alguma. Olhe profundamente dentro de si mesmo. Você nota a presença quase intangível e invisível que espreita sob o seu desperto no interior dos seus sonhos mais sombrios. Você sente essa verdade, sentada numa cadeira de prata, olhando diretamente para você, que está sentado no chão, sujo e miserável. 

"Eu sou o que você chama de Mundo. Ou talvez o Universo, ou talvez Deus, ou talvez Verdade, ou talvez Tudo, ou talvez Um... E eu também sou Você. Bem-vindo, tolo ignorante que não conhece o seu próprio lugar." 

(Fullmetal Alchemist Brotherhood)

Você o olha com um misto de medo e admiração, você o olha com o horror de quem sabe que aquela é a verdade, a sua verdade. Diante de mim, atrás dele, também se encontra uma grande porta, gigantesca, com imensos símbolos, um sol e outras coisas que eu não entendo o que são, cunhados profundamente no que me parece ser uma rocha, negra como petróleo. Atrás de mim há outra porta, essa com uma imensa arvore sefirótica cravada na pedra, também não sei o que isso significa. 

Ele se parece comigo mas algumas coisas são diferentes. Não tem a barba longa com quem esqueceu de se cuidar meses atrás. Não usa roupas velhas e rasgadas, pelo contrário, usa um longo manto de tecido nobre, sua pele brilha com viço, seu cabelo é liso e cai sobre parte da testa e os ombros, suas mãos estão postas sobre as pernas cruzadas e, em seu rosto, um sorriso satisfeito, de quem finalmente encontrou algo para se divertir.

Ao contrário dele eu estou sujo, minhas pernas tremem tanto que eu nem consigo me colocar de pé. Meus braços estão ralados e minhas unhas sujas de sangue e terra. Meu cabelo, macilento e desgrenhado, o olhar vazio. 

Entre nós há uma pequena mesinha de madeira, mogno. Sobre a mesa está um jarro, uma cerâmica delicada pintada de azul, clarinho. Mas ele está quebrado, pedaços ao seu redor e, no que restou, grandes rachaduras indicam que aquilo logo se desfará por completo. 

De nada adianta um jarro quebrado. Ainda que fosse possível consertar ele não seria mais do que um objeto quebrado, um remendo. Ninguém quer um vaso assim, e aquele vaso também sou eu. E ele olha para aquele vaso com um deleite estranho. 

Levanta-se, com a imponência de um rei ou de um general, e com uma das mãos lança longe aquela pequena mesinha, espalhando os cacos por toda parte. Ao colocar a capa para o lado com o braço ele revela uma espada em sua cintura. A bainha é de um negro brilhante, com pequenas gotas de cristal. Ao desembainhá-la, a lâmina revela-se fina e de um brilha espetacular, é um prateada e tem inscrições ao longo de seu corpo que eu não consegui ver o que era. Tentei entender o que se passava, ou ouvir o que ele dizia enquanto se aproximava de mim a passos lentos, os olhos azuis frios como gelo, erguendo a espada, cruzando o braço acima de seu ombro. A porta atrás dele começa a se abrir, lá dentro há uma escuridão amedrontadora e uma grande olho envolvo em tentáculos que terminam em pequenão mãos, pululando ao seu redor. Ele se aproxima com a espada erguida, vejo uma luz muito clara a me cegar. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Resposta

Eu não sei como conseguem pensar em tantas coisas, tantas bobagens sem sentido algum. Eu não sei como as pessoas conseguem olhar para o calendário, imaginando o fim de semana e, com isso, pensando na sua realização numa lata de cerveja e em alguns pedaços de carne assada. Eu não consigo. Não vejo sentido em nada disso e, não vendo sentido tudo se torna um incômodo, tudo se torna uma chateação sem fim. Eu não quero nada disso, eu não quero... Ah, mas o que eu quero? Eu quero descobrir o que eu quero, mas eu só sei que não quero isso, não quero ser como os outros que encontram nas pequenas alegrias da vida um sentido maior para tudo o mais. Não. Se o sentido da vida não for algo grandioso, algo que realmente faça valer a miséria que é ser obrigado, eu realmente não vejo porque deveria haver um sentido. 

E eu nem sei o que me deixou assim, simplesmente abateu-se sobre mim, simplesmente fui agarrado por tentáculos gelados que me levaram a uma contemplação horrenda do vazio existência, simplesmente fui tomado pelo peso absurdo de um jugo de mil toneladas, lançado sob minhas costas...

Não sei, mas ainda assim estou irritado, muito irritado. Qualquer um que olhe para mim acaba me estressando. São sorrisos bobos, histórias tolas, perguntas idiotas, e eu não quero isso, quero apenas poder ficar aqui, remoendo a inutilidade da minha existência. Eu não quero ver ninguém, responder ninguém, não quero tomar banho ou comer, não quero ter que responder se estou bem ou se estou com fome, não quero ter que sorrir, não quero... Eu só quero ficar aqui, até que se esqueçam que eu existo, até que eu mesmo esqueça que eu existo. Eu acho que não queria existir, existir é um saco, é um tormento atrás do outro, e é todo dia a mesma coisa. 

O nascer do sol, o início de um novo dia, de um novo dia terrível. O pôr do sol, o fim da vida. Mas não um fim rápido e limpo como o corte de um machado, não, um fim demorado como uma serra, que maltrata, rasga a carne e tritura os ossos antes de permitir a partida. É por isso que o dia é sempre horrível, porque prenuncia a noite mas com vagareza e, quando a noite finalmente chega, é só um breve intervalo até que o novo dia desponte, e as desgraças continuem, uma após a outra, marchando diabolicamente em nossa direção, punhos em riste, para cravar bem fundo em nossa carne as marcas de sua diversão sádica, diversão maldita. Ela ri-se de nós em cada uma das malícias que nos inflige, ela se diverte com cada lágrima, com cada gota de sangue derramada. 

Mas que inferno que não há resposta! Que inferno que parece termos sido jogados aqui sem motivo algum! E se de fato o fomos, e se o sentido da existência for simplesmente existir, por qual razão simplesmente não nos disseram isso? Se pensaram que seria óbvio, existir porque existimos, não o é, não me parece óbvio. A todo momento parece que queremos algo, que estamos em busca de algo, isso porque algo deve ter sido tirado de nós, e é isso que nós queremos, voltar aquele útero de perfeição que perdemos há muito tempo atrás. Mas nem sequer sabemos o que é isso, tateamos como cegos num quarto escuro à procura de um gato preto que nem sequer sabemos se está lá. Mas que raios de existência é essa que não há razão de ser e, se há, donde está que não conseguimos encontrá-la depois de tantos séculos de busca? Mas que inferno de existência é essa que não há resposta? 

E, sendo condenado a ver tudo isso, eu não consigo me comprazer nos divertimentos dos homens. Não é um alívio, não é um momento de relaxamento, é apenas uma tortura sem fim... Mas o que é isso? Que vida é essa? Qual a razão de eu ter de estar aqui? Qual a razão de levantar cedo todos os dias, de ver família e amigos, de ser obrigado a conversar, conviver, me relacionar? Isso é tudo um saco, é tudo muito chato, e até mesmo o fato de escrever isso é um saco. Quem é que vai ler essa porcaria? Aliás, de que vale escrever essa porcaria? De que vale qualquer coisa ou qualquer um de nós? Nossa vida é só u grão, dura o tempo de um bipe, um aceno, não é mais do que um pequeno grão de areia na praia, nossa vida é, no máximo, um nada. E, no fim, quando finalmente deu-se o nosso tempo por esgotado, isso tudo, toda essa porcariada a que somos obrigados a encarar dia após dia, simplesmente acaba. E tudo retorna ao nada, e ainda bem. Só é uma pena que retorne logo. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Alguns dias

Não é qualquer dia que dá para sair da cama, conversar com os amigos e a família normalmente. Não é qualquer dia que dá pra encarar o mundo, ver as coisas como elas são. Em alguns dias simplesmente não há alternativa para a fuga, em alguns dias o ansiar pelo sono se torna a única esperança, o torpor o único remédio, o único abrigo da tempestade. 

Mas os outros não entendem, como sempre. Confundem com a simples indolência, assim como confundem sua atividades patéticas, seus objetivos medíocres e desejos imediatos, com aspirações verdadeiras, com inspirações de uma existência real, significativa. Os defensores ferrenhos da mediocridade podem dizer que estou errado, que o significado de toda existência humana está em si mesma e não no que ela crê ou produz. Bom, pode ser verdade, mas é um significado evanescente que se esvai no instante mesmo em que cessa o respirar do ser. O significado maior do homem tem de estar em algo além do próprio homem, que o transcenda. 

O problema é que, olhando ao meu redor, não vejo nada assim. Senão que tudo o que vejo é a mais absoluta miséria espiritual, o mais ferrenho comprometimento com a feiura, com a ignorância, com o horror de uma vida mesquinha que se compraz numa cerveja gelada ao som de qualquer música barulhenta que se possa imaginar. É mais uma vez o prazer imediato que se confunde com o objetivo de vida. Mas é só isso? Isso é tudo que a vida tem a oferecer? Prazeres que se vão e desaparecem como fumaça ao vento? Nossas vidas são como folhas ao vento que logo somem? Se assim for eu prefiro não sair, prefiro não comer, prefiro não conversar. Tenho pavor ao que é simplesmente passageiro em si mesmo, ao que vem, encanta e vai embora. Tenho pavor ao que é vazio de significado. E, por isso mesmo, tenho pavor ao mundo que me rodeia, cujo único significado que ele me oferece é o de ser fechado em si mesmo, isto é, não há significado algum. 

Hoje não. Por hoje eu prefiro, a exemplo desse próprio mundo, me fechar em mim. Mas diferente do mundo eu não vou ficar aqui, embora não saia daqui. Eu vou contemplar o mundo mesmo que o meu horizonte imediato me nega. Eu vou para aquele lugar, lá em cima, onde posso ver os grandes espíritos desse mundo e que o transcenderam de tal modo que achegaram-se a mim apesar do tempo e do espaço, aqueles espíritos grandiosos, maiores do que tudo o que eu conheço e de que tudo o que eu já vi, espíritos que me erguem a mão, me levando para bem longe daqui, de toda essa poeira, de toda essa horrenda realidade. Fico no mundo dentro de meu próprio mundo, longe de todo mundo. 

Me vem uma forte onda de ira, o sangue ferve pouco a pouco, me consumindo, sinto meus olhos arderem entre lágrimas e chamas. O controlar-se torna-se inviável. As horas passam sem que eu perceba, ficar deitado no escuro, ignorando a todos é a única coisa que consigo fazer. Não pensar demais, fugir para um sono benzodiazepínico, sonhar com qualquer coisa que não seja o que há além dos umbrais do meu quarto, é só o que dá para fazer.  Só posso esperar até que o torpor se vá, até que a cólera cesse, até que as coisas se normalizem e o peso que caiu sobre mim, sem motivo, se esvaia e eu consiga erguer a cabeça novamente. 

Então não me convide para sair, não chame o meu nome. Não vejo razão para sair, não vejo o que pode haver lá fora que me agrade. Se não há amor, se não há verdade, se não há bondade, se não há justiça, se não beleza acima de tudo, não há razão para sair e existir ali. Então, me deixem aqui, deixem que eu chore pela minha sorte e que eu suspire, pela liberdade. 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Sensação

Hoje me assustei, com minha própria reação ante a sua presença. Me assustei ao perceber que, de frente pra você, o meu coração bateu mais forte, me assustei ao perceber que mesmo brevemente a sua presença melhorou o meu dia. Tocar em você, ouvir sua voz, me deixou quentinho por dentro, feliz. É um sentimento diferente e me deu um pouco de medo, preciso confessar, já que todas as vezes que alguém despertou em mim uma reação parecida as coisas não acabaram muito bem. Mas ainda penso que em relação a você as coisas são um pouco diferentes, não que eu sinta que tenha alguma chance, não que eu sinta que um dia haverá um 'nós', mas que pelo fato de já sermos amigos tão próximos, tão queridos, a minha reação não foi arrebatadora, não foi uma reação apaixonada daquelas que nos faz perder o sentido e a razão, mas uma sensação boa, tranquila que, como disse, aqueceu o coração e me fez sentir acolhido. 

Eu escrevo nesse momento ouvindo o ritmo da água caindo da calha que fica próxima da minha janela, e o toque repetitivo da chuva no vidro e no chão me dão também essa sensação, esse acolhimento. Estava até agora pouco enrolado em um cobertor, encolhido na cama, e pensando justamente nessa sensação que guardei com tanto carinho no meu coração e que espero não me esquecer dela nunca.

Mas também espero que ela não se transmute. Torno a dizer que tenho medo que esse calor se torne aquele fogo abrasador que se inflama em meu peito de tal modo que consome todo meu ser, deixando-me apenas as cinzas frias daquele dia da ira. É, é isso. Um misto, uma tensão, entre o carinho e um sentimento puro e bom, e um medo, um prenúncio, que me faz ficar com um pé atrás em relação a você. E acho que não há mais nada, e nem seja preciso, a dizer.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Clichês

Um fator inusitado me fez pensar em alguns aspectos da minha vida, e me deixou no chão com algumas constatações óbvias que, no entanto, eu sabia e fingia não saber, me dando uma rasa ideia do quanto ainda minto para mim mesmo, do quanto sou imaturo e do quanto ainda vivo no meio de uma tensão entre duas visões distintas da vida, do meu eu, e do meu futuro.

Não sou muito afeito de comédias românticas, ainda mais as clichês colegiais com líderes de torcida e galãs que se revelam homens gentis e sensíveis, surpreendendo a mocinha e conquistando legiões de fãs apaixonadas, iludidas com essa visão do amor como força superior, capaz de superar barreiras, capaz de nos fazer ver o que estava bem diante dos olhos, capaz de virar o mundo de cabeça para baixo num assomo apaixonado que mudará a vida dos dois para sempre. 

Pelo menos não sou afeito aos clichês ocidentais e héteros, mas isso já é um detalhe. 

Me surpreendi quando me vi empolgado assistindo algo assim. Muito provavelmente resultado de uma introspecção que nos últimos dias vinha se prenunciando e que acabei por assumir inteiramente hoje ao fugir do barulho do exterior. De qualquer modo eu quis assistir, por algum motivo masoquista que não quero investigar agora, fugindo de mim mesmo uma vez mais. Bom, que sou um covarde não é novidade para ninguém, então me deixe prosseguir.

Eu sorri de uma maneira até mesmo macabra, diga-se, quando percebi, com uma vergonha que não disfarcei, antes disso, mas que pronunciei em alto e bom som, que na verdade aquela era a história de amor que eu tanto desejo. Sim, que eu desejo, no presente. Que eu desejo mesmo declarando, com sinceridade, não crer mais no amor. Mesmo tomado de uma desesperança e olhando para as relações humanas com a mesma reação com que um cientista olha para suas plaquinhas de petri, com a mesma frialdade que um mineralogista trata suas peças. 

É essa a tensão que há em mim, e que eu buscava fingir não existir, disfarçando-a com ares de frieza quase fingida. A verdade é que eu nunca consegui esconder um sorriso ou um olhar apaixonado, mas as minhas palavras apenas conseguem cantar as tristezas e, se a boca fala daquilo que o coração está cheio, eu digo que estou repleto de desamor, mas que o que transborda ainda é o amor que sinto e que desejo sentir. 

Fechando os olhos antes de dormir, naquele exato instante entre a vigília e o sono, eu sempre vislumbro um sonho cor de rosa. Cenas bem dignas de qualquer filme adolescente água com açúcar. Eu me vejo correndo em campos ensolarados e floridos, sorrindo ao brincar na praia enquanto a espuma do mar toca as nossas pernas ou deitados em algum lugar distante, observando as estrelas enquanto cantamos ao som de um violão na companhia apenas um do outro e de uma boa dose de paixão. É o amor que sonho para mim, mesmo que seja numa história trágica, mas que ainda seja amor, amor de verdade, como nos filmes e nos livros. Se ele não existe, por qual razão falam tanto sobre ele? Por qual razão nos fazem tanto querer esse amor mais do que tudo? Por qual razão se esforçam tanto para nos convencer de que ele existe? Tentam convencer a si mesmos num raciocínio psicótico circular em que, convencendo a nós, nós os convencemos? 

É, eu penso sim nessas coisas e acabei me tornando um solteirão amargurado. É, não há forma melhor de descrever. Eu amaldiçoei o amor com as minhas palavras porque em meu coração eu o desejava mais do que qualquer outra coisa e ele me foi negado. Eu desisti do amor justamente porque sentia, e ainda sinto já que o filme não mudou isso, que ele havia desistido de mim. 

É sempre estranho assumir algo que se tentava esconder, principalmente quando se tentava esconder de si mesmo, mas acho que nunca enganei ninguém nessa história de não acreditar no amor. O meu niilismo é existencial, e o amor é apenas mais uma das coisas em que eu quero acreditar justamente por não ver razões para acreditar nele, já que essa visão, a da realidade, é demasiado dolorosa para ser suportada sem uma boa dose de clichês, e de remédios para dormir. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Horizonte

Gosto muito de olhar o céu, principalmente em dias como hoje em que o cinza deu uma trégua no azul brilhante de algumas horas atrás. Não gosto muito da luminosidade, machuca os olhos. Sempre gostei mais da penumbra, do que não se mostra claramente, daquilo que, revelando-se, esconde-se. 

Os dias nublados são sempre uma fonte inesgotável de reflexões. Abrandando o calor ele pode se tornar uma agradável experiência da clemência de um universo que se equilibra, de um todo que permanece em constante mudança; mas também pode ser uma tempestade, daquelas que destroem tudo por onde passam, acompanhada de ventos impetuosos que revolvem a terra, destampam as casas, matam os animais. É algo que mostra-se, esconde-se, e de uma forma ou de outra, não temos controle sobre ela.

As coisas que podemos controlar são mínimas. E ainda existem pessoas que dizem que os atos dos homens são mais certos que os de Deus! A verdade é que controlamos pouco ou quase nada do mundo que nos circunda. Eu posso controlar mais ou menos o horário em que como e que acordo, a roupa que visto, se vou escrever ou ler alguma coisa. Mas não vai muito além disso, ninguém controla mais do que o mundo imediatamente ao nosso redor. Nesse ponto somos parecidos com os animais, com a diferença de que eles apenas percebem o mundo ao redor, ao passo que nós, percebendo mais do que isso, não conseguimos mudar muito mais do que eles. 

Claro, podemos mudar ainda, de algum modo, o nosso futuro. Quem somos está diretamente ligado as escolhas que fazemos diante das portas que se abrem a nossa frente. Ainda que pareça que nenhuma porta se abra para que tomemos uma decisão, não tomar decisão nenhuma já é, por si mesmo, uma decisão. 

Eu permaneço sentado diante do umbral de uma dessas portas. Tomei a decisão de caminha pelo caminho daqueles que não sabem que caminho seguir. Não sei o que quero, o que procuro, o que desejo, e por isso mesmo continuo procurando. Ou talvez diga isso para me confortar perante a pressão imposta para que todos tenham e corram atrás de um objetivo. Alguém sem nenhuma perspectiva soa ao mundo uma pessoa que desperdiça a própria vida. Desculpe decepcioná-los, mas a convenção social não é suficiente para despertar em mim um interesse que possa ser objetivamente uma razão para a minha existência. Quanto a isso, a maior parte das pessoas ao meu redor aprecem carecer do mesmo problema, com a diferença de que se contentam com pequenos objetivos imediatos a serem alcançados. Não são diferentes de mim que, não sabendo o que espero ver daqui dez ou vinte anos, apenas toma pequenas decisões como não cortar a barba ou comer macarrão instantâneo ao invés de salada. 

Acontece que olhando o horizonte de um dia nublado eu sei que posso esperar pela chuva, ou pelos ventos, ou pelo som retumbante dos trovões, pelo clarão dos relâmpagos, posso esperar por essas coisas. Mas olhando o horizonte da minha existência eu não consigo contemplar mais do que o fracasso de um fim sem sentido pra uma existência sem sentido. 

Sei que eu poderia traçar algo pra mim, me debruçar em livros e mais livros... Mesmo que estudar seja uma das poucas coisas que eu ainda faça eu não vejo nisso mais do que um paliativo, um alimento pra uma sede que eu tenho, é verdade, mas que também sei que não é diferente de uma necessidade como comer ou dormir. Ainda que o faça hoje precisarei fazer amanhã também, e uma vez posto as coisas desse jeito não me parece algo tão nobre assim...

Mas o que eu estou dizendo? Se meu professor sonhar que eu penso algo desse jeito ele me mataria com certeza. Não é bem verdade que pense assim, já que a atividade intelectual é a única que me parece, num mundo de atividades inúteis e sem sentido, pelo menos capaz de tornar o homem ciente de sua própria condição. Já é alguma coisa. Por isso os homens das letras são já, por isso mesmo, maiores do que todos os outros, pois, sendo homens, conseguem eles ver a condição mesma do homem, ainda que esta seja uma visão aterradora, decepcionante, lastimável. Daí muitos dos grandes pensadores não serem pessoas muito afeitas a sorrisos e brincadeiras. Ao passo em que todas as outras pessoas parecem contentar-se facilmente com divertimentos baratos. 

Há, no entanto, uma necessidade de que os divertimentos sejam inteligentes ou que todos fossem despertos de sua letárgica condição de bonecos de corda nas mãos de um destino misterioso? Não creio que seja uma necessidade, tanto é que essas pessoas, as dos divertimentos baratos e que se contentam em não se questionar sobre a própria vida ou a razão do próprio ser, não são minoria, são a quase totalidade das massas, ao passo que aqueles que desejam o contrário são justamente vistos como os estranhos da história. Tudo bem, mas eu não gosto da sensação de estar cego, fingindo saber o que quero quando na verdade eu não faço ideia, fingindo que sei o suficiente quando na verdade não sei de nada. Ao menos o que for possível eu quero descobrir. Se a realização dos outros está no churrasco do fim de semana com musica ruim e mulheres com pouca roupa, bom, eu não faço ideia de onde esteja a minha realização, mas sei que não está ali. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Um grão

Já há dois dias que a chuva cai fraquinha lá fora. O barulhinho das gotas batendo na telha ou na janela é reconfortante. Ontem foi um dia de muita correria pra mim, as coisas na igreja ficam muito agitadas em dias de solenidade e, como resolvemos celebrar a festa da padroeira que havia sido cancelada em maio por causa da pandemia, o dia foi bem cheio, e já fazia algum tempo desde a última vez que eu passava o dia assim. 

Além de ter de preparar uma celebração com tantos detalhes, desde cada alfaia até as músicas mais complexas, a ansiedade crescente deixa os músculos numa corrente permanente de tensão. Depois, quando finalmente cheguei em casa, quando a pressão foi retirada de mim, o peso do cansaço se abateu de um jeito inacreditável. Eu sequer conseguia andar ou conversar direito. Meus olhos estavam fundos, minhas mãos tremiam e, depois de ter cantado tão alto, minha voz ficou cansada por muito tempo. Quando eu finalmente dormi simplesmente apaguei. 

Hoje quando acordei eu me senti ainda muito cansado. Dormi quase o dia todo, e a chuvinha só ajudou. Não tenho tido muito no que pensar atualmente, e por isso não tenho escrito muita coisa. Acho que minha mente tem se simplificado, não é como se eu continuasse pensando em todas as coisas, cada aspecto, da minha vida e andando em círculos sem encontrar nenhuma solução. Dessa vez é como se eu estivesse letárgico. É mais simples. Eu penso no que preciso fazer, ir pra igreja e estudar, e penso no que sinto. De resto, tudo o mais é no automático. Já não penso muito em coisas como comer ou vestir. Não me preocupo. Percebi que usai a calça de pijama na missa e uma camisa nova pra dormir, também percebi que fiquei dois dias sem tomar banho e já nem sei quantos sem cuidar da pele. Só percebi que estava sem fazer a barba já há dias quando começou a machucar por causa da máscara. Não tenho me esforçado muito, e tenho me sentido bem. 

É estranho falar sobre isso, é como se tentasse explicar o nada. E estava há pouco com isso mesmo na cabeça. O nada. Não tem nada na minha cabeça, e nada é o que tenho para dizer, e ainda que mesmo assim continue dizendo o que estou dizendo é nada. E sobre o nada eu tenho profundidades. 

Tenho percebido, nos últimos tempos, que as coisas são todas uma questão de perspectiva. Todos os problemas, dificuldades, tudo isso visto de longe é completamente sem importância. Sou só um menino na porcaria de um planetinha de nada na vastidão de um universo que ninguém sabe nem se tem fim. Qual a importância dos problemas então? Aliás, qual a importância de qualquer um de nós é pífia, nenhuma na verdade. Na visão geral nossa vida é menos do que um grão. Na visão geral a nossa mísera, pequena, micro, mini, fútil, sem sentido, chata, boba, ruim, azeda, reles, lamentável, mínima vida é nada mais do que só um grão!

sábado, 17 de outubro de 2020

Erro

Eu seria imensamente grato se pudesse passar o resto dos meus dias ao seu lado, segurando sua mão ou sentindo seu cheiro no calor do seu abraço, que é o melhor lugar no mundo pra mim.

E isso porque ali, deitado em seu peito, sentindo seu hálito doce enquanto afagava a minha cabeça eu me senti feliz. Feliz como não sabia ser possível. Feliz. E era assim que eu queria continuar. Feliz. Só eu e você, abraçados, próximos, únicos. Ali era o melhor lugar do mundo pra mim. Você é o melhor lugar do mundo pra mim.

Ficar próximo de você me traz tranquilidade, me traz a paz que o mundo geralmente me rouba, me faz querer ficar ali, ao contrário de todo o resto do tempo, quando eu simplesmente não sei o que estou fazendo ou que estou querendo alguma coisa que não sei o que é. Talvez seja isso. Talvez seja o que sempre procurei. Você é o melhor lugar do mundo pra mim.

Mas eu sei, sinto, que isso não o é, senão que é apenas outra dor, senão que é apenas outra razão para sofrer, outra razão para me fazer chorar. A sua mão, que hoje me afaga, pode me soltar amanhã. E esse é meu grande medo, ficar uma vez mais sem saber o que estou buscando, sem nunca me sentir completo, como me senti deitado contigo, com nossas pernas entrelaçadas, em silêncio, simplesmente ali. É, é só isso que eu queria. Você é o melhor lugar do mundo pra mim.

Eu sinto isso quando começo a prever as suas palavras, quando a ansiedade, o medo e a paranoia começam a falar mais alto no meu coração. Eu já imagino você me deixando, já imagino o dia que você vai embora, como todos os outros, me trocando por alguém que tenha o sorriso mais doce e o olhar mais cativante. E é sempre assim. Não espero que as coisas mudem, não espero algum dia deixar de ser um erro na vida de alguém.

E é assim que me sinto: um erro. Como se meu sentimento fosse um erro, como se por isso ele não se encaixasse, como se eu não me encaixasse, em lugar nenhum, com ninguém. Eu me sinto no lugar errado, na hora errado, com o sentimento errado. Me sinto um erro, e não suporto mais ser esse erro. Queria apenas uma vez ser importante de verdade, ser alguém tão importante quanto outros o são para mim. Mas quanto mais olho ao meu redor mais eu percebo o quanto ninguém precisa de um erro, ninguém precisa de alguém que não se encaixa em lugar nenhum, alguém que só traz confusão, alguém que é a personificação de um arremedo de ser humano que nunca foi capaz de descobrir o que é o amor de verdade. 

Mas ainda assim, e exatamente por isso, eu seria imensamente grato se pudesse passar o resto dos meus dos dias ao seu lado, segurando sua mão ou sentindo seu cheiro no calor do seu abraço, que é o melhor lugar no mundo pra mim.

E sobre o que mais deveria falar? Sobre como tudo está tão chato, sobre como é tudo  assim tão frágil, vazio e sem contorno? Deveria falar contra a alegria e os sorrisos, quando eu não sei se tenho motivos para sorrir e sempre que olho ao meu redor vejo algo que podia melhorar e que, no entanto, não posso melhorar. 

Vejo o quanto esse mundo é reflexo imperfeito da eternidade. Como a transitoriedade, a fraqueza, como tudo aqui é uma sombra fraca daquilo que há de bom, puro e verdadeiro, no hiperurânio, no sobrecéu, no paraíso? 

Sobre como essa vida é uma caminhada longa e barulhenta, uma busca incessante por algo que bem sabemos bem o que é. Sobre como estou perdido e paralisado sem conseguir dar um passo sequer para mudar minha vida, para conseguir um emprego, crescer, encontrar um amor, viver uma vida de verdade e não uma existência medíocre em que a música já não diverte, senão que preenche o vazio do meu peito, o vácuo do meu próprio coração.

E só espero que não venha mais ninguém, aí eu tenho você só pra mim. Mas isso não seria verdade, você não é para mim. É apenas um sonho bobo que tive e que continuei sonhando depois de acordado. 

E continuo sem ver graça nessa constatação, nem tampouco mudá-la. Continuo incomodado com o barulho, com o aperto, com a poeira, continuo incomodado com todo e cada aspecto da minha vida, desde o computador velho e lento até o cabelo que não é liso como eu gostaria, ou a pele clara como desejava, ainda que reconheço com vergonha que não levo uma vida ruim, longe disso, mas é uma vida sem sentido. Uma vida sei graça, assim, sei lá.

Reclamo que o barulho não me deixa pensar, que atrapalha minhas intelecções, mas a verdade é que no silêncio elas também se perdem. Continuo mergulhado em letargia, invejando aqueles que, mesmo de maneira cega e desordenada, ainda têm algum propósito em mente ao chegar o fim do dia. 

Ainda não gosto do barulho das vozes e das musicas baratas, e prefiro o som das hélices do ventilador e da música baixinha no lugar daquela animação louca, aquele divertimento senil que, no entanto ninguém parece notar o quão desesperador é por revelar tão claramente a grandeza do nosso vazio, do qual fugimos e nos refugiamos na banalidade. 

E a única banalidade que eu queria era a de poder segurar a sua mão e deitar sobre seu peito mais uma vez. Eu seria imensamente grato se pudesse passar o resto dos meus dos dias ao seu lado, segurando sua mão ou sentindo seu cheiro no calor do seu abraço, que é o melhor lugar no mundo pra mim.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Encheção de saco

O estado de confusão, aquele espanto, deveria ser o início de intelecção, de todo processo de compreensão. Mas no meu caso, que parece ser claramente uma exceção, é um estado permanente de incompreensão. Ainda que não signifique não que compreenda nada, mas que ao menos compreendo que não compreendo muita coisa. 

Cresci acreditando que o amor podia tocar os corações, alcançar as pessoas. Acho que fruto dos discursos shonen ou dos filmes da Barbie, e as pessoas parecem continuar querendo que eu acredite nisso. Mas hoje eu sequer acredito no amor. Não é que e tenha substituído o ideal metafísico pelos hormônios e explicações materiais, não. Eu acredito na existência do amor, e na forma como muitos o vivem, mas não acredito que eu tenha amor. 

A minha forma de me expressar está um pouco confusa, como se já não bastasse o tema ser confuso, mas ainda estou um pouco tonto por ter acabado de acordar de um sono atribulado por vários sonhos de brigas e choros. Fui dormir culpado por uma decisão baseada puramente num desejo momentâneo, acabei me decepcionando uma vez mais, deixado no estado de confusão que mencionei. 

Mas isso também não é verdade, é apenas o que contei para mim mesmo. Não estou confuso, estava ciente de todas as implicações envolvidas naqueles abraços, beijos e carícias desde bem antes de elas começarem, e continuo ciente agora. Mas a verdade me parece dolorida, e prefiro me esconder atrás desse vidro quebrado, cujo reflexo difuso não me permite ver os olhos vazios que me fitam.

É bonito dizer que o amor é capaz de tocar os corações. Mas não havia amor ali, apenas uma sinestesia, sim, isso é verdade. A sinestesia gerou tensão sexual, os músculos se enrijeceram e enquanto as mãos se moviam confiantes, o coração se afastava dali, contemplando a superfície negra do espelho d'água, refletindo as luzes de uma casa de festas à margem, o grave da música ao fundo, cheiro de erva no ar. 

Sei que tenho um jeito sempre dramático de me expressar. Tudo é superlativo, poderoso seja na presença quanto na ausência, o vazio é tão esmagador quanto uma estrela inteira sob as costas de um homem. Mas é assim que as coisas são para mim. Um homenzinho de corpo fraco que esconde um universo em expansão, explodindo, aquecendo e se resfriando, afastando e colidindo com incontáveis outros corpos. 

Mesmo que essa forma de dizer ainda possa parecer bonita o que estou descrevendo é que até mesmo o prazer da sensualidade perdeu a forma e seus contornos, ficou sem graça. Meu amigo disse que tem medo de que as coisas percam a graça. Para mim elas já perderam. As coisas foram perdendo as cores pouco a pouco, eu fui me tornando cético, pessimista, e apenas olho o mundo ao meu redor esperando dele o pior, esperando seu fim, esperando que a qualquer momento um homem violento entre quebrando tudo ao meu redor. Aguardando ansiosamente o fim dessa encheção de saco. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Subindo uma montanha

Até que ponto as lágrimas podem aliviar? E quando se olha um quadro em que belas flores rodopiam entre casais que se fitam apaixonados, de mãos dadas, e se dá conta que está de pé sozinho numa galeria deserta? 

É assim que me vejo, com uma angústia tão latente, tão pungente, que me faz querer me debulhar em lágrimas, mas as minhas lágrimas não vêm, as minhas lágrimas secaram. Mas ainda olho para o mundo com essa tristeza, essa melancolia que apenas dá lugar ao torpor, mas que logo retorna para turvar a minha visão, apertar o meu coração como uma fina corrente invisível, pouco a pouco me matando, pouco a pouco esmagando meu ser. 

E aquele quadro continua ali, os amantes continuam sorrindo e eu continuo olhando-os sem expressão, com algo preso na garganta, algo que gostaria de dizer mas não consigo, e não consigo pois sei que não resultaria nada. Que diferença faria? Sei bem que eu mais uma vez mergulhei numa paixão de mão única, confundindo carinho e atenção com um sentimento verdadeiro. Deixando que minha carência ditasse as resoluções do que vi e vivi. 

Me irrito, e já nem sei mais quantas vezes me irritei com isso, com o fato de que sempre me vejo na necessidade de ter alguém, como se faltasse algo em mim que só pudesse ser encontrado nos braços de um outro alguém. E continuo buscando nos braços que não querem se por ao meu redor. Os amplexos do meu amado não passam da poesia, quando fujo de casa pela é apenas para saciar algo momentâneo, que no minuto seguinte aparece com ainda mais força. É inútil.

Então vejo as pessoas, cada uma com alguém, ao seu modo. Contatos, namorados, maridos, eu me vejo sozinho. Apenas isso. Sozinho num silêncio que as vezes é quebrado por uma risada ou brincadeira, mas que logo torna a me ensurdecer. É sempre um ciclo de autodestruição. Eu eliminei todas as minhas expectativas em relação as outras pessoas. A dor da decepção da constatação da realidade é horrível. Prefiro aceitar desde início, antes que doa mais. Afinal, o outro é como é. 

Eu vou pouco a pouco me apegando mais do que deveria, como se subisse lentamente uma montanha, dando passos lentos, respirando com cautela. Fico hipnotizado pelo céu estrelado que se abre sobre a minha cabeça, brinco a neve sob meus pés.  Quando chego ao topo consigo ver uma bela paisagem, é aquilo que há muito estava buscando, é o meu paraíso! Mas então quando dou mais um passo eu percebo que não entrarei naquele Éden, senão que despencarei pelo desfiladeiro, caindo vertiginosamente num abismo sem fim, a pela rasgada pelos pedregulhos que me ferem a carne e rasgam minhas vestes e, no fim, mergulho na escuridão. E é isso. 

De que adianta dizer que te amo se meu amor não serve para você e o amor que tem por mim também não me serve? Na verdade não digo sobre o amor de verdade, penso que seja o mesmo amor, o meu e o seu, mas como demonstramos esse amor. Eu não quero mostrar meu amor sorrindo e brincando enquanto você sai e beija outras bocas, eu quero te abraçar, sentir você ao meu lado quando estiver na cama, compartilhar com você segredos, medos, alegrias... Eu não quero ser o amigo. Eu queria uma vez, só uma vez, ser realmente especial na vida de alguém. Não um amigo, não um parceiro de bebida, não um confidente, não um colega, nada disso. Eu queria só uma vez ser o amor de alguém, aquele amor impactante, tão aterrador quanto o amor que sinto, tão intenso, apaixonado, tão grandioso quanto o que sinto. Só uma vez eu queria me sentir mais do que um monstro que não é amado por ninguém.

Quando, da minha condenação semelhante aquelas impostas pelos antigos deuses aqueles que desafiaram os seus mandamentos, acordo, ainda cheio de ferimentos, começo novamente o mesmo percurso. Como a roda do destino que nunca cessa de girar, lançando sua espada mais uma vez. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Savana


Continuamos no meio de algum capricho infantil do universo que decidiu testar todos os limites da nossa capacidade de suportar o insuportável. Pandemia, queimadas, nuvens de gafanhotos e, agora, as temperaturas mais altas de que se têm notícia. Os últimos dias estão absolutamente insuportáveis em todos os aspectos. Não há como sair de casa, o sol parece causticar com violência qualquer um que se atreva a se colocar em sua presença. Os protetores escorrem numa linha de suor e óleo esbranquiçado pela pele. Os humores estão exaltados, o sono é incompleto e continuamos cansados depois que acordamos. 

Como não bastasse a atmosfera já problemática o bastante parece que alguém resolveu ainda instalar um autofalante na minha cabeça, gritando o tempo todo, em termos bastante indelicados, verdades inconvenientes. Sabe, aquelas verdades que sabemos ser verdade mas que distorcemos ao ponto de convencer aqueles que nos cercam de que são mentiras só para que, por meio de um raciocínio psicótico, os outros nos convençam de nossa própria mentira. É uma arma de covardes, ansiosos por demonstrarem uma superioridade que se superponha a mediocridade intrínseca que tanto tememos e que não foi suprimida por meio do reforço positivo dos elogios que recebemos de pessoas ineptas que desejamos agradar. Elogios são uma declaração da nossa própria incapacidade que precisa se atestada por um terceiro porque somos incapazes de nos dar por satisfeitos com a realidade mesma das coisas que vemos. Ao invés de estudar e dizer por sí, por nós, preferimos não fazê-lo e ouvir daqueles que também não o fizeram mas que tem um diploma onde lê-se que fizeram, o que não significa que tenham feito. Entendeu? Mas não, provavelmente você também não entendeu, como em muitas coisas eu não entendi, você apenas acha que entendeu, o que não significa que entendeu, entendeu? 

A ironia termina ainda com o sorriso sem graça da constatação de que tanto desejamos agradar alguém que na realidade nada deveria significar para nós. O amor próprio que se diluiu em relações patéticas agora existe apenas em doses homeopáticas de um ego que suicidou-se e que, tornando a viver porcamente, continua sangrando os próprios pulsos em reparação a dor que é saber que não se é amado por quem se ama, trazendo sentido real a música do gênero desprezível que diz "quem eu quero não me quer e quem me quer não vou querer." Deixando claro que graças ao calor infernal eu não estou em posse de minhas faculdades mentais para citar isso mas continuo não gostando de barulho sertanejo. 

Será que é realmente amor? Ou nos odiamos tanto ao ponto de escolhermos justamente alguém que não irá nos querer apenas para nos rebaixarmos ainda mais e nos sentirmos péssimos por não conseguirmos sequer ser o bastante para uma pessoa bem mediana e fora dos altos padrões? Aliás, por qual razão continuo falando num coletivo quando obviamente estou falando de mim e apenas de mim e daqueles que me cercam? Um símio tentando macaquear algo que leu em algum lugar mas que falava sobre algo importante que deveria ser lido por outras pessoas importantes e não por um primata dotado de capacidade limitada de leitura? Um macaco tentando imitar outro macaco que faz truques que parecem mais interessantes. Adoramos endeusar qualquer animal que consiga saltar em algum galho mais alto ou gritar alguma baixaria como fosse uma declaração universal de sabedoria divina, que se faria ouvir aos quatro cantos do mundo como um imperativo categórico como a nossas crenças, nosso horror ao conhecimento e culto ilimitado aos sinais externos do reconhecimento de um conhecimento que pode, e geralmente nem sequer, existe.

Os períodos em que somos obrigados a ficar na cama, olhando para o teto, esperando algum milagre que possa amenizar o clima, como a queda de um meteoro congelado que, além do alívio térmico, destruiria nossa humanidade, rendem ainda excelentes reflexões sobre nossa insuficiência em completar outras pessoas insuficientes, caminhando todos para lá e para cá como um imenso formigueiro de pessoas incompletas, incapazes, que acreditam que mediocridade é sinônimo de despertar da inveja e que estão doentes demais para sequer perceberem que se encontram num estado abaixo de humanidade, abaixo de qualquer padrão por mais baixo que seja. Somos patéticos e os poucos que conseguiram perceber isso preferem fingir que não são, que na verdade são pessoas incompreendidas, gênios perdidos num safari rodeados por macacos... Que pena! Não percebem que sua impressão não se deve a sua real posição, mas ao fato de que observaram os humanos e agora acreditam que os outros é que não são bons o bastante. Por isso nos retiramos para dentro de nós mesmos, onde nossas mentiras nos oferecem um conforto nessa savana onde nossos maiores predadores são nossos próprios olhos que fingem não ver o que está bem de frente aos nossos olhos. 

Não sei se me fiz entender, de modo que a compreensão já é algo utópico demais para se desejar, mas o fato é que as coisas são assim: soprados pelo ar quente de um ventilador barato nos damos conta de nossa pequenez e de nossa insuficiência, tanto para suportar algo tão banal quanto o clima tanto para ser alguém de valor e importância, para o mundo, para o outro ou para nós mesmos... 

~

Nota: Escrevi sob efeito de uns três ou quatro antidepressivos diferentes, me avisem dos erros por ( e com) gentileza.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Não quero

Acho que aquele torpor voltou, mas não sei bem dizer é isso mesmo. Pode ser um efeito retardado da temperatura elevada num corpo frágil. Pode ser exaustão mental acumulada de muitos meses. Pode ser qualquer coisa e nada ao mesmo tempo. Pode ser uma indisposição para sair do quarto, afinal lá fora é tudo tão ruim. é barulhento, a cozinha é quente, tem crianças correndo, pessoas de cara fechada, a TV num volume desagradável, os móveis apinhados e apertados. Prefiro ficar aqui e me concentrar na voz do professor, do girar do ventilador e nos acordes de uma música que parei de ouvir há muito tempo. Só consigo ficar deitado e pensando no que deveria fazer para melhorar tudo isso. Mas pensar nisso também me deixa ainda mais agoniado a ponto de continuar parado. Deveria parar um tempo, enviar alguns currículos. Há várias semanas eu estou protelando isso. Mas pensar no incômodo de procurar os destinatários, encaminhar o e-mail, esperar a resposta, ir até a entrevista, conversar com pessoas que fingem interesse em qualquer outra coisa que não seja o lucro imoral travestido de funcionalidade, ser aprovado e ser a partir daí obrigado a levantar cedo e suportar toda uma sorte de situações absolutamente indigestas para conseguir comprar algumas coisas que, embora não precise, eu quero, e outras que preciso mas não quero. Eu não quero trabalhar, não quero ver ninguém, não quero responder mensagens, não quero comer, não quero ouvir a vinheta dos jornais, não quero dizer bom dia, não quero contar como foi minha noite, não quero ter que me explicar, não quero ler, não quero ficar sem conhecer, não quero continuar sendo um fracasso, não quero continuar amando, não quero continuar tentando, não quero desistir, não quero continuar sendo insuficiente, não quero continuar indo deitar todas as noites com a sensação de que não sou bom o bastante para ninguém, que por mais que me dedique, por mais que me declare, por mais que deseje, por mais que ame ainda continuo sendo insuficiente, não quero continuar chorando com a doçura dos casais das séries, sonhando com meus possíveis amores, sonhando com o que nunca terei, não quero... Quero continuar deitado, esperando que esse dia acabe, e que venha o próximo, e que esse também acabe, até que por fim, os dias acabem, minha vida acabe e o mundo também acabe, finalmente. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Talvez

Em alguns dias a gente ganha e em outros dias a gente perde. No meu caso os últimos numa frequência muito maior que os primeiros. Ontem a noite eu me olhei no espelho e pensei "eu sou uma grande gostosa!" e hoje, não muito diferente de ontem, eu e me olhei e pensei "devia jogar fora esse espelho."

Tem dias que a gente ganha e tem dias que a gente perde. Há dias que eu consigo passar várias horas atento as mais sutis explicações de filosofias tão complicadas que a grande maioria das pessoas sequer conseguiria imaginar que existem. E há dias, today, que eu durmo depois de alguns minutos e, quando pareço acordar, vagueio para qualquer outro lugar ou penso no corpo magro e no sorriso de qualquer rapaz, exceto no que deveria prestar atenção realmente. 

Me sinto um completo idiota. Penso na voz do meu professor, explicando algo sobre Louis Lavelle e a filosofia da consciência, e me deparo com a imensa diferença entre nós, ignorando o fato de que ele estuda há pelo menos 50 anos há mais do que eu, me culpo por minha inferioridade do mesmo jeito. Olho para as mensagens ignoradas do meu celular, parece que ninguém tem muito interesse nas propostas que faço ou nos observações que tenho. Do mesmo jeito eu penso nos meus amigos, até os mais inveterados solteiros, e como todos ainda têm com quem conversar todos os dias, trocando flertes e sacanagens, enquanto eu coleciono um longa lista de fracassos amorosos, a grande maioria resumida em amores platônicos que sequer chegaram a perceber minha existência e, os outros, onde caí na famosa friendzone, já que aparentemente sou melhor amigo do que amante. Termino quase sempre aconselhando os meninos por quem me apaixono sobre como eles podem se aproximar das pessoas por quem eles estão apaixonados (não consigo mensurar o quão patético isso é). Ou talvez não seja bom em nenhum dos dois, já que muitos dos meus amigos ultimamente também decidiram ir embora. Pois é. 

Acho que na verdade todos os dias são dias de derrota, o que muda é que em alguns deles estamos mais ou menos conscientes dessas derrotas. E hoje, meu caro amigo, eu estou todo trabalhado na derrota. Infeliz e descontente com cada mínimo aspecto da minha vida. Acho que talvez exceto meu cabelo, não tá do jeito que eu queria mas até que tá bonitinho. De resto, desde as minhas unhas manchadas de esmalte preto descascado até os currículos que deveria ter enviado meses atrás e que não o fiz por completa indolência e um ímpeto de torpor depressivo paralisante. É, tem dias estranhos. 

O calor é um incômodo, e me incomodo por estar incomodado com o calor, pois penso que a preocupação demasiada com algo simples como o clima é típico de um intelecto mediano, e quando fico tão suscetível a mudanças de humor por causa dessa quentura infernal é claramente uma declaração de minha inépcia intelectual. 

Sem paciência para as crianças correndo ou para as conversas em voz alta. Gostei de ter ficado algumas horas na beira do lago, vendo a luz refletida no espelho d'água negro, a marola das pequenas embarcações. É, foi uma coisa boa. Mas queria ter terminado a noite abraçado com ele e não simplesmente sorrindo das nossas desgraças no carro com uma ironia e auto piedade quase mórbida. 

Mas eu juro que tinha algo importante pra falar além de simplesmente ficar reclamando em, mais um, texto. Ou talvez não. 

domingo, 4 de outubro de 2020

Silêncio

Eu tentei tirar uma foto minha contra o céu acinzentado do fim da tarde, nesse tempo seco o início das noites tem uma fria, dura, como o calor que caustica e constrange, que nos faz derramar em pequenas gotas de suor, desânimo e fadiga. 

As minha habilidades fotográficas sempre deixam por desejar, não me saí nada bem. Mas ainda assim valeu a pena ter olhado o céu e, não projetando nele o meu estado emocional, sentir que ele se projetou em mim. O fim de tarde é silenciosos. Os trabalhadores voltam para casa enfastiados de seus serviços, humilhados, exaustos. Nos fins de semana alguns já sucumbiram ao cansaço do descanso do fim de semana. O churrasco com a cerveja quente do sol e o som no talo deixou-os mais cansados e estressados do que antes, mas eles não percebem isso.

O silêncio da tarde é também um prenúncio da noite, que é quando a calmaria reina absoluta por debaixo dos olhares brilhantes de miríades de corpos celestes que de lá de cima nos observam. O silêncio é também o recolhimento de alguém que precisa se entender, se reconectar consigo mesmo. Perceber o que deve ser cortado e o que mais precisa ser alimentado. O silêncio, embora assustador, também pode ser refúgio. 

Quem nunca se refugiou no silêncio? Para ouvir o próprio pensamento, a própria voz, ou simplesmente para não ouvir nada mais, apenas para que aquele limbo nos sirva de alguma intelecção. Fuga do que nos assusta, do que grita em nossos ouvidos, fuga disso que percorre nossas veias, fazendo-nos tremer, que nos traz lágrimas aos olhos e deixam nossos amigos sem entender. Mas é preciso entender-se, um pouquinho que seja, primeiro, antes de permitir que os outros entendam. 

E eu espero que entenda. Que entendam o que é o amor, que há alguém que ama sem cessar com coração ardente, que há uma vida de possibilidades, que há muitas canções esperando, que há muitos sorrisos, que há muitos abraços capazes de reduzir toda a existência aquele breve aperto de braços e tocar de corações.