terça-feira, 6 de outubro de 2020

Não quero

Acho que aquele torpor voltou, mas não sei bem dizer é isso mesmo. Pode ser um efeito retardado da temperatura elevada num corpo frágil. Pode ser exaustão mental acumulada de muitos meses. Pode ser qualquer coisa e nada ao mesmo tempo. Pode ser uma indisposição para sair do quarto, afinal lá fora é tudo tão ruim. é barulhento, a cozinha é quente, tem crianças correndo, pessoas de cara fechada, a TV num volume desagradável, os móveis apinhados e apertados. Prefiro ficar aqui e me concentrar na voz do professor, do girar do ventilador e nos acordes de uma música que parei de ouvir há muito tempo. Só consigo ficar deitado e pensando no que deveria fazer para melhorar tudo isso. Mas pensar nisso também me deixa ainda mais agoniado a ponto de continuar parado. Deveria parar um tempo, enviar alguns currículos. Há várias semanas eu estou protelando isso. Mas pensar no incômodo de procurar os destinatários, encaminhar o e-mail, esperar a resposta, ir até a entrevista, conversar com pessoas que fingem interesse em qualquer outra coisa que não seja o lucro imoral travestido de funcionalidade, ser aprovado e ser a partir daí obrigado a levantar cedo e suportar toda uma sorte de situações absolutamente indigestas para conseguir comprar algumas coisas que, embora não precise, eu quero, e outras que preciso mas não quero. Eu não quero trabalhar, não quero ver ninguém, não quero responder mensagens, não quero comer, não quero ouvir a vinheta dos jornais, não quero dizer bom dia, não quero contar como foi minha noite, não quero ter que me explicar, não quero ler, não quero ficar sem conhecer, não quero continuar sendo um fracasso, não quero continuar amando, não quero continuar tentando, não quero desistir, não quero continuar sendo insuficiente, não quero continuar indo deitar todas as noites com a sensação de que não sou bom o bastante para ninguém, que por mais que me dedique, por mais que me declare, por mais que deseje, por mais que ame ainda continuo sendo insuficiente, não quero continuar chorando com a doçura dos casais das séries, sonhando com meus possíveis amores, sonhando com o que nunca terei, não quero... Quero continuar deitado, esperando que esse dia acabe, e que venha o próximo, e que esse também acabe, até que por fim, os dias acabem, minha vida acabe e o mundo também acabe, finalmente. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário