quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Savana


Continuamos no meio de algum capricho infantil do universo que decidiu testar todos os limites da nossa capacidade de suportar o insuportável. Pandemia, queimadas, nuvens de gafanhotos e, agora, as temperaturas mais altas de que se têm notícia. Os últimos dias estão absolutamente insuportáveis em todos os aspectos. Não há como sair de casa, o sol parece causticar com violência qualquer um que se atreva a se colocar em sua presença. Os protetores escorrem numa linha de suor e óleo esbranquiçado pela pele. Os humores estão exaltados, o sono é incompleto e continuamos cansados depois que acordamos. 

Como não bastasse a atmosfera já problemática o bastante parece que alguém resolveu ainda instalar um autofalante na minha cabeça, gritando o tempo todo, em termos bastante indelicados, verdades inconvenientes. Sabe, aquelas verdades que sabemos ser verdade mas que distorcemos ao ponto de convencer aqueles que nos cercam de que são mentiras só para que, por meio de um raciocínio psicótico, os outros nos convençam de nossa própria mentira. É uma arma de covardes, ansiosos por demonstrarem uma superioridade que se superponha a mediocridade intrínseca que tanto tememos e que não foi suprimida por meio do reforço positivo dos elogios que recebemos de pessoas ineptas que desejamos agradar. Elogios são uma declaração da nossa própria incapacidade que precisa se atestada por um terceiro porque somos incapazes de nos dar por satisfeitos com a realidade mesma das coisas que vemos. Ao invés de estudar e dizer por sí, por nós, preferimos não fazê-lo e ouvir daqueles que também não o fizeram mas que tem um diploma onde lê-se que fizeram, o que não significa que tenham feito. Entendeu? Mas não, provavelmente você também não entendeu, como em muitas coisas eu não entendi, você apenas acha que entendeu, o que não significa que entendeu, entendeu? 

A ironia termina ainda com o sorriso sem graça da constatação de que tanto desejamos agradar alguém que na realidade nada deveria significar para nós. O amor próprio que se diluiu em relações patéticas agora existe apenas em doses homeopáticas de um ego que suicidou-se e que, tornando a viver porcamente, continua sangrando os próprios pulsos em reparação a dor que é saber que não se é amado por quem se ama, trazendo sentido real a música do gênero desprezível que diz "quem eu quero não me quer e quem me quer não vou querer." Deixando claro que graças ao calor infernal eu não estou em posse de minhas faculdades mentais para citar isso mas continuo não gostando de barulho sertanejo. 

Será que é realmente amor? Ou nos odiamos tanto ao ponto de escolhermos justamente alguém que não irá nos querer apenas para nos rebaixarmos ainda mais e nos sentirmos péssimos por não conseguirmos sequer ser o bastante para uma pessoa bem mediana e fora dos altos padrões? Aliás, por qual razão continuo falando num coletivo quando obviamente estou falando de mim e apenas de mim e daqueles que me cercam? Um símio tentando macaquear algo que leu em algum lugar mas que falava sobre algo importante que deveria ser lido por outras pessoas importantes e não por um primata dotado de capacidade limitada de leitura? Um macaco tentando imitar outro macaco que faz truques que parecem mais interessantes. Adoramos endeusar qualquer animal que consiga saltar em algum galho mais alto ou gritar alguma baixaria como fosse uma declaração universal de sabedoria divina, que se faria ouvir aos quatro cantos do mundo como um imperativo categórico como a nossas crenças, nosso horror ao conhecimento e culto ilimitado aos sinais externos do reconhecimento de um conhecimento que pode, e geralmente nem sequer, existe.

Os períodos em que somos obrigados a ficar na cama, olhando para o teto, esperando algum milagre que possa amenizar o clima, como a queda de um meteoro congelado que, além do alívio térmico, destruiria nossa humanidade, rendem ainda excelentes reflexões sobre nossa insuficiência em completar outras pessoas insuficientes, caminhando todos para lá e para cá como um imenso formigueiro de pessoas incompletas, incapazes, que acreditam que mediocridade é sinônimo de despertar da inveja e que estão doentes demais para sequer perceberem que se encontram num estado abaixo de humanidade, abaixo de qualquer padrão por mais baixo que seja. Somos patéticos e os poucos que conseguiram perceber isso preferem fingir que não são, que na verdade são pessoas incompreendidas, gênios perdidos num safari rodeados por macacos... Que pena! Não percebem que sua impressão não se deve a sua real posição, mas ao fato de que observaram os humanos e agora acreditam que os outros é que não são bons o bastante. Por isso nos retiramos para dentro de nós mesmos, onde nossas mentiras nos oferecem um conforto nessa savana onde nossos maiores predadores são nossos próprios olhos que fingem não ver o que está bem de frente aos nossos olhos. 

Não sei se me fiz entender, de modo que a compreensão já é algo utópico demais para se desejar, mas o fato é que as coisas são assim: soprados pelo ar quente de um ventilador barato nos damos conta de nossa pequenez e de nossa insuficiência, tanto para suportar algo tão banal quanto o clima tanto para ser alguém de valor e importância, para o mundo, para o outro ou para nós mesmos... 

~

Nota: Escrevi sob efeito de uns três ou quatro antidepressivos diferentes, me avisem dos erros por ( e com) gentileza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário