segunda-feira, 29 de abril de 2019

Adormecendo

Desejei ardentemente me jogar na cama durante todo o fim de semana. Foram dias cansativos, e somados aos dias que não dormi direito por conta da Semana Santa calculo que em média não tenho uma boa noite de sono já há pelos menos dois anos. Meu corpo já se desligara do mundo ao meu redor no momento em que entrei no quarto. Não demorei mais do que duas músicas para adormecer, e esse tempo curto foi o suficiente para marcar em mim profundas impressões...

Foram apenas alguns poucos minutos, em que fechei os olhos e finalmente pude relaxar os meus músculos. Minha mente ficou pesada, e logo se anuviou... Senti um calor agradável surgir em minha nuca, como se um raio concentrado de sol ali tocasse, e comecei a sentir minha cabeça mais e mais dentro do travesseiro.

Ela desceu lentamente, fazendo os músculos dos ombros também caírem, a tensão se foi e senti um suspiro de alívio. Acho que gemi um pouco alto demais, mas já há dias que sustentava uma armadura que já não aguentava mais. 

Minha coluna demorou um pouco mais, e aos poucos a curva cansada foi se desfazendo, como se as vértebras fossem se transformando devagarinho numa espuma macia. Já não doía, apenas se alegrava em finalmente romper os nós que se formaram dos assentos duros e incômodos dos últimos dia. Suspirei mais uma vez, e agora foi um gemido longo. O ar de minha boca escapou com vontade. 

Meus braços já não conseguiam mais se erguer, desistiram de tentar lutar e agora se entregaram ao descanso merecido. Diziam "deixai agora vossos servos irem em paz" e se foram, desmanchando-se como poeira ao vento. Apenas as extremidades de meus dedos continuaram acordadas. A essa altura minhas pernas já haviam se desprendido do corpo e agora flutuavam livremente, sorrindo como crianças, num oceano de nuvens.  

Uma névoa densa e branca foi surgindo ao meu redor. Me tirou primeiramente o sentido da audição, não conseguia mais ouvir nada ao meu redor. Depois se foram também o paladar, levando consigo o gosto fresco de menta do gel dental e o olfato, fazendo se perder em meio a névoa o cheiro doce de amêndoas e açúcar que passei em mim. Meu tato desapareceu lentamente, conforme via a névoa tomar também consigo minha visão, que se fechava finalmente no meu tão merecido descanso. 

quinta-feira, 25 de abril de 2019

De desejos e incompreensões

Em batalha, para compreender a vastidão do meu próprio coração, e assim quem sabe ao menos tocar a superfície do abissal coração do outro. Busco encontrar algo, uma seta que seja, que me faça entender como entrar no coração do outro, como superar essa barreira intransponível, esse Aegis que recobre o universo do outro. 

Se por um lado o outro me parece um mistério insondável e hipnótico, que me atrai e me prende, por outro lado me parece absolutamente enfadonho. O outro me parece, ao mesmo tempo, desejoso e desgostoso. Um jardim fechado, que pode esconder belezas maravilhosas mas que simplesmente não foram feitas para mim.

Tem sido uma contemplação complexa pois um parte de mim deseja encontrar essa entrada, enquanto outra parte apenas deseja se afastar do homem tanto quanto seja possível. O homem que atrai é o mesmo que me causa medo. Não seria talvez esse medo a me atrair? Alguns homens me causam uma reação de buscar apenas uma higiênica distância. O outro é o abismo que me causa medo e ao mesmo tempo me chama para si.

Temo que tal fixação, e consequente confusão, seja causa de muitos erros. Como disse Nietzsche, que no amor há maior probabilidade de ver as coisas tão qual elas não são, talvez também eu esteja cego pela obsessão de compreender o outro, enquanto compreender a mim mesmo tem sido um objetivo grande demais a se abarcar.

Desejo me silenciar, e não opinar sobre absolutamente nada, pois tudo o que sai de minha boca são palavras venenosas. Não desejo curvar o outro a minha vontade, mas quando me dou conta já estou vociferando violentamente para que as coisas sejam como ordenam meu maldoso coração.

Sigo nessa estranhíssima dicotomia, sem compreender o que desejo, o que quero e sem saber o que farei. Sigo sendo um mistério para mim e contemplando o outro que me é um mistério ainda maior. Sigo compreendendo apenas que pouco ou quase nada compreendo dos outros, principalmente daqueles que me cercam...

Emoções

Está terminado e acabado, mas a dor ainda vive aqui
E quem é a pessoa que você está abraçando em vez de mim, essa noite?

E onde está você agora?
Agora que eu preciso de você
Lágrimas em meu travesseiro
Onde quer que você vá
Eu vou chorar um rio
Que me leve até o seu oceano
Você nunca me verá desmoronar

Nas palavras de um coração partido
Isto são apenas emoções tomando conta de mim
Presa à tristeza, perdida nesta canção
Mas se você não voltar, vir pra casa, pra mim, querido
Você não sabe que não haverá mais ninguém nesse mundo pra me abraçar apertado?
Você não sabe que não haverá mais ninguém nesse mundo pra me dar um beijo de boa noite?

Boa noite
Boa noite

Eu estou lá do seu lado
Sou parte de todas as coisas que você é
Mas você tem uma parte de outra pessoa
Você tem que ir em busca da sua estrela brilhante

E onde está você agora?
Agora que eu preciso de você
Lágrimas em meu travesseiro
Onde quer que vá
Eu vou chorar um rio
Que me leve até o seu oceano
Você nunca me verá desmoronar

Nas palavras de um coração partido
Isto são apenas emoções tomando conta de mim
Presa à tristeza, perdida nesta canção
(Não sabe que eu fico perdida sem você?)
Mas se você não voltar, vir pra casa, pra mim, querido
Você não sabe que não haverá mais ninguém nesse mundo pra me abraçar apertado?

Agora que eu preciso de você
Lágrimas em meu travesseiro
Onde quer que vá
Eu vou chorar um rio
Que me leve ao seu oceano
Você nunca me verá desmoronar

Nas palavras de um coração partido
Isto são apenas emoções tomando conta de mim
Presa à tristeza, perdida nesta canção
(Não sabe que eu fico perdida sem você?)
Mas se você não voltar, vir pra casa, pra mim, querido
Você não sabe que não haverá mais ninguém nesse mundo pra me abraçar apertado?
(Ninguém,ninguém para me abraçar)
Você não sabe que não haverá mais ninguém nesse mundo pra me dar um beijo de boa noite?
(Ninguém para me beijar,yeah)
Boa noite, boa noite

(Tradução de Emotion, dos Bee Gees)

terça-feira, 23 de abril de 2019

Entre deuses


Uma tarde silenciosa e clara. Não se houve sequer o cantar de pássaros, apenas o farfalhar delicadíssimo da brisa nas folhas das árvores. A grama dança. O dia quente e ensolarado tornou-se, repentina e sobrenaturalmente, frio. O sol desaparece e dá lugar a lua, tornando em noite o dia. Somente um ente tem poder para tal feito: a deusa da Lua que controla a escuridão profunda. A Lua brilha mais intensamente do que o próprio sol, e sua luz existe apenas para iluminar sua deusa.

No céu, sem nenhuma estrela, vê-se apenas a lua, gigantesca, refletir sua própria imagem nas águas paradas como se fossem um gigantesco espelho. Duas criaturas caminham nos céus, como se embaixo de seus pés houvesse um piso de cristal tão fino que não poderia ser visto. Todas as pessoas do mundo estão abaixo deles, olhando atentamente sem conseguir se mover. Caminham um em direção ao outro. Uma jovem de pele clara e cabelos negros, de uma beleza infantil, e olhar assustador. Ela caminha imponente, e aquela lua anuncia ao mundo sua presença e esmaga a existência de todos quanto tentam ver seu rosto. A deusa da lua e da caça. Do outro lado, um jovem alto, de cabelos dourados e olhar penetrante, imponente demais para ser um humano, mas ainda assim, mais humano do que a outra. O deus do sol, que viera ao mundo como homem para ensinar aos homens humildade e fazer-lhes despertar para a beleza.

A deusa o olha com absoluto desdém. Como pode um deus querer viver entre os humanos? Seu estado é uma desgraça para os deuses. Ele, impassível, mantém sua postura. Não desistira dos homens, como fizeram os deuses que se fecharam em suas próprias vidas eternas de alegrias nos Elíseos. Não pronunciam uma palavra sequer, ou melhor, os homens são incapazes de os ouvir, mas discutem com força seus princípios.

A humanidade precisa ser destruída. O homem mostrou-se a mais imperfeita das criações, destruindo a si mesma e a todo o resto. Sua existência é uma ofensa aos deuses. Suas preces não passam de pedidos tolos e egoístas que os deuses se negam a cumprir. Suas batalhas não são pela própria sobrevivência, mas pela destruição do próximo. O homem fracassou. A humanidade fracassou. Tristeza, ódio, por todos os lados. Mas o homem já foi bom, apenas esqueceu-se da beleza e com isso fechou-se em sua maldade. O homem deve então descobrir novamente o belo, e assim atrair para seu coração o que é bom, justo e verdadeiro, ensinamentos dos deuses que esqueceram.

Abaixo deles, dois homens, dois anjos, trajando suas glórias se encaram com violência no olhar. Aguardam o momento em que seus deuses lhe permitam lutar, mostrando com seu poder qual dentre os deuses está correto. A deusa da lua, em exigir que seu irmão volte ao seu posto de deus sol, ou o deus sol, que preferiu abdicar de sua forma divina para ensinar aos homens o que se perdeu.

Apenas uma mudança no olhar da deusa é suficiente para fazer um relâmpago voar pelo céu, fazendo estremecer a terra inteira. Seu anjo avançara em direção ao outro numa velocidade vertiginosa, e o atingira com um raio em meu ao peito que o lançara há muitos quilômetros. Como quem se levanta de uma pequena queda ele ergue-se em centésimos de segundos e já corria em direção ao outro, que sequer teve tempo de se preparar, e fez surgir naquele mesmo céu um gigantesco dragão de fogo, que consumiu tudo ao seu redor em labaredas infernais, por sua vez dissipadas por um novo raio que cruzou o céu. Não havia motivos para lutar, não haveria jamais um vencedor.

Os deuses sabiam que se eles ali lutassem tudo seria destruído, e sequer haveria um vencedor também. E os deuses eram proibidos de lutar entre si, sendo que os homens sempre lutaram em seu lugar. Seriam os homens simples marionetes dos deuses?

O encontro termina sem um vencedor. A deusa jura que um dia voltará e que seu exército o demoverá de sua tola decisão, destruindo os homens e purificando a terra. O deus se mantém forte e impávido, mostrando que ensinará aos homens que a beleza de sua arte os livrará de tantas guerras.

sábado, 20 de abril de 2019

Da inquietação

Finalmente, algumas breves horas de descanso. O tríduo pascal é sempre uma semana mais cansativa do que o normal, ainda que, de modo geral, meus fins de semana sejam sempre muito agitados entre uma atividade e outra na Igreja. 

Meu corpo protesta: quero dormir, sem hora ou dia para acordar! Eu olho no espelho e vejo que, em contraste com meus elevados gastos com maquiagem estou mais descuidado que o normal. Minhas sobrancelhas fariam inveja as daquele ícone feminista cujo nome me recuso a colocar aqui. Minha ansiedade nos últimos dias me deixaram não só abatido, meu corpo foi destroçado e dificilmente vou me recuperar sem algumas longas noites de sono. O que por si só já seria um problema, já que não tenho conseguido dormir. Ou melhor, até consigo dormir, mas meu corpo amanhece ainda mais cansado do que na noite anterior. 

Continuo inquieto. O que é normal para alguém com ansiedade correndo pelas veias. Mas ainda assim, essa inquietação toda me incomoda, é como se estivesse sob constante risco de morte. Aonde quer que eu vá sinto os olhares atentos de alguém ou de alguma coisa que me espreita... Como os vermes das ruínas de Augusto dos Anjos, que esperam para me roer a carne e os ossos. Continuo inquieto, olhando ao redor em busca de alguma coisa, querendo alguma coisa mas sem saber o que é...

Continuo inquieto, vagando sem rumo. Meus dias se resumem em fazer aquelas coisas que já me comprometera a fazer, como trabalhar e estudar, mas nada disso conta com minha vontade em fazer. E toda vez que faço algo por ter de fazer e não por querer fazer é como se perdesse a vontade mais básica de todo homem: o entusiamo pela vida! Sinto como se tivessem o tirado de mim, embora ainda haja lampejos de alegria, e que em alguns momentos me sinta feliz, há sempre um sussurro malicioso que tento abafar com a música em meus ouvidos, sempre um eco vindo de alguma caverna misteriosa, sempre um convite do abismo que há muito eu olho, e que agora já olha para mim...

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Do meu eu?

Crise poética: não ser entendido ou não entender-se? 

Não ser entendido é dor comum, vejo ao redor e ninguém entende uma palavra, estão todos fechados demais em suas próprias convicções pequeninas. Mentes pequenas demais para ver o mundo complexo como é. 

Mas e eu, o faço? Minhas convicções não são tão pequenas quanto as dos outros, apenas diferentes? 

Sequer entendo a gênese de minhas intenções e opiniões. Não sei de onde vieram todas essas coisas. O que é tudo isto que não faz parte de mim mas está em mim de tal modo que não consigo mais distinguir o que sou e o que não sou? 

Não entendo o que quero. Onde quero chegar? Qual a imagem do mundo que eu quero ver? 

Me sinto fraco, patético, mas olho ao meu redor e só consigo achar que os humanos merecem a dor e a miséria em que vivem, por serem fechados demais em si mesmos. E essa ensimesmação os torna bestiais, como os animais brutos, que não sem sequer falam por não conseguirem externalizar nada que se passa dentro deles. 

Me sinto então obrigado a me fechar também. E a ir para tão fundo dentro de mim que sequer consigo ver a luz do mundo, senão que apenas vislumbro os feixes de meu próprio coração. Não há espaço, senão em meu peito, para pensar ou refletir as coisas altas. Não há alma amiga para ouvir os meus devaneios mais pessoais. 

Então, eu não entendo, qual é o mundo que eu quero criar? Qual a imagem do mundo que eu quero ver?

Quero destruir esse mundo completamente, quero as pessoas vivendo servilmente abaixo de minhas palavras e decretos, e quero a minha mão pesada por sobre as suas cabeças, guiando seus passos como a animais que, presos, não vão aonde querem ir, senão que apenas obedecem as ordens que lhes são dadas.  Queria um mundo silencioso sob meu julgo. Queria um mundo ondes as pessoas não mãos fizessem um poeta sentir-se incompreendido. Mas como fazer existir esse mundo se nem mesmo o poeta entende-se? 

Meu eu lírico confunde-se com sua própria poesia, e se vê perdido num mar de cores que se misturam numa miríade profusa de possibilidades. 

Também quero um mundo livre, onde não existam amarras. Mas essa imagem derrete-se assim que penso o quanto os homens vem se destruindo com o péssimo uso dessa mesma liberdade. O homem não nasceu para ser livre, não o sabe ser, e desde sempre vem sendo destruído pelas desastrosas consequências da própria liberdade. Se o mundo que quero não é sob o peso de minhas correntes e nem livre de todas amarras o que é então? 

O que eu quero ainda não sei o que é. Apenas busco, e mim e fora, algo que possa completar o buraco que há em meu peito desde meu primeiro pensamento. 

sábado, 13 de abril de 2019

O fim do começo

Preciso continuar. Preciso me reerguer e dar mais um passo. A guerra ainda não acabou e eu não tenho sequer a possibilidade de perder. Só posso vencer. Mas a que custo? 

Eu apoio os meus joelhos ralados no chão cheio de pedras. Minhas pernas ainda tremem como se eu tivesse doze anos. Minhas mãos estão cobertas de feridas abertas e delas escorrem um líquido amarelado junto ao sangue. Acho que estou apodrecendo. Mas preciso ser forte, preciso que meus braços e pernas aguentem mais essa batalha... Que apodreça depois, que morra depois! 

As manchas roxas já se confundem com a cor da minha pele. Me tornei uma só ferida aberta. Já não tenho aparência humana. Meus olhos, manchados de um vermelho carmesim, ainda refletem um desejo de continuar a lutar, ao passo que cada fibra do meu protesta pelo fim. Mas o fim ainda vai demorar... Ainda não pode acabar. Ainda não é o fim, nem sequer é o começo do fim. Mas já é o fim do começo... 

Ao encontro

Num campo longe de toda gente uma marcha é ouvida pelos soldados, firmes em sua expedição. O inimigo se aproxima, e nem sequer terminamos de enterrar nossos mortos e estancar o sangue de nossos feridos. 

Qual será nosso destino? Que fim teremos nós que fomos traídos e massacrados, expulsos de nossa própria terra e lançados ao mundo como se não fôssemos mais do que a escória. O medo enrijece nossos ossos como o faz a água gelada do oceano. Já não podemos correr, e não nos resta outra opção senão de ficar e lutar, encarando nossos próprios horrores, que trajando suas pesadas armaduras marcham com as espadas e lanças sedentas por nossos sangues e nossas vísceras. 

O ar está impregnado do cheiro podre dos corpos de nossos companheiros caídos. Todos já sentem entre os lábios o gosto putrefato da morte iminente. Olhamos ao nosso redor, os olhares distantes e sem foco daqueles que já perderam a esperança e se agarram a última centelha de vida que tiveram antes daquela barbárie. Recordam-se de suas famílias, mulheres e filhos que deixaram à mercê da própria sorte, a mesma sorte que os levou até ali? Teriam seus filhos um fim mais digno do que aqueles que serão enterrados na lama de um outeiro desconhecido? 

De pé eles vislumbram o despontar de seus inimigos. Não há outra coisa a se fazer além de empunhar bravamente mais uma vez as suas armas já sujas de sangue. As mãos protestam violentamente em empunhar novamente as espadas, os ferimentos nas palmas estão ainda abertos. A cabeça zuni num grito agudo, como se a própria morte cantasse em seu leito. A voz falha, a respiração se torna entrecortada. O sangue ressequido oxidando a armadura. De algum lugar um urro os faz acordar do torpor em que mergulharam. Não há tempo a perder, é preciso enfrentar o inimigo! É preciso correr ao encontro da morte!

Como entrar no coração

Ironicamente, quando lidamos com pessoas, esperamos delas comportamento justamente contrários à sua condição humana. Esperamos que ignoram sua própria história, suas próprias lutas, em razão de quem somos, de nossas próprias histórias e lutas. 

Não consigo ainda me abrir completamente a novas experiências, pois ainda estou marcado das anteriores, e ainda assim desejo que aqueles que passaram por experiências tão profundas quanto o façam. É injusto, comigo e com eles. É injusto quando critico que algumas pessoas não conseguem superar, quando eu mesmo não consigo, quando eu mesmo me vejo tão maltratado e humilhado ainda em situações que nada deveriam significar para mim.

As pessoas não são páginas em branco, ainda que eu queira nelas escrever os meus poemas. Não tenho o direito de desejar que ignorem suas dores para que eu possa pintar o que nelas bem entender, assim como não posso permitir que o façam comigo. 

Nosso coração é nosso porto seguro, um lugar que só mostramos a quem se prova digno de ali pisar. Nem todos tem acesso. Sentimos, as vezes, o desejo de rasgar esses corações e entrar a força. Bestialidade, destruir a casa em que se quer morar. 

Embarcamos então na luta por conquistar um espaço, por convencer de que  nos deixem entrar, de que nos deixem ver aquela imagem que, estando no lugar mais seguro de nossas almas, só mostramos a nós mesmos e a alguns poucos eleitos.

Como então entrar no reduto protegido com armas, naquele lugar onde apenas entram quem convidamos, e que ainda assim, apenas com muitas ressalvas ali permanecem? Como conquistar o direito de ver aquilo que costumeiramente não mostram a mais ninguém? Como ser aquele em quem confiam e se entregam, quando eu mesmo vejo que não posso confiar e me entregar a mais ninguém? 

O antes rosado entardecer

Escuridão.

Você me destruiu, mais uma vez. Quando eu menos esperava, quando me distraía com a beleza do céu azulado, quando me encantava com as cores de meu coração... Você chegou e me apunhalou, seca e friamente, bem no meu peito, fazendo jorra a torrente infernal de sangue em minhas mãos. 

De repente o céu ficou cinza, a cor se foi como fumaça entre meus dedos. Não escuto mais o som dos violinos e nem sinto o cheiro das flores. As pétalas voam ao céu, não mais inebriando o mundo com seu perfume, mas anunciando a destruição do jardim. 

O rosa de minha mão se foi, estou pálido, e quase não sinto o sangue circular. Quase não há mais sangue, tudo se derramou, na ferida que seu punhal abriu, rasgando-me a carne e o músculo, raspando-me o osso, infectando-me com sua lâmina mortalmente envenenada pelo seu próprio sangue. 

As forças se vão, o sorriso se fechou numa carranca de dor. A dor e o horror. Invadem meu ser com a mesma violência de uma represa que se soltou, inundam a minha cidadela interior e matam afogados os meus sonhos de um dia me livrar de você. 

Você me destruiu mais uma vez, e tingiu de cinza o meu rosado entardecer. Destruiu meu ser. E se foi, deixando apenas a risada maligna de sua convalescença leve e demente ao cuspir em meu túmulo. 

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Da palma da mão

Luz

Hoje o dia amanheceu mais bonito. Os pássaros cantam alegres pelas gotas de chuva que acariciam o chão com seus beijos molhados. As nuvens pesadas abençoam os homens com seus votos de que aprendam com as suas gotas a se derramarem sem medo e nem pesar.

Você disse que acordei poeta, mas será que passou pela sua cabeça que você seria a inspiração para a minha poesia? Você imagina que um dia eu me inspirei na sua imagem para descrever a aparência de um deus? 

Observava a palma de minha mão, pintada de rosa e branco, pouco calejada da vida, sinal de um intelectual que pouco batalhou e que pouco conquistou. As cores me impressionaram, não me lembrava de ter cores belas assim em mim. Elas me recordaram sua pele rosada, delicada como as pétalas de uma rosa que ao sol exibe sua ternura.

Cada um busca inspiração onde lhe aprouver, e eu vejo na beleza a doçura que minha alma busca. Vejo na delicadeza, no misterioso, no simples, a força arrebatadora de um universo fabuloso, tudo isso nas cores brilhantes de seus olhos confusos.

domingo, 7 de abril de 2019

Veneno e destruição

Hoje não sou uma boa companhia para ninguém. Melhor ficar só, do que ser destruição na vida do 
outro. E infelizmente tudo o que tenho a oferecer é destruição. 

Me fechei em meu quarto, ao lado de Rachmaninoff e de um bromazepam 6mg, quando na verdade gostaria de me fechar num buraco, longe de tudo e de todos. Ironicamente eu escolhi como profissão uma que me faz estar em contato com algumas duzias de crianças e pré-adolescentes diariamente, o que agora vejo não ter sido a melhor das minhas escolhas. Mas aliás, quando foi que fiz boas escolhas? 

O sarcasmo que preenche estas palavas é recoberto pelo veneno de minhas presas. Veneno esse que tem me paralisado os sentidos. É estranho que meu veneno só faça efeito em mim, não deveria matar os outros? Acho que, na verdade, o que quero é matar o que á dos outros em mim, e percebendo isso neles desejo destruir em mim o que me causa horror. Eu mesmo bebo do meu veneno, e sinto ele correr por minhas veias, queimando tudo por onde quer que passe. 

Creio que tenha sido correta minha escolha de ficar sozinho em casa, então, pois hoje não sou boa companhia para ninguém. Tudo o que tenho a oferecer é veneno e destruição. 

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Das lutas cotidianas e das estirpes

O dia logo deve amanhecer, e há pouco eu me recolhi ao meu quarto, depois de uma longa noite de comemorações. O estranho de, agora, ter muitos amigos é que ainda me sinto solitário quando não tinha ninguém. Claro, guardadas as devidas proporções. 

O que quero dizer é que continuo me sentindo só mesmo quando rodeado de pessoas. Mesmo quando o riso e a cantoria abafam os soluços do meu peito eu me sinto só. É como se as vozes se perdessem, meu foco sumisse, e eu ficasse absorto em meu próprio mundo, com todo aquele vozerio fazendo as vezes de fundo. 

Mesmo com muitos ao meu lado sinto como se nunca estivesse na mesma página que outra pessoa, que sou o trecho complexo e aparentemente desinteressante de uma obra absurdamente longa que ninguém se dispõe a ler. Estranho saber que mesmo no meio de tantos ainda sou um desconhecido para todos. 

Não cobro, no entanto, que fiquem ou que me entendam. Conheço-me bem o suficiente para saber que não sou mais do que uma confusa combinação de elementos dispares, algo que em nada atrai os olhares que buscam a facilidade de almas menos complexas. As pessoas chegam, observam, tomam notas e se vão. 

Talvez seja isso que signifique dizer que "pois as estirpes condenadas a cem anos de solidão não terão uma segunda chance sobre a terra." É sentir-se sozinho na multidão. É surpreender-se cotidianamente com a crescente carência, que luta ferozmente com a racionalidade. É notar o quanto me deixo levar pelas ilusões, e o quanto me deixo machucar pelas desilusões. É trocar os meus próprios curativos, por não ser forte o suficiente para suportar as ferroadas que me são dadas, é chorar sobre minhas feridas que nunca se fecham, senão que são constantemente abertas por novas espadas, que transpassam-me a carne com seu aço frio. É buscar todo dia o amor e o carinho nos braços daqueles que não me podem dá-los. 

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Apolo e o amor

Desceu do seu palácio no Monte Parnaso e veio morar entre os homens, assumindo forma humana, sujeito as dores e medos, sem acesso a maior parte de seu poder. 

Encantado pela beleza da batalha dos homens ele quis também buscar compreender melhor o que levava os humanos a terem vidas tão sofridas, mas ainda assim, ao final de dias difíceis, conseguirem sorrir ao menor sinal de beleza. Donde vinha essa felicidade? 

Sua música, Apolo o patrono das artes, era capaz de elevar o espírito humano aos píncaros quase idílicos, mas mesmo aqueles que se distanciavam de suas belas artes, as únicas que fazem o homem encontrar meio a escuridão de seus corações o que é bom, justo e verdadeiro, conseguiam encontrar uma centelha de felicidade e, apegando-se a ela, sorrir ao fim de seus sofrimentos mais brutais. 

Acompanhado apenas de um de seus anjos, que por ele daria a vida afim de protegê-lo, ele desceu até nós. Buscou refúgio ao lado de sua irmã, Atena, que há muito decidiu por viver ao lado dos homens, e com eles, conhecendo sua dor, protegê-los das mazelas desse mundo, em busca de um equilíbrio. 

Encanta-se com o esforço, palavra que os deuses desconhecem. A dor nas mãos após um dia árduo de trabalho no campo. O corpo a clamar pelo descanso e pelo alimento devido aqueles que labutam... Tudo estranho demais ao deus que sempre teve tudo ao alcance de um pensamento. 

Conheceu o que parece ser a maior força dos humanos, e que parece ser ainda maior do que a força dos deuses: o amor! O Amor que vislumbrou quando seu anjo se lançou frente a um ataque inimigo brutal, resultando numa ferida incurável, não fosse o poder do deus da saúde. Poder de se sacrificar por aqueles que se ama. Poder de colocar os outros antes de seus próprios interesses. Poder de preocupar-se com o bem estar daqueles que lhe são caros. 

Aprendeu com um humano, um pequeno humano que escolhera para receber a sua glória, sua armadura celestial, e assim com ela protegê-lo dos perigos desse mundo, que em sua forma divina jamais lhe fariam dor. 

Apolo seguiu o conselho de seu oráculo: "Conhece a ti mesmo" e buscou em si aquele amor adormecido, ao ver que seu anjo lhe amava, decidindo então abdicar do seu lugar entre os seus no Olimpo para com seu amado proteger os homens como homem. Agora, com seu anjo, ele encanta os homens com sua própria lira, curando suas mazelas com o som milagroso do amor.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Voltando do abismo

Toda vez que eu estou próximo do abismo, você me puxa de volta.

Eu caminho, cegamente, rumo a queda livre sem retorno. O vento forte que sopra me avisa, como um alerta, que pessoas que amam sua vida não deveriam estar ali. E o que eu faço ali? O que eu procuro encontrar num lugar onde, costumeiramente, as pessoas vão para dar cabo ao seu sofrimento? 

O gosto salgado das ondas do mar quebrando-se violentamente contra as pedras, que permanecem imóveis pelos milênios apenas desgastando-se lentamente, acaricia meu rosto. É o beijo apaixonado da morte que, na frialdade daquela brisa, me abraça como um velho amante.

O canto doce da esperança de um pós-vida melhor me faz esquecer que esperança e desesperança são apenas duas faces de uma mesma moeda. Uma espada de dois fios que corta, não importando o lado que rasgue visceralmente a carne do inimigo. 

Continuo caminhando, embriagado pela contemplação de um mundo onde não sinta a dor que me entorpece os sentidos. Mas quando aproximo meus pés da borda daquele penhasco, fazendo deslizar algumas pedras que se perdem na imensidão cinza de Okeanos, sua mão me segura. Firme. Forte Decidida. "Não faça isso!" Toda vez que eu estou próximo do abismo, você me puxa de volta. 

É sempre assim. E, quando volto meu olhar para ver quem é o meu herói, ele desaparece. Você desaparece. Só vejo a sombra de um alguém indo embora, e quando corro para ver quem é, a imagem desaparece entre meus dedos como o vapor da água. Nem sequer consigo ouvir seus passos, abafados pelo som das ondas que gritam por não devorarem meu corpo.

Quem é você, que ainda me mantém aqui? Quem é você que ainda me quer vivo? O que quer de minha vida? Me deixe partir, se não vai fazer o caminho de volta ao meu lado... Me deixe ao menos ver seu rosto...

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Laços

Nosso encontro não foi, por mim, planejado. Você, de alguma forma, ainda que não quisesse me ver como seu objetivo principal assim o idealizou e realizou. 

Não planejava te tocar, nem sequer me esforcei em te olhar nos olhos. Mas você abriu os braços, me convidando a encontrar neles um afago. Abracei e, quando me apertou, eu fechei os olhos. Estava feito!

Aquilo que há muito começava a se acalmar dentro de mim, aquilo que começava a se depositar no fundo do meu peito, e a ser encoberto por uma camada fina de poeira, se remexeu, e se atiçou. Reacendeu o que há muito custou ser apagado. Reanimou-se o que, pensava, já havia começado a morrer.

Foi como se um fluxo intenso de energia começasse a fluir dentro de mim, como se tudo fosse violentamente agitado, algo como as águas revoltas de um oceano mortal. Seu toque, o cheiro do seu corpo penetrou e me enfeitiçou, reatando os laços que há muito havia cortado entre nós.  

Quando finalmente me soltou, poucos segundos se passaram até que me puxasse novamente, reafirmando assim o seu domínio sobre mim. 

Fui tolo em pensar que já havia vencido. Tolo em acreditar que não mais sofreria com seu poder anormal. Ainda me tem em sua mão, ainda me manipula como quer, ainda me faz sentir a dor que é a sua ausência em meu corpo. 

Quando se foi, um zumbido alto incomodava meus ouvidos, e quis tentar na tentativa de esquecer mais facilmente de nosso encontro, mas foi em vão. Ali, deitado, consciente de mim mesmo, eu percebi que você havia colocado novamente suas correntes em mim. Tentei evocar aquelas sensações que poderiam me fazer rejeitar a ideia de voltar a ser seu escravo mas, embora provoquem em mim intensas e destrutivas reações, foi tudo em vão. Seu olhar, seu toque, seu cheiro, ainda são as coisas mais poderosas e assustadoras que já conheci.