terça-feira, 28 de julho de 2020

Da paciência

"O talento molda-se na solidão, já o caráter molda-se na confusão do mundo." 

Gosto muito daquela musiquinha, acho que do Pe. Zezinho, que usamos na catequese com as crianças que diz assim "amar como Jesus, sonhar como Jesus sonhou, pensar como Jesus sonhou..." Mas assim, na moralzinha, não é fácil não, ainda mais quando a tarefa de amar o próximo envolve... o próximo!

Acontece que as vezes os irmãozinhos da Igreja esquecem que nem todos são pacientes como era Jesus e abusam da boa vontade cristã. É aí que nós temos então de morder a língua, respirar bem fundo e dar as costas ou fechar o whatsapp, antes que a prática da virtude se converta numa prática de assassinato nada cristão. 

Amar o próximo é parte integrante do ser cristão e, creio, deixar o próximo falando sozinho pra não lhe dar umas boas bofetadas exigindo-lhe o mínimo de bom senso que se espera, não de um adulto bem formado mas de um ser humano dotado de alguma parcela de racionalidade, é sim um ato de amor. E quanto me custa ficar calado quando na verdade a vontade que tenho é de simplesmente sair gritando como um louco, obedecendo aos caprichos imediatos da minha vontade. 

São João Paulo II tinha toda razão ao proclamar Santa Teresinha como doutora da Igreja, o seu ensinamento da pequena via, de servir a Deus até mesmo nas menores ações é, definitivamente, tão difícil que só pode ser a coisa certa a se fazer. 

Pode não parecer já que eu não falo muito disso aqui mas passo uma boa parcela dos meus dias, especialmente fins de semana, na paróquia. Já faz alguns anos que me dedico a pastoral com um certo afinco. Talvez seja o estresse causado por essa pandemia, deixando todo mundo ansioso e irritado, que tem me deixado com uma boa impaciência nos últimos meses. Sempre fui muito paciente, até mesmo condescendente em várias situações, mas agora tenho preferido me ausentar a ficar na presença de pessoas que não me acrescentam nada ou, antes disso, ainda contribuem para o meu afastamento das minhas poucas virtudes. Em suma: aguentar a falta de noção e a baita encheção de meu tempo tem sido um suplício. 

Queria muito, muito mesmo, oferecer esse tempo gasto em expiação de meus pecados e sofrer pacientemente como a cruz que devo carregar mas, como disse, eu não sou tão virtuoso assim. As palavras de Santa Teresinha sempre ecoam na minha cabeça, quando ela diz que sua alegria é amar o sofrimento, mas eu também tenho quase certeza que ela aprovaria que eu me afastasse ao invés de gritar com as pessoas e fazer troça delas imitando algum animal mais aprazível as suas faculdades intelectuais. 

Ser cristão não é fácil, viver na igreja também não e fazer isso da forma correta é ainda mais complicado. Consigo entender melhor aqueles que deixaram o barulho das grandes cidades para viver no silêncio dos mosteiros ou reclusos como anacoretas. Sim, minha vontade era de me enfiar numa roupa de saco e ir pra uma montanha bem longe de todo mundo, mas eu bem sei que não sobreviveria nem por três dias inteiros, então exercitar a paciência na confusão do mundo é o que tem pra hoje né?

"Dá-me paciência, porque se me der força eu vou bater em alguém!"

domingo, 26 de julho de 2020

Da afeição

Amizade é um assunto complicado, ainda mais quando se tem tantos outros sentimentos envolvidos. Quando o carinho supera o limite do querer amigo e se torna algo romântico, como identificar esse limite? Existe um limite? Nós, os carentes, constantemente temos dificuldade em separar as coisas, constantemente cruzamos a linha, e nos decepcionamos com isso. 

Convivo com esse problema, que já faz parte de mim. Não consigo lidar com atenção e carinho sem que meus sentimentos fiquem confusos. De onde vem isso? Falta de afeto na infância? Medo de ficar sozinho, como era quando menor? Eu não sei, mas é só nisso que consigo pensar, mesmo não sentindo que tenha sido uma criança negligenciada ou sozinha. Ainda assim ficar sozinho é meu maior medo. 

Talvez tenha sido superprotegido e por isso temo o dia que terei de enfrentar o mundo sem ninguém segurando a minhão? Isso explica, por exemplo, o motivo de eu gostar tanto de segurar a mão de outra pessoa, de tanto gostar de dormir acompanhado. 

Percebo então a visão que muitos têm de mim: uma pessoa que consegue liderar, alguém sempre com as respostas prontas, alguém para confiar quando algo precisa ser feito, em suma, alguém forte. E talvez eu seja assim mesmo, mas não é assim que me sinto, muito pelo contrário, me vejo como fraco e incapaz. 

" - Você busca seu próprio valor na opinião dos outros. 

 - Cala a boca!

Separação

 - Tem medo de ficar sozinha?

Ansiedade

 - Tem medo de perder sua identidade se os outros a deixarem?

Separação

(...)

Eu não quero morrer. Eu não quero desaparecer. Eu odeio isso. Eu odeio garotos, eu odeio meu pai, eu odeio a minha mãe, eu odeio todo mundo. Ninguém se importa comigo. Ninguém fica comigo.

O que ela deseja realmente?

 - Eu não quero depender de ninguém. Mas ao mesmo tempo eu odeio isso é um sofrimento. 
Eu não quero ficar sozinha, eu não quero ficar sozinha, eu não quero ficar sozinha!

- Não me deixe.
- Não me ignore. 

- Não me mate."*

Uma imagem se repete na minha cabeça, a de uma criancinha sendo abandonada, as pessoas andando sem olhar para trás, e eu no chão, com os joelhos ralados e os olhos marejados. E essa visão me assusta muito. 

No fim das contas é isso, o medo, a ansiedade provocada pela perspectiva da separação, do abandono, que me faz ver amor onde não há, que me faz apegar sem pensar nas consequências, que me torna uma eterna vítima de meus próprios desejos. Sempre apaixonado, sempre sofrendo por alguém que não me quer, sempre me achando indigno de qualquer um e sempre mendigando o afeto. É como se o afeto dos outros fosse o medidor do meu próprio valor, como quase nunca o tenho, a consequência é a completa depreciação do meu eu. 

Daí também resulta a vontade de ficar só, contraditoriamente. A vontade de não precisar de ninguém, de me excluir, até mesmo de sabotar meus próprios relacionamentos, afastar aqueles que me amam para evitar que eles se afastem mais tarde. A vontade de ser frio, de viver distante, mesmo sempre sendo puxado de volta pela menor demonstração de afeto do outro, sempre me deixando iludir, sempre sendo cegado por esse medo que habita as minhas entranhas. 

Por mais que tente descobrir as raízes dessa minha insegurança isso pode me ajudar a melhorar? Atualmente tudo o que consigo fazer é dizer para mim mesmo "você consegue, mesmo sozinho você consegue" e eu preciso dizer isso com frequência pois, a todo momento, uma voz dentro de mim diz que não, eu não consigo, e eu vou falhar. 

~

* Trecho centralizado retirado do penúltimo episódio de NEON GENESIS EVANGELION - O fim do mundo - Você me ama?

sábado, 25 de julho de 2020

Sinceridade da alma

A Filosofia, tomada como amor ao conhecimento e uma busca sincera do ser pela sabedoria, às vezes pode tomar formas tão diversas que nada têm a ver com a proposta original. Estas propostas, por sua vez, por não serem uma busca real pelo conhecimento, mas muitas vezes coisas como jogos de palavras, sofismas ou, ainda, mentiras, não cumprem seu papel como filosofia, uma vez que não a são. Essa busca sincera da alma individual encontra sua fonte no mundo ao redor, na unidade da existência, donde abstrai o que dela se entende e donde por ela se entende fazer parte. 

"Um é tudo e tudo é um."

Partindo deste princípio, a alma individual parte numa jornada de descobrimento que se desdobra em diversos níveis. Começando pelo autoconhecimento ela passa a entender um pouco mais do próprio ser, de suas vontades, aspirações, também dos seus defeitos e dos seus segredos mais íntimos, que muitas vezes escondemos até de nós mesmos. Esse autoconhecimento, evidentemente, encontra um limite, algo mais ou menos como aquilo que expressou Santo Agostinho ao dizer saber quem era, mas que não sabia de onde viera, e sabia também que não era fundamento de si mesmo, tendo, portanto, que ter como fundamento alguma outra coisa que, não sendo ele, estava nele, contendo-o e abrangendo-o de algum modo. 

Como esse conhecimento de si encontra esse limite, passa-se a buscar ainda evidências fora. Ora, o mundo em que vivemos, com os animais que nele habitam, as rochas que se erguem do chão e até mesmo o vento que sopra têm em si algum fundamento. Somos então todos, de algum modo, semelhantes a partir do momento em que, existindo nesse mundo não somos causa de nós mesmos, senão que precisamos de algo mais. 

Daí surge essa busca por entender melhor essa relação, entre nós, o eu individual, o mundo, e esse algo mais que nos fundamenta. Estamos todos inseridos num mundo, numa realidade (num todo) ao passo que, ao mesmo tempo, somos também individualidades, ainda que membros de uma mesma espécie (um um). 

A afirmação em destaque ali acima pode ser tomada num sentido de que todos vivemos num ciclo material. Nascemos, vivemos, morremos e, ao morrer, retornamos a terra, e de certo modo alimentamos a vida que um dia servirá de alimento para outros seres que darão continuidade perpétua a esse ciclo, e isto não está incorreto, mas não é disso que quero tratar aqui. 

Além dessa realidade, material e imediata, há também algo de superior, o mundo dos nossos pensamentos. Não sei expressar bem o que quero dizer com isso mas é algo mais ou menos como o que Platão disse com o mundo das ideias. Um mundo onde o ciclo de finitudes não existe, a eternidade. Ali habita a alma individual que, cá na terra, habita também o corpo corruptível e passageiro. 

Essa busca então, a filosofia, a partir do momento que parte do mundo sensível, toca o intangível e parte do espanto da própria alma individual se prolonga então na eternidade. Aquilo que é feito na sinceridade do eu individual permanece. O autoconhecimento nos mostra o que realmente se preservará. 

Sei que essa minha afirmação traz consigo uma série de problemas. Quer dizer que apenas aquilo que é buscado de maneira filosófica permanece? E as outras formas de conhecimento, como a ciência experimental? E por qual razão somente aquilo que é buscado com sinceridade permanece, ora, a mentira também não pode deixar marcas tão profundas a ponto de continuar existindo indefinidamente? 

A sinceridade de alma é necessária porque é ela a responsável por imprimir aquilo que permanecerá. Tudo o mais que fazemos pode ser esquecido num piscar de olhos, no fim das contas somente a crença dos náufragos permanece, aquilo que, após um desastre no navio, um homem agarrado a uma tábua à deriva no oceano ainda crê, é que permanece. Essas são as únicas coisas que valem realmente a pena. 

Mas isso é apenas o princípio de uma investigação pueril, infantil, de um alguém que ainda dá os primeiros passos, não passa do balbucio de uma criança, e então eu entendo que é melhor que me cale, e torne a falar apenas daquilo que sei, ou melhor, daquilo que sinto, como o faço costumeiramente. 

Existe, antes que termine, uma ordem de conhecimentos, desses que buscamos com a alma mais sincera, que se imprime em nós mas não pode ser expressado. Por isso esse texto tão quebrado, tão cheio de arestas e que mais suscita perguntas do que responde alguma coisa. Isso porque o que estou querendo dizer está impregnado no meu ser, mas tão profundamente que as superficialidade das palavras não consegue abarcar e, também a minha falta da habilidade filosófica não consegue cobrir. Infelizmente, no momento, as coisas são assim. 

Eu vejo então o quanto a falta de sinceridade deixa a humanidade com um aspecto feio e superficial. Vejo trabalhos de uma vida inteira indo pelos ares porque quem os realizou só os fez porque sim e não porque era algo que lhe era impelido a fazer desde dentro, não era algo que queria mesmo fazer. Quando algo é feito de coração, a diferença é notável, o brilho no olhar do artista, a realização do mestre, que nada tem a ver com o reconhecimento, mas com o saber do indivíduo, em cumprir o que se propunha sua alma, sua vontade verdadeira. 

Eu quero saber, quero conhecer, o máximo que conseguir. Sei que não saberei de tudo e tudo bem! Isso não me incomoda. Mas eu quero cumprir esse anseio pelo qual minha alma clama, esse anseio de conhecer o mundo e, principalmente, conhecer a mim mesmo nesse mundo. É isso que eu quero. 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Inveja

E eu que não pensava um dia ser tomado de súbito pela inveja. De repente me vi alimentando esse sentimento, tão baixo e tão vil, típico de quem nada realizou e inveja o sucesso do outro. Vejo o quanto me rebaixei e vejo o quanto me tornei mesquinho, ao lugar de me fazer feliz pelas conquistas e vitórias do próximo. Vejo um lado meu que não sabia que existia, estava tão escondido dentro de mim que custei a vê-lo. Não sei desde quando está aqui, ou o quanto já se alimentou de mim, mas vejo que está aqui e com raízes profundas. 

Vejo como se relaciona a inveja com a ganância, a inveja por querer ter aquilo que o outro tem e a ganância por desejar para si tudo. Me vejo preso pelo desejo, torpe e maligno, suspirado em meus ouvidos por um daqueles diabos de C.S. Lewis, daquilo que o outro conquistou, sem sequer precisar de mim. 

E eu que me julgava importante, que me julgava participe do sucesso do outro, vi que na contribui, que não sou mais do que um transeunte em sua vida, sem que nada deva a mim. E olhe lá, colhe agora louros de sucesso, recebendo por onde quer que passe reconhecimento, aplausos e sorrisos condescendentes. 

Eu, por outro lado, continuo no ostracismo. Embora já tenha feito muito ora, quantas palavras já não escrevi, quanto de mim já não derramei por entre páginas e mais páginas, sem nunca receber um reconhecimento? Sem quase não receber senão elogios esparsos que em nada contribuíram senão para alimentarem o meu ego medíocre. Pensava ser grande, mas era apenas um grão de poeira voando sem direção. 

E a inveja, revelada incrustada em meu ser, ora que surpresa, me mostra ainda mais baixo do que supunha. Vejo que nada fiz, nada realizei, não coleciono outra coisa senão inúmeros fracassos, dentre os quais o ser é o maior deles. Não é como se fracasse aqui ou ali, pelo contrário, minha própria existência é em si um erro mesmo,. Um arremedo de homem, um projeto nunca realizado, uma potencialidade apenas. 

Quanto esforço desperdiçado, quantas palavras ditas em vão, quantas lágrimas derramadas sem que ninguém as aparasse. Choro então no silêncio e na escuridão, desconhecido, como tantos outros espíritos anônimos que só podem viver sob a sombra dos grandes feitos dos espíritos heroicos, dos grandes nomes, daqueles que muito fizeram ou, que simplesmente foram reconhecidos pelo que fizeram. 

Me vejo então desejando isso, o reconhecimento. E como me sinto baixo por isso! Desejo o reconhecimento de pessoas medíocres também, desejo ser reconhecido por tantos outros iguais a mim e, não sendo mais do que sou, me vejo sendo menos do que todos, menor do que eles. De que me adiantaria ser reconhecido, não sei, talvez a presença de muitos possam me dar a ideia de preenchimento do vazio, é pode ser, mas ainda assim não torna menos patética a revelação da inveja presente em mim, rastejando como um inseto insignificante, desejando ser como aqueles que me pisoteiam e me insultam com cusparadas ou, pior ainda, que passam sem sequer perceber a minha presença. Serei condenado então aquele local do Inferno de Dante, onde os invejosos tem como punição os olhos costurados, assim não podendo mais ver o que tanto desejaram tomar dos outros.

Observo como todos os pecados, capitais, estão presentes em mim. Desejando o que é do outro, desejando mais do que me é de direito, me entregando aos prazeres e deixando-me levar pelas paixões. É essa a tensão com que tenho que viver? 

"Os Humanos são realmente patéticos,dignos de pena."

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Uma ida ao mercado

Tentei, em vão, dormir desde as 14h (e já passam das 17h) mesmo com uma boa dose de Diazepan 10mg. Odeio quando isso acontece. Fico pensando em nada e em tudo ao mesmo tempo, a mente vagueia em círculos e me sinto como um ratinho preso num labirinto. É um saco!

Hoje foi dia de ir as compras, o que se mostrou um verdadeiro suplício desde que essa pandemia nos obrigou a tomar medidas de proteção o tempo todo. Álcool em gel a cada vinte passos, tentar manter a distância das pessoas de no mínimo dois metros num mercado lotado e, como não poderia deixar de ser, pessoas com as máscaras no meio do rosto, crianças correndo pra lá e pra e tocando em tudo (aliás, pra quê levar crianças num lugar como esse?). Um verdadeiro pandemônio. 

Os preços todos pela hora da morte, parece que os comerciantes se aproveitaram da crise pra lançar sobre nossas costas ou, melhor, sobre nossos bolsos, todo o ônus. As placas promocionais em escritas em letras garrafais amarelo canário são apenas um chamariz. É incrível a capacidade do homem de se aproveitar do outro até mesmo nos momentos de maior dificuldade. 

Por isso, e também por motivos de querer preservar a minha saúde (sabe-se lá o motivo) eu tenho preferido ficar em casa, tendo acompanhado minha mãe pelo simples fato de que ela sozinha não daria conta de uma compra tão grande, já que agora somos sete pessoas em casa, além das constantes visitas, que elevam a esse número para pelo menos dez, e isso num dia bom.

Acabei o dia sem paciência nenhuma para ler ou ter qualquer outro tipo de contato com seres humanos, pessoal ou virtualmente. Estou cansado. Tentei então dormir mas, como essas palavras testemunham com uma infelicíssima brutalidade, cá estou eu, com sono porém desperto, com os olhos vermelhos e vidrados como um completo maluco. 

Odeio este estado de vigília em que paro, penso, reflito com profundidades e não chego a conclusão alguma. É patético na verdade. Em alguns dias eu até consigo ser produtivo, assistir várias aulas, ler um livro de quase seiscentas páginas em três dias, mas em outros, eu sou pior que inútil. Mas é o que temos pra hoje, meu passatempo foi reorganizar os cremes, óleos e outros produtos de beleza na prateleira do banheiro, o máximo de aproveitamento que tive. 

Não posso dizer, no entanto, que isso é culpa da pandemia (vírus maldito!) mas sempre fui assim. Parte de ser bipolar é intercalar dias de extrema produtividade com momentos de uma incapacidade total. E bem, é assim que eu sou. Essencialmente desequilibrado. 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Relação com a existência

Autoestima (substantivo feminino) - Qualidade de quem se valoriza, se contenta com seu modo de ser e demonstra, consequentemente, confiança em seus atos e julgamentos.

Esse sempre foi um assunto delicado para mim. Minha visão de mim mesmo sempre foi algo extremamente pejorativo. Desde muito novo eu tinha um tendência a comer sem muito controle, o que logo me deixou com alguns problemas de saúde. O sobrepeso me causava dificuldade pra respirar, agravado pela asma e as alergias constantes. Logo descobriram que tinha problemas com colesterol alto e, por outro lado e talvez pudesse vir a desenvolver problemas cardíacos, comuns na minha família. 

Não demorou nadinha para que todos da minha família se tornassem fiscais da minha nova dieta. E sempre morei próximo de muitos parentes, o que significou que tinha um número bem grande olhos em cima de mim. "Gabriel não come isso! Gabriel, tem que comer salada! Gabriel você ta exagerando nos doces, olha o seu tamanho!"

E eu odiava isso. Odiava ser forçado a comer um monte de coisas que eu não gostava e, ainda hoje, a perspectiva de come rum prato comum me traz ânsia. Eu como somente o que tenho vontade. Logo entendi que, se a implicância era com meu corpo gordo, eu tinha de mudar isso. 

Não tive de me esforçar muito quando, durante as férias, acabei pegando uma gastroenterite grave, o que me rendeu a perca de uns bons quilos. Aproveitei o estômago fraco pelas próximas semanas para perder ainda mais peso e logo me tornei extremamente magro. 

Minha técnica era simples: se comia muito num dia, passava um ou dois dias comendo o mínimo possível, assim não ganharia mais peso facilmente. E deu certo, ainda hoje sou reconhecido como muito magro, embora ainda quera emagrecer mais. Não suporto olhar no espelho e ver que meu corpo inchou, uns poucos centímetros que seja. Mas o meu corpo continuava feio.

Depois de mais velho eu decidi começar a me tatuar. Já conto onze delas pelo corpo, algumas até grandes. Isso ajuda a tirar o foco do meu corpo para os desenhos nele estampados. 

Quanto ao meu rosto, que abomino desde que começaram a dizer que tudo em meu corpo era feio e errado, pouca coisa consegui mudar. Fiz micropigmentação labial para deixar a boca mais rosada, e tenho feito skincare com assiduidade, mas ainda assim, o desânimo em ver pouco resultado apesar de muitos esforços e investimentos em produtos caros me desanima. Ainda me olho no espelho com a mesma visão de anos atras, como se tudo em meu corpo fosse errado e feio. Simplesmente não consigo aceitar.

Isso, obviamente, teve reflexo numa personalidade afetada e insegura, muitas vezes excessivamente vitimista. E eu sei que isso assusta as pessoas. Ninguém quer alguém que se sente inferior o tempo todo e se martiriza por isso e, pior ainda, sequer consegue usar isso com trampolim para melhorar. E também não consigo deixar de pensar o quanto minha aparência é razão para afastamento também.

Quando conheço um garoto e ele diz que não tem interesse num relacionamento homoafetivo, mas logo aparece com um rapaz eu vejo que o problema estava em mim, visto que o outro rapaz é sempre alguém discreto, bonito e, geralmente, musculoso. Completos opostos. 

Por outro lado venho passando por um longo processo de aceitar pequenas qualidades. Gosto do meu olhar, gosto das minhas unhas, gosto dos desenhos que me estampam, gosto de usar roupas diferentes, detesto o padrãozinho social engessado e sem vida (para mim, que fique claro).

Mas ainda assim, o resultado dessa autoestima combalida é um homem sem força de vontade, que sempre vê defeito em tudo que faz. Que enxerga cada área da vida como um grande fracasso. 

Na Igreja sou apenas um chato que tenta fazer a coisa certa e, embora tenha um certo conhecimento, ainda assim não consigo aplicar como gostaria. Se canto, não cativo meus parceiros, que frequentemente me abandonam ou me criticam por trás, como se eu não ficasse sempre sabendo. Não o faço de maneira afinada, é apenas minimamente aceitável. Intelectualmente eu sei do potencial que tenho, mas que não passa disso, um potencial. Não tenho força e nem esperanças de um dia chegar a ser um grande escritor, e acho patético ter um sonho tão grande como esse. 

Queria ser uma grande filósofo, contribuir para as discussões dos grandes, estar ao lado de nomes como Eric Voegelin, Olavo de Carvalho e, quem sabe, S. Tomás ou Platão, muito além de qualquer possibilidade. Quem sabe até ser um pensador de segunda categoria, mas ainda com um bom número de leitores e ouvintes, como um Karnal ou Pondé, de qualquer forma, alguém. Mas ainda assim eu me vejo em qualquer reflexo e digo a mim mesmo: você não é ninguém!

Minha relação com a existência é essa, deprimente. Olhando-me no espelho e detestando o que vejo, com o olhar baixo e vazio, o sorriso falso, forçado, absorto em músicas quem ninguém mais escuta e que todos achariam chatas e uma imensa vontade de não fazer nada, já que até hoje nada deu resultado. Continuo sendo o mesmo moleque feio de antes, para quem ninguém olha, e que provavelmente vai terminar sozinho, numa sarjeta, esquecido e viciado, pensando em si como o pior dos piores. 

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(Augusto dos Anjos)

terça-feira, 21 de julho de 2020

Olhos fechados

O corpo é, de súbito, tomado por uma febre arrebatadora. A razão é posta em coma e toda a vontade passa a circundar o universo úmido dos desejos luxuriosos. Cada fibra do corpo põe-se a ranger em desejo, os músculos retesados enrijecem com força, a respiração entrecortada passa a não conseguir mais suprir o ar daqueles pulmões que se inflamam em desejo ardente. 

Na alcova fria uma chama se acende, e as mãos abrem e fecham num frenesi. Olhos fechados, marejados, lábios cortados pelos dentes afiados que penetram fundo na carne. O sangue se mistura com a vermelhidão do furor. De repente então há a busca pela parte que pulsa, loucamente, como se tivesse vida própria. 

Na penumbra as apalpadelas encontram em cada parte do corpo um momento de deleite pecaminoso. O quadril de abre, as pernas trêmulas implorando por uma presença firme que as faça vibrar de dor. Na mão o membro em irreparável estado de lubricidade encontra violento consolo, a fricção aumenta ainda mais o calor, que condensando-se do corpo todo, começa a escorrer lentamente em gotículas finas de suor, o ar impregna-se daquele cheiro doce. 

A imaginação toma para si a responsabilidade de trazer até ali uma presença distante. Ao fechar os olhos ele vê aquela figura a sua frente, também ofegante, também desejosa em se entregar aos prazeres mais bestiais, como feras que se devoram na escuridão. Lembra-se do toque grosso, das palavras ditas que fazem a pele arrepiar-se, do beijo quente e molhado, da língua que mete-se com força, dos membros que se tocam, do ato que culmina o prazer em dor e gozo em meio as estocadas e veias prestes a explodir. 

E então vem o gozo. O gozo desses dias terríveis, tediosos, acumulando-se às raivas, as decepções, aos desejos antes reprimidos. O gozo vem com violência, lançando-se, leitoso e prateado, por sobre a pele morena cor de fogo. Lançando-se como o calor que fizera a febre. O suspiro forte toma conta do ar, os gemidos abafados pelos lábios que morderam com violência os músculos de um braço a cobrir-lhe o rosto, vão aos poucos diminuindo e cessando. 

Prova-o daquele néctar, doce e forte, contendo ali a essência dos seus desejos mais profundos e luxuriosos. Ali então, ainda de pernas abertas e coração palpitante como se fosse explodir, o homem é acossado não de uma culpa, mas de um vazio, que fora jorrado e agora escorre pelo seu corpo, como se fosse o veneno a lhe causar aquela febre. 

Mergulha, por fim, numa escuridão, não mais febril, mas acolhedora e gentil, adormecendo lentamente, como se fosse conduzido pela mão até o outro mundo. E tudo aos poucos vai escurecendo, até desaparecer completamente, o coração voltando a bater num ritmo abafado, normal. O furor se fora. O desejo finalmente adormecera, por enquanto. 

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Ao redor

Sabe, todo mundo é substituível. Faça o teste, se ausente por tempo suficiente e todos vão aprender a viver sem você. Apresente dois grupos de amigos: logo vão esquecer de você. Sabe porque aquela pessoa que você gosta diz que está solteira por opção? É porque a única opção é você, e ela não o quer, qualquer coisa, até a solidão, é melhor do que você. 

Seu amor, seu carinho, nada disso serve para ninguém, é dispensável e trivial. Você não só causa indiferença nas pessoas, causa repulsa, ojeriza. Ninguém vai olhar pra você! Seu arremedo de ser humano, sua garatuja, aberração!

E é por isso que morrerá sozinho, sem ninguém ao seu lado, lembrando-se dos velhos tempos, como se alguém o amasse, como se alguém o desejasse. Mas os velhos tempos são agora, e ninguém te ama, ninguém te deseja. Morrerá sozinho, sonhando com uma época que nunca existiu, no mais patético dos fins.

Ao seu redor todos vão se apaixonar, encontrar um alguém especial, buscar a felicidade. A você nada disso será permitido. Você é parte das estirpes condenadas a cem anos de solidão que nunca terão uma segunda chance sobre a terra. Seu destino é a latrina fétida, um cadáver podre incomodando os vizinhos, e nada além disso, um incômodo. Enquanto os outros são como flores doces exalando perfume, atraindo todos a si. Você apenas os repele. Você apenas os enoja!

Outros colos são mais agradáveis do que o seu. Outros abraços, outros beijos, outras palavras. Tudo no outro é melhor do que em você. Afinal de contas, por que você existe? Por que está aqui? Ninguém te quer por perto, ninguém nunca vai te amar, ninguém nunca vai te querer. E, no fim, tudo o que vai testar a você é desejar a morte, voltar ao nada, voltar a inexistência.

Mas por que é assim? O que eu tenho de tão inferior aos outros? Por que eu sou tão ruim assim? 

Eu tentei, tentei mesmo. Eu dei o meu melhor, o tempo todo. Dei carinho, atenção, afeto. Ouvi, aconselhei, chorei, emprestei o meu ombro, consolei. E nada disso adiantou. Ainda continuo sendo tratado como um sub-humano, algo muito inferior, um animal que não merece carinho ou afeto. Mesmo sendo o meu melhor, não foi o suficiente. Eu não fui suficiente.

domingo, 19 de julho de 2020

Esperando uma mensagem

E todos os dias ao acordar eu pego o celular na esperança de que tenha recebido aquela tão aguardada mensagem.  E ela nunca chega. Às vezes quero mergulhar num diálogo, e até cobro se não recebo na mesma intensidade, e tem dia que só quero o silêncio. Por que sou assim?

Isso que sinto não é esperança, não, não pode ser uma virtude senão que é quase uma alucinação. Pessoas próximas da morte ou que sofrem de intenso sofrimento podem ter alucinações. E acredito que todos os dias pensar que algo pode aparecer na tela e mudar tudo é uma delas. O que eu espero? Um convite para ir pro Digimundo? Uma declaração de amor? O desbloqueio de tela só mostra que, além de nada disso existir só há para mim o caos em que o mundo está mergulhado. O dia da ira que já dura anos sem fim.

E então, durante a tarde, eu me encho de remédio e volto a dormir. Mesmo acordando algumas vezes eu me obrigo a adormecer novamente, até que chegue a noite e eu perceba que o dia se foi, e que logo eu vou dormir de novo. Isso porque é mais cômodo viver nesse mundo onírico onde não vejo, não sinto, a realidade só meu redor. Quando menos tempo acordado, menos consciente do quanto eu não consigo entender esse mundo e do quanto não consigo me aproximar de ninguém verdadeiramente. Quanto mais durmo mais tempo posso ficar longe de tudo, mais posso me refugiar da solidão, do abandono.

Não quero ver, não quero viver. 

Porque eu quero morrer.  
Eu quero desesperança. 
Eu quero voltar ao nada. 
Mas eu não posso.  
Ele não vai me deixar voltar a inexistência. 
Ainda não. Eu ainda existo porque ele precisa de mim. 
Mas quando tudo acabar, 
quando eu não tiver mais utilidade, 
ele vai me abandonar.
 Eu rezei pelo dia em que ele me abandonaria.*

Todos me procuram pedindo algo e, quando percebem que eu não sou mais o que era antes, quando percebem que eu sou apenas um arremedo de ser humano, alguém que vaga sem razão e sem objetivo, alguém que já não serve para mais nada, eles vão embora. É sempre assim. 

Mas eu não, eu já sei que não valho nada, que minha morte não faria volta, que meu fim seria, pelo contrário, até desejável pois eu deixaria de ser um peso para os outros. E eu odeio ser um peso. Odeio ser um incômodo. Odeio obrigar os outros a conversarem comigo, odeio que se sintam na obrigação de assistir o que eu assisto ou ouvir as minhas músicas, porque eu sei bem que vivo num mundo só meu e que os outros não podem ver o que eu vejo, assim como eu não consigo ver o mesmo mundo que eles. Não consigo sentir a alegria e as estupefação das coisas simplórias, pequenas, não consigo me contentar com as perspectivas sub-humanas que têm para suas vidas. 

Como seria se vivêssemos sem essas separações, sem esses muros que nos separam uns dos outros, sem as vergonhas, sem as mentiras que contamos, sem as coisas que escondemos? Como seria se nossas almas se afobassem para preencher o vazio que há no âmago do coração do homem? Essa é a única existência possível. Perder para ganhar. Abrir mão do eu individual para ser apenas um, um todo. Sem medos, sem sonhos, a plenitude da realização humana, todos fundidos num só, como fogo que converte tudo em fogo. Um mundo vazio, mas repleto ao mesmo tempo. Todos mergulhados naquela sopa primordial da vida, completos. Um mundo sem estranhamentos, sem precisarmos reconhecer os outros que existem dentro de nós, sem precisar conviver com aqueles que nos machucam justamente porque vivem fora de nós. Um mundo sem ninguém, com um único eu, uma única fera gritando EU no coração do mundo.  Seríamos deuses! 

Como isso é patético não é? Um humano querendo ser um deus. Uma cobra que rasteja pelo chão só pode sonhar em voar pelo céu. 

Tudo que eu queria era preencher o vazio, voltar aquele útero primitivo, ainda que para isso precisasse esmagar a minha mente com a de milhões de pessoas. Tudo o que eu queria era olhar para a tela e ver aquela mensagem que pode mudar tudo. Tudo o que eu queria era que algo me arrancasse desse torpor. Tudo o que eu queria era conseguir enxergar a luz que todos parecem ver, ou que pelo menos dizem que vêm. Tudo que eu queria era sentir calor humano, e não me sentir absolutamente sozinho nesse mundo. Queria ter uma razão para viver, ser verdadeiramente alguém, importante, insubstituível.

Por outro lado eu não queria ser assim, não queria desejar alguém, não queria desejar ter alguém, não queria ter sonhos. Queria não precisar de nenhuma dessas coisas. Queria conseguir ser apenas eu, sem uma multidão dentro do meu coração implorando por cada uma dessas patifarias. Pra dizer a verdade eu já nem sei o que eu queria, eu só sei que eu queria que as coisas fossem diferentes...

~
 
*Trecho do penúltimo episódio de NEON GENESIS EVANGELION - O Fim do Mundo - Você me ama?

sábado, 18 de julho de 2020

Melted

Antes de começar a ler: Recomendo que veja o MV em questão, antes e depois, da leitura, para que a experiência seja a mais próxima possível da que tive. Chorei várias vezes assistindo-o, desde o lançamento, e espero que seja um bom começo de reflexão para outros, como foi para mim. Boa experiência!

Akdong Musician (AKMU) - Melted

Um jovem registra pela lente de suas câmeras o que ele vê ao seu redor. Tenta chegar a algum lugar, pega uma carona e se diverte tirando fotos de tudo o que vê, a paisagem lá fora por entre os vidros do carro, as caixas do homem que parece se mudar, estressado e infeliz com sua vida, talvez tentando recomeçar, como ele, mas sem a esperança que o jovem guarda consigo.

E ele continua registrando tudo: a dificuldade das pessoas que tentam, de algum modo, ganhar a vida, sob o sol forte de um dia quente. A dificuldade das pessoas em se entenderem, gritando em meio ao barulho da cidade. 

Mas mesmo assim, no meio de tanto caos ainda há beleza. Mesmo por detrás de uma cortina de lágrimas ainda há algo a ser visto e considerado belo. Essa beleza o leva a outros lugares, uma noite num bar animado. As pessoas bebem, flertam, enquanto outros lamentam o azar de estar ali, servindo aqueles devassos que nada mais fazem do que rir e gritam, como animais. 

Ele é logo esquecido, como algo sem importância alguma, e tenta ir atrás das pessoas que se foram sabe-se lá para onde. Ele é maltratado, deixado sozinho, sangrando e busca ajuda, mas nem a polícia enxerga aquele pequeno, que só queria ver o mundo pelas lentes de sua câmera. 

Why, they're so cold?

No fim, quando se aproxima de um cachorro ele tenta brincar com o animal, que de pronto o rejeita com latidos ferozes. Será que nem mesmo os animais o querem por perto? Ele é assim tão desprezível que sequer merece os afagos de um cão que dormia do lado de fora de um trailer no alto de uma colina longe da cidade? 

Alguém abre a porta, um homem alto e aparência dura, com uma grande barra de ferro na mão. Veio ver o que fez seu cachorro latir tão alto. É o seu fim, ali, machucado, abandonado, e depois de ter enfurecido um homem com uma arma na mão. 

Mas o gelo que há no coração de tantos uma hora se desfaz, derrete. Ali, no último lugar em que esperava, ele vê doces olhos que o ajudam, lhe dão de comer. No último lugar encontrou aquilo que procurava, e não registrou pelas lentes da câmera, senão que apenas com o olhar, lembrando-se do seu passado agora, tantas décadas depois, do alto de um grande e luxuoso prédio. Olha, para baixo, o gelo do whisky derretido, como o coração daquele homem, que lhe deu um novo começo. 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Desde o berço

É uma sexta vazia, como tantas outras desde que essa maldita quarentena começou. Não, isso não tá certo. Já estava assim bem antes de começar. O vazio vem comigo desde o berço. Não me lembro de uma época em que não o sentia, só me lembro de conseguir ignorá-lo melhor. 

Existe um vazio bem no âmago de nossas almas. Uma imperfeição fundamental que tem assombrado todos os seres desde o primeiro pensamento. Em um nível primitivo, o homem sempre esteve ciente da escuridão que mora no núcleo de sua mente. Temos procurado escapar desse vazio e do temor que ele provoca, e o homem procura preencher esse vazio. 

Volto para dentro de mim então, nessa noite fria e seca, procurando inspiração para dizer algumas poucas linhas que sejam, que fossem como aquelas palavras que outrora fizeram outros se emocionar. Mas não há nada, mergulhando para dentro de mim eu apenas caio em queda livre num imenso vazio, num grande nada. 

Não há mais planos pro futuro, não há mais filmes a serem vistos ou séries a esperar, não há amores a suspirar, não há mais nada além da noite escura e fria do deserto. 

Porque eu quero morrer.  Eu quero desesperança. 
Eu quero voltar ao nada. Mas eu não posso.  Ele não vai me deixar voltar a inexistência. Ainda não. Eu ainda existo porque ele precisa de mim. Mas quando tudo acabar, quando eu não tiver mais utilidade, ele vai me abandonar.

Que outro refúgio tenho além das longas horas de sono? E eu, pobre, que farei, que patrono invocarei quando tudo me parece perdido? Que razão há para ficar acordado se os momentos de vigília apenas me deixam entediado e cansado da existência humana, tão limitada e pobre em suas própria misérias? A visão do homem cansa, e tudo o que vejo ao me redor é absoluta decadência, estética, moral, intelectual e em qualquer outra área possível. Decadência. Como uma grande cidade abandonada, com seus prédios a serem consumidos pelas intempéries, rodeado por arbustos e servindo de abrigo aos animais, com a areia dos desertos invadindo tudo. Assim é o homem, invadido pela depressão, incapaz de brilhar como fora um dia antes. 

- Só porque odeia a si mesma não há motivo pra ficar triste depois. Punir a si mesma é simplesmente uma trapaça, só pra fazer com que se sinta melhor por pouco tempo. Não faça isso com você. 

- E agora vai dizer pra eu me cuidar? Os homens sempre fazem isso. Eles fogem pros seus trabalhos, seu próprio mundo. Me deixando pra trás. Eles sempre me deixam pra trás.

- Sempre, como fez o nosso pai.

- Eles sempre fogem das cruéis realidades. Cruel realidade. Eu sou sua cruel realidade. É claro, eu sou um problema. 

A visão do homem não te cansa? Eu estou tão cansado do homem... 

A razão da existência. A razão que permite a alguém ser.

Este é o caso de Shinji Ikari.

O garoto desejou a morte. 
O outro garoto aceitou esse desejo.
O último anjo não existe mais.

No entanto, Shinji Ikari continua cheio de angustia.

~

Trechos em itálico retirados do penúltimo episódio de NEON GENESIS EVANGELION  -  O Fim do Mundo - Você me ama?

terça-feira, 14 de julho de 2020

Hanabi

Tensões. Uma existência constituída de contradições intrínsecas ao meu ser. Preto, branco, cinza, as cores do arc en ciel. Misturadas, combinadas em infinitas possibilidades. Há elementos que eu coletei com o tempo, traços, gostos, manias daqueles que me rodeavam. Elementos que nasceram comigo, que não os escolhi, e que a todo momento me fazer ter reações e ver as coisas de um modo que eu não esperava. Há coisas em mim que ainda não reconheço, mas admitir as tensões da existência, sem escondê-las e sem fugir, é o que faço para me reconhecer. 

Ficar de frente ao espelho de agora, e não reconhecer o que vejo na foto passada, não lembrar das coisas pequenas que antes me prendiam as pequenas concepções. Sem grandes impressões, sem furor, olhar realista sobre a existência trágica, finita e fria da vida de cada um. Diminuindo as decepções, sem esperar nada da vida além de dor e sofrimento e, no entanto, se alguma alegria me for dada, saber reconhecer que não há de durar para sempre. Como a juventude não dura, como os sonhos não duram, como as amizades e os amores não duram. Como os fogos de artifício que estouram e iluminam os céus por um instante mas logo dão lugar a escuridão novamente. 

Mesmo uma canção, mesmo os adágios e árias mais belos límpidos tem seu fim, seja uma derradeira coda ou desaparecendo lentamente, como o sol no horizonte ao se pôr todos os dias. 

Queria, por outro lado, dizer que isso é algo anormal, que me sentir assim, tomado de constante desesperança, é coisa que se abate sobre mim raramente ou que é resultado de algum fator externo, mas não. Isso já se tornou quem sou e como sou, não alguém capaz de sonhar e se impressionar, apenas alguém que perdeu até mesmo a capacidade de se deixar cegar pela luz do sol, vendo apenas o mundo por uma lente sem brilho algum. A melancolia se tornou parte inseparável de mim e o olhar cético para o homem também. Aliás, a visão do homem hoje me cansa, me ver no espelho me cansa, estou cansado do homem. 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Farol

Finalmente tive a coragem, ou a imprudência, de te dizer a verdade, sem rodeios ou floreios poéticos. Eu sei bem que não deve ser de grande importância pra você mas, para mim, assumir em voz alta é aceitar encarar de frente uma verdade que eu vinha negado há muito tempo. 

Até para os meus amigos mais próximos eu vinha mentindo, dizendo que você nada significava, que não tinha importância mas, dentro de mim, eu sabia que isso não era assim. Eu já sabia, sabia e fingia e não saber. 

Posso não ter esclarecido que o que eu sinto nasceu de uma admiração sincera, algo do brilho dos seus olhos que me encantou, me hipnotizaram e me fizeram prisioneiro da sua presença que irradiava tanta luz. Mesmo por detrás de toda essa personagem, de todas essas camadas de pensamentos estranhos que colocaram sobre você, eu ainda vejo algo, bem lá no fundo, que me encanta e me faz querer estar por perto, me faz desejar ter você comigo. 

Vejo você então dessa forma, como esse Apolo, esse inalcançável ideal. Tão distante como o céu está das criaturas condenadas a vagar pela terra sem rumo. Você é essa chama ardente no alto da montanha, eu sou apenas uma embarcação que se perdeu em meio ao mar revolto, escondido por entre um denso nevoeiro, apenas sonhando em ver de perto a luz do farol de um porto seguro. 

Foi bom ter esclarecido. Não gosto de deixar coisas não ditas, o óbvio também precisa ser declarado, com todas as palavras. E, se as palavras têm mesmo poder, talvez os meus sentimentos consigam alcançar o seu coração, e você consiga me olhar nos olhos também, vendo o que sinto pela primeira vez. 

sábado, 11 de julho de 2020

O apagão e as luzes

Hoje foi um dia dos mais atípicos, não me recordo de algo tão estranho acontecendo comigo... Já há alguns dias eu vinha sentido que algo estava para acontecer. Vinha sentindo algo se aproximando, uma tristeza, uma angústia sufocante se apoderando de mim, pouco a pouco, me rodeando como leão que busca a quem devorar. 

Me senti estranhamente incomodado com algo o dia todo, inquieto, andando empertigado pela casa, fazendo downloads descontrolados, cantando alto ou deitado como se o mundo estive desaparecendo... Aos poucos, eu sentia, minha mente ia se desfazendo como fumaça. Até que aconteceu. 

Um apagão completo.

Eu não soube o motivo, mas decidi que precisava ir a algum lugar. Precisava comprar alguma coisa, com urgência. Me troquei, peguei a carteira e chamei um uber. Quando cheguei lá, desci do carro e vi tudo fechado ao meu redor. 

De repente eu não sabia mais onde eu estava. Senti frio, olhei ao redor e não reconheci nada. Atravessei a rua, vi algumas pessoas na porta de uma distribuidora, não pareciam amigáveis, ou era preconceito meu, Fiquei com medo, muito medo. Entrei numa farmácia qualquer, disse que procurava um creme pro rosto ou algo assim, não achei. Decidi que ia atrás do tal creme que eu nem sabia qual era. Desci e fui pra outra farmácia, os homens da distribuidora me olhando. Eu sabia que havia algo de errado comigo, mas eu não sabia como ir embora, não sabia o que tinha de fazer. 

Comprei alguma coisa, esqueci o troco e o rapaz veio correndo atrás de mim devolver o dinheiro. Me lembrei que estava com o celular e chamei de novo um uber pro último destino salvo. Estava escrito "Casa". Onde era a minha casa? Eu tinha uma casa? Eu tinha uma casa. 

Esperei pelo carro. 8 minutos. Guardei o celular no bolso, embaixo do poncho marrom. Peguei de novo. 7 minutos. Guardei de novo sob o poncho marrom. Peguei mais uma vez. 6 minutos. Guardei novamente. Um homem me cumprimentou e eu respondi, assustado. Um dos homens que falavam alto veio na minha direção, eu fingi que entraria de novo na farmácia, ele desviou o caminho. Peguei o celular mais uma vez, tremendo de medo e de frio. 5 minutos. E foi assim, minuto após minuto, até que o carro chegou. Entrei rápido e fomos.

Fui reconhecendo o caminho. Mas não devia estar reconhecendo como se tivesse visitado aquele lugar anos atrás, eu passo ali todos os dias, todos os dias eu vejo aquelas fachadas, aqueles letreiros. 

Sem pensar muito sobre eu interrompi a corrida na metade do caminho, decidi que chegaria em casa a pé. E assim eu fui, andando, meio sem rumo, até encontrar a rua certa da minha casa. Meus pés ficaram cheios de terra, eu entrei por um lugar cheio de mato ao invés de usar a calçada. Passei no meio de algumas crianças que brincavam e finalmente cheguei no portão de casa. 

Minha mãe me esperava na porta, mensagem preocupada na notificação do celular. Ela perguntou o que tinha acontecido, se eu estava bem, e tudo o que eu consegui dizer foi que eu não sabia. E então desabei a chorar, sem nem entender o motivo por trás daquelas lágrimas e dos soluços. 

Demorei a me recompor. As lágrimas cessaram, fiquei envergonhado e tudo parecia um pouco mais claro. Um amigo me chamou para sair, andar por aí, e minha amiga, que mora aqui em casa, achou que fosse uma boa ideia que eu saísse, dessa vez acompanhado. 

Reconheço que tem muita coisa na minha cabeça. Preocupações com a igreja, pessoas que me incomodam, que cobram demais de mim, ficar em casa tanto tempo por causa da pandemia, meus próprios fracassos, os muitos livros que nunca foram abertos, as dívidas, o sentimento constante de abandono e solidão, saudades... 

Aceitei sair. Vi as luzes de muitas casas das cidades satélites do Distrito Federal. Caminhei pela Praça dos Três Poderes, tirei foto com aquela catedral horrorosa da arquidiocese, senti o vento gelado na fonte perto da Torre de TV. Andamos abraçados, os três, enquanto conversávamos sobre qualquer coisa, algumas pessoas olhando curiosas. Comemos no carro enquanto fazíamos piadas. Mostrei a eles as fotos que fiz nu dias atrás e é claro que rimos muito disso, postei vários stories voltando pra casa, cantando reggae, as luzes de novo. Irônico, depois de sentir tudo apagar e não me lembrar de nada naquela rua escura e cheia de desconhecidos, me encantar com as luzes coloridas da fonte e das milhares de casas que vimos quando passávamos no caminho de volta. 

Eu sinto agora que preciso descansar, só uma boa e longa noite de sono, mesmo que já sejam três da madrugada. Enfim, amanhã não preciso acordar cedo, eu só quero, e só preciso, de descanso. Meu cansaço mental me levou ao limite. Mas eu também percebi que, se levar a vida um pouco mais leve, eu posso conseguir. Talvez não chegue a ser o grande escritor que sonho, mas ao menos consiga viver sem enlouquecer... 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Mais nada

Preso em meio à uma estranhíssima dicotomia. Por um lado me sinto extremamente sensível, chateado com tudo e todos, num permanente vontade de chorar sem motivo, com uma tristeza a me dominar. Por outro lado sinto apenas uma letargia, um grande vazio, um nada que me preenche, um abismo que me consome apodrecendo tudo o que há aqui dentro. 

Acho que olhei muito tempo para o abismo, pois agora ele não só olha para mim como me segura com suas garras, rasgando a minha carne com suas presas, me levando para a profunda escuridão do seu coração. Me sinto só, mas não quero ninguém por perto. Não quero ficar sozinho, mas não quero que me roubem a solidão sem antes me oferecerem verdadeira companhia. 

Mas a verdade é que não sei o que eu quero. Não sei nem o que estou dizendo aqui, senão que meus dedos imprimem nestas páginas apenas aquilo que brota sem controle de dentro de mim. Essas palavras são a única coisa que sobrou. Se olhar bem fundo dentro de mim, não encontrará mais nada. 

Tenho dormido mais do que o normal, apelado para os remédios, uma fuga. Eu acordo e vejo a luz do sol, o início de um novo dia, de um dia terrível. A noite vem e eu sinto uma profunda tristeza se apossando de mim. É sexta, e eu não quero sair, não quero conversar ou sorrir, tampouco quero voltar a dormir, o que eu quero é voltar ao nada, voltar a inexistência. 

E eu nem sequer sei o que está acontecendo. Eu não sei de onde vem essa tristeza. Eu não sei. Eu não sei. Eu não sei mais nada. Não sei o que quero, não sei o que fazer, não sei o que será de mim? Todo dia eu acho que vai ser o último, todo eu acho que só vou precisar aguentar mais um, mas nunca é o último, nunca termina, sempre tem mais um, e mais um, e mais um... 

E ninguém sabe quem eu sou de verdade, e talvez eles só não deem a mínima pra essa porcaria toda. Talvez estejam todos perdido e só saibam fingir melhor do que eu. Mas eu só consigo chorar, chorar e me arrastar por aí... Mas nem eu sei quem eu sou ou o que eu quero, como posso querer que os outros saibam? Acho que no fundo eu espero que me digam quem eu sou, mas isso também não vai acontecer. E então eu fico aqui, esperando o fim, por mais um dia, mais um dia terrível, mais um dia sem fim. 

Tudo mudou

Durante uma chamada do telejornal eu me vi pensando no quanto as coisas mudaram nos últimos tempos. Desde que a pandemia começou, em Wuhan, nos primeiros meses do ano, nós aqui do outro lado do mundo aos pouco sentíamos que uma grande onda destrutiva vinha em nossa direção. Enquanto na Ásia a China enfrentava uma crise sem precedentes, na Europa a Itália aprendeu à duras penas o quanto um vírus letal podia transformar a vida do país. Não demorou e os corpos começaram a ser carregados dentro de caminhões e enterrados em valas comuns, as administrações incapazes de dar sepultura digna a todos.

Após o carnaval os primeiros casos começaram a surgir no país, e duas ou três semanas depois do primeiro caso as coisas começavam a mudar. Muitos passaram a adotar os isolamento social sugerido pelo Ministério da Saúde e a OMS. De um dia para o outro passamos a ficar dentro de casa, saindo apenas para aquilo que fosse absolutamente essencial. Em alguns estados os números de infectados cresceram vertiginosamente, aumentando o medo e a apreensão. A ansiedade tomou conta de todos. 

Agora, meses depois da chegada do vírus em terras brasileiras as empresas não voltaram ao pleno funcionamento, mas a própria população decidiu não mais ficar em casa. Muitos fingem não estar acontecendo nada. Outros, por outro lado, ainda se preocupam consigo e com todos os seus. Agora saímos nas ruas usando máscaras. As lojas estão abertas em horários diferentes, e com apenas um pouco da sua capacidade. 

O que mais me impactou foi a mudança na Igreja. De imediato todas as paróquias foram fechadas por decretos episcopais distribuídos em todas as dioceses. As missas passaram a ser transmitidas online, e as igrejas completamente vazias. O choque foi grande, eu me recordo de ter chorado no primeiro dia, ao ver o salão ao qual estou tão habituado a ver cheio, sem ninguém. 

Agora que as missas públicas voltaram a ser autorizadas o cenário ainda é diferente. Bancos mais vazios e todos usando máscaras. Eu, que me sento no presbitério ao lado do padre, me incomodo muito em ver aquela cena que mais se parece com algo saindo de um filme sobre armas biológicas e conspirações internacionais de controle populacional. 

A economia mundial se viu combalida, enquanto outros setores cresceram, surfando na onda do coronavírus, como as empresas farmacêuticas, os youtubers responsáveis pela distração daqueles que estão em casa, e qualquer outra área essencial para a sobrevivência à pandemia. Outras simplesmente faliram, migraram para outros ramos. As estreias no cinema foram suspensas, séries e novelas paralisadas e outras criadas num novo formato, se nossas comunicações passaram a ser online, a dos personagens também. Muitos serviços que antes eram presenciais passaram a ser realizados online também, com isso aprendemos na marra que muita coisa podia ser simplificada nas nossas vidas, evitando deslocamentos e aglomerações. 

A política está um caos, como se todos puxassem uma mesma corda em direções opostas. Muitos presos por usarem o dinheiro que deveria ser aplicado no controle da pandemia de forma indevida. Demissões, renúncias, nomeações escandalosas e até mesmo chefes de estado contaminados. 

Aqueles que já tinham ansiedade ou depressão se viram numa péssima situação, com a saúde mental se desfazendo no convívio familiar forçado, no sufoco do isolamento. Quem não tinha acabou desenvolvendo. Todos nervosos, ansiosos, crises de pânico para todo lado, semblantes abatidos... Tudo mudou.  

Agora esperamos pela volta da normalidade, se é que as coisas voltarão a ser como eram antes. Talvez as máscaras tenham vindo pra ficar, talvez nunca mais sejamos autorizados a ficar em grandes multidões ou, pode ser que aconteça, nos acostumemos as mortes constantes de pessoas próximas e ao colapso do sistema de saúde. O homem é limitado em perceber aquilo que é diferente, de uma forma ou de outra normalizaremos a situação. 

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Para sempre

Eu já disse que você é lindo? Hum, sim, eu sei que já o disse, várias e várias vezes. Disse porque é verdade. É verdade que você é uma das coisas mais lindas que já, é verdade que me sinto preso aos seus olhos claros cada vez que olho para você, é verdade que me sinto flutuar cada vez que me vejo rodeado pelos seus abraços, abraços estes que são o melhor lugar do mundo para mim. 

Tem alguma coisa em você, em seu toque, em seu olhar, que é capaz de mudar tudo dentro de mim. Quando estou com você é como se o mundo não existisse, como se nada mais importasse, somente a sua presença, a sua voz, o seu riso, o seu cheiro. Por isso se pudesse ficaria aqui para sempre, com a sua cabeça apoiada sobre o meu colo, meus dedos entrelaçados levemente em seus cabelos. Queria que pudéssemos ficar assim, só nós dois, para sempre. 

É muito injusto, o modo como você ainda fala comigo, o modo como me mostra o seu corpo sem que eu possa toca-lo. E eu olho pra você, e só consigo pensar em te tocar, em sentir de perto o seu perfume, em ouvir seu coração bater, em passar a mão nos seus cabelos e sentir os seus lábios nos meus, e o seu hálito doce a percorrer o meu corpo, minhas mãos a explorarem cada linha do seu corpo. Nós dois num só.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Feridas abertas

Tudo tem estado, sei lá, tão triste e tão sem graça. Parece que o mundo todo que corre desesperado atrás de uma cura para o vírus potencialmente mortal não é o mesmo em que vivo. Eu estou apenas atônito, em minha cama, olhando fixamente o teto branco, com um sentimento profundo de que eu queria alguma coisa, mas que já nem sei o que é. 

Meu coração sangra, esvazia-se,
Não desse sangue vermelho
Esse que corre em minhas veias
Sangra amor

Começo a sentir frio
Meu corpo treme
Estou com medo

Meu corpo ainda está de pé
Mas temo não estar vivo
Vegeto a procura do amor perdido
Não adianta

A navalha corta o músculo
Vejo o brilho do alumínio
Dar lugar a um vermelho negro
Agora é certo... ele pára
E eu também...

(Arturo Angelin)

Algumas músicas passam no player, o tempo todo, muitas são tristes e me fazem querer chorar, e eu nem sei o motivo da minha tristeza. Solidão, medo, decepção, vontade de querer ser mais do que uma ameba maníaco-depressiva e superdotada que nunca fez nada de importante na vida. Triste por não ser uma pessoa que imponha o mínimo de respeito, sendo tratado como cão por todos que resolvem falar um pouco mais alto comigo, como se tivesse a obrigação de obedecer, de cabeça baixa e rabo entre as pernas. 

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda

Como se tivesse por obrigação fazer tudo o que me pedem, ser o que desejam que eu seja. Como se nunca pudesse fazer o que quero ou ser quem sou de verdade. Mas como disse Dom Quixote, eu sei quem eu sou, e se ao que busco saber nenhum de vós me responde não têm sobre mim nenhum direito de me dizer o que fazer ou como ser. 

Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?*

Quem eles pensam quem são? O que eles sabem sobre mim, sobre o que eu faço ou sobre a minha vida? O que lhes dá o direito de me julgar e me classificar? Isso me deixa irado, e a ira me consome, como as chamas consomem tudo até às cinzas. E parece-me que o universo todo irá queimar e se tornar cinza. Pois bem, que todas as coisas do mundo queimem e se tornem cinzas! 

Elas agora vão se parecer com o que há no meu coração. Cinza fria, depois do dies irae, depois que tudo se foi, depois que tudo se tornou nada. 

A verdade é que todos são insetos, pequenos vermes insignificantes que rastejam na lama tentando ser alguma coisa, sendo que o máximo que podem fazer é tentar devorar o corpo daqueles que caminham por sobre suas existência miseráveis. Todos riem-se de mim. Me tornei o opróbrio para todos os que me rodeiam. Causa de risos e zombarias que ecoam em minha mente e no meu coração. Um miserável insultado pelos vermes de suas próprias feridas abertas. 

Mas ao que me parece todas as existências são miseráveis. Cheias de desejos baixos, de provocações covardes, de lutas por poder e controle. Deixe algumas pessoas juntas por alguns instantes e elas logo estarão competindo por poder, se matando de algum modo. Isso porque o mundo hostil em que vivemos, a humanidade inviável da qual fazemos parte é, desde o princípio, um projeto fadado ao declínio. Tudo tende à entropia e ao decaimento, a morte é inevitável, o fim, no entanto é a única esperança, de que tudo isso termine, de que não existam mais poderes e nem dominações entre uns e outros. Que finde a solidão e as provocações. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!**

~

*Poema em Linha Reta - Fernando Pessoa
** Cântico Negro - José Régio. 

segunda-feira, 6 de julho de 2020

De uma imagem que se desfaz

Será que há espaço para mim em seu coração? Há lugar para que entre e nele faça morada, como amado no amante, em que tudo um ao outro possuiria? Quem poderá curar-me acaba, de entregar-me já deveras. Já não me enviem mensageiros, e nem mestres, nem seus pretensos sábios. Nenhum deles sabem dizer-me o que desejo. Oh, mas quem me dera se esses semblantes prateados pudessem formar os olhos desejados, se pudessem as brisas rodear-me como desejo que sejam os amplexos do amado, que as árvores possam ter a rigidez que traz consigo os meus sonhos mais obscuros...

Mas apenas disso se tratam essas coisas. Sonhos. Ou já não chegam a tanto. Não são tão profundos como um sonho, mas apenas um devaneio, um esboço da mente destruída, a sombra do que um dia já foi um mundo inteiro de sonhos. Universos era criados para cada novo amor, miríades de estrelas chapinhavam os céus infindos dos meus sonhos mais profundos, capazes de me arrebatar completamente deste plano para uma outra dimensão, diversa, difusa, complexa e, principalmente, inexistente em qualquer outro lugar, senão na minha própria mente distorcida. 

E hoje essa mente produz apenas isso, um pequeno cenário formado da fumaça que escapa dos recessos de minha consciência. Minha razão, ou o que restou dela depois de tantos meses de violentas batalhas, diz que não, não espaço para mim em seu coração, e basta olhar em seus olhos, viajando por entre as nebulosas estreladas de seu castanho brilhante para perceber que isso é verdade. Não encontro morada no seu ser, assim como não encontrei em nenhum outro lugar desse mundo. Resta-me apenas contemplar essa imagem, antes que ela se desfaça no ar, e desapareça completamente, como desapareceu aquele que antes tanto se empenhava em amar.

Será que há espaço para mim em seu coração? Há lugar para que entre e nele faça morada, como amado no amante, em que tudo um ao outro possuiria? Quem poderá curar-me acaba, de entregar-me já deveras, sumindo no horizonte, como cervo me feriste e foi-te embora em seu alazão, trotando para bem longe de mim, em seu próprio mundo, rumo ao seu jardim fechado, onde há aquela fonte lacrada da qual nunca poderei sequer me aproximar para beber de seu doce néctar.  

domingo, 5 de julho de 2020

Aqui

Ninguém sabe quem eu sou de verdade, e eu sempre me senti assim. Sei como deve parecer clichê começar um texto desse jeito mas, desde que me lembro é assim. Eu vejo as pessoas ao meu redor, até as mais próximas, e percebo que elas nunca conseguiram ver quem sou de verdade.

Tudo o que eles conseguem ver é uma casca, uma miragem, uma mera ilusão daquilo que sou de verdade. Uma pequena fração que se mostra ao mundo e se revela sob o sol, senão que todo o resto está escondido na escuridão do meu próprio peito. Mas está lá, em algum lugar. 

Ninguém sabe quem eu sou de verdade, e talvez eles só não entendam. É que eu sinto que ninguém nunca tentou ver quem eu sou de verdade, ninguém nunca tentou entrar naquele lugar secreto, ninguém nunca via aquilo que se escondia mas que, ainda assim, estava ali do mesmo modo. Todos só conseguem ver aquilo que eles querem. Desejam apenas imprimir em mim o que há no seu interior, me colocam como um reflexo, uma projeção dos seus desejos, apenas isso. Apenas conseguem ver o que o Gabriel consegue ser e fazer POR eles, e não quem é o Gabriel de verdade.

E percebo o quanto o mistério encanta as pessoas, o quanto elas gostam de se aventurar pelo desconhecido e mergulhar em águas distantes, apenas para ter o prazer de gravar os seus pés nas areias inexploradas das praias. Mas quando se trata de mim a coisa é completamente diferente. Eu não desperto nos homens curiosidade, apenas distância e indiferença. E é por isso que eu me sinto tão próximo e tão distante de todos, próximo fisicamente mas tão distante quanto o sol está das criaturas. Me sinto ali sem realmente estar. 

Sinto que ninguém consegue me ver mesmo estando bem de frente a todos, ao alcance de suas mãos. Sinto que o amo mas o meu amor não foi reconhecido neste mundo. Sinto que não há lugar para mim entre os homens. Sinto que não exílio para mim neste mundo. Sinto que o que chamam de amor não existe. Sinto que o meu destino é morrer sozinho, por entre garrafas de bebidas e caixas de remédios para dormir, tentando a todo custo fugir da terrível dor que é saber que estou vivo sem que ninguém entenda quem sou, sem que ninguém aceite esse meu amor. 

Ninguém sabe quem eu sou de verdade, e talvez eles só não dão à mínima. Por isso eu já nem faço mais questão. De estar aqui ou de estar acompanhado. Não faço questão porque não faz diferença, se estou na companhia de um ou dez, é a mesma coisa, ninguém consegue ver quem eu sou, e se todos só conseguem ver o que querem ver, não há necessidade de minha presença. Não há porque continuar aqui se, mesmo estando, ninguém vê que eu estou aqui. 

sábado, 4 de julho de 2020

Como um tesouro

Me sinto, frequentemente, culpado pelas minhas mudanças constantes de humor. Eu sei o quanto isso afeta o interesse que muitos têm de mim. Eu sou inconstante, imaturo. Posso estar animado para fazer algo e, no minuto seguinte estar absolutamente sem graça, e isso acontece sem motivo aparente.

É difícil explicar para as pessoas como é ser bipolar, mas basicamente é fluir, de um humor a outro, em pouco tempo. Eu costumeiramente me sinto no espectro depressivo, tomado pelo pessimismo e falta de ânimo, o humor absolutamente deprimido. Me torno apático e desinteressado, o que pode ser interpretado como sendo uma vontade de abandonar os amigos, sendo que é justamente o contrário. A tendência ao isolamento se dá por conta da incapacidade de equilibrar tudo isso com a convivência social, daí também resulta o pânico social. 

Em outros momentos, antecedendo a crise contrária, eu e sinto animado e disposto, risonho. Eu fico mais leve, disposto, sensível as inspirações que me fazem escrever. É geralmente quando eu me empolgo a falar muito de algo que eu goste, enviar vários videos, mandar longos textos explicando algo. Mas geralmente isso é seguido por graves crises de ansiedade, as quais costumam me abalar tanto quanto a primeira. 

Fico então fluindo, entre esses dois espectros: a depressão e a mania. Cada um me dominando a sua maneira. Como resultado isso desgasta aqueles que convivem comigo. "Nunca saberemos se ele está bem", "melhor deixar ele quieto", "nossa presença vai só atrapalhar" e tantos outros pensamentos que eu sei que meus amigos sentem ao me ver surtando sem nenhum motivo. 

E esse é outro ponto. Nem sempre é necessário que aconteça alguma coisa para que eu tenha que mudar de um espectro a outro. Os fatores são os mais diversos. Cansaço físico pode afetar, decepções, conversas que tomam um rumo infeliz, enfim, é impossível prever. Queria apenas que entendessem que isso não deve ser motivo para que decidam me deixar. Haverão dias eu que eu realmente não vou querer falar com ninguém, preferindo ficar dormindo o dia inteiro sem ser incomodado, como é o caso de hoje. E, noutros, eu vou precisar de companhia, distração, que possa me afastar dos fantasmas interiores que me assombram. 

E, o mais importante, o fato de eu não querer receber visitas em alguns dias, ou de não estar disposto a conversar sobre qualquer coisa durante a madrugada se deve a quantidade de pensamentos na minha cabeça, que me tornam incapazes de acrescentar outros temas. É incapacidade. Eu não consigo pensar numa flor delicada no campo enquanto me encontro em meio as águas revoltas de uma tempestade, navegando sozinho em alto mar. Isso não quer dizer que não amo e que não prezo, como expressão máxima da minha humanidade, o que eu sinto pelos meus amigos, a gratidão que sinto por cada um deles. Ainda que sejam poucos foram os que ficaram comigo, e a isso eu nunca, por mais que tente, poderei pagar. Amo aos meus amigos, com todas as minhas forças. 

Um outro ponto que gostaria de desenvolver, a partir dessa reflexão, é o dos valores inerentes a amizade e, consequentemente ao amor.  Antes de mais nada, penso nessas duas coisas como faces distintas de um mesmo fenômeno. Ambos, amor e amizade, o primeiro no sentido romântico, erótico, e o segundo no sentido de companheirismo, de sinceridade de alma na busca de objetivos em comum. 

Essa minha crença parte do ensinamento platônico de que o amor (diga-se, verdadeiro) só é possível entre os iguais, por exemplo, dois homens que busquem sinceramente a verdade são capazes de compreender-se e viverem juntos. 

Outro que desenvolveu esse pensamento foi S. Tomás de Aquino, que definiu a amizade como sendo "querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas." Somente essa expressão é mais do que suficiente para mostrar o quão complexa ela é, talvez quase impossível. Mas é nela que eu creio que possa haver verdadeira amizade e verdadeiro amor. 

Como poderiam ser amigos pessoas que discordam nas suas convicções mais profundas? Como posso eu, um amante da Igreja, ser amigo de alguém que tem pela mesma a consideração de que essa é um dos grandes males da humanidade? Não seria possível. Tenho embarcado numa busca, por pessoas que compartilhem do mesmo ideal, até agora sem sucesso. 

Meus amigos atuais, no entanto, se encaixam sob certos aspectos num sentido não tão profundo, mas daquele que é movido pela busca da boa companhia, daquela amizade sem julgamentos, sem desentendimentos profundos, da amizade que busca bons momentos para serem guardados com carinho no coração em épocas tão difíceis quanto essas, onde a sinceridade de coração pareceu dar lugar a um teatro de marionetes. 

Mas eu também busco aquela diversidade do amor, bem como busco a plenitude do amor. Vou explicar melhor: Temos, em primeiro lugar, o Ágape, a afinidade de ideias espirituais, o amor desinteressado, incondicional. Eros, atração física e desejo e, por fim, Philos, afinidade mental e cultural, dedicação, fidelidade, igualdade. Esses três se encontram em igualdade, não havendo um melhor do que o outro, apenas formas distintas. Mas existe uma forma de amor que é sim maior do que cada um deles. O Amor, que é junção dos três. A afinidade mental e cultura, a atração e o desejo e, por fim, a afinidade espiritual. 

Minhas amizades estão no âmbito de Philos, a afinidade mental e cultural. Pensamos mais ou menos da mesma forma, frequentamos os mesmos lugares e escutamos as mesmas músicas. Conhecemos os gostos uns dos outros. Como disse que não há gradação entre esses três, essa minha amizade é sincera  e e verdadeira. E como eu os amo! 

Mas não posso mentir e dizer que não busco a completude, aquela amizade, aquele amor, que consiga unir num-só coração, os aspectos das três definições. Eros é o tipo de amor mais perigoso dos três, pois se não vivido de forma equilibrada com Ágape e Philos pode trazer muita dor. E por isso eu sei que muitas sou interpretado de maneira incorreta quanto a isso. Como se não me interessasse pela forma como sou tratado ou aparentemente interessado em todos, no sentido romântico do termo. Isso é consequência dessa minha busca. Na noite escura eu busco aquele por quem minh'alma clama, no meu jardim fechado fará sua morada, sob copa de palmeiras descansaremos nossas cabeças, e dos cedros o leque nos refrescará, e da ameia a brisa amena, quando eu os seus cabelos afagar, ali ficaremos, esquecidos, por entre as açucenas olvidados. 

Isso porque minha busca continua. Eu não diminuo os meus amigos, são os melhores que alguém poderia ter. Minha busca é, no entanto, pela máxima realização. Sem deixar de lado aqueles que estão comigo e, principalmente sem permitir que pensem que eu não os tenho em máxima consideração. São eles, sem sombra de dúvidas, o que tenho de mais precioso na vida. Mas essa amizade, por mais perfeita que seja, não abarca os três aspectos do meu objetivo. Essa amizade, a mais deliciosa de todas, ainda não é o que meu espírito anseia no mais profundo de minh'alma. 

Minha busca continua, mas de nenhuma maneira eu vou rebaixar os que tenho comigo, ainda são e sempre serão a coisa mais valiosa para mim. Preciosos como um tesouro, o meu tesouro! Minha El Dorado. Por fim eu só espero, de coração, que entendam, que eu o amos incondicionalmente, mas que ainda assim busco por um sentido último da minha existência, por uma razão para viver.