quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Sociologia e Essência

Chegando em casa chateado, cansado, molhado e humilhado. Certa vez ouvi que o Brasil era um país de medíocres porque tinha gente incapaz demais em postos que exigiam certo nível mínimo de capacidade, humana e profissional. Me pergunto agora, com brutal realismo, se eu não sou claramente um incapaz alçado a um posto, deveras medíocre é verdade mas ainda assim, alto demais para minhas potências. E não se trata aqui de mera auto depreciação pessimista, não, mas de uma reflexão justa. 

As pessoas claramente sobem de posto graças as suas habilidades sociais, dificilmente pelas suas habilidades profissionais. De todo modo que, quando chegam a um limite elas se estagnam, não raramente num posto alto demais para suas capacidades, o que as torna frustradas e ávidas de continuar em busca de subir socialmente, uma vez que se deparam com o desespero do seu despreparo. É nítido para mim que eu subi, pouco que seja, não por capacidade social e nem profissional, mas por um acaso e pela inépcia dos outros. Talvez o contato prolongado com pessoas grosseiras demais tenham feito de mim, sorridente e simples, alguém que eles gostam de ver. Eu claramente não tenho traquejo social para isso, senão que, se fosse um escritor melhor, eu poderia me dar ao luxo de me isolar e apenas escrever, sem precisar passar pela humilhação do alpinismo social onde todos têm tanto a dizer o tempo todo e tão pouco a escutar. E olha que eu acabei de chegar!

"Eu prefiro me sentir vigiado, do que me sentir sozinho." Leandro Karnal

Muitas vezes, sem nem se darem conta disso, muitos vivem o mesmo pavor da solidão que eu. A busca incessante pela aprovação do meio, no qual sacrificam aos altares da quarta camada da personalidade desejos e afeições, tornamo-nos escravos desse meio, seja pela aceitação ou negação da aceitação de um outro grupo rival. De todo modo buscamos agradar alguém que, aprovando nossas decisões, nos dão a validação externa de que carecemos e que usamos para fugir do fato de que, no íntimo, nossas decisões são tomadas no alto do pedestal de nossa própria solidão. Como encarar isso é demasiado difícil e, por motivos que são complicados demais para avaliar num escrito aforístico e que superam a minha capacidade mesma de análise e escrita, nós nos contentamos e almejamos a aprovação, seja do grupo no sentido imediato, dos amigos, colegas, ou de símbolos que condensem essas pessoas, como uma pessoa que simbolize uma igreja, um partido, uma corrente filosófica. E então é nesse sentido que o homem afirma que preferimos nos sentir vigiados do que sozinhos. 

Admito aqui que essa tendência pessimista é algo que absorvi do ambiente sociológico que me rodeia, facilmente explicável pela desilusão dos nossos intelectuais com todas as coisas tão duramente conquistadas e tão facilmente estragadas. Desse ponto de vista, o Sol é movido pelas Trevas e, usando aqui uma certa interpretação do filme O Silêncio dos Inocentes, o polo ativo da história só pode ser negativo, só pode ser o demoníaco Dr. Lecter de Hopkins: como ele é o pior, só pode ser o melhor. É aquele demônio inteligente que exerce fascínio na intelectualidade derrotada. Muitos apontam que a personagem Clarice do filme se tornou, de certo modo, hipnotizada pelo monstro. Isso porque para a maioria, não podendo competir com a malícia dos demônios, começa a sonhar em se tornar como eles. Quem interpreta dessa forma, e não vê Clarice como uma heroína no sentido total desse termo, não percebe que está fazendo uma projeção na personagem, e não uma interpretação dela. 

Claro que nesse ponto me sobram os conselhos sobre como devo levar a minha vida, afinal todos sabem como fazer isso melhor do que eu. E me dizem que eu preciso delegar... Para quê? Para precisar refazer tudo eu mesmo cinco vezes? Para não ser ouvido? Para passarem por cima de mim como se eu fosse incapaz de tomar decisões? Para dizerem que eu não faço nada quando me aparecem demandas demais para resolver que eu só daria conta se fizessem o mínimo sem mim? O que é que querem de mim? 

Retornado ao filme, quando perguntam a personagem se o assassino é um vampiro ela responde que não há palavra para dizer o que ele é. A palavra, o conceito, é reflexo e tradução da essência da coisa. Do ponto de vista ontológico aquilo que não tem essência não existe. O que não tem nome, não tem essência, não existe. Logo é também uma clara referência ao maligno tomado do ponto de vista não de uma força criativa, de um demiurgo, mas de uma ausência, de privação. O monstro, embora ali uma pessoa, não é uma potência criativa, é apenas desprezo e engano, acaba por servir ao bem mesmo com a pior das intenções. O maligno é aqui, embora personificado no personagem, algo mais próximo do maligno como apresentado na obra de Tolkien, uma sombra, uma ausência por si mesma, e que por isso acaba resultando em barbaridade.

Assim como não é um nome para o que ele é, o que é forma de precisamente dizer que ele não é nada, fazendo eco a mesma teodicéia que citei do mau como ausência, sombra, que, não podendo subsistir per se. Poderia até ir mais longe nessa reflexão nas afirmações vedantinas ou socráticas que decretam o mal como ignorância, mas acho que, para não me prolongar e acabar perdendo o já custoso fio do raciocínio, que preciso tecer no meio da agitação da minha rotina, acho melhor apenas dizer que, terminando eu num balbucio solitário e vazio, muitas vezes também me sinto esse mesmo nada, esse vácuo que suga e que encontra seu ser apenas na destruição, do todo, do outro e, finalmente, de mim mesmo que, no fim das contas, me sinto um nada, aqui tomando um pouco da dialética negativa frankfurtiana.

E então eu atravesso a cidade de novo, em silêncio, em pé, cansado, com a cabeça cheia, e tudo que eu queria era o abraço de alguém que me ama mas, como eu não tenho ninguém, só posso encher a cara, de álcool e tarja preta e torcer pra, se eu acordar amanhã, que seja com pouca ressaca ou que as coisas melhores. Bom mesmo seria não acordar. 

"[...] Do tempo, que é de um só e é de todos. Sou o que é ninguém, o que não foi a espada na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada." (Jorge Luis Borges)

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Aforismos

Nem mesmo permiti que tivesse tempo de melhor elaborar o que eu senti quando assisti ao segundo episódio de Dangerous Romance nessa tarde nublada. A fotografia mais série, levemente mais quente e melancólica que a maior parte das produções tailandesas já me encantou e eu sabia que a atuação do Perth e do Chimon iriam me arrancar lágrimas, e foi exatamente o que me aconteceu hoje. 

Que o personagem do Perth é só um garoto mimado que supre a insegurança causada pela ausência paterna exercendo força sobre os outros garotos do colégio isso não é novidade e é até um clichê bobo, mas a forma como exploraram a delicadeza da atuação dele em mudar totalmente sua atitude na simples visualização da fragilidade do outro, uma fragilidade que ele não pode causar e nem controlar, uma fragilidade real, muito maior que a que ele provocava na escola e que, até então, ele só podia imaginar que existia... O seu confronto com essa fragilidade o transformou num átimo de segundo, enquanto o choro desesperado do Sailom (Chimon aqui me deixou realmente emocionando e engasgado).

Aquele choro do Sailom, até então confiante e forte em enfrentar o colega mas de frente com um inimigo poderoso e real que ele não tinha nenhuma forma de vencer, que se prostrava sobre ele com ferocidade vulcânica. Aquele choro clamando o nome do outro que, naquele pesadelo surgira de repente, com más intenções, é verdade, mas que ao ver aquela cena tudo girou tão rapidamente que se tornou seu salvador, e naquele abraço suas lágrimas saltaram pesadamente, encontrando mãos que o consolaram timidamente e que repousaram sobre seus machucados.

Por fim, o olhar dele ao entender o que Kang fizera, seu rosto ferido, os olhos que ainda pouco choravam agora vendo que o outro estava realmente o protegendo... Aquele olhar foi o que ficou em mim quando eu mesmo fechei os olhos e deixei uma lágrima escorrer pelo rosto, emocionado, por aquela virada na situação. 

X

Sim, eu tinha uma esperança boba, demente, em imaginar, pela milionésima vez, que conseguiria transformar nossa história em algo parecido com as séries. Patético. Quem eu achei que era? Nas séries em que os amigos se amam e logo se tornam amantes, superando juntos as dificuldades e os medos desse novo sentimento... Lá é tudo tão bonito mas é tudo tão... Irreal. É por isso que existem histórias assim, para que ao menos lá elas sejam possíveis, já que na vida real os fins são bem diferentes e sempre trazem dor aos envolvidos.

X

Sabe que estou realmente tentado a começar a me exercitar? Talvez se finalmente corresponder as expectativas estéticas que eu mesmo tenho sobre os outros eu pare de buscar em corpos perfeitos de estranhos algum tipo de agrado ou acolhimento. Claramente uma perspectiva bastante egocêntrica mas até que faz sentido. Talvez eu passe menos tempo olhando e desejando homens bonitos e me sentindo bonito e desejado, que sabe me humilhando menos também. É uma possibilidade. Ou será que isso também e efeito das críticas passadas ecoando e que eu levei esse tempo para debilmente elaborar uma razão para dar ouvido a elas? Quanto mais me observo mais eu me dou conta da minha débil mentalidade. É pois com um sorriso irônico que eu percebo, de novo e de novo, o quanto sou idiota. 

Claro que só de usar uma medida comum pra definição do esteticamente agradável já mostra que isso ainda é pensar no outro, na impressão do outro. Mas, se ao menos para impressionar o outro eu passar mais tempo num culto autofágico e menos tempo me humilhando já deve valer de alguma coisa. 

A saída mais madura seria elaborar tudo isso direito, mas quanto tempo levaria? Não sou muito dado a longos planejamentos de futuro. Prefiro, ou melhor, só tenho disposição, pro agora, talvez amanhã, no máximo. E é claro também que possivelmente um relacionamento maduro poderia ser efetivo na resolução, senão de todos mas pelo menos de alguns, desses problemas. Mas aí já é uma questão importante e que eu só poderia resolver caso não me apaixonasse tanto por caras mais novos com ainda menos maturidade que eu e ainda mais dificuldade de se aceitar ou que nem mesmo tem algum interesse em algo sério. Onde conhecer gente aqui? Não consigo nem amigos direito (claro que sendo um poço de melancolia e vinho é meio difícil alguém suportar mesmo) então onde achar um relacionamento sério e maduro que, aliás não por coincidência, é o sonho de quase todo mundo? Se alguém tiver uma boa resposta eu pago uma garrafa de vinho pra ouvir. 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Breve reflexão de dialética simbólica


As reflexões da Dialética Simbólica sempre nos servem de grande incentivo imaginativo e intelectual. A milenar observação do ciclo lunar como símbolo da tensão entre o mutável e o estático, a oposição entre a lua e o sol que culmina em todo aquele arcabouço do pensamento oriental que chegou até aqui de modo resumido e vulgarizado continuam, no entanto, sendo de uma potência sugestiva enorme não só aqueles que param para pensar nisso. Essa observação do universo exterior dá ao homem certa noção da complexidade do todo, que o intelecto tenta ordenar, ao que já dizia Aristóteles na Metafísica que "é próprio do sábio ordenar" sabendo ele muito bem que, por causa dessa mesma complexidade, o indivíduo pode apenas se aproximar dessa ordenação como numa assíntota.

Assim também os movimentos interiores são como que reflexo dos movimentos cósmicos, enquanto parte dos mesmos, e assim muitas vezes nos vemos perdidos em meio a esses movimentos internos infinitos que vão se demonstrando, transmutando, no nosso interior e se refletindo no exterior. Mas, apesar de ter sido impelido a esse pensamento nos estudos de Hegel e Bergson, foi outro movimento meu que encontrou nos filósofos algum eco.

Já sinto em mim os resultados daquela conversa, cuja resposta que obtive, uma síntese confusa de pensamentos dispersos que, em verdade, são apenas temerários da dor em vários níveis, me foram muito elucidativos. Infelizmente tenho esse hábito (ou seria habilidade?) de conseguir alçar profundas conclusões que desembocam em grandes problemas, esses sem solução ou conclusão alguma. Então aquela resposta, esclarecedora, se mostrou como o início de outro longo ciclo lunar, ao passo que esse mesmo ciclo se encontra ligado a todos os demais ciclos possivelmente inumeráveis. 

O que observo em mim, como movimento interno que eu sinto claramente manifesto no meu corpo, é justamente a tentativa do meu ser de se realinhar num outro eixo, buscando então se adaptar a decepção anunciada e manifesta. Encontro então em mim outro símbolo de mutação e de contraposição: o meu eu que deseja lançar-se de novo num abismo, nem tendo me recuperado de todas as últimas, e o eu que encontra terror na possibilidade de se abrir de novo ao futuro. 

Uma brincadeira dessa manhã me fez pensar, por exemplo, que eu nada desejo e nada tenho que verdadeiramente me faça levantar de manhã cedo. Verdadeiramente, se observar cada aspecto da minha vida, não há nada pela qual eu queira lutar realmente. Poderia facilmente sair andando sem rumo por aí, não soubesse que isso me fosse criar mais problemas. 

Claro que, embora eu tenha começado falando sobre dialética é apenas por meio do discurso poético que eu posso tentar, ao menos começar, descrever a tranquilidade pessimista que aquele diálogo me deixou. É como se eu realmente pudesse ter apagado toda e qualquer luz e, não vendo nada ao meu redor, estava absolutamente confortável com as trevas. Na verdade eu nunca estive em outro lugar senão nelas, apenas tinha ilusões de enxergar alguma luz, mas agora, desfeitas todas eu posso fechar os olhos para tudo mais. 

sábado, 26 de agosto de 2023

Memórias antigas

Decidi adiar a aula de hoje na esperança de que o exercício rememorativo que vou fazer possa me servir de algo nessa minha longa e enfadonha jornada. Estando mais uma vez numa situação em que me vi alimentando sozinho sentimentos e mais sentimentos me encontro de novo frente a um questionamento que sempre me paralisa, em cujas investigações parece que sou incapaz de sondar até a segunda camada que seja: sempre quis descobrir de onde vinha essa tamanha carência que me faz humilhar em tantos relacionamentos fracassados, numa busca incessante por um outro capaz de me oferecer algo que nem mesmo eu sei do que se trata... A gênese dessa imperfeição ainda me é desconhecida.

Uma pequena luz me surgiu então, nesse início de noite estranhamente quente em pleno inverno, em que lia as últimas páginas da Consciência de Zeno no ônibus. Embora o personagem falasse com desprezo pelo seu psicanalista, inventando muitas lembranças pelo prazer de dar ao profissional a ilusão de encontrar a cura para um problema que ele mesmo não se importava em resolver, algumas lembranças reais e tão antigas, que eu até mesmo estranhei a forma com que meu reflexo aparecia nelas, me foram brotando da memória, como se tivesse acertado uma mina há muito adormecida nas areias do tempo. O que relato aqui são apenas fatos soltos que espero poder um dia conseguir examinar com mais profundidade. 

Me recordo de algumas visitas à casa de um tio distante, tio de minha mãe ou algo assim que, aquela altura, padecia de um câncer violento. A família inteira se esforçava naquelas visitas para passar uma imagem de força convalescente ao velho moribundo e sua esposa, e eu talvez tenha demorado demais para entender do que se tratava. Mas eu me lembro de seu senso de humor afiado, mais preparado para a morte do que aqueles que o rodeavam. Me recordo de me perguntar o que ele tinha e qual era a razão de todos estremecerem ao som da palavra câncer que, depois daquilo, se tornou impronunciável em casa, de modo que até hoje minha mãe se benze quando alguém a diz. Me recordo ainda do cheiro forte daquela casa que jazia imersa na morte, e foi ali que eu conheci um terror que me acompanhou por longos anos, até o início de adolescência. Alguns, vários, outros parentes morreram de câncer anos depois, inclusive recentemente, o que continua aumentando o horror da família por essa palavra.

Demorei algum tempo para conseguir dormir sozinho, sendo um grande incômodo para os meus pais. Mas, embora eu saiba que já não dormia só antes disso, a lembrança mais antiga até o momento do que me deixava insone sozinho eram algumas páginas de um horroroso jornal policial, daqueles cujo conteúdo é apenas a morte em sua forma mais cruel e brutal estampada sem nenhum eufemismo visual logo na primeira página, à venda nas bancas em que eu comprava, feliz, quase todas as quintas, uma revista infantil que sempre vinha com um brinquedo montável. E me lembro de ver esse jornal pela primeira vez naquela casa do tipo que morria de câncer. Se eles sofriam tanto já pela iminência de uma morte, o que queriam com o conteúdo de tantas outras? Nunca cheguei a saber a resposta. 

Ele morreu, e alguns dias antes, em outra visita, me tiraram da sala para que a família visse a troca de alguns de seus curativos, e tudo que senti foi o cheiro podre das feridas misturado com álcool. Enquanto eles se entretinham nesse espetáculo mórbido que, só hoje entendo ser um ritual de apoio emocional à esposa que servia também de enfermeira em tempo integral, vocação que parece estar predisposta nos genes da minha família, e eu eu encontrei o tal jornal e quase vomitei ao ver, dentre outras coisas, cenas de um homem cuja cabeça havia sido dilacerada por cães, um outro que quebrara o pé numa fuga da polícia, o corpo todo perfurado de balas pelos policiais que, pelo visto, não ficaram muito felizes com a fuga, e muitos outros corpos espalhados de qualquer jeito, salpicados de sangue enegrecido. Golpes de faca, porretes, armas de vários calibres que deixavam buracos de vários tamanhos em várias partes do corpo, miolos a esmo, sangue misturado com vômito e terra e muitas outras atrocidades que eu não vou me lembrar agora.

Me recordo vagamente da tapeçaria bordô que eles tinham na sala, mas a aparência frágil daquele homem corpulento havia se perdido na minha memória, assim como as inúmeras noites em que, não conseguindo dormir no meu quarto, dormia na sala ou arrastava até o quarto de meus pais, já grande e em vias de iniciar o ensino fundamental, ao que um dia meu pai se irritou e me fez perguntas um tanto quanto edipianas, sem que eu entendesse nada, já que só conseguia me lembrar daquelas imagens horríveis. Não sei como, pouco tempo atrás, consegui ver tantas aulas do curso de necrópsia sem me lembrar de nada disso, essas lembranças estavam tão fechadas em mim que, se as aulas do tal curso serviram para desperta-las, elas levaram meses para chegar até a superfície. Se foi o livro do Svevo eu agora sou prova viva da força literária como aglutinadora e semeadora da memória e da imaginação.

Outro episódio marcante que acabou me recordando um segundo, embora bem menos significativos, foi quando me perdi de meus pais numa feira em uma cidade próxima a que morávamos. Me recordo, no entanto, de não gostar de feiras e nem ter conseguido frequentá-las por muitos anos, quando a necessidade financeira me fez preferir fazer compras nesses lugares, coisa que conservo até hoje. Assim como me perdi por alguns minutos terríveis que me pareceram horas, anos depois me perdi numa loja de departamentos, lugar que me parecia de uma imensidão infindável e que, nem parece, vasculho hoje sozinho com a facilidade de quem passa um café. 

O que essas experiências têm em comum, no entanto? A sensação desoladora de que, de um jeito ou de outro, seja na violência, numa doença em idade avançada, ou simplesmente abandonado, eu encontraria um fim triste mas, sobretudo, sozinho, esquecido, abandonado... E já naquela época essa possibilidade me aterrorizava e tirava o sono, já naquela época eu temia, mais do que a qualquer coisa, ficar sozinho... Me lembro agora de vários outros episódios esparsos assim, em que me revelava já uma criança carente que temia a morte, o envelhecimento e, acima de tudo, o sofrimento solitário. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Nos meus sonhos

"(...) Jamais uma simples teoria dos instintos será capaz de apreender esta coisa poderosa e misteriosa que é a alma humana e, consequentemente, sua expressão, que é o sonho. Para fazer alguma justiça ao sonho, temos de recorrer a instrumentos que só poderemos obter através de laboriosa investigação nos diversos domínio das ciências do espírito." Carl G. Jung

Tenho sonhado com ele, nos últimos três dias. E tenho estranhado porque, geralmente, não me lembro de meus sonhos. Mas agora toda noite ele está lá, de algum modo. Eu acordo e, mesmo que os detalhes tenham desaparecido junto com a névoa do sono, eu me recordo com precisão da presença dele, se parecendo com aquela sensação que eu tive tempos atrás ao passar na frente de sua casa e sentir a sua presença me chamando, ou como ficava hipnotizado por ele, de alva e cíngulo ad altare Dei

Esses sonhos podem significar que tenho pensado nele mais do que o normal? Ou que fiquei profundamente chateado com aquela indiferença dos últimos dias? Ou será que podem significar que ele também pensa em mim e que estamos ressoando nos sonhos do outro? Será que ele também sonha comigo? Será que pergunta por mim? 

Se fecho os olhos vejo ele naquelas fotos, desconfortável pela timidez mas, ao mesmo tempo, relaxado pela companhia do amigo, ainda mais bonito que ele e que me ignora ainda mais. Todos eles me ignoram. Me elogiaram por ser imperceptível ao tirar fotos mas, aos olhos deles, eu sou imperceptível sempre. 

Embora esteja habituado com a solidão ela ainda não me parece certa. Embora eu não consiga ir atrás de me relacionar com mais ninguém eu sinto que isso ainda é profundamente e fundamentalmente errado. E isso me tira a paz. Num instante em que meu peito se inflamou logo pensei que, nessa vida, não haveria paz, e que apenas sentiria tranquilidade ao morrer, mas pensando um pouco melhor, será que realmente existe essa tal de paz em algum lugar ou plano da existência?

Sou então tomado daquele profundo sentimento de pessimismo e total descrença quanto ao outro, ao futuro e, especialmente, quanto a mim mesmo. Acham que eu acordo de manhã em busca de um objetivo? Que eu tenho algo pelo qual luto todos os dias? Bobagem. Eu só me incomodo com as reclamações dos outros e por isso tento ser útil e incomodar o menos possível, e o mais que faço não vale nada. Se tem algo em mim que busca por algo é essa maldita parte, esse maldito desejo profundo, algo tão impregnado nas minhas entranhas que eu gostaria de arrancar com dentes e garras, lançando ao chão minhas vísceras e esses desejos pelo outro. 

Você entende que eu precisava de uma resposta, só para ter certeza do que é real e do que eu inventei? Entende que eu precisava saber onde estou pisando? Entende que eu precisava entender se o que eu sinto pode ter algum futuro?

Eu odeio pensar nele, e em todos os outros, eu odeio tê-lo nos meus sonhos, eu odeio ficar excitado por causa de uma foto de um cara qualquer na academia, eu odeio o fato de, mesmo depois de ainda ter desistido, ainda esperar, mesmo que como uma centelha no meio da tempestade, que algum dia eu ainda encontre alguém, eu odeio ser patético assim... 

Só uma vez, só por uma mísera vez, eu queria não ser tão suscetível assim a esses amores. Só uma vez eu queria controlar meu coração do mesmo jeito que eu controlo não olhar pro moço bonito no ônibus porque estou mais preocupado com a história no livro. Só uma vez eu queria não mergulhar no oceano mais profundo para só perceber que estou só quando me encontro no abismo, já sem luz e sem ar...

E eu novamente tive a certeza, naquele abismo que tantas vezes fitei e que novamente tornei a me jogar, porque disso eu já sabia mas ainda tinha dúvidas, sabia e fingia não saber que aqueles olhos me fitavam com a frialdade da terra, de que criei minha própria armadilha, outra vez. É sempre assim. Sempre.

Sempre. 
Sempre.
Sempre. 

Sempre. 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Essa visão do homem

Me incomodei com esse tipo de pressão que colocaram em mim. Minha aparência é algo que sempre me foi delicada, e lembro que, há tempos, eu decidi que não usaria roupas sociais por aversão a pasteurização da aparência masculina bem como de todo o arcabouço moral kantiano e puritano que ela traz consigo. De outro modo também vi que, se a tendência é que minha carga de trabalho aumente, a forma de me cuidar, que já é demasiado simples, precisa ser readaptada para que se torne ainda mais rápida. 

E eu não queria que fosse assim, eu não queria que dessem atenção para como me visto, eu tive muito trabalho para começar a me sentir confortável, e nem sequer cheguei lá e já preciso mudar. Porque num mundo de relações sociais superficiais o que conta é a apresentação, não só meu esforço é medido pelos outros, mas a forma como chamo a atenção deles. E então eu preciso, novamente, buscar um equilíbrio entre o que querem de mim e o que eu quero. Eu só queria poder andar por aí de um modo simples e confortável, sem me preocupar em nenhum momento com o que pensam de mim. 

Me sinto ainda mais inconformado com a possibilidade de precisar fazer academia. Nem entro no mérito de todo discurso de aceitação do próprio corpo que as pessoas reproduzem, e eu não aceito nem o meu corpo e nem o discurso, mas ao mesmo tempo repudio o ambiente das academias por pura e simples incapacidade de encontrar utilidade em gastar tanto tempo cuidando de algo tão passageiro quanto meu corpo. Não gosto de me cansar e a possibilidade de fazer isso abrindo mão do meu descanso ou do estudo é absurda. É claro que ninguém entende isso também. Não, apenas acham que estou sendo preguiçoso.

E é claro que, entre eles, as relações são tudo o que contam, enquanto eu me enfastio com apenas cinco minutos de conversa. Já eles passam dias e noites na companhia de amigos que contam histórias esquecidas instantes depois e que... bem, não passam disso. E como o meu estudo não é algo que vá se refletir necessária e imediatamente numa ascensão social, e como a forma de me vestir reflete justamente essa simplicidade que eu busco, eles não conseguem entender. Logo, enxergam um desleixo exterior, quando a minha imagem reflete um estado interior que eles não podem enxergar. Ah, essa visão do homem cansa!

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Um ano depois

Um ano. Cheguei, sonolento depois da viagem de ônibus de Curitiba até aqui, numa Joinville úmida e que me prometia muita chuva e, poucas horas depois de chegar já começava a ficar o céu cinza e a chover, pelo menos não mentiram. E então foram três semanas sem que eu visse a luz do sol, amando esse clima bem diferente daquela secura do centro-oeste.

E claro que, depois de um ano eu consigo traçar mais ou menos o que se passou comigo. Depois de meses de profunda escuridão, de uma infindável depressão em que muitos dias eu só conseguia assistir séries e comer macarrão instantâneo, em que minha barba crescia sem controle e eu não tinha força nenhuma para apará-la, em que eu abandonei as roupas que ficaram apertadas pelos mais de vinte quilos que eu engordei, e passei a andar também maltrapilho, ficando fora de casa por apenas umas poucas horas na missa de domingo. 

Me lembro de, quando minha família decidiu se mudar, e eu chorava muito, e muitas vezes disse isso aqui, que não conseguiria. Como alguém que já nem conseguia mais tomar banho sozinho ou se barbear teria forças para ir para o outro lado do país tentar uma vida nova?

Mas eu consegui. Consegui forças para colocar dezenas de caixas naquele caminhão enorme, consegui forças para comprar passagens de avião e, quando cheguei aqui, antes de me deslumbrar com o que quer que fosse, tive forças para contatar algumas imobiliárias, visitar a cidade toda atrás de uma casa que coubesse a todos nós, fechar contrato em um dia e meio e descarregar o caminhão todo na casa nova. Além de contratar um serviço de internet e, sem deixar atrasar as séries, já começar a procurar um emprego, que me chamou em menos de uma semana, sem que eu sequer tivesse roupa adequada para vestir, mas tinha o conhecimento de anos de estudo, e onde em algumas semanas completo um ano de serviço, duas vezes promovido e com grande aprovação. 

Consegui, e visitei lugares incríveis, conheci pessoas interessantes e continuo lutando para fazer amigos. E nada disso eu imaginava ser possível para mim, eu achava que tudo estava acabado ali, naquela cama que já tinha um fedor insuportável de suor das muitas horas que eu passava lá. Eu não podia sequer imaginar ser possível. E não estou dizendo que o que tenho aqui é perfeito, até mesmo porque nem procuro isso, mas o que eu tenho eu nem mesmo achava possível. Mas eu consegui, alguma coisa eu consegui. 

Hoje tenho vinhos, séries, skincare, séries, café e energético, séries, muitas responsabilidades, meninos bonitos em todo lugar (que nem olham para mim mas são um deleite aos olhos assim mesmo) e mais séries. Hoje eu consigo levantar cedo, tomar três ônibus até o trabalho, ler nesse meio tempo, resolver vários problemas, atender centenas de crianças numa semana, voltar pra casa, estudar, preparar aulas, ajudar na pastoral, e ainda levantar no outro dia, incluindo passar por grandes maratonas como foi nas última semanas. Eu o eu daqueles tempos nem mesmo sonhava ter forças para isso.

E mesmo que eu continue imerso em melancolia ainda reconheço. É, as coisas melhoraram sim. 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Daqui do meu lugar

Finalmente depois de longas semanas eu consegui uns poucos dias para descansar. E eu estava precisando, o corpo já ultrapassando todo e qualquer limite, não tendo mais de onde tirar, não conseguindo mais me alertar nem com altas doses de café ou energético, com o raciocínio limitado e a mente anuviada. Efeitos do esforço prolongado. 

Mas então eu pude acordar mais tarde, assistir também até mais tarde e beber um pouco mais. Voltei pra casa todo dolorido mas com uma sensação de dever cumprido, isso já me valeu, seja no sorriso do velho artista argentino que me agradeceu por lhe dar certa atenção para sua obra ou no reconhecimento do chefe acompanhado de uma promoção. 

Me olhei no espelho e vi então traços dos últimos dias, a barba cheia já cobrindo a bochecha, a sobrancelha se fechando, unhas sem esmalte e, não tinha prestado atenção a isso ainda, fio brancos pulando dos lados... É, parece que a idade está chegando (e sim, permita-me dizer isso sem levar em consideração que só me apaixono por rapazes bem mais novos do que eu). Mas tudo bem, alguns dias diminuindo o ritmo devem ser suficientes, ainda que, admito, além do cansaço esse descuido seja acompanhado daquela minha velha descrença na beleza, acentuada pelos belos modelos que pulam à minha frente a todo momento. Eu sei, no entanto, que nada que eu faça vai chegar aquele nível, só o que posso fazer é tentar melhorar um pouco o que eu tenho, e que não é grande coisa. 

Nada de anseios sensuais ou grandes fotografias para mim, eu fico com a poesia e a arte, com tudo aquilo que as pessoas feias se ocupam por não serem bonitas e não estarem ocupadas sendo amadas por serem bonitas. 

Também o vinho me ajuda a falar sobre isso assim como da sensação, que de novo se fez presente e de novo despertou em mim anseios, tanto poéticos quanto quase niilistas, de ser ignorado ou motivo de nojo aos outros. Em princípio foi uma uma sensação que tive após alguns olhares discretos que se desviavam de mim ao passar mas, com o tempo, eu percebi que não estavam com nojo de mim, eles não prestavam atenção em mim o suficiente para isso, eu simplesmente era imperceptível a todos eles. Não sei qual das duas constatações me machucou mais.

Mais tarde ainda descobri que ele havia passado a noite anterior com aquele meu menino de branco... E ambos sorriam e, em todas as fotos, estavam um ao lado do outro. Eles se notam, eles sorriem um para um outro, existem e não se olham com nojo. Claro que eu não tentaria nada com uma pessoa tão mais nova e com tanta experiências para ter ainda, que eu jamais teria disposição para acompanhar, mas essa distância brutal me machuca, machuca muito.

Talvez essa constatação só não tenham machucado quanto aquela noite, ainda durante os dias intensos, que eu engoli uma dor por falta de tempo para pensar sobre ela. Foi uma ocasião particularmente solitária quando, numa noite de espetáculo, me vi completamente sozinho e sem a quem recorrer. Não havia quem pudesse chamar, conhecido ou não, eu estava ali, absolutamente sozinho, num centro efervescente de pessoas, e nenhuma delas olhava para mim, ao passo que eu conferia muitas vezes a tela escura do celular na esperança de que alguém se lembrasse de mim. Ninguém se lembrou, e eu mais uma vez fui dormir sem que ninguém, ninguém mesmo, sequer se desse conta de que aconteceu. 

E como eu cheguei a esse assunto se comecei a falar do meu descanso? Bom, é que ao repousar o corpo, a mente encontra tempo propício para elaborar melhor todo o resto. Então, enquanto eu me sentava no banco da igreja olhando o altar e uma pessoa me parou para perguntar a razão da minha tristeza, sendo que era só cansaço e uma brutal consciência de mim mesmo. Eu só queria poder olhar para o altar um pouco mais e, sem esquecer de mim, conseguir uma razão maior para continuar.  

"Daqui do meu lugar, eu olho teu altar e fico a imaginar..."

domingo, 20 de agosto de 2023

Aforismos

Mencionei superficialmente isso no meu último mas, enquanto vinha trabalhar hoje de manhã, o frescor desse dia me fez pensar carinhosamente no que aconteceu. Em retrospecto eu me recordo das muitas vezes que falei dele, com carinho desmedido, das muitas viagens de ônibus logo cedo em que eu o fitava, hipnotizado e das longas preces que eram alimentadas pela alvura das suas vestes... E então, quase um ano depois, eu finalmente consegui obter seu sorriso, consegui falar com ele diretamente. Quantas vezes eu sonhei, quantas vezes me demorei em longos devaneios, imaginando que falasse comigo, que se aproximasse de mim... E o dia chegou. 

Mas eu não me empolguei como antes. Se fosse naquela época em que as viagens até o centro me eram um deleite afetado de sono, eu tomaria esse fato como combustível explosivo para me reerguer. Mas isso não aconteceu. O cansaço continuou grande, eu continuei mau humorado, continuei deprimido, e continuei sem nenhuma reação física ao seu sorriso. Eu nem mesmo me dediquei a pensar realmente se ele me respondeu animadamente ou educadamente, a não ser por um breve instante em que comentava isso com um amigo ou dois. 

E isso também é efeito daquela decisão de meses atrás, de não mais me empolgar, não mais esperar, não mais depositar expectativa nenhuma. E por isso mesmo eu também o respondi sem animação, sem demasiada educação, apenas o respondi, e a única demonstração de empolgação quanto a isso é exatamente esse texto. 

E é com ironia que eu percebo que, muito embora eu diga que minha expectativa foi frustrada e meu ser inebriado de desilusão, ainda é com certa doçura que eu escrevo sobre esse que, tantas vezes descrevi como anjo. 

X

É que eu sinto que estou sempre andando em círculos em se tratando dos meus relacionamentos, ou da ausência dele. Me vejo com vinte e oito anos cometendo os mesmos erros de quanto tinha dezoito. Continuo esperando coisas que nunca vão acontecer, esperando que você de repente mande uma mensagem dizendo que me ama ou algo assim, ou que o garoto de branco de repente comece a falar comigo ou que aquele outro menino, que anos atrás era tímido e nem percebia o quanto era lindo, comece a me responder. Mas é com uma ironia ácida que eu sei que nada disso vai acontecer, você vai continuar me mandando mensagens que me machucam, sem nem perceber isso, e eu vou continuar passando minhas noites de sábado tomando vinho barato, vendo histórias de amor ou ouvindo músicas tristes numa melancolia patética. Fui feliz em tatuar o círculo infernal do ourobouros no meu peito.

X

Não sei ainda dizer o que é exatamente, mas com certeza é alguma coisa, tão clara aos outros que até os estranhos conseguem ver e já não se aproximam mais, mas os outros não dizem o que é, eu apenas sei que é, é algo que certamente lhes causa horror, porque ao me ver elas saem correndo e, quando me olho no espelho, eu já não sei mais dizer o que é. Só sei continuar aberto, acolhendo, com toda intensidade, e me mostrando como sou e, não sendo mais do que sou, eu continuo horrendo, e vendo os horrores de ser.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Aforismos

Eu digo essas coisas de um jeitinho bobo e carinhoso, você sabe, e essas palavras não encobrem aquela malícia típica de quem busca encontrar algum ponto “fraco” uma abertura... Não, eu não quero isso, mas continuo falando assim porque gosto dessa proximidade. É o que mais se parece com aquelas cenas de luz natural entrando pela janela cedinho de manhã, com o café fumegante e a música baixinha, os sorrisos e os planos futuros. Como nada disso é real, eu acho, pelo menos dada nossa distância, ao menos eu consigo me aproximar de algum modo, de novo, de um jeito bobo mas carinhoso, como se pudesse atravessar, como se pudesse te tocar... Meio confuso, eu sei, mas entende o que digo com isso? Mas então, eu posso continuar sonhando, assim quietinho no meu canto, com essas manhãs ao seu lado? Posso sonhar tocando seu rosto com carinho, deitado em seu peito, te abraçando forte quando me acorda ou brincando de apertar suas bochechas ou seu bumbum? Eu posso me atrever a isso? Posso me recarregar num abraço quentinho e apertado? É claro que já sei a resposta para tudo isso mas, de todo modo, permita-me sonhar um pouco... Permita-me ser feliz ao menos num breve e solitário sonho.

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Continuo imerso em dias intensos, meus braços doem e minha cabeça já demora para entender coisas simples, a quantidade de café e energético correndo nas minhas veias já ultrapassa quaisquer outras substâncias, e ainda faltam três dias, os mais intensos, quase uma maratona. Meu cansaço tem sido tão grande que eu nem mesmo tenho reagido muito, por exemplo, ao ter finalmente conseguido estabelecer um certo nível de diálogo com um alguém especial... Se considerar o que já disse sobre ele aqui alguns meses atrás eu estaria simplesmente exultante de alegria, cantando aos quatro ventos na companhia de anjos, mas nem isso tem me feito reagir. Pode-se dizer que estou até indiferente, talvez um pouco feliz, é verdade, mas sem forças para conseguir fazer algo além de escrever esse texto mesmo, o que talvez eu devesse reorientar para falar com ele ao invés de falar sozinho aqui. Bom, paciência. 

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Exercitando muito hoje essa mesma paciência, em meio aos desmandos, aos planos frustrados, a organização engolida pelo fluxo criativo, pela loucura das gentes e dos egos inflados. O cansaço continua cobrando um preço caro, além disso todos esperam a mesma disposição e eficiência de algo preparado pelos mínimos detalhes... Uma vez mais, e já perdi a conta, caem na armadilha de se cegarem pelo supérfluo, tempo demais falando demais e tomando decisões de menos. 

Me deparo, além disso, com mais e mais demonstrações da minha incompetência mas, como uma amiga disse que isso era injusto demais comigo, digo que me deparo com minhas limitações. Que seja. Eu me vejo então numa posição de liderança sem, no entanto, nenhuma autoridade, muito embora investido de responsabilidade. É sempre assim eu acho. Vejo, em pequenos detalhes então, que eu não deveria estar aqui, que eu não sei fazer nada do que confiam que eu faça, que eu sou apenas um idiota de crachá. O que me consola, no entanto, é ver quantos idiotas de crachá. Num mundo onde a mediocridade é incentivada como valor máximo do homem eu me encaixo direitinho. Idiota e incapaz. Humano demasiado humano. 

Bom, e já que comecei a me lamentar de novo, o que não é nem deve deixar de ser um hábito dessa pobre criatura, aproveito para reclamar ainda um pouco mais do cansaço que é conviver com o outro quando só queria estar em quietude, quando só queria estar em silêncio, quando só queria chegar e dormir, sem o incômodo das perguntas intrometidas e desinteressadas, sem as banalidades das músicas idiotas e repetitivas, sem a interferência incômoda da socialização... Para alguém que, até hoje, viveu buscando alguém, devo admitir que estou muito descontente com o outro. Acho que prefiro dormir, e até isso me é vedado, já que esse nosso maravilhoso Estado mínimo enfia seu dedo invisível dentro do meu rabo vigiando até mesmo os remédios que eu tomo pra dormir. Viva a mediocridade e a hipocrisia do mais trabalhador mais idiota aos grandes e poderosos apreciadores de vinho que discutem, como quem observa terra a vista do alto do caralho de uma caravela, uma terra mágica sem defeitos.


Quando disse que os vislumbres que tenho de sua consciência me são como luzes breves que se apagam lançando uma ilha na escuridão, na verdade eu só estava escondendo nessa imagem a verdade que, eu vendo muito claramente o seu coração, prefiro escondê-lo na escuridão, covardemente relutante em encarar a luz que te guia com mais clareza que a do meio dia e que eu, que a bem conhecia, finjo não ver. 

Na verdade, o que me machuca é que, ao chegar em casa, chateado e cansado, o que vejo é justamente uma ilha escura, sem poder sequer descansar, sem ter onde encostar a cabeça. Não preciso dizer que em seu peito é onde eu gostaria de me encostar não é?

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Amargor

Eu não sei nem por onde começar a descrever a imensa quantidade de de ideias que estão presentes em Heartstopper e que fazem a sonhar e se iludir durante as boas horas que dura a maratona.

Vou repetir algo que já foi dito até a exaustão mas que guarda em si algo de verdade: num mundo de relações líquidas, tão superficiais e passageiras, um amor bonito se torna objeto de desejo máximo. E entenda, por amor bonito eu não digo um amor que não tem nenhuma dificuldade, mas justamente um amor que tenta superar elas juntos. 

E ainda mais se tratando de um romance gay (ou lésbico, trans e o que mais for) choca com o fato de que essa é justamente a comunidade que mais se destrói com as relações toscas e puramente sexuais. Veja só, de todos os caras que ficam com outros caras que eu conheço todos têm o mesmo discurso: buscam alguém parceiro, compreensivo, capaz de mudar o que for necessário e que não desista diante das primeiras dificuldades ou defeitos. Todos eles, sem absolutamente nenhuma exceção, negam esse mesmo discurso no instante seguinte ao só aceitarem cogitar um relacionamento com um cara modelo de academia, mesmo negando os padrões estéticos da cultura de massa, que tenha um bom padrão financeiro, o desempenho sexual de um ator pornô e a postura de um hétero perfeito. Não preciso nem explicar que essa é a receita certinha pra que nenhum relacionamento dê certo. Enquanto esse homem dos sonhos não aparece, ou aparece apenas pra outros da mesma estirpe divina, todos se divertem com algumas dezenas de parceiros sexuais com o comprometimento afetivo da profundidade de uma colher de chá.

Então a série mostra o cara mais gato da escola se apaixonando pelo gay assumido e esquisito vítima de bullying. Ele logo se aceita e passa a superar obstáculo após obstáculo ao lado do outro, é compreensível, fofo, respeitoso e todas outras qualidades que caibam aqui. Claro que a série vende porque, num mundo onde todo mundo tá fodido da cabeça, apresenta o relacionamento ideal, perfeito sem nenhum defeito. Todo mundo se sente meio patinho feio, e todo mundo ia querer que o príncipe encantado Golden Retriever se apaixonasse perdidamente. Então essas poucas horas ao redor do desenvolvimento dessa história com temas típicos dos adolescentes gays faz com que a gente passe a idealizar até mesmo os problemas que a maioria de nós passou. Enfrentar preconceito? Do lado de um namorado gostoso é bem mais fácil né? Insegurança? Traumas do passado? Um abraço apertado e um beijo doce curam feridas ou, ao menos, diminuem a dor. 

E é claro que é lindo fugir um pouco pra esse mundo, afinal aqui fora traumas geram transtornos muitas vezes irreparáveis, todos continuam buscando parceiros ideais ao invés de se esforçarem um pouco e aceitarem aquele cara legal que tá do nosso lado de vez em quando e que, com um pouco de boa vontade pode até ser parceiro. Aqui fora o preconceito também machuca, mas dificilmente temos com quem cantar, e os olhares de julgamento não cessam: a gente se acostuma, sozinho mesmo. 

É fofa, é doce, é irremediavelmente doce e confortável. Te abraça e diz que tudo vai ficar bem mas, quando termina e começa a propaganda da próxima série a gente lembra que, aqui fora, quando o cara mais gato do colégio descobre que pode pegar homens e mulheres ele não se apaixona pelo gay tímido e sofredor, ele passa a rola em todo mundo, pega clamídia e gonorréia e se vicia em cocaína. 

Eu sei que tem que ser muito amargurado pra dizer isso, mas provavelmente você também é.

Gente sem moral normalmente se considera mais livre.
Mas a maioria carece da capacidade de sentir e amar.
Então viram swingers em um troca-troca insensante de parceiros. 
Mortos dormindo com mortos.
Nenhum senso de humor.
Nada de brincadeira no jogo deles.
Cadáver usando cadáver.

Charles Bukowski

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Inacreditável

Pode me chamar de louco, e tenho quase certeza que o sou, mas eu sonhei esse tempo todo em conseguir rever você. Desde o momento que você chegou com sua família, aquele grupo tão diverso e você logo se aproximou de mim, com olhinhos claros e brilhantes, o seu sorriso animado enquanto eu falava sobre a arquitetura do lugar, seu cabelo cacheando levemente nas pontas, os seus pulinhos de felicidade, toda aquela atenção a cada pequenino detalhe... 

Quando você se foi, pela primeira vez desde que vim trabalhar aqui, eu pensei: eu nunca mais vou vê-lo novamente. E internalizei essa percepção que ali me cortou como aço frio. Desde então eu apenas sonhei, e sonhei que poderia revê-lo novamente. Mas eu sabia que isso jamais ia acontecer. Turistas não costumam viajar sempre aos mesmos lugares e, muito menos, visitar os mesmos museus. 

E foi por isso que o encarei quando, seis meses depois, o vi novamente. O cabelo maior e mais loiro, brincos grossos, algo mais alto e mais sério, mas ainda conservando aquele brilho que me encantou na primeira vez. Eu não podia acreditar, e sem palavras eu apenas o segui com o olhar, enquanto você uma vez mais mergulhava no seu universo contemplativo. 

Pensei que seria apenas uma coincidência, não cheguei a pensar que iríamos sentar e conversar por quase uma hora inteira sobre algumas concepções filosóficas que surpreendentemente temos em comum. Mas conversamos, e você pediu meu contato, e no outro dia disse que poderia precisar da minha ajuda na faculdade, de modo platônico, e é claro que eu fui ao sétimo céu, eu sorri de modo mais brilhante que você, poderia sair cantando como nos filmes, fazendo coro comigo os pássaros e os transeuntes do mercado... Não havia ninguém mais feliz com que eu em falar contigo sobre beleza, sobre melancolia, sobre como enxergamos tudo isso. E você me pediu para compartilhar mais da minha experiência, e claro que eu me empolguei, era mais do que eu jamais ousaria sonhar, era um brilho que eu sequer pensava em rever e, de repente, eu poderia não apenas rever mas fazer parte dele... 

E, então, veio o silêncio.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Um desgraçado

Tem sido uma semana bem intensa no trabalho, muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, muita coisa ainda por acontecer e, muita coisa acabou vindo para eu resolver. Foram textos, artes, documentos, dúvidas, reuniões. atendimentos, problemas... Tudo ao mesmo tempo. Em alguns dias em sequer consegui um intervalo para comer. Muito embora eu goste de saber que todo esse esforço vai dar resultado logo em breve, já que os eventos em preparação e as exposições devem ter boa recepção do público, eu acabei exagerando um pouco. O frenesi então acabou por me fazer exagerar na dose de trabalho, e de café, e o resultado foi uma taxa a pagar para a fadiga e ao cansaço. Ontem vim para casa absolutamente cansado, tendo que inclusive cancelar uma reunião à noite, caindo direto na cama. Hoje fui trabalhar, atendi um grupo de estudantes do Ensino Médio da cidade de São Bento do Sul e, depois disso, caí exausto no sofá da minha sala, ao que meus chefes me viram e disseram para voltar pra casa, onde estou agora e onde vou voltar a dormir, com o corpo dolorido, olhos pesados e a temperatura ligeiramente mais alta que o normal. Não sei se posso dizer que minha imunidade caiu, mas é fato que eu fiquei mais fraco, a minha alergia atacou e meu corpo reagiu pedindo, ou exigindo, por descanso. Tudo bem, o corpo deve ser ouvido, que o breve descanso dessa tarde possa revigorar minhas forças e me da ânimo para voltar. 

Enquanto isso é claro que, junto ao cansaço, o olhar fechado favorece que o pensamento se separe da minha cama e viaje, para dois seres que, recentemente, me marcaram. O primeiro, de que falei noutro texto recentemente e que não tornou a me responder e o segundo que, embora tenha me encantado por seu interesse genuíno ao me questionar algumas coisas, deve começar a me desprezar logo em breve, quando ver que seguimos valores distintos demais e que só naquele breve instante nos entendemos num interesse em comum. Acho que estou me tornando especialista em breves momentos, em paixões fugidias, em amores que duram o tempo que se olha para uma tela (contém ironia).

Alguma percepção especial nesses dias? Mas é claro que sim, afinal, o homem sensível nunca descansa a capacidade de sentir dor e beleza em todos os momentos. 

A cada dia então eu vejo mais e mais a nossa distância. Ele se deslumbra com títulos e teses, se empolga com termos técnicos e vibra de alegria com a possibilidade de entrar nesse mundo. Ele passa bastante tempo pensando na própria pureza e coisas desse tipo. Ele se empolga em ler o currículo lattes de pessoas que eu desprezo pelo simples fato de terem um, negando os convites de voltar para a universidade. Eu, por outro lado, encarno a minha impureza e não me empolgo com nada, nada me brilha os olhos, e me contento com meu fracasso. Amo apenas o longe e a miragem. Me perco em pequeninos sonhos que se vão no mesmo tempo em que o café esfria, a imaginação de alguém ao meu lado enquanto ouvimos música baixinho logo se desfaz também, e até as nossas músicas são diferentes. Ele não percebe o quanto somos diferentes? Ele deseja o céu e eu? Sou só um desgraçado que queria ser amado. Continua falando como se nós caminhássemos pro mesmo lado, mas não caminhamos, aliás eu não caminho pra lugar nenhum. Só consigo observar, já de longe, ele se afastando cada vez mais e mais, como todos que se afastaram. E nem digo que me animo com as minhas histórias de amor, não me empolgo com elas no mesmo sentido, elas apenas me ajudam a sobreviver porque me distraem dessa mesma solidão que sinto o tempo todo e que a cada dia cresce mais e mais.

Já não culpo ninguém por estar sozinho. Percebo em mim que minha essência é a solidão, a visão dos homens me cansa. Saio cedo e volto pra casa sozinho e em silêncio. 

Assisto sozinho e em silêncio. 
Amo e desprezo e em silêncio. 
Choro e me entristeço sozinho. 

E em silêncio.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Um pouco de platonismo

Foi caminhando nas ruas de uma silenciosa Joinville nessa preguiçosa manhã de sábado que eu lia aquelas palavras, de um realismo seco, quase um pessimismo, que me é tão caro. Acredite-me, eu sei bem o quanto crio e me perco nas minhas próprias ilusões. Sei bem o quanto o idealizei, não somente a ele mas a tantos outros, criando sempre a expectativa de um amor perfeito, uma colcha de retalhos feita de muitas cenas que captei aqui e ali, de abraços ternos, regaços apaixonados, olhares de carinho, toques infindáveis repletos de significado. Contudo, é na frialdade do concreto que caminho que encontro a realidade mesma das coisas, de momentos belos e até felizes que se contrapõem, justapõem e aglutinam com outros tantos de tédio, infelicidade, ira, luxúria e tantos outros, formando uma complexa rede que não pode ser reduzida a esses sonhos cor de rosa porque eles sequer existem. 

Essa idealização é a chave do fracasso, e de fracassos entendo bem, assim como da mediocridade. De todo modo, se não posso viver nada disso, e caminho com um olhar idiota de quem conhece essa realidade, ao menos sonho de vez em quando, sem me deixar levar pelos encantos fugidios dos homens que passam como passam as flores dessa cidade, num dia botões discretos, flores brilhantes molhadas pelo orvalho e depois pétalas esmagadas pelos pés. 

Agora, falando de alguém mais específico, eu sei bem o quanto tenho alimentado os sonhos com relação a você, e já o disse em mais de uma ocasião que pretendo mudar, e pretendo mesmo, porque é injusto comigo e contigo também. É injusto porque ela envolve uma série de sentimentos, de cenas irreais, onde você e eu figuramos como protagonistas de uma história tão bela quanto mais irreal, beirando a loucura, ficando eu permanentemente no limiar do que é real entre nós e do que eu inventei. Isso se reflete nas nossas conversas, e vejo como as palavras realmente têm muito poder. 

Cada vez que chama meu nome, por exemplo, me vejo estremecer, como uma pedrinha que causa uma grande onda ao ser lançada na superfície límpida de um lago, ou quando diz que me ama e meu coração bate mais forte, como um jovem bobo e inexperiente, e aquelas cenas antes de adormecer, muitas delas baseadas nas que eu vi em muitos e muitos BLs pouco antes de deitar, um mundo criado no meu coração, desse desejo ardente que nasceu de uma carência, dessa minha imperfeição fundamental resultando num grande castelo de cartas feito na areia, prestes a ruir. 

Um antigo visitante retornou, e é claro que eu me deixei levar com aquele sorriso fofo, aquela personalidade iluminada, solar, e aquela inquietude, totalmente oposta a mim que, de inquieto tenho apenas o espírito. Mas ele me iluminou, e quase que fechei os olhos e me deixei levar por aquela voz frenética. 

Foi um encontro de dois corações? Ele falou tão empolgado quanto eu, mas pode ser apenas um hiperfoco, um interesse momentâneo, tão passageiro quanto intenso, um átomo que se explodiu e, logo depois se aquietou. Como explicar, então, o que senti, até mesmo agora dias depois, o coração batendo rápido e os olhos marejados quando penso nele, a respiração falhando ao lembrar do seu sorriso elétrico, seu cabelo meio loiro ou seu olhar inocentemente sensual que talvez só eu tenha visto?

Como explicar as opiniões que convergiram, a escolha de palavras, terá sido um mero acaso? O platonismo inerente a todo aquele diálogo foi recíproco? Será que também ele sonhou por um semestre inteiro por esse reencontro? Eu já havia perdido toda e qualquer esperança, me restando, mais do que uma turva recordação da sua figura, mas uma profunda lembrança da presença, algo do todo que ficou em meio a névoa imperdoável do tempo...

E então, ao contato com uma amiga, comecei a pensar nas vezes que tentei investigar essas coisas, sem conseguir chegar a nenhuma resposta. Tentando sondar os motivos que nos levam a aceitar tão pouco, fruto de tantas idealizações é claro, que nos fazem mendigar migalhas, mas de onde vem isso que nos faz assim, o que está tão profundamente enraizado em nós que se alimenta de pequenas gotas de afeto na superfície assim? O que nos faz ser assim? Não quero essas causas superficiais que se somam, quero aquela primeira, aquela imperfeição fundamental sobre a qual se cria todo esse imenso castelo de expectativas...

O castelo começa a ruir sempre que me dou conta, de uma forma brutalmente seca, como é instransponível a distância entre esses sonhos e a realidade. Não existe nem mesmo comparação. Não posso dizer que há um abismos, um deserto ou mil cidades entre nós, não posso nem mesmo exagerar e dizer que uma há galáxia que nos separa, porque mesmo se fosse assim, ainda estaríamos no mesmo mundo, mas não estamos, e não há um mundo em que sonhos se realizem, nem nesse mundo e em nenhum outro universo concebível. Estraguei tudo de novo. Desejos feitos para estrelas nunca se realizam. Nunca.

"A vida dos homens - dos homens que realmente vivem - é cheia desses mistérios, de pequenos enigmas que só se revelam aos poucos, à medida que vai ficando para trás, mais ou menos sepultada, a possibilidade de tirar partido, utilmente, dessas revelações. E por que não confessar? - A experiência é mais um fardo nos ombros do que uma lanterna a nos dirigir..." (Octavio de Faria)

sábado, 5 de agosto de 2023

Duas canecas

É engraçado como, às vezes, apenas uma frase, me faz pensar em tantas coisas diferentes. Como, por exemplo, quando você comentou que eu prefiro cores claras ao ver as canecas que comprei... Só o fato de ter comentado isso me fez pensar numa cena, pequenina e um tanto boba, de duas canecas fumegando de manhã, enquanto tocava, não sei se lá ou na minha cabeça, aquele trechinho da música do Jeff com o Gameplay "be my green tea in the morning be my sugar honey..." porque acho que você sabe o quanto eu amo essa música, e pensei na graça dessa visão, duas pessoas ali, sentadas numa manhã fria, com café e chá, enquanto conversavam sobre os planos daquele dia, um chefe que pediu a revisão de um projeto, os valores das passagens que eles vão comprar nas férias daquele ano... 

Não me entenda errado, não imaginei uma cena romântica contigo só porque disse isso. Você não estava nessa cena, e nem eu. Eram apenas duas pessoas, nem sequer vi seus rostos, as únicas coisas realmente claras pra mim eram a imagem das canecas fumegantes e a música, e talvez um pouco das roupas que eles usavam, um pijama de moletom com o desenho de um coelhinho no peito e um outro de flanela xadrez, mas isso já é um pouco demais. 

E daí eu pensei no quanto eu devia parar de dizer essas coisas, não só para você, mas ao ver que em outra conversa nesse mesmo momento eu acabo falando demais, e dando liberdade demais, e aí as pessoas acabam me tomando por seus próprios valores, não raramente numa moral rasa de origem kantiana. E nisso, aos olhos delas, me torno fraco, e elas querem me dominar, querem que eu concorde com todos os absurdos que acreditam...

Também eu sou assim, admito. E percebi isso ontem, com uma brutalidade que me deixou atônito e após a qual eu achei por bem encerrar o dia e ir dormir, só tornando a responder quem quer que fosse hoje mesmo, justamente porque percebi isso em mim, ao mesmo tempo que vi, e sei que somente eu vi isso, aquele escudo que me separava daquela outra mente. Pode-se dizer que era por conta de uma visão antagônica? Luxúria e pureza? Não. Se fizesse isso já seria como colocar ambos como espécies do mesmo gênero. A verdade é que era o contraponto entre sonho e realidade, e eu estava no lado irreal, sendo o preço dessa percepção uma brutal consciência de mim mesmo. Paciência. Pelo menos o café quente na caneca de manhã não é tão violento assim, e talvez por isso eu deveria continuar apenas bebendo em silêncio.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Voltando a dormir

Eu tento me disponibilizar sempre que possível, sério mesmo. Eu gosto de escutar quando as pessoas precisam ser ouvidas, gosto quando elogiam o meu trabalho, e aqui me permitam por favor um pouco de egoísmo: é claro que ninguém suportaria um trabalho apenas com cobranças e críticas, e gosto, principalmente, de tratar bem e ser tratado bem. 

Mas, apesar disso, eu queria conseguir equilibrar isso em ter um pouco mais de tempo, de não deixar a minha barba crescer tanto assim porque na folga estou cansado demais pra sair da cama, de conseguir fazer mais do que apenas ir e voltar, num ônibus infinito. Às vezes fica difícil cuidar de mim, e então eu vou deixando as coisas passarem, e acho que isso é uma certa inversão de valores porque, quando tudo começar a pesar demais eu nem mesmo vou conseguir ajudar, porque esqueci de me cuidar, e já vi isso acontecer não é? Me lembro bem da época que, no meio de tantas obrigações, não tinha nenhum tempo para mim mesmo. 

Até essas palavras, no entanto, eu escrevo sob um cansaço tremendo, sabendo que precisaria fazer a barba, a sobrancelha e talvez depilar as pernas, me cuidado um pouquinho mais já que eu mesmo trabalho atendendo pessoas. Isso aqui é apenas uma pequena digressão, eu logo vou voltar a dormir, afinal essa semana eu não tive nenhum dia de folga e meu corpo já dá sinais de fadiga e cansaço, ao mesmo tempo que ecoa em mim os olhares acusatórios de que não faço nada. Paciência.

Só queria não ser um idiota útil. Mas não consigo tirar uma foto decente, ou fazer uma arte decente, ou ser um líder decente, ou um agente de pastoral decente, ou um padrinho, amigo decente. Nada. Sou apenas uma sucessão de fracassos, e nem mesmo meus fracassos são memoráveis. Quantos amores não conquistados, quantas missões fracassadas. Algum aprendizado? Aprendi que não sou bom em nada e que é sim possível ser ruim em tudo e perder todas. Consegue enxergar  o meu sorriso irônico levemente esboçado no meu rosto enquanto escrevo essas palavras?

Devia conseguir pelo menos fazer a barba, aqueles malditos pelinhos começam a crescer na minha bochecha, mas acho que vou só voltar a dormir...

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Intimidade pura

Pouquíssimo restou daquela impressão, que começou logo cedo com as cenas de Sakurai Yuki e Takamatsu Aloha que me marcaram e emocionaram antes mesmo que o sol nascesse e eu começasse a me preparar para o trabalho. 

Enquanto aquele pobre, traumatizado por tantos anos, chorava sem forças de se debater contra o demônio que por sobre ele lhe ameaçava aquela pureza tão íntima que, aquele tempo todo, ele mostrara apenas ao seu primeiro amor. E em todo esse tempo ele jamais saiu de sua mente, tudo o que ele fez, desde o complicado aprendizado de uma nova língua até a construção de uma personalidade que o protegesse de todos os outros foi em função de se guardar unicamente aquele que ele queria se entregar verdadeiramente.

"Como era estranho aquele menino! Impenetrável. Absolutamente impenetrável. Insensível a tudo, censuras, elogios, afetos, bons tratos, castigos, não importa o quê." (Octavio de Faria)

Mas aquela imagem era apenas uma construção. Bem forte, é verdade. Forjada no aço e no concreto para esconder uma fragilidade pavorosa. Nesses anos ele até mesmo tentou ter algum tipo de intimidade com um amigo próximo, próximo mesmo, mas sempre fracassava. No entanto, quando finalmente encontrou seu antigo amor nos corredores claros da empresa, ele percebera que aquilo que ficara guardado durante tanto tempo, algo tão precioso e tão íntimo que ninguém sequer vira novamente, poderia uma vez mais ganhar vida e tornar a luz.

Mas aqueles demônios ameaçavam tudo isso. Monstros, verdadeiros monstros que, com olhares, sorrisos e rápidos gestos destruíam o frágil castelo em que ele se refugiara naqueles últimos meses. De longe os melhores de sua vida, acordando ao lado dele, se refugiando depois de um longo dia de trabalho em seu abraço quente e carinhoso, encontrando aconchego naquele sorriso doce e, nas noites longas de amor, naquelas costas e peitos largos, toque gentil e amor que nunca acabava. 

Suas lembranças naquele momento obscuro, sitiado por aquele general corrupto, era apenas seu belo quarto, com a luz da manhã a entrar por entre as cortinas brancas, banhando tudo de uma clareza limpa, singularmente pura, assim como era puro o sono do seu amigo, daquele que ele tanto amava e que, ao seu lado, experimentava a tranquilidade de um mundo que, nas paredes daquele apartamento, estava longe de todo e qualquer perigo, sem demônios a rodear, diferente daquela sala escura em que ele, caído ao chão e arfando ao peso dos golpes violentos daquele monstro, ele encontrava o seu triste fim, depois de uma breve vida da intimidade mais pura. 

Aquela visão, aquele abraço genuíno carregado de sentimento e cuidado, cada toque, cada momento de profundo respeito, todo aquele quadro branco sumia repentinamente na escuridão sob a voz estridente daquele que o machucava...