quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Sociologia e Essência

Chegando em casa chateado, cansado, molhado e humilhado. Certa vez ouvi que o Brasil era um país de medíocres porque tinha gente incapaz demais em postos que exigiam certo nível mínimo de capacidade, humana e profissional. Me pergunto agora, com brutal realismo, se eu não sou claramente um incapaz alçado a um posto, deveras medíocre é verdade mas ainda assim, alto demais para minhas potências. E não se trata aqui de mera auto depreciação pessimista, não, mas de uma reflexão justa. 

As pessoas claramente sobem de posto graças as suas habilidades sociais, dificilmente pelas suas habilidades profissionais. De todo modo que, quando chegam a um limite elas se estagnam, não raramente num posto alto demais para suas capacidades, o que as torna frustradas e ávidas de continuar em busca de subir socialmente, uma vez que se deparam com o desespero do seu despreparo. É nítido para mim que eu subi, pouco que seja, não por capacidade social e nem profissional, mas por um acaso e pela inépcia dos outros. Talvez o contato prolongado com pessoas grosseiras demais tenham feito de mim, sorridente e simples, alguém que eles gostam de ver. Eu claramente não tenho traquejo social para isso, senão que, se fosse um escritor melhor, eu poderia me dar ao luxo de me isolar e apenas escrever, sem precisar passar pela humilhação do alpinismo social onde todos têm tanto a dizer o tempo todo e tão pouco a escutar. E olha que eu acabei de chegar!

"Eu prefiro me sentir vigiado, do que me sentir sozinho." Leandro Karnal

Muitas vezes, sem nem se darem conta disso, muitos vivem o mesmo pavor da solidão que eu. A busca incessante pela aprovação do meio, no qual sacrificam aos altares da quarta camada da personalidade desejos e afeições, tornamo-nos escravos desse meio, seja pela aceitação ou negação da aceitação de um outro grupo rival. De todo modo buscamos agradar alguém que, aprovando nossas decisões, nos dão a validação externa de que carecemos e que usamos para fugir do fato de que, no íntimo, nossas decisões são tomadas no alto do pedestal de nossa própria solidão. Como encarar isso é demasiado difícil e, por motivos que são complicados demais para avaliar num escrito aforístico e que superam a minha capacidade mesma de análise e escrita, nós nos contentamos e almejamos a aprovação, seja do grupo no sentido imediato, dos amigos, colegas, ou de símbolos que condensem essas pessoas, como uma pessoa que simbolize uma igreja, um partido, uma corrente filosófica. E então é nesse sentido que o homem afirma que preferimos nos sentir vigiados do que sozinhos. 

Admito aqui que essa tendência pessimista é algo que absorvi do ambiente sociológico que me rodeia, facilmente explicável pela desilusão dos nossos intelectuais com todas as coisas tão duramente conquistadas e tão facilmente estragadas. Desse ponto de vista, o Sol é movido pelas Trevas e, usando aqui uma certa interpretação do filme O Silêncio dos Inocentes, o polo ativo da história só pode ser negativo, só pode ser o demoníaco Dr. Lecter de Hopkins: como ele é o pior, só pode ser o melhor. É aquele demônio inteligente que exerce fascínio na intelectualidade derrotada. Muitos apontam que a personagem Clarice do filme se tornou, de certo modo, hipnotizada pelo monstro. Isso porque para a maioria, não podendo competir com a malícia dos demônios, começa a sonhar em se tornar como eles. Quem interpreta dessa forma, e não vê Clarice como uma heroína no sentido total desse termo, não percebe que está fazendo uma projeção na personagem, e não uma interpretação dela. 

Claro que nesse ponto me sobram os conselhos sobre como devo levar a minha vida, afinal todos sabem como fazer isso melhor do que eu. E me dizem que eu preciso delegar... Para quê? Para precisar refazer tudo eu mesmo cinco vezes? Para não ser ouvido? Para passarem por cima de mim como se eu fosse incapaz de tomar decisões? Para dizerem que eu não faço nada quando me aparecem demandas demais para resolver que eu só daria conta se fizessem o mínimo sem mim? O que é que querem de mim? 

Retornado ao filme, quando perguntam a personagem se o assassino é um vampiro ela responde que não há palavra para dizer o que ele é. A palavra, o conceito, é reflexo e tradução da essência da coisa. Do ponto de vista ontológico aquilo que não tem essência não existe. O que não tem nome, não tem essência, não existe. Logo é também uma clara referência ao maligno tomado do ponto de vista não de uma força criativa, de um demiurgo, mas de uma ausência, de privação. O monstro, embora ali uma pessoa, não é uma potência criativa, é apenas desprezo e engano, acaba por servir ao bem mesmo com a pior das intenções. O maligno é aqui, embora personificado no personagem, algo mais próximo do maligno como apresentado na obra de Tolkien, uma sombra, uma ausência por si mesma, e que por isso acaba resultando em barbaridade.

Assim como não é um nome para o que ele é, o que é forma de precisamente dizer que ele não é nada, fazendo eco a mesma teodicéia que citei do mau como ausência, sombra, que, não podendo subsistir per se. Poderia até ir mais longe nessa reflexão nas afirmações vedantinas ou socráticas que decretam o mal como ignorância, mas acho que, para não me prolongar e acabar perdendo o já custoso fio do raciocínio, que preciso tecer no meio da agitação da minha rotina, acho melhor apenas dizer que, terminando eu num balbucio solitário e vazio, muitas vezes também me sinto esse mesmo nada, esse vácuo que suga e que encontra seu ser apenas na destruição, do todo, do outro e, finalmente, de mim mesmo que, no fim das contas, me sinto um nada, aqui tomando um pouco da dialética negativa frankfurtiana.

E então eu atravesso a cidade de novo, em silêncio, em pé, cansado, com a cabeça cheia, e tudo que eu queria era o abraço de alguém que me ama mas, como eu não tenho ninguém, só posso encher a cara, de álcool e tarja preta e torcer pra, se eu acordar amanhã, que seja com pouca ressaca ou que as coisas melhores. Bom mesmo seria não acordar. 

"[...] Do tempo, que é de um só e é de todos. Sou o que é ninguém, o que não foi a espada na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada." (Jorge Luis Borges)

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