sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Amargor

Eu não sei nem por onde começar a descrever a imensa quantidade de de ideias que estão presentes em Heartstopper e que fazem a sonhar e se iludir durante as boas horas que dura a maratona.

Vou repetir algo que já foi dito até a exaustão mas que guarda em si algo de verdade: num mundo de relações líquidas, tão superficiais e passageiras, um amor bonito se torna objeto de desejo máximo. E entenda, por amor bonito eu não digo um amor que não tem nenhuma dificuldade, mas justamente um amor que tenta superar elas juntos. 

E ainda mais se tratando de um romance gay (ou lésbico, trans e o que mais for) choca com o fato de que essa é justamente a comunidade que mais se destrói com as relações toscas e puramente sexuais. Veja só, de todos os caras que ficam com outros caras que eu conheço todos têm o mesmo discurso: buscam alguém parceiro, compreensivo, capaz de mudar o que for necessário e que não desista diante das primeiras dificuldades ou defeitos. Todos eles, sem absolutamente nenhuma exceção, negam esse mesmo discurso no instante seguinte ao só aceitarem cogitar um relacionamento com um cara modelo de academia, mesmo negando os padrões estéticos da cultura de massa, que tenha um bom padrão financeiro, o desempenho sexual de um ator pornô e a postura de um hétero perfeito. Não preciso nem explicar que essa é a receita certinha pra que nenhum relacionamento dê certo. Enquanto esse homem dos sonhos não aparece, ou aparece apenas pra outros da mesma estirpe divina, todos se divertem com algumas dezenas de parceiros sexuais com o comprometimento afetivo da profundidade de uma colher de chá.

Então a série mostra o cara mais gato da escola se apaixonando pelo gay assumido e esquisito vítima de bullying. Ele logo se aceita e passa a superar obstáculo após obstáculo ao lado do outro, é compreensível, fofo, respeitoso e todas outras qualidades que caibam aqui. Claro que a série vende porque, num mundo onde todo mundo tá fodido da cabeça, apresenta o relacionamento ideal, perfeito sem nenhum defeito. Todo mundo se sente meio patinho feio, e todo mundo ia querer que o príncipe encantado Golden Retriever se apaixonasse perdidamente. Então essas poucas horas ao redor do desenvolvimento dessa história com temas típicos dos adolescentes gays faz com que a gente passe a idealizar até mesmo os problemas que a maioria de nós passou. Enfrentar preconceito? Do lado de um namorado gostoso é bem mais fácil né? Insegurança? Traumas do passado? Um abraço apertado e um beijo doce curam feridas ou, ao menos, diminuem a dor. 

E é claro que é lindo fugir um pouco pra esse mundo, afinal aqui fora traumas geram transtornos muitas vezes irreparáveis, todos continuam buscando parceiros ideais ao invés de se esforçarem um pouco e aceitarem aquele cara legal que tá do nosso lado de vez em quando e que, com um pouco de boa vontade pode até ser parceiro. Aqui fora o preconceito também machuca, mas dificilmente temos com quem cantar, e os olhares de julgamento não cessam: a gente se acostuma, sozinho mesmo. 

É fofa, é doce, é irremediavelmente doce e confortável. Te abraça e diz que tudo vai ficar bem mas, quando termina e começa a propaganda da próxima série a gente lembra que, aqui fora, quando o cara mais gato do colégio descobre que pode pegar homens e mulheres ele não se apaixona pelo gay tímido e sofredor, ele passa a rola em todo mundo, pega clamídia e gonorréia e se vicia em cocaína. 

Eu sei que tem que ser muito amargurado pra dizer isso, mas provavelmente você também é.

Gente sem moral normalmente se considera mais livre.
Mas a maioria carece da capacidade de sentir e amar.
Então viram swingers em um troca-troca insensante de parceiros. 
Mortos dormindo com mortos.
Nenhum senso de humor.
Nada de brincadeira no jogo deles.
Cadáver usando cadáver.

Charles Bukowski

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