quinta-feira, 31 de março de 2022

Chuva na Praça

Procrastinando em meio ao caos, descontrolado vagando por universos paralelos, realidades distintas, convicções paradoxais, onde não há entropia, onde os dias são sempre nublados e do céu caem milhares de gotas de diamante que brilham timidamente antes de se chocarem contra o chão e perfumarem o ar. Corro para me abrigar da chuva embaixo de um coreto numa grande praça que ficou deserta. Ali eu observo as folhas ficarem mais verdes enquanto se deixam balançar pelo vento forte da chuva. Do outro lado da praça um garoto se encolhe sozinho com o celular na mão, e eu não sei dizer se o que escorre do seu rosto são lágrimas ou a própria chuva. 

Eu já o observara antes da chuva começar, ele parecia esperar por alguém, impaciente olhando o celular a cada minuto. Mas essa pessoa não veio, e ele ficou ali sozinho, no lugar onde prometera esperar, sem se importar com as gotas pesadas que o atingiam. Ele se abaixou, a cabeça entre os joelhos, com certeza chorando, e ficou assim por um bom tempo. 

Depois de alguns longos minutos, eu distraído com a minha música, notei que outro rapaz de aproximara correndo, tirou o blazer e cobriu o outro com sua roupa, ajudando-a se levantar o levando pra longe dali. Eu os observei até que desaparecessem, e me pergunto se aquele garoto que chegou era a pessoa que ele esperava. Será que ele encontrou sua alma gêmea ou esse garoto, embora não seja seu grande amor seja aquele que realmente se preocupa e se dedica a ele, merecendo então sua atenção e afeto? Mas atenção e afeto podem superar um sentimento verdadeiro e avassalador?

São perguntas difíceis. Quem faz o seu coração bater mais rápido é quem pode tratá-lo melhor? O amor não devia ser a tranquilidade de uma brisa mais do que um vendaval que o deixa sozinho na chuva? Eu espero que ele encontre suas respostas. 

Eu continuei distraído, agora que a chuva passou vendo as gotas escorrerem das folhas grossas, é uma bela visão. Um outro garoto se aproxima do ponto onde o outro estava, parece preocupado, mexe no celular, passa a mão com rapidez no cabelo, olha pra todos os lados, mas ele não está mais lá, encontrou alguém que o acolheu, que enfrentou a frialdade inorgânica da chuva pra se aproximar do outro. Enfurecido ele chuta o ar e sai, cabisbaixo, indo pra direção oposta. 

Espero que os dois primeiros estejam cuidando um do outro, dando o amor e o carinho de que precisam. E quanto ao segundo, que consiga entender melhor suar prioridades, se dedicar mais aquilo que ele quer. 

Talvez seja a hora de eu ir embora, e procurar as minhas prioridades, buscar a quem eu quero dar carinho e cuidado de verdade, ainda que num dia de chuva, sem nada a perder. Há alguém assim pra mim no mundo?

~

Inspirado numa cena da série tailandesa Restart(ed)

quarta-feira, 30 de março de 2022

Alegria e Dor

É uma noite calma, fresca, e no player a voz de Dolly Parton canta o belo refrão de Hou Great Thou Art, um belíssimo hino, e agora consigo sentir um pouco da tranquilidade que esse momento significa. Até agora pouco eu sentia aquela inquietação típica do pânico noturno que se anuncia, mas sem chegar propriamente, apenas a aura de desespero, um gosto amargo na boca. 

É um traço das crises de depressão que tenho tido nesses dias de episódios mistos, parece que há sempre algo a espreita, esperando pelo momento certo para me devorar. Então eu me encolho de medo, me prostro, e rezo para que alguém venha em meu socorro. 

Em alguns dias eu consigo ver traços de luz, consigo ver o sol nascendo distante no horizonte e fazendo sumir as trevas do coração, mas as sombras não desaparecem completamente, elas permanecem escondidas, no cantos mais remotos do meu ser, apenas para aparecer em alguns outros momentos. Hoje eu vi a ambos, a luz e a escuridão. 

Isso me fez perceber que ambos coexistem dentro de mim, há alegria e dor, luz e escuridão, e estão dentro de mim, numa luta constante e por isso variam em quantidade. Muito embora as trevas pareçam ganhar, quando a alegria chega ela é genuína, e com isso ninguém pode se igualar.

Por isso eu digo que não sou um pessimista mas sim um realista de luto, que tenta ver as coisas como elas são, e se pareço demasiado negativo é apenas por perceber o alto grau de entropia que há nas coisas ao meu redor, bem como da energia necessária para criar um pouco de ordem no caos que parece reinar por sobre a realidade. 

terça-feira, 29 de março de 2022

Por trás do caos

Uma onda desagradável de calor atingiu essa região nos últimos dias, tem estado abafado e desconfortavelmente quente. A vontade é de ficar na cama, mas o calor não deixa. Dias assim acabam me deixando inquieto e impaciente, sem que eu consiga me concentrar em algo e me dedicar com afinco. Tenho algumas obrigações na Igreja, por exemplo, que preciso adiar porque tenho estado incapaz de me concentrar pra resolver. 

Enquanto isso me dedico a pensar, pensar em algumas questões, como as razões por trás da obra caótica que eu escrevo, repleta da força sugestiva do meu coração mas também daquela confusão inerente as mentes atormentadíssimas. 

Experimentei uma outra noite insone, após dois concertos de piano de Rachmaninoff e um álbum do ABBA eu ainda estava desperto, preso em sonhos e pesadelos, imagens idílicas de um paraíso de belos homens gentis e imagens horríveis de guerras e doenças que destroem lares e obrigam as pessoas a se verem despidas de qualquer dignidade, como o Filho Pródigo a desejar se alimentar da comida dos porcos, quase uma figura que deixou de ser humana, que perdeu-se em meio a ganância. 

Mas, assim como na tela de Rembrandt havia um Pai a sua espera para abraçá-lo, em posição paternalista, e pronto a esquecer as traições cometidas pelo filho ingrato. 

Aquele filho viu-se sozinho, sem família ou amigos até abandonado pelo seu dinheiro, que logo se perdeu nas festividades do mundo. "Mil amigos conheci, disseram adeus, caiu a solidão em mim", diz uma música que eu gosto muito e que revela aquela mesma verdade que Clarice Lispector disse numa entrevista: a de que o adulto é triste e solitário. Aquele filho aprendeu essa lição e voltou aos braços do Pai, onde poderia experimentar um pouco de companhia. 

Mas, ao fim de tudo, continuamos sozinhos, mesmo que façam festa em torno de nós. No último dia, somente a nossa alma se apresentará diante do Justo Juiz, e somente o que essa alma for realmente valerá como testemunho contra seus pecados. 

O que eu sou verdadeiramente? O amor que sinto pela ordem e a verdade será levado em conta, porque se levarem em conta nossas faltas quem haverá de subsistir? 

E, depois disso, nossa condição de solitários será revogada? Encontraremos aquilo que falta em nós no sentido mais profundo do nosso ser? Conseguiremos preencher esse vazio que há bem no âmago de nossas almas e que tememos desde o nosso primeiro pensamento? As cortes angélicas nos farão companhia pelos séculos sem fim entoando seus hinos sublimes e nos ensinando os maiores segredos do cosmos com sua sabedoria infusa?

Que o adulto é triste e solitário eu já sei, mas o seremos sempre assim, ou encontraremos uma alma que possa se ligar a nossa de algum modo, diminuindo o vazio que sentimos no peito? Haverá para nós algum exílio nesse mundo?

segunda-feira, 28 de março de 2022

Insone

É incrível como um episódio misto consegue trazer o pior das duas fases do Transtorno Bipolar, a hipomania sumiu com o meu sono, eu virei a noite ontem e não estou com a menor vontade de dormir ainda, estou prestes a diluir meio vidro de Rivotril e injetar na minha veia pra ver se apago um pouco. 

Outro ponto péssimo dessa presepada é que não consigo me concentrar o suficiente pra escrever com o mínimo de coerência, resultando em fragmentos de pensamentos, dispersos, mas ainda assim um retrato fiel da minha mente distorcida pelas variações químicas no meu cérebro, principalmente agora que eu decidi não tomar mais a minha medicação porque os efeitos colaterais estavam me incomodando, numa decisão completa e absurdamente irresponsável. 

É uma empreitada corajosa e arriscada, admito, tentar enfrentar as crises sem remédio, mas ainda assim eu já estou há bastante tempo sem uma crise depressiva longa e, mesmo sem conseguir dormir direito, é melhor do que virar uma batatinha melancólica com crises de pânico. 

Só o que posso fazer é catalisar um pouco da minha energia em uma ou mais músicas e assim tentar imprimir algo com um pouco mais de unidade. O que eu deveria escolher pra hoje, um álbum pop mais puxado pras baladinhas ou um concerto pra piano do repertório clássico? Talvez os dois, ao que tudo indica eu não vou dormir cedo hoje de novo. 

No momento eu tento ignorar a dor de cabeça de ter assistido séries o dia inteiro sem óculos e ignorando também o pedido que o padre me fez pra organizar um Ofício das Trevas sabendo bem que é inviável com a quantidade de pessoas que temos na pastoral atualmente, mas eu sigo fingindo que tá tudo bem, amanhã será um daqueles dias que eu escolho simplesmente não viver e fico na cama o dia todo, aí eu descanso um pouco e diminuo o ritmo que anda meio acelerado. Engatei três maratonas de série seguidas, o que é muita informação pra minha cabeça, me deixando com a sensação de que ela vai explodir a qualquer momento, por isso importante sair um pouco de órbita. 

No mais aguardo que as coisas permaneçam assim por mais um tempo, e torço pra ter alguma epifania poética nesse ínterim. Não é uma noite escura, parece que estou permanentemente num nascer do sol, ainda vejo as sombras da noite mas a claridade já se faz presente também. 

sábado, 26 de março de 2022

Resenha: You're My Sky

E eis que chega ao fim a primeira grande surpresa de 2022, uma série que não fez muito barulho ao ser lançada (eu nem tinha ouvido falar até uns dois dias antes do primeiro episódio) mas que entregou tudo e mais um pouco. 

You're My Sky conta três histórias que acontecem se entrelaçando em alguns pontos, com os personagens sendo todos colegas numa Faculdade de Ciências do Esporte. A primeira é a de Torn (Suar Kritsanaphong, de You Never Eat Alone) que entra na Faculdade Chayakorn porque seu veterano Tupfah (Tae Chayapat de Y-Destiny) estuda lá. Os dois se conheceram na infância, Torn sendo um garotinho recluso que aos poucos foi descobrindo a amizade ao aprender a jogar basquete com o outro. Eles haviam prometido jogar juntos quando crescessem mas depois de uma experiência ruim na seleção de um time juvenil o mais velho desistiu de jogar. Com isso Torn precisa ajudar o amigo a lidar com isso para que eles possam voltar a jogar juntos, além de nutrir um sentimento romântico pelo veterano, que vai se tornando mais forte conforme eles se reaproximam.

O segundo casal é Saen (Boom Thanut), amigo de Torn, que se apaixona pelo tímido e rígido veterano Aii (Jump Kananat). As personalidades deles são completamente opostas, mas Saen não se deixa desanimar e faz de tudo pra se aproximar do outro que, a princípio, resiste mas lentamente vai abrindo o coração para o calouro. 

A terceira história é a do complexo relacionamento de Dome (Kris Sakris) que acaba se aproximando demais do novo membro do time de corrida, que também é irmão de sua namorada, Vee (Porsche Tanathorn) que, apesar de também se sentir atraído pelo veterano, não quer decepcionar sua irmã. 

O primeiro diferencial dessa série foi o tratamento diferenciado que todos os três casais receberam, o desenvolvimento foi bem dividido entre os três, sem ser como geralmente se faz em que os casais secundários tem bem menos tempo de tela que o casal principal. Embora a história de Tupfah e Torn seja a principal os outros tiveram um desenvolvimento tão bom quanto, com tempo suficiente de tela pra que todos os personagens tivesses diversos aspectos sendo explorados. 

Nós vimos Aii aos poucos superando a timidez e insegurança e assumindo os sentimentos por Saen, e ambos encarando juntos a mudança do veterano pro Japão, tendo que equilibrar um relacionamento à distância. Vee e Dome também tem uma carga emocional impressionante e foi incrível ver a força deles em tela, com olhares e toques simples tendo muito a dizer. O medo de machucar outras pessoas fizeram com que eles temessem o sentimento que acabou surgindo entre eles mas o tempo tem a sua própria forma de mostrar que às vezes não há como fugir do que o coração deseja. O relacionamento deles foi mostrado com muita delicadeza e respeito.

Tupfah e Torn tem uma química incrível, e mesmo lidando com inseguranças e outras dificuldades do mundo dos esportes eles conseguiram superar juntos as dificuldades, mesmo quando tudo parecia escuro. 

Com uma fotografia simplesmente sensacional a série é uma experiência visual incrível. Com fortes tons quentes e muita atenção a detalhes como os olhares e pequenos gestos dos personagens a história vai sendo construída com muita solidez e o encanto é imediato. Eles conseguem passar toda a tensão, e uma gama completa de sentimentos com alguns poucos toques, por exemplo. Todos os casais conquistam e são tratados com um desenvolvimento de sentimentos e superações impressionante. A trilha sonora também é um charme à parte, ficando aqui a ost de abertura como a melhor das apresentadas. 

A segunda metade da temporada é marcada por uma mudança de tom, com um lindo episódio na praia usado como transição para inserir o arco final, com problemas maiores que serão enfrentados. Com uma passagem de tempo que não ficou corrida a série soube mostrar como o amadurecimento às vezes é lento e como o tempo é necessário para curar certas feridas, o roteiro, embora seja até simples, é cativante e a direção soube fazer um excelente trabalho com atores não muito experientes, mas que conseguiram entregar uma excelente história.

Enfim, não vou poupar elogios a esta que certamente vai ser uma das melhores séries do ano, e olha que esse é de longe o ano com o maior número de lançamentos BLs, e mostrando ser uma grata surpresa que não prometeu nada mas entregou tudo, simplesmente sensacional em todos os aspectos.

Nota: 10/10

sexta-feira, 25 de março de 2022

Descrição

O inimigo persegue a minha alma, 
ele esmaga no chão a minha vida
e me faz habitante das trevas,
como aqueles que há muito morreram.
Já em mim o alento se extingue,
o coração se comprime em meu peito! (Sl 142)

Cheguei em casa bem cansado depois de uma missa complicada, cheia de músicas difíceis pra qual eu não tinha ensaiado, me sentia exausto, embora também me sentisse satisfeito por conseguir cantar peças cada vez mais complexas sem tanto preparo. Sentei um pouco e senti o peso da fadiga nas costas. Agora, algumas horas depois eu já descansei, mas ainda tem um sentimento ruim pesando. 

Uma das piores coisas nas crises da minha fase depressiva, ironicamente toda vez que eu falo de algo é sempre uma das piores coisas porque não tem nada de bom numa depressão, é essa sensação de que algo está errado mesmo quando tudo está aparentemente normal. Hoje não foi um dia ruim, não aconteceu nada de ruim nele, mas ainda assim fica uma sensação geral um gosto ruim na boca que não sai de jeito nenhum, uma sensação de que uma onda se aproxima pra destruir tudo. A depressão é, muitas vezes, essa sensação de que algo muito ruim vai acontecer, ainda que essa coisa nunca chegue em si mesma, é a própria sensação que é destrutiva em si mesma. 

É até complicado descrever, minhas limitações sendo exploradas aqui, mas é como se eu estivesse num farol, observando a tempestade se aproximar lentamente, com seus ventos assustadores, e não pudesse fazer nada porque estou preso ali. A descrição é imprecisa mas é o melhor que eu consigo fazer agora, ainda mais agora, em que parece que não mais estou a observar a tempestade mas estou bem no centro do furacão, o vórtice impetuoso a me roubar a respiração. Tenho pressa a escapar de tal prisão mas não consigo senão me debater em meu cárcere. 

É como os rompantes de fúria do primeiro movimento da Sinfonia N° 6 do Tchaikovsky, o destino interrompendo bruscamente o pobre coitado que tenta contar a sua história, sendo engolido por um vendaval, lançado de um lado a outro e, até nos momentos de repouso, tomado por uma aura de pessimismo que tinge de cinza as flores mais coloridas do jardim secreto de minha alma.  

É essa a sensação de ser perseguido por um inimigo invisível que conhece todos os meus medos e os usa contra mim, é como ser esmagado pelas suas patas, é como se suas garras perfurassem meu coração e lançasse meu sangue sobre as rosas do jardim tingindo-as com as gotas de meu sangue.

O grande problema é que tudo isso vai gerando um desgaste tão grande que é como se minha personalidade pouco a pouco fosse se desfazendo, como uma rocha que em centenas de milhares de anos desaparece em meio a areia do deserto. E então eu sinto que estou desaparecendo, já não sabendo mais quem eu sou, só reconhecendo medos nas noites mais escuras, é como se isso fosse tudo que tivesse sobrado. E na noite escuro eu busco aquele por quem minha alma clama, mas eu já nem sei seu nome, só o que sobrou foi o buraco que ele deixou ao partir. 

Me tornei novamente o habitante das trevas, mas elas não estão mais apenas me perseguindo, estão dentro de mim, me matando de dentro pra fora, pouco a pouco. Não é a minha melhor descrição, reconheço, mas é o que posso fazer aqui nessa escuridão. 

quinta-feira, 24 de março de 2022

O Retorno da Solidão

 "O silêncio desses espaços infinitos me apavora." (Blaise Pascal)

De repente, mesmo num dia luminoso, meu coração se encheu de trevas, e eu fui lançado no mais absoluto silêncio, num abismo aterrador que abriu sua boca para me engolir e cá, no fundo de suas entranhas, eu sinto apenas o desespero e a fraqueza provocada por seu sangue venenoso. Meu coração velava, preparava-se para esse momento, momento em que seria devorado, e agora cá estou, na totalidade da minha solidão, buscando conforto como quem em plena escuridão busca por uma luz que o guie.

Sinto-me profundissimamente sozinho, e a imagem daqueles que já foram minha companhia pulula em minha mente, bem como o sentimento de traição subsequente. Voltar não é uma opção. Mas eu queria um abraço, um daqueles bem apertados, que pudesse juntar novamente todos os fragmentos do meu coração destroçado. E isso que sinto é a ânsia de amar, a ânsia de um coração que já não sabe mais o que o amor, que perdeu essa coisa valiosa num naufrágio no grandioso oceano. Mesmo que uma parte do meu eu deseje voltar a amar um dia ainda sinto muito medo por todas as feridas que ganhei por ter amado demais nessa vida. Bom mesmo seria fechar-me em mim mesmo e nunca mais sentir nada por ninguém. 

Mas ainda sinto essa inflamação no meu peito, ardente, querendo dar-se sem cessar e entregar-se aos amplexos do amado até que nele me transfigure, até sentir o bater do coração do outro no mesmo compasso que o meu. Por enquanto permaneço aqui, em completa escuridão, esperando que os compassos me preencham ou pelo menos me distraiam dessa condenação, que embora em alguns momentos seja de um doce alívio, em outros é da mais terrível tortura, culminando em verdadeiros delírios de onipotência onde minha existência é senão completamente diversa, num mundo utopicamente constituído para que não existam essas solidões, que não haja a dor da estender a mão e pegar somente o ar, sem um peito humano a tocar, somente o infinito abismo a me encarar. 

quarta-feira, 23 de março de 2022

Redenção e Morte

Já passava da meia-noite e o silencio reinava com felicidade em minha rua, os postes de luz amarela brilhando apenas pra mim que ficava na janela esperando alguma coisa acontecer em completa paz e tranquilidade, como companhia recorri à uma sinfonia, uma daquelas grandes obras da humanidade que tem o poder de expressas por meio do som os aspectos mais profundos da alma, me sentindo assim completo já desde os primeiros compassos daqueles magistral coro da Sinfonia dos Mil de Mahler, me arrebatando completamente para os portões do paraíso onde, depois de ouvir o brilhante hino ao Espírito Criador pude me encontrar com diversas personagens a guiar a alma de Fausto pelo reino das bem aventuranças, embasbacado pela delicadeza das palavras do Pater Profundus e da Mater Gloriosa eu não mais estava sozinho, mas ouvia toda a corte celeste entoar hinos de misericórdia e, assim, minha alma se encheu de júbilo numa madrugada silenciosa qualquer que fora transmutada numa experiência metafísica única e indescritível. Essa transmutação musical deixou na minha alma uma marca profunda de beleza idílica, uma catarse do meu espírito que, por pouco mais de uma hora, se elevou ao sétimo céu e contemplou tudo aquilo que desejo contemplar eternamente um dia. 

X

Recebi com uma enorme tristeza a notícia de que o ator Beam Papangkorn faleceu, sendo encontrado morto no seu quarto hoje. O acharam inconsciente e quando o socorro chegou ele já estava morto. Bom, muito embora a distância entre o Brasil e a Tailândia seja abissal a proximidade que eu sinto com eles é algo notável. Trata-se de um dos primeiros atores que eu conheci, no filme Waterboyy que é ainda hoje um dos meus favoritos, e também participou do Project S - Spike, sendo meu arco favorito dessa série. Ver que a vida jovem dele se foi assim, como um sopro, me enche de tristeza. Waterboyy me mostrou que é possível um final feliz pra uma história que podia não dar em lugar nenhum, me fez acreditar um pouquinho no amor. Seu sorriso encantador e personalidade serena me encantavam. Era alguém que eu admirava, com quem tinha uma ligação afetiva, e ele simplesmente se foi... Não é meu objetivo aqui escrever belas palavras sobre a brevidade da vida mas apenas deixar o questionamento, se até ele, príncipe, teve sua vida ceifada com tamanha facilidade, o que não será de nós, meros mortais?

X

Mahler trata em sua sinfonia, de uma ponta a outra as partes cantadas ligadas por um longo trecho orquestral de mais de cem compassos, da redenção pelo poder do amor, o que é uma coisa belíssima em vários aspectos. A invulgaridade das tonalidades usadas transmuta o ouvinte, o homem que contempla uma obra dessa não termina da mesma forma que começou, ele é, por certo modo, possuído pela força do Espírito Criador. Poucos são os que param para contemplar hoje em dia, afinal é uma música que dura mais de uma hora. Mas aqueles que o fazem certamente não se arrependem, saem dessa experiência transformados. Me lembro que ali, no silêncio da madrugada eu me tornei um homem modificado pela força do amor que Mahler transmitia, seja na delicadeza das cordas ou pela força das árias, ou pela coda magistral que encerra a obra com uma visão do Paraíso que é das mais sublimes de todo o universo das artes. 

terça-feira, 22 de março de 2022

Nuvens Brancas

Minha mãe não se aguenta de ansiedade para se mudar logo (temos planos de mudar de estado daqui alguns meses) e ela quase todos os dias me diz isso e me pergunta como me sinto, se compartilho da mesma ansiedade. Eu quase sempre desconverso, tento mudar de assunto, porque na realidade eu já não espero nada da vida, onde quer que esteja, ainda acho que a vida vai continuar sendo o mesmo tédio e a mesma sucessão infinita de decepções. E o que eu deveria esperar? O que vai mudar? 

Se olho pro céu eu vejo apenas as nuvens brancas e felpudas se destacando no fundo azul claro, não vejo a esperança que ela vê, não consigo imaginar como as coisas podem melhorar. Pra mim o mundo não funciona assim, as coisas não melhoram quase nunca, exceto por alguma flutuação puramente randômica da realidade, mas na maior parte do tempo a vida não é muito mais do que uma luta incessante que sequer temos a chance de vencer, mas que ainda assim somos obrigados a lutar. 

Me tornei um cético, não espero nada de ninguém e muito menos da vida. Quero no máximo poder me deitar em algum lugar com sombra e aproveitar o sono profundo de algum remédio, é o máximo que posso querer. Não há muito mais nessa existência miserável que me desperte interesse. 

segunda-feira, 21 de março de 2022

Sonho

Hoje foi um daqueles dias, meus favoritos, em que me dou ao luxo de dormir o dia inteiro, sob efeito de pesados remédios, sem me importar com nada ao meu redor. É um doce regato de graças poder me entregar a escuridão acolhedora do sono profundo, nas fontes cristalinas que em semblantes prateados me trazem os sonhos mais doces que trago em meu coração esboçados. 

Já me referi várias vezes a esse mundo onírico para onde sou transportado, onde me conto ao número dos anjos e príncipes, onde não há diferença entre aqueles que nascem em berço dourado e aqueles que não têm nenhum talento. Lá todos são como devem ser, o ápice do homem: belos, fortes e talentosos, trilhando cada qual o seu caminho conforme a sua vontade. Alguns dançam por entre as cortes de formosos rapazes que fazem companhia aos reis, outros cantam como serafins entoando hinos que nunca cessam em instrumentos de um idílio indescritível a todos aqueles que nunca pisaram os pés naquelas terras distantes, onde Oneiros moldam o mundo de acordo com a vontade mais profunda do ser. 

Lá onde se encontram grandes tesouros, onde não há choro mas o cantar de coros angélicos, onde a beleza se encontra em toda parte. Esse é meu sonho mais poderoso, que me arrebata por algumas horas até o infeliz despertar para a realidade. Lá eu era tão belo quanto os maiores príncipes desse mundo, mas ao despertar eu percebi que tudo não passou de um sonho, agora tão distante e inalcançável, até o próximo adormecer nos braços de um anjo perfeito. 

domingo, 20 de março de 2022

Resenha - Not Me

 Contém SPOILERS!

Que OffGun são um dos maiores shipps da nação blzeira todo mundo já sabe, e por isso mesmo todo mundo ficou animado quando foi anunciado um BL com uma proposta bem diferente tendo eles como protagonistas. 

Not Me conta a história dos irmãos gêmeos White e Black (ambos interpretados por Gun Attaphan, de The Gifted e Theory of Love) que possuem uma ligação profunda desde a infância. Separados pelo divórcio dos pais e morando em países diferentes White retorna pra Tailândia e descobre que seu irmão se envolveu numa confusão e foi deixado em coma, praticamente à beira da morte. Ele fica sabendo por um amigo de infância, Todd (Sing Harit de Slam Dance e The Gifted) que isso pode ter a ver com a sua gangue de amigos, formada por jovens engajados na luta contra injustiças sociais mas que parecem se envolver em coisas erradas nessa luta. 

A gangue é formada por Sean (Off Jumpol, de Theory of LoveSenior Secret Love: Puppy Honey) com quem Black tem constantes desentendimentos, o Gram (Mond Tanutchai, de The Judgement e Boy For Rent) um estudioso que não se conforma com o sistema injusto das leis tailandesas, Yok (First Kanaphan, de The Shipper) um artista muitas vezes inconsequente que busca mostrar na sua arte as injustiças que ele enxerga e Gumpa (Papang Phromphiriya), um tipo de mentor do grupo. 

Eles constantemente saem em missões em diferentes formas de protesto contra as injustiças sociais do meio em que vivem, onde os ricos e poderosos sempre saem ilesos de seus crimes enquanto os pobres não tem sequer o direito de viver com dignidade, vide exemplo o pai de Sean que acabou sendo usado por um rico empresário para tráfico e acabou sendo morto, ou a mãe de Yok que, por sua deficiência, não consegue um trabalho que a respeite.

White toma o lugar do irmão na gangue se passando por ele para tentar descobrir quem o machucou e acaba se aproximando de todo o grupo no processo, especialmente de Sean, com quem Black tinha intensos conflitos mas que acaba criando um laço poderoso com o gêmeo do antigo rival, sem saber que se tratam de pessoas diferentes. Ele precisa se esforçar pra aprender a lutar e agir como o irmão, mesmo com a poucas informações que ele tem, e nesse ínterim ainda precisa participar das missões do grupo, que envolvem perigosas operações de invasão e protesto. As cenas de ação são prodigiosas e muitas vezes os garotos resolvem seus problemas na porrada mesmo. 

A série se destaca pela temática que destoa completamente do comum colegial/universitário que estamos acostumados e por abordar de forma crítica muitos problemas sociais da Tailândia, o que me deixa curioso pra saber como a série passou pela censura do governo militar que o país tem. A crítica é ácida e presente em todos os episódios, onde vemos como a sociedade precisa lidar e reagir contra as injustiças que estão incrustadas na sociedade. Inclusive muitos ativistas de verdade apareceram nas cenas de protestos.

O grande destaque fica por conta da atuação impecável do casal principal. OffGun deu simplesmente um show de atuação. Gun conseguiu interpretar dois personagens completamente diferentes com maestria, mostrando em pequenos detalhes a força da personalidade de cada um, enquanto Off mostrou um personagem com muitas camadas, indo desde a fúria vingativa até o romântico mais meloso.

O casal secundário também não fica pra trás, a relação de Yok e Dan (Fluke Gawin, de Dark Blue Kiss) começa de forma meio conturbada, com Yok praticamente perseguindo obcecadamente o policial que também é um artista que protesta por meio da sua arte. A ligação que ambos acabam criando é fenomenal, eles se entendem por meio de gestos e olhares e, principalmente, pela arte que os une. A química deles é incrível, o sorriso de Yok a coisa mais cativante do mundo e Dan é um personagem com um passado complicado que tem importantes revelações pro contexto da série. 

Com um roteiro inteligente, uma fotografia impecável e uma trilha sonora linda Not Me foi uma grata surpresa, mostrando além de um romance lindo uma excelente crítica social, entregando vários momentos verdadeiramente poderosos e emocionantes e com um final simbólico de uma beleza exuberante essa é uma série completa, que rompeu paradigmas do meio BL (como a costumeira sensação de desprentensiosidade das séries) e entregou uma história cativante do começo ao fim, com picos de adrenalina, ótimas cenas de ação e um romance que não deixa nada a desejar de outras grandes produções. 

Nota: 10/10

sábado, 19 de março de 2022

Sem aporte

Tentei suportar o dia de hoje sem remédios, sem aquela dose diária para pelo menos algumas horas de doce sono, e agora me sinto péssimo. É sempre assim, forçar a encarar a realidade sem a ajuda de uma lente que desfoque os horrores do mundo é sempre uma péssima ideia. O que ficou agora é um profundo descontentamento, uma sensação desagradável de um dia que se perdeu, um dia que forçou sua presença a mim e que me deixou sem ter como reagir, me obrigando a fechar os olhos e suspirar várias vezes, enquanto as horas passavam lentamente. Esse mundo tem a incrível capacidade de me deixar profundissimamente entediado. O que fazer então? Como encarar esse mundo de outro modo senão o de que ele é uma grande chatice e que a vida é apenas uma longa perda de tempo? 

E é em dias assim que me sinto mentalmente vulnerável, sem o aporte psicotrópico do ansiolítico, e me vêm a mente as ideias mais esdrúxulas como me desculpar por algo que me machucou em primeiro lugar, ao que me valho da máxima repetida até a exaustão "nunca peça desculpas por ser quem você é" e que me ajuda a lembrar que eu não devo me humilhar apenas pra ter companhia, mesmo que seja uma sexta à noite e eu esteja me sentindo profundamente sozinho. Ao menos no domingo eu posso encher a cara de Rivotril e não precisar falar ou sentir falta de ninguém. Sim, eu prefiro uma mentira agradavelmente sonolenta do que a verdade desperta do mundo, lamento informar. 

Deve ser por isso que eu continuo me iludindo das mais variadas maneiras possíveis, mergulhando em histórias de amor onde os homens são perfeitos e sempre amam suas mulheres, como se eu pudesse ser amado um dia também. Elas me alimentam, ou melhor dizendo alimentam meu coração com o tipo de mentira que ele precisa para continuar batendo em meio a tanta desilusão. No meio disso tudo surge a pergunta que ouvi numa das séries que acompanho "de tudo que já amei, por que não me amei também?"


quinta-feira, 17 de março de 2022

Sonho acordado

A voz de Henry interrompeu o silêncio desagradável enquanto eu me abraçava e mentalizava alguma coisa que não tem muita importância. Abri o os olhos enquanto a voz cantava os primeiros compassos de uma baladinha que está entre as minhas favoritas. Vi o cantor correr por entre altas árvores de uma floresta atrás de um cervo, e não entendi o simbolismo dessa cena, mas ele me parecia linda. Os cabelos negros caindo em ondas por sobre a testa, a pele clara e perfeita, o corpo ideal e voz como a de um serafim entoando "glórias e hosanas". Tal como a serpente eu fui tomado de inveja e esperei que os remédios fizessem efeito e, dormindo, me tirassem dali e me levassem para aquela floresta.

A voz dele foi substituída pela doce expressão de Nunew, a doçura da sua voz me fazendo sorrir involuntariamente. É o poder que a beleza tem sobre nós, transcende o poder da palavra e nos causa espanto tal que nos calamos diante dela. 

E então eu me imaginei ali, entre eles, falando aquelas línguas tão distantes da minha, cujo entendimento se resume a uma parca meia dúzia de palavras. E então me deixei sonhar, de olhos abertos mas ainda consciente. 

Me imaginei naquele meio, meu corpo perfeito e magro, com coordenação motora para dançar como eles, para sorrir e fazer caretas na proporção exigida de um ator. Me imaginei sorrindo ao lado daqueles rostos que eu vejo diariamente mas que estão tão distantes de mim. Me imaginei sendo belo como eles, a pele clara e sem defeitos, a voz como um sino, talento para ser visto e admirado, para despertar nos outros a mesma inspiração que despertara em mim. 

A música trocou mais uma vez e essa agora fala sobre beijos, eu seria objeto de desejo se fosse melhor, mais bonito, eu seria desejado e não ignorado por todos. Alguém chegaria perto do meu ouvido e diria que sente vontade de me beijar. 

Outra música e agora vislumbro momentos de casais partilhando suas vidas. Momentos felizes e também tristes. Também ao meu ouvido alguém diz: "se soubesse que seria assim teríamos namorado antes". 

Mas esse é apenas um sonho dirigido acordado. Abrindo os olhos eu me vejo de novo no meu quarto. Sem camisa pois a minha barriga grande me fez sentir calor com a camiseta pequena que vesti, agora que poucas roupas servem em mim. E sou confrontado então com a verdade da minha realidade, um universo inteiro distante do sonho que tive, e felizmente os remédios parecem começar a fazer efeito, visto que me sinto um pouco tonto e a voz do vocalista de The Rose ecoa em minha mente pedindo perdão, eu peço perdão por não poder ser melhor. 

O que eu amo é apenas meu, não pode chegar ao outro, assim como o que eu sonho é apenas meu e o outro não pode entender. Para que servem essas palavras então? Elas me ajudam a sobreviver quando esses sentimentos parecem me consumir e me afogar. E, enquanto me afogo, me apego a imagem da beleza, a beleza que eu tanto desejo. E então sou engolido pela escuridão. 

~

Músicas que ouvi enquanto escrevia:

Radio - Henry Lau
Cutie Pie - NuNew
One To Ten - Gavin D
Safe Zone - Billkin e PP Kritt
Sorry - The Rose

quarta-feira, 16 de março de 2022

O vazio e a falta que o outro faz


 (...) Eu era feliz sobretudo quando, na cama e envolvido no cobertor, sozinho, no mais perfeito isolamento, sem ninguém ao meu redor nem um único som de voz humana, começava a reconstruir a vida à minha maneira. 
(Fiódor Dostoiévski)

Vários minutos olhando pra tela em branco, a mente sem se prender a uma palavra que seja. Experimento a estranha sensação de solidão. Se, por um lado, feliz pela minha própria companhia e pelas histórias de amor que me acompanham, o outro também faz falta. Também sinto o vazio de uma mão a segurar a minha.

Mas aí eu me lembro daquela traição, e então percebo que é melhor ficar sozinho, mesmo que em meu corpo ainda fique a lembrança daqueles que se foram. É uma estranha dualidade.

E eu já nem preciso mais dizer o quanto desacredito do outro por isso. Somos criaturas solitárias, condenadas à solidão da nossa própria mente. O que nos diferencia é apenas o grau de percepção dessa solidão, alguns mais ou menos desesperados por essa situação. 

O que é melhor? Estar sozinho ou permanecer naquela companhia que não é capaz de preencher o vazio que habita meu coração. Da experiência que tive eu não sei dizer qual a resposta correta. Estar sozinho e aprender a apreciar a própria companhia é de um valor inestimável. Mas a presença do outro ainda faz falta. O carinho, o toque, as risadas, tudo isso faz falta. 

Porém eu já aceitei que minha condição é a da solidão. Não levo comigo nada além da desesperança no outro. Desesperança, aliás, que se estende para outras áreas da minha vida. Olhando meu reflexo então, na profundidade dos meus olhos escuros, eu vejo o vazio do abismo que se preenche apenas dessa desesperança e solidão, como névoa impedindo de ver o fundo sendo a minha única certeza a de que o abismo me olha de volta. 

terça-feira, 15 de março de 2022

Olhos Fechados

Mais uma manhã, o início de outro dia, de outro dia terrível. Não queria ter acordado, podia continuar a dormir pra todo o sempre, sem ser obrigado a encarar de frente esse mundo horroroso. Não queria acordar, não queria ver os outros, não queria ver o que esperam de mim, não queria esperar nada de mim, eu só queria o fim, só queria o silêncio, só queria a tranquilidade de retornar ao nada, de voltar a inexistência, ainda que fosse coberto pelo manto escuro da morte. Mas ele não vai me deixar voltar ao nada, não agora.

Eu não pedi por essa existência, não pedi por essa vida amaldiçoada, eu não pedi nada disso e, no entanto, fui condenado à viver nesse vale de lágrimas. Eu queria que alguém tivesse misericórdia e me enfiasse uma bala na cabeça, e me deixasse num lugar qualquer, eu só não quero mais ser obrigado a acordar, dia após dia, nesse inferno. 

Estou cansado de me cobrarem uma reação positiva, não tem como, porque não há nada de positivo na vida, é tudo sem graça, é tudo dor e sofrimento, é tudo vazio e sem contorno, é tudo péssimo. 

E quanto mais eu escrevo eu percebo que minhas palavras não têm poder algum. Se tivesse ele teria voltado, ou não teria ido embora. Se tivesse não estaria na completa solidão, se tivesse o que eu sinto em palavras teriam tocado seu coração. Mas existe uma insuficiência fundamental na linguagem, e essa limitação é que impede que o que há no coração seja compreendido por outro coração. É uma insuficiência invencível que nos deixa à beira da loucura presos em nossos próprios mundos sem nunca alcançar o outro. Sozinhos e abandonados, traídos por quem mais amamos. 

Minhas palavras não podem acabar com o mundo, não podem silenciar a criação. Minhas palavras não podem fazer o tudo retornar ao nada. Não há poder nas palavras que brotam da profunda vontade do meu não-ser. Há apenas isso, vontade, vontade de me misturar aos vermes da terra e de por eles ser devorado até não restar mais nada porque, em verdade, já não me resta mais nada.

Só queria então fechar os olhos, e nunca mais abri-los. 

Eu só queria dormir pra sempre. 

segunda-feira, 14 de março de 2022

Fingir

A vida só encontra algum significado na completa dormência da dopada candura, num porre de Rivotril e Diazepam que apagaria um cavalo e que me deixa tonto antes de me fazer mergulhar na completa escuridão silenciosa, e é precisamente nessa escuridão que eu encontro a luz que me guia com mais clareza que a do meio dia: a luz da verdade que esconde por trás da realidade, a verdade de que esse mundo não tem sentido senão na privação dos sentidos, na dormência, na não percepção, pois tudo o que percebemos é, de certo modo e guardadas as devidas proporções, dor em algum nível da existência. 

A vida só não é dor na hora dulcíssima do sono, quando fechamos os olhos para a barbárie da nossa espécie, quando não notamos o fedor da lixeira da miséria humana, quando nos entregamos ao prazer puro e simples de um sonhar onde não estamos presos a essa máquina de morte, onde o sofrimento ficou de fora das páginas que compõem essa história e que, no entanto, não deixa de ser isso, apenas história, e que logo acordamos para a realidade e seus saberes e enigmas. 

E parece que só assim, chapado de tarja preta ou álcool é que conseguimos anestesiar o trauma que é viver, que conseguimos encarar, por mais turva que esteja a visão, ver essa terra de males e não vomitar os próprios intestinos quando nos damos de cara com a verdade dessa terra, verdade nua e crua, fria com a lâmina de uma espada que transpassa nosso coração, ou uma lança que arrebenta nosso coração por trás, empunhada pelo seu melhor amigo. 

Não consigo imaginar a vida senão como uma longa tortura para testar se somos dignos de uma vida eterna pura e sem sofrimento e, no entanto, não sei se forte o suficiente para passar no teste. Sou fraco, e a visão desse mundo me causa ânsia, e eu prefiro dormir e fingir que não existo. 

sábado, 12 de março de 2022

Busca

Eu preciso dar um jeito na minha vida, reagir de algum modo, começar a trabalhar, pensar num mestrado ou algo assim. Eu preciso me movimentar, já fiquei parado tempo demais. Olhando pro tempo que passou eu agora vejo o quanto estive paralisado, sem a menor possibilidade de me mover. Agora, no entanto, eu continuo sem saber como fazer isso. Como seguir em frente? Como dar o próximo passo? Como sair desse lamaçal em que me encontro? 

As noites parecem cada vez mais longas, assim como os dias, eu estou criando raízes nessa casa e não é isso que eu queria. Eu preciso sair daqui, o mais rápido possível. Mas eu não consigo, meus pés não me obedecem mais, meu corpo, cada fibra do meu ser protesta contra a vontade natural de viver. Eu já desisti de tudo no sentido mais profundo do meu ser. 

Não tenho mais amigos como antes, não tenho planos, não tenho emprego, não tenho sonhos, não tenho mais nada. O que me tornei? Uma casca vazia com forma humana e nem essa forma é boa. O que eu deveria fazer? 

Onde estou, onde posso me encontrar? Na janela do apartamento da frente, do outro lado da plataforma, onde eu posso estar? Parece que me escondi, tão profundo dentro de mim que nem eu mesmo consigo achar. E então perdi-me, perdi-me por entre florestas escuras, entre o canto das sereias e entre o bater de asas dos anjos, perfeitos como deuses, o mundo todo sendo um espelho onde vejo a bestialidade do meu ser. Onde me escondi? Onde posso me achar? 

Estou perdido, em todos os sentidos possíveis. Amanhã preciso levantar cedo e sair, tenho obrigações a cumprir, mas eu não quero, eu quero dormir, dormir e nunca mais acordar se possível. Meus dias têm se resumido a isto, a uma vontade de imensa de não viver, de não ser, de me desfazer e voltar ao nada. Não queria acordar, não queria me olhar no espelho, não queria, não queria estar tão triste. 

E se acaso não souberes em que lugar me escondi
Não busques aqui e ali, mas se me encontrar quiseres
A mim, buscar-me-ás em ti, buscar-te-ás em mim.
(Santa Tereza D'Ávila)

sexta-feira, 11 de março de 2022

Deuses e Feras


"Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera."
(Augusto dos Anjos)

Há muito tempo não tiro uma foto minha, lembrou um amigo próximo, e eu respondi que não conseguia nem me olhar no espelho, quem dirá tirar uma foto. Acontece que há muito eu já não vejo resquícios de beleza em mim, parece que fui abandonado pela beleza, que já não sou digno de sua presença em minha existência. 

Desde que engordei eu tenho odiado meu corpo, odiado com todas as forças, se pudesse enfiaria uma faca na minha barriga e arrancaria eu mesmo essa camada de gordura que agora enche as minhas roupas e me faz sentir como o homem mais feio do mundo. Nem meu rosto, que nunca fora lá muito bonito, escapou, agora cheio e preenchido como uma bolacha não há ângulo que fique bonito, com ou sem barba, nada que se aproxime dos belos rostos perfeitos dos atores que eu sigo, todos lisos e sem grandes imperfeições, angulares e belos no seu conjunto e perfeito em cada pequeno detalhes, dos olhos puxados aos lábios bem desenhados. Em mim não, os lábios que poderiam ser belos ficam escondidos pela barba, mesmo quando eu a tiro, numa camada grosseira de pele digna não de um anjo, mas de um demônio raivoso. 

Meu corpo todo é coberto por uma camada espessa de pelos, eu pareço com um animal, e por mais que eu tente cuidar, ou tentava, ainda parece que a selvageria não pode me deixar. Agora, além dos pelos há também uma camada de gordura ao redor da minha barriga que me deixou enorme. Nada mais fica bem em mim quando me visto e, quando fico sem camisa a coisa só piora. Me tornei disforme, invejando os corpos esguios e esbeltos, magros como devem ser. Não há discurso que me possa fazer aceitar esse corpo horrível. E tudo que eu desejava era a beleza, por mais mínima que fosse, e o que recebi foi a completa bestialidade. 

Será isso a influência má dos signos do zodíaco, ou apenas a confluência natural de um mundo indiferente que se esqueceu de mim, ou uma condenação não por algum pecado, mas por alguma infâmia que eu tenha cometido e me esquecido? 

A minha imagem me causa repugnância, e ao me ver no espelho me sobe uma ânsia, eu tenho nojo da minha aparência, nojo do que me tornei, e como a serpente da inveja eu só posso sonhar com as belas águias que voam pelos céus em seus corpos perfeitos. 

Em minha mente tenho como referência os anjos perfeitos de pele clara e corpos esguios, vozes de violino e o portar-se de lordes. Eu agora me movimento com a graciosidade de uma morsa. A beleza me abandonou, e ri-se de mim com seus corpos de fadas. Eu não sou fada, sou fera, sou monstro, aberração. 

Como podem ser eles tão lindos assim? Como podem ter na pele a perfeição dos anjos? Como podem ter as vozes das sereias que encantam os marinheiros? Onde é que há gente no mundo? Não são todos senão príncipes em suas vidas, onde é que há gente de verdade? Não são homens comuns.

Mas eu também não o sou. Eu com meu complexo de inferioridade e cercado de antidepressivos sou menos do que homem, não podemos estar sob a mesma categoria. Eu não sou mais do que uma fera com forma humana, e uma forma que por si já foi destruída. 

Serão eles filhos dos deuses de outras eras? É bem possível, já que sua beleza reluz como a de Apolo e Dionísio, seduzem como Zeus  e Ganimedes. Eu sou descendente de outras criaturas, dos monstruosos hecantonquiros, feras bestiais que em nada pareciam com os humanos. Estamos em lados distintos desse campo, embora lutemos pelos mesmos ideais não somos iguais. Tampouco vivo em palácios como os centímanos após a titanomaquia, eu jamais seria útil numa guerra dessas proporções. Já é difícil lutar as minhas próprias guerras. 

E então aqui, sozinho nessa praia da minha mente eu me pergunto, onde há homens de verdade no mundo?

Poderão as mulheres não os terem amado
Poderão ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza
Argh! Estou farto de semideuses
Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 10 de março de 2022

Resenha - Semantic Error

Contém Spoilers!

Um romance que vem de onde menos se espera, que parece mais com um erro de programação que acabou dando certo no final, assim pode ser definida a história de Semantic Error, o novo BL coreano que conquistou corações por estas terras. 

Chu Sang Woo (Park Jae Chan) é um calouro de Ciências da Computação que raciocina logicamente, prezando pela razão, pelas regras e com um forte senso de responsabilidade. Ele acaba tendo que fazer um trabalho com alguns veteranos do curso de Artes mas nenhum deles apareceu pra ajudá-lo, então ele fez tudo sozinho e fez questão de tirar o nome dos outros do projeto, explicando na apresentação que fez isso porque ninguém tem o direito de eximir de suas obrigações. Com isso ele acabou atrasando em um semestre a formatura de Jang Jae Young (Park Seo Ham), um veterano despreocupado com uma personalidade completamente diferente da de Sang Woo. Como vingança ele resolve ficar na cola de Sang Woo e perturbá-lo com as coisas que ele mais odeia, e assim eles acabam se aproximando.

De início a relação de ambos é cheia de faíscas, com Jang Jae Young com raiva por não ter se formado e Sang Woo tendo sua rotina perturbada pelo veterano. Coincidentemente Sang Woo procura um designer para trabalhar com ele num projeto de jogo para smartphone, e escolhe trabalhar com Jae Young sem saber.

Depois de muitos desentendimentos eles começam a perceber um sentimento crescendo, e ambos interpretam isso de formas diferentes. Jae Young aceita melhor que começou a gostar do outro e decide tomar a iniciativa de se aproximar usando o projeto do jogo como desculpa. Sang Woo por outro lado não lida bem com seus sentimentos e tenta racionalizar a situação, sem muito sucesso, e acaba deixando o outro se aproximar, enquanto seus próprios sentimentos vão crescendo. 

A série mostra esses dois lados muito bem, o racional e o emocional, e como cada um vai aos poucos aceitando que começou a gostar do outro. Agora, entre projetos e propostas de trabalho eles devem decidir se vão dar uma chance aos seus sentimentos ou não. 

A forma como Sang Woo vai amadurecendo é muito bonita de se ver, para alguém que não pensa fora de sua rígida rotina para alguém que aceita que está apaixonado e que quer ficar ao lado do veterano. Ele aos poucos vai aceitando esse erro na sua programação e percebe que não pode mais viver sem o outro. 

Park Jae Chan é simplesmente a coisinha mais fofa em tela, mesmo quando era sério e centrado, e ver ele sendo tímido ao mesmo tempo que dá alguns passos no relacionamento foi lindo de se ver. Park Seo Ham é um homão incrível e ver ele indo atrás do outro é realmente o sonho de qualquer um. 

A Coréia tem apresentado muitos projetos nos últimos tempos, e pouco a pouco eles ganham mais espaço e tempo de tela. Os episódios de Semantic Error são maiores que a maioria dos coreanos, por exemplo, e claro que isso abre espaço pra um desenvolvimento melhor dos personagens, coisa que os coreanos fazem muito bem com a sua experiência com os longos episódios de doramas. 

O resultado é uma série ainda curtinha, mas muito gostosa de acompanhar com um casal super harmonioso que tem uma ótima química em tela e que foi muito bem desenvolvido mesmo com o tempo ainda limitado de tela. Uma excelente recomendação para quem quer ir além dos BLs tailandeses. 

Um ponto mais do que positivo é que a produção não foi tímida em mostrar a aproximação deles. Os beijos foram lindos e os atores realmente têm muita química juntos. Uma pedida obrigatória pros amantes de BL.

Nota: 09/10

terça-feira, 8 de março de 2022

Resenha - Gen Y 2

Contém Spoilers!

Depois de uma excelente primeira temporada os ânimos estavam exaltados para a continuação de Gen Y. A série tinha apresentado um grande leque de personagens carismáticos e histórias cativantes e isso era o esperado para a segunda temporada. 

Recapitulando, tivemos a volta de Pha (Big Thanakorn, de My Mate Match) no último episódio, ficando no maior climão já que agora Wayu (Bas Suradej) está num relacionamento com seu amigo Thanu (Dun Romchumpa). E com isso tivemos a revelação do grande mistério da primeira temporada que era o motivo para ele ter terminado com Wayu de uma forma tão abrupta. Além disso tem a misteriosa ligação entre Thanu e Phai (Pon Thanapon) que parece continuar forte.

Mark (Kimmon Warodom) e Kit (Copter Panuwat) estão firmes e fortes no seu relacionamento ao passo que Pok (Bank Toranin) e Tong (Bonus Tanadech) ainda precisam acertar que tipo de relacionamento eles têm, além de aparar as arestas que ficaram abertas. 

Bom, as portas estavam abertas para eles fazerem uma grande temporada com esse enredo, mas antes de iniciarem as gravações a produção teve a brilhante ideia de fazer uma votação online pra decidir com quem Thanu ficaria no final das contas, Wayu ou Phai. As fãs do shipp DunBas votaram em peso e essa opção venceu, no entanto a série é baseada numa novel, ou seja, o final já estava decidido e mudar isso no último instante foi uma escolha arriscada. 

Dito e feito, o resultado foi que o plot do destino protagonizado por Thanu e Phai foi jogado no lixo com a desculpa de que Thanu poderia escolher seu próprio destino fazendo a opção de ficar com Wayu ao invés disso. Sandee (Bank Thanathip) que faz as vezes de agente do destino até tentou juntar os dois mas as coisas só deram errado e ele saiu como um tipo de vilão na maior parte da história, isso até repentinamente mudar e aceitar as escolhas dos outros. Não me entendam errado, eu realmente gosto da história de eles mesmo fazerem seu próprio destino, mas a forma como fizeram isso deixou muito a desejar, com Phai jogado pra escanteio e tendo de fazer as vezes de conselheiro amoroso da turma toda aparentemente sem se importar com os sentimentos que ele tinha por Thanu. Bonito na teoria mas na prática não foi bem executado e só pareceu que o personagem não tinha importância mesmo e até a chance de fazerem um par com Sandee não foi pra frente.

Mark e Kit já estavam bem resolvidos  já que sua história tomou boa parte da primeira temporada e eles podiam muito bem servir como conselheiros pros outros agora, mas tiveram que passar por um drama bobo pra colocar em prova sua capacidade de ficarem longe um do outro. Resultado: o que era um casal fofo que finalmente tinha se acertado virou uma chatice.

Pok e Tong foi só sofrimento, mas em questão de desenvolvimento pelo menos a história deles fez sentido, passando por um arco de redenção até finalmente ficarem juntos. 

Já o retorno de Pha não gerou o conflito que prometeu. Ele voltou doente e ficou a maior parte da temporada no hospital e não teve o contraponto com o Thanu deixando Wayu confuso, o tempo todo Wayu esteve certo de estar com Thanu e não sentir nada mais por Pha, mesmo quando ele estava no leito de morte. Parece que o personagem voltou só pra morrer e pronto. 

E já que optaram por colocar Thanu e Wayu como casal principal deveriam ter feito isso melhor, mas o relacionamento deles simplesmente não evoluia. Todo episódio era só uma sucessão de cenas dos dois prometendo alguma coisa e se encarando no maior clima até que alguma coisa os separasse. O beijo demorou a acontecer, a cena de amor então, nem se fala.

Como pontos positivos tivemos pelo menos muitas cenas fofas, muito embora as de Thanu e Wayu tenham beirado ao cansaço muitas vezes, ninguém pode negar que houveram muitos momentos bonitinhos de todos os casais. Pok e Tong com as cenas mais quentes de todas e Mark e Kit continuando sendo os fofos que são. 

Não houve nenhuma grande mudança na fotografia ou na trilha sonora da temporada mas ambas são boas e passam uma imagem alegre muitas vezes descontraída. 

Em resumo foi uma temporada fraca, que não soube trabalhar o material original e caiu na monotonia ao mudar a novel, com alguns poucos momentos fofos que deixaram o coração quentinho, mas ainda assim longe da excelente construção que teve a primeira temporada. 

Nota: 05/10


segunda-feira, 7 de março de 2022

Viagens e Demônios

Acompanho os acordes delicados de uma canção tailandesa cujo nome em nem consigo pronunciar, mas ela é doce e certamente fala sobre o amor, nisso a linguagem universal da música não falha. Ela me acalma me transportando para um mundo diferente, uma terra verde e úmida, de águas azuis e hipnotizantes. longe das grandes cidades, numa pequena aldeia no interior da Tailândia. 

Não é meu habitat, eu sou um garoto da cidade, e com certeza iria preferir passear pelas ruas movimentadas de Bangkok na esperança de encontrar algum idol que eu tanto admiro, mas ela ainda me transporta pra esse universo vegetal que me acalma de maneira quase sobrenatural. A música calma é a parte sobrenatural que, na minha vida, se contrapõe aos gritos dos demônios nas madrugadas. 

A parte humana é a que eu me entupo de remédios para dormir e ignorar a verdade latente que se revelou na última noite: um demônio habita minha casa, demônio de barulho e desordem, de contenda e ira irreprimível. 

Tenho estado viciado em fugir da realidade, em me transportar para o universo das músicas, milhões de vezes mais agradável que a verdade latente que me ameaça a vida a cada noite, espreitando nas sombras com uma faca prestes a sangrar o meu pescoço num ritual satânico de oferenda aos demônios de hordas mais poderosas. 

Minha playlist e meus remédios são a linha tênue que me separa dessas criaturas horrendas, e as histórias de amor são a cristalização alquímica que a música empreende resultando num mundo de ouro onde essa realidade não existe mais. 

Essa realidade é feia demais para ser vista sem algum tipo de droga, sem algum tipo de filtro. É melhor não ver as coisas como elas são, ou o demônio pode nos devorar. Quem me dera descrever, os tesouros tão sublimes, que há no adormecer. 

domingo, 6 de março de 2022

Crise da Manhã

Eu acordei cedo, mas não tanto quanto costuma ser no domingo, como não iria pra missa me dei ao luxo de dormir por mais duas horas, assim chegaria lá com tempo suficiente pra formação que iria acontecer após a celebração. Mas quando me levantei logo percebi que algo estava errado, eu senti aquela ressaca forte de novo, não a ressaca normal de quem encheu a cara na noite passada, mas a ressaca de quem voltou a tomar os remédios para depressão que dão um sono anormal e que às vezes me deixam assim, baqueado no outro dia, como quem foi massageado por um trator, a cabeça grande e pesada.

Comi e tomei um banho, mais lento do que o normal, não conseguia manter a mente presa a nada, tudo ainda meio enevoado, odeio essas ressacas matinais que o antidepressivo para bipolar me dá. Finalmente consegui me enfiar numa roupa e sentar no sofá esperando pelo carro. Coloquei uma música baixinha para me animar um pouco, na esperança de que ela me despertasse. 

Quando cheguei lá, as pessoas já saíam da missa, a rua apinhada de gente, e me meti no meio delas procurando um lugar pra me sentar enquanto esperava o início da formação. Encontrei alguns conhecidos, trocamos algumas palavras rápidas pois eu realmente não estava em condições de me dedicar mais do que o necessário em nenhum assunto: precisava guardar o pouco de energia que restava para a formação que ia dar.

Me sentei depois que o movimento diminuiu, e foi aí que começou. A garganta travando, a respiração de repente ofegante. Uma crise de pânico, não de noite, mas pela manhã, e não na minha casa, mas na igreja, cercado de estranhos conhecidos. 

Algumas pessoas se aproximaram, sem perceber o que se passava comigo, eu tentando ao máximo suprimir qualquer sinal do ataque enquanto conversávamos, mas eu não estava mais normal. Minha voz falhava conforme eu forçava a respiração voltar ao normal, vários tons abaixo do meu normal, às vezes arfava e olhava para longe, sem coragem de olhar nos olhos de ninguém. Não queria que ninguém percebesse. Minhas mãos tremiam e eu não conseguia nem mexer no celular direito. 

Entrei em completo desespero e senti meus olhos saltarem e se apertarem conforme a crise piorava. Era a mesma sensação de estar sendo engolido por um oceano escuro, mas dessa vez com muitas pessoas ao meu redor. 

Quando eles finalmente se afastaram, o que durou uma longa meia hora, eu consegui me concentrar mais um pouco, voltando a respirar de modo pesado e desigual, a garganta travando ainda mais e com dificuldade eu consegui chamar um carro pra me trazer de volta pra casa. Uma hora já se passara e eu continuara sentado ali.

A viagem foi mais longa do que o normal, mas pelo menos o vento frio contra o meu rosto me deu uma leve sensação de melhora. Consegui descer e ir direto pro quarto, largando a mochila em cima da cama e me deitando, onde fechando os olhos eu me obriguei a dormir e a ser engolido pela escuridão, adormecendo enquanto a crise passava, a formação já distante demais a essa hora. A escuridão me envolvendo e me reconfortando num doce abraço. Finalmente a crise terminava. 

sábado, 5 de março de 2022

De um dia qualquer

Foi um sono inquieto no início da manhã, acordei e voltei a dormir várias vezes, meus sonhos super povoados com pessoas com quem já não converso mais, a agitação que se mostrou em mim traindo minha decisão de me afastar de tudo aquilo que não concorde com meus ideais. Apesar da euforia da companhia ainda prefiro a minha solidão consciente. 

Acordei, por fim, com o barulho das pessoas que finalmente acordaram e começaram a se mexer, e eu deveria levantar e estudar um pouco mas a preguiça me mantém preso na cama, gostosamente enrolado aproveitando o calor retido em contraposição o frio gritante que passa pela fresta da janela que eu esqueci de fechar ontem à noite. 

Olho para os livros ao meu lado na cama, e sinto qualquer sombra de animação para lê-los se desfazer como se inesperadamente fosse lançada sobre ela uma luz ofuscante. Minha leitura não tem rendido nos últimos dias, tenho encontrado dificuldade pra me concentrar no que quer que seja. Muito mais fácil deixar a mente vagar livremente, seja nos acordes das cantatas de Bach que tenho ouvido ou me perder no corpo escultural do Wonho que o Youtube tem me sugerido. Parece que o universo conspira contra minha ideia de me tornar alguém inteligente. De fato as curvas do Wonho são mais interessantes que o futuro do pensamento brasileiro. 

Levanto o olhar por um instante e vejo, pouco acima da minha cabeça, uma longa fila de remédios para emagrecer e suplementes vitamínicos, na esperança de que isso me ajude a conquistar um corpo um pouco melhor, ainda resistindo a opção de fazer exercícios regulares por motivos de ter pavor do ambiente de academia e pensando no quanto me deixei levar pelos ideais de beleza da internet, pelos corpos perfeitos e lindos dos atores tailandeses e idols coreanos, em como esse padrão inalcançável imprimiu em mim um ódio profundo e genuíno por cada aspecto do meu corpo. Poderia agora desfiar um rosário de razões para não me sentir assim mas seria tudo mentira, a verdade é que esse ideal é real, e nada além dele por me agradar, e como não há possibilidade de alcançá-lo eu novamente me deprimo. 

Mais uma vez encontro espaço pra analogia da serpente que, rastejando pela terra, só pode sonhar em voar pelos céus como a águia que domina os céus que ela vê com tanta admiração. Talvez os ideais sirvam apenas para inspirar e não para serem alcançados, e apenas isso. 

Preciso encontrar forças para encarar o dia, pois embora esteja em hipomania a minha única vontade é a de dormir o dia todo sem prestar atenção a mais nada a minha volta, mas sobre isso eu já falei várias vezes e tenho tentado não me repetir (muito), mesmo sabendo que volta e meia eu volto aos mesmos assuntos já que minha alma se vê tomada das mesmas dores, não há muito o que fazer sobre isso.