terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Sobre quem deveria ter sido


Considero de um simbolismo ímpar, a chuva forte nesta tarde do último dia no ano. O ar se encheu de umidade, o cheiro da terra molhada perfumando o mundo. Gosto disso. Gosto ainda mais do efeito que a chuva tem em mim. Alguns deve saber que me sinto especialmente reflexivo sob o som das gotas nas telhas e janelas, o som dos trovões e as belíssimas luzes dos raios. 

A chuva tem esse poder sobre mim pois ela me torna consciente de minha imensa pequenez. Gosto disso, ela afoga violentamente qualquer traço de orgulho e ganância que possa haver em meu coração. Ao nos deparamos com uma coisa tão grandiosamente poderosa quanto uma tempestade nós percebemos, que não somos nada e que nada que possamos conquistar se equipara as forças titânicas da natureza. Essa beleza não me assusta, antes disso, me faz perceber a beleza do imenso universo ao qual pertenço.

Pois bem, o último dia do ano. A reflexão, uma certa nostalgia e ansiedade pelo que vêm por aí são inevitáveis. Vários problemas podem aparecer, afinal é época de todos compartilharem as suas melhores experiências, criando em nós uma sensação de que nos é necessária uma vida perfeita, de sorrisos, praias e brindes. Quando nos damos conta de que isso é apenas um trecho ínfimo da existência, apenas uma parcela fugaz da nossa cota de felicidade, acabamos caindo no desespero. 

Desespero, naquele sentido que tinha Kierkegaard de que buscamos quem somos de verdade, e ao deparar quem somos com quem gostaríamos de ser mas ainda não chegamos lá, caímos em sofrimento. 

Por isso as festas de final de ano não têm para mim um significado muito elevado. Não vejo o ano novo como uma grande mudança além das assinaturas nos documentos oficiais e nos dias dos feriados, descansos merecidos em meio as exaustivas rotinas de trabalho. O ano novo não tem poder de ser um novo ciclo pois, quando bate a meia noite o mundo não se transforma. Apenas alguns números no calendário se modificam. Não acredito muito em mudanças mágicas. A mudança é um processo contínuo, de amadurecimento, conhecimento, e também uma parcela de transformações randômicas vindas do universo. A mudança é um processo, lento e contínuo, que os brindes e abraços do ano novo não parecem perceber.

Passadas as comemorações e, diga-se, a ressaca, percebemos que nenhuma mudança substantiva aconteceu. Se encaramos o ano como um ciclo, ótimo, que um reinicio signifique mudanças, passos, novas noções e decisões, mas é bobagem pensar que os fogos estourados nas praias trarão alguma coisa por eles mesmos. 

Não obstante há sempre mudanças que não podemos controlar. Forças superiores, vontades do coração do outro... Isto está fora de nosso alcance. No mais, termino o ano bem diferente do que o comecei. Consciente de minha solidão, abandonado por alguns de meus amigos mais próximos e abraçado por outros. 

Ciclos, mudanças. 

Aquele rio que nunca pára de fluir. 

Pantha rei

Minha virada de ano contará com os sorrisos de meus pais, num esforço de tornar nossa noite mais agradável. De minha parte, a gratidão pelas mudanças que conquistei, por saber que hoje sou forte e não mais aquele homúnculo débil de meses atrás. Gratidão imensa por aqueles que ficaram, que me consolaram, que me fizeram rir, que pediram minha ajuda fazendo com que melhorasse. Gratidão por esse amor, ainda misterioso mas, que de alguma forma me aquece o coração. De minha parte, um sorriso por saber que, mesmo sozinho me sinto bem e, um sorriso por ver que ser abandonado por aqueles que na verdade me odeiam não é tão ruim assim. 

Pois bem, sei que ao acordar amanhã não haverá nenhuma mudança mágica. Mas sei que continuarei nesse processo de, aos poucos, me tornar quem eu sempre deveria ter sido: Gabriel! 

Atualíssimo

''É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a “sociedade injusta” vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a consequente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, “a sociedade”.

Olavo de Carvalho. Direto do inferno.
Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Da lei do retorno


E tudo retorna ao nada. O mundo flui em sua inextinguível onda de transformações, fazendo cair tudo aquilo que um dia se ergueu por sobre os montes. É isso que vejo, com estes olhos confusos e marejados pela dor.  Não posso, infelizmente, me furtar a estas transformações. Como homem devo encarar de frente as mudanças que o mundo me dá, encarar as ondas deste rio que sempre muda, que nunca pára de fluir.

Mas há também um cansaço que não diminui, antes disso, parece sempre aumentar. É como se algo pouco a pouco fosse me sugando as forças, fazendo-me desfalecer sobre meus próprios pés... Me sentei há pouco antes da missa começar, e enquanto encostei minha cabeça na parede, senti minhas forças indo embora, apaguei por alguns instantes, e foi como se repentinamente tivesse sido violentamente golpeado diversas vezes, até que meu corpo não fosse mais do que uma massa disforme de carne e sangue. Minha mente se reduziu a um pudim, não consigo pensar em nada mais complexo do que um copo de água ou de uma boa noite de sono. É meu limite. 

Limite atingido depois de tanto lutar, depois de tanto esforço, tanta cobrança desumana. É o resultado de uma corrida, que fiz como se não soubesse meus próprios limites, dessa forma acabei superando-o, mas agora o cansaço e a fadiga cobram do meu eu uma taxa, uma taxa alta demais. 

Preciso dormir, mas as obrigações não param de chegar... Meu corpo já funciona no automático mas ainda assim há algo no mundo que tenta me forçar a agir, mesmo estando sob efeito do torpor e de uma melancolia que já parecem parte de mim. 

Não sei, no entanto, até quando eu vou conseguir fazer assim. Temo que a qualquer momento eu simplesmente pare de funcionar e apague, até que consiga restabelecer as minhas forças, se é que isso é possível... E, mesmo assim, ninguém parece notar o quanto estou cansado. Todos comentam minhas olheiras enormes, minha voz de desânimo, mas não entendem o quê isso significa.

E o quê isso significa? Significa que estou cansado, já não aguento mais lutar... Estou prestes a perder a guerra, caindo de exaustão na praia, esperando que o exército inimigo marche sobre minha cabeça e pisoteie o meu sangue a manchar a terra. Ao longe não escuto mais os gritos de meus comparsas, senão que fui deixado para morrer no exílio, condenado. Eis o decreto que cumpro: vaguei solitário os bosques e agrestes escarpados seguindo a voz do eros, para ser por seus asseclas massacrado nas areias até então inexploradas. Combati o meu combate com uma ferocidade que desconhecia em mim, mas é chegada a minha hora!

E tudo
retorna
ao nada.

O exército ergue-se nas pedras e acabou em cinzas. O amor acordou em meio a cantos e tornou a dormir no silêncio do abandono de sua alcova vazia. Os grandes perderam seu poder para as mãos dos fracos e incapazes que, por sua vez, deixaram-se cegar pela grandeza e esqueceram-se de sua pequenez, para caírem de maneira ainda mais vulgar que seus antecessores. Morreram, simplesmente. Onde há vida, há também a morte. Onde há grandeza haverá certamente a decadência. Onde há riqueza haverá miséria. Não há nenhum poder grande o suficiente para não ser destituído por outro que saia de seu próprio ventre. Até as grandes rochas cedem ao poder da água. Tudo retorna ao nada. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Véspera de Natal


Desde ontem as pessoas começam a se achegar aqui na minha rua, trazem malas, crianças e travessas de comidas, será um Natal farto. Meus vizinhos não desligam ou sequer abaixam o som há mais de 24 horas, como virá a conta de luz no fim do mês? Amanheci ouvindo Tim Maia, e agora reinam os Barões da Pisadinha. Você, leitor, que terá contato com esse texto daqui alguns anos não se preocupe em saber quem são, ninguém importante. As músicas não seguem um padrão, apenas tocam qualquer coisa cujo barulho lhes agrade, parecem animais. 

Minha mãe se animou para as festas desse ano. Já há algum tempo que minha família não comemora nada em particular. Não sei bem como reagir. O esforço dela é tocante, e isso me emociona, queria participar e ficar ao lado dela, fazê-la sorrir como vejo que ela tenta me fazer sorrir. Mas eu não consigo. Esse clima de festa simplesmente não me agrada em nada, na verdade, esse ambiente me causa repugnância!

As músicas, as luzes, o ambiente saturado de conversas e burburinhos. Tudo uma desculpa dos homens para lhes distrair das suas misérias. 

Tudo o que vejo é decadência e não fosse pela Missa de Natal, a única celebração que realmente importa para mim, eu sequer sairia do meu quarto ou me dignaria a ficar acordado, ouvindo as abominações cheias de desejos vazios de paz e prosperidade que, sinceramente, de nada me valem. Votos vazios, feitos por pessoas vazias em festas mais vazias ainda. E estou cansado de vazios, francamente não me importo com nenhum dele, o único vazio para o qual eu ligo é aquele que me consome, o meu próprio vazio. 

Questões


Por que continuo sentindo esse vazio? Por que nada me completa? Parece que nada é capaz de preencher isso que falta bem no âmago de minha existência. Em minha alma há um vazio que nenhum álcool, nenhuma companhia superficial pode completar. E eu continuo aqui, sendo consumido por esse vazio, vazio de falta de amor, que corrói cada fibra de meu ser. O vazio só aumenta. Tudo que encontro é vazio. Um vazio que nada parece completar.

Ah, quem haverá de compreender meu amor? Que coração poderá me compreender? Meu ardente coração anseia por algo, e eu não sei o quê... Fico aqui a sonhar, com aquela boca, com aquele beijo... E nada parece completar meu vazio.

O que é o amor? Ele realmente existe? Há algo, como dizem, maior e mais forte do que tudo, capaz de superar o tempo e até a mais longínqua das distância? Há algo mais forte que a morte, que supere a solidão e sufoque o abandono? Há algo que preencha tamanho vazio, que seja a resposta para tantas indagações, que seja o remédio para tantas dores? Há algo que não se deixe estremecer pelo ciúme e a desconfiança, que não se incomode com a monotonia, que a cada dia se renove e renasça com a força de um raio de sol? Haverá luz para as trevas em que vivem os homens que caminham, buscando algo que não sabem o que é pois esqueceram-se do amor?  Há algo que supere o entendimento dos grandes, que vença as guerras, brigas e contendas num abraço apertado e num beijo apaixonado? Existe uma espada poderosa o suficiente para romper os laços de ódio que nos unem? Algo que supere toda dificuldade, toda adversidade, toda discussão boba, toda confusão egoísta?

Tanto vazio me assusta. E eu me fecho dentro de minha realidade, mas é uma realidade que aos poucos desmorona. O medo me desespera. Quero algo que me dê segurança... Mas parece que nada nesse mundo é certo, tudo é mudança, pantha rei, apenas isso.

É um abismo, repleto de vozes, mas ainda assim vazio. E o abismo que contemplo me olha de volta, tornando real aquela presciência de Nietzsche... Presciência maldita de uma realidade vazia, de uma humanidade que não consegue se entender, de homens separados em suas pequenas mentes distorcidas.

Talvez seja está minha sina, minha paga por algum pecado tão abominável que nem sequer me lembro. Condenado a ser da estirpe dia condenados a cem anos de solidão que não terão uma segunda chance sobre a terra.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Uma retrospectiva, talvez?


Quantas obrigações uma vida pode suportar? A quantas humilhações somos obrigados a nos sujeitar para ter algum prazer nesse mundo? 

Exigem ensino médio, faculdade (um que dê dinheiro), um bom emprego, carro, família estável, um lugar para morar sem ser junto com os pais. E isso bem no momento em que começamos a cristalizar a nossa personalidade. Somos obrigados a dar conta de todas essas demandas se quisermos "ser alguém". Mas pra ser alguém precisamos dar conta de tudo isso com um emprego exaustivo e humilhante de R$1.200, 00 na carteira sem mais direitos além de uma pressão gigantesca e terrorismo barato. 

E aí o tempo começa a passar. O cansaço começa a aparecer... Dores, tremores, lágrimas que não podem ser contidas. O sorriso alegre se torna um aceno dos lábios, fraco e mentiroso. Parece que tudo que nos resta são dias mais ou menos e dias horríveis. E é assim, nunca estamos felizes, apenas transitando entre o tédio e o cansaço. 

E continuamos com o sonho das conquistas, e pra conquistar nos sujeitamos as mais brutais humilhações que nossos chefes podem nos dar. Não importa a saúde, mental ou física, é bobagem. Importam os resultados, as metas, as notas, os relatórios... Demônios! Não passam de monstros, súcubos e íncubos e nos sugar a essência desde o brilho de nossos olhos até o tutano de nossos ossos.  De qualquer forma precisamos ser alguém, ou alguma coisa, e nos cobram que sejamos alguém, ou alguma coisa, mesmo que quando nos olhemos no espelho não consigamos sequer nos reconhecer. Quem é esse que me olha do espelho? 

Tenho de conquistar algo mas ainda não sei o que é. Ainda não entendi o que os anseios do meu coração gritam para mim, infelizmente o mundo tem gritado alto demais para eu conseguir ouvir... Minha maior vontade hoje não é comprar alguma coisa, muito embora eu esteja com dívidas monumentais por conta do descontrole que sinto toda vez que a frustração me bate na porta. Mas não, não quero conquistar ou entender o mundo. Há muito desisti desse objetivo. O máximo que posso querer é entender a mim mesmo. E isso já tem me custado um bocado de esforço... 

E assim vai acabando mais um ano. Ou foi o ano que acabou comigo? 

Lembro de começar 2019 indo todas as quintas na terapia, reclamar da solidão que sentia na companhia de um certo alguém que, me oferecendo o calor de sua presença não me oferecia companhia de verdade. E eu parti para outra. Encontrei companhia, achei meu lugar no mundo! Parece que, por um breve instante eu finalmente tinha encontrado aquilo que tanto procurava. Ou ao menos era isso que eu pensava quando estava rodeado de pessoas, sorrindo e brincando, todas as noites madrugada a dentro. Mas eu estava errado. Não tinha companhia e sequer tinha encontrado meu lugar. Não passou de uma ilusão.

E quanta ilusões não foram caindo este ano? O que era amor se mostrou carência, o que era amizade se mostrou ódio e rancor, o que era certo e promisso se mostrou uma decadência absoluta. Se comecei o ano fugindo de um amor que me destruía, sorrindo e cantando, esse ano eu termino no silêncio de minha própria solitude. Tudo se inverteu. E eu termino o ano completamente diferente de como comecei. Feliz por não ter me vendido. Feliz por não ter sido pisoteado tanto quanto queriam. feliz por ter tido forças para retrucar. Exausto, irritado, sentindo por algumas pessoas um ódio que não sabia ser capaz de sentir, é verdade, mas feliz. Sozinho, e feliz por estar só, porém muito bem acompanhado. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Névoa matutina


Parece que há algum tipo de força no universo, queiram chamá-la de destino, de acaso, de deus, de tudo, não importa. Há algo que brinca com nossas vidas, como marionetes nas mãos do titereiro. 

Quase consigo ouvir, quando fecho os olhos para tentar conter as lágrimas em público, a risada metálica de alguém que se diverte com nossas desilusões. É como um elástico, que se estica numa onda de alegrias e idílios, para depois tornar a contrair-se num marafo de solidão e desencanto. A lei da regressão à média é tão poderosa assim? Será que a vida é apenas essa sucessão de pequenas alegrias passageiras e de sofrimentos tortuosos? Parece-me que sim, essa é a resposta. 

Algumas pessoas demoram a vida inteira para encontrar o amor, e vivem o resto de suas vidas ao lado daquela pessoa. Outros podem encontrar o amor aos quinze anos, e não aproveitar mais do que alguns breves meses, antes dos tentáculos gelados da morte se colocarem ao redor de ambos. Tragédias e amores, numa miscelânea profusa de cores e dessabores. A vida é uma sucessão, sim, de alegrias e dores, mas uma sucessão caótica, onde nós tentamos, de algum modo, nos orientarmos em meio aos ventos violentos e das águas que nos levam para onde bem entende a mão que tece nossa história. 

Sinto-me fraco e absolutamente impotente diante dessa verdade. Uma gota que o oceano consumiu. Que posso fazer ante um furacão que a tudo destrói e a todos aterroriza? Nada, é o que somos diante da gigantesca realidade que nos cerca e, no entanto, nos integramos nela de algum modo. Nosso papel nesse mundo é um grande mistério. 

Parece, a primeira vista, que não passamos de destruidores, que espalham o ódio por onde quer que passemos. Não interessa onde seja, se há dor haverá um homem envolvido. Mas também, ao mesmo tempo somos aqueles condenados a sofrer essa mesma dor. Vivemos presos a esse ciclo, essa samsara, de dores, horrores e pestes. 

Qual será a espada capaz de quebrar essa roda da vida? Quem haverá de um dia encontrar tal amor que romperá o ciclo de ódio? Ou este mesmo amor não passa de um ilusão criada pelo destino para nos destruir e fazer-nos cair em mais ódio por meio da desilusão? Haverá nesse mundo mais do que essa tristeza silenciosa que pouco a pouco parece nos cercar como a névoa matutina?   

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

De sua atenção


Cá estou eu de novo, falando com você, buscando sua atenção, ou as migalhas que me dá quando viu atrás de você. Mais uma vez caindo no mesmo pecado. O pecado que é gostar de você. 

Não um pecado por ser outro homem, não, nada tão simplório assim. Um pecado por saber que você nunca olhará para mim, por saber que não passo de uma piada fugaz nos seus lábios, um aceno na porta da igreja, um contato a mais na agenda, com quem nunca conversa. 

E mais uma vez eu decidi insistir, sob os conselhos suspeitos do álcool em minha mente. Apenas para receber em troca o seu silêncio, mais uma vez. Não sou importante o bastante para merecer sua atenção, quem dirá seu coração. 

Com um sorriso macabro no rosto eu me dou conta do que fiz. Desenterrei algo que há muito havia sepultado em mim. Aquela nossa foto de anos atrás, tão diferentes e tão iguais. Encontrei seu número que há muito deveria ter apagado da meus contatos e de meu coração. Parece que nada mudou. Embora estejamos em posições completamente diferentes agora, ainda somos os mesmos, igualmente distantes. E eu igualmente incapaz de alcançar seu coração, tão distante de mim quanto a Terra das estrelas de galáxias vizinhas. 

Por qual razão então decidi falar com você? Algum instinto masoquista que eu ainda não diagnostiquei e justamente por isso não trato, algo em mim que me move sempre em direção as pessoas que me desprezam, que pisam em mim, como se não houvesse no meu ser nem uma gota sequer de amor próprio.

Amor próprio... Ainda não sei o que isso significa. Se o soubesse nunca mais olharia em seus olhos. Se o soubesse nunca mais pensaria em você antes de dormir, ou quando estou bêbado, no momento mais sincero de minha alma. 

Parece que é sempre assim, toda vez que eu pareço esquecer de alguém eu faço questão de me lembrar. Faço questão de procurar, faço questão de sofrer uma vez mais, para marcar mais profundamente na minha alma que faço parte daquela estirpe de condenados à cem anos de solidão que não terão uma chance sequer sobre a terra. 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Do que mais importa

Por Olavo de Carvalho

“Mil vezes na vida eu passei pela situação onde eu perdia tudo, não sobrava nada, nada, nada. E sobrava somente uma coisa: sobrava Deus, sobrava esperança do perdão dos meus pecados e esperança na vida eterna. É só isso que eu tinha. E é só isso que eu tenho. Eu não tenho mais nada. Eu posso morrer agora mesmo e não estou nem ligando. Eu só quero uma coisa: eu quero que Deus me perdoe os meus pecados e me leve para perto d’Ele. É só isso que eu quero.

O resto não existe. O resto tudo vai passar, não é isso? Tem gente que nasce sabendo, que entende isso por sabedoria infusa. Tem outros que só aprendem na base do sofrimento, que foi o meu caso. Então, a gente vê as pessoas nesse erro, nesse caos e fica com dó. Não fico com raiva desses caras, eu fico com dó porque eu sei o que vai acontecer com eles. Eu sei que eles se vão desfazer em pó. E a gente não quer que isso aconteça para ninguém, nem pro pior inimigo.

Então é isso: a gente tem que agir sempre com o coração na mão. E só quem experimentou o sofrimento profundo, a perda de tudo, às vezes entende isso. A não ser que você nasça santo, o que não é o meu caso.

A minha vida foi uma sequência de erros medonhos. Mas eu fazia os erros e a resposta vinha, às vezes, triplicada, dez vezes pior. Então, nós não temos controle nenhum na nossa vida. A nossa vida só tem um sentido: nós estamos todos indo para a morte e para o confronto com Deus. Este é o ponto. É só isso que vai acontecer. O resto não vai acontecer. O resto é ilusão. Mas isto é fatal que aconteça. Então, quando chegar lá...o que eu quero é chegar lá e mostrar a minha santidade? – “olha Deus, como eu sou lindo”. Que nada! Eu estou chegando aqui todo sujo, todo arrebentado. Eu vi um filme, uma sequência de um filme maravilhoso. O cara pastor vai entrevistar, falar com um moribundo no hospital. Ele pergunta ao moribundo – “Você se arrepende de alguma coisa?”. Ele diz: “De tudo!” [gargalhadas do Olavo]

Essa é que é a verdade. Eu só tenho porcaria, miséria, vergonha, fracasso. É só isso que eu tenho. Agora, tenho uma coisa que os outros não têm: a gente tem Jesus. E Ele vai nos tirar do buraco. É isso que nós devemos transmitir.”

(Hangout Filosofia e Política: Olavo de Carvalho e Hermes Nery)

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Um punhado de terra


Estou cansado, do meu trabalho, dos meus amigos, da minha família, de mim mesmo, cansado de tudo. O sentimento que me vêm é de saturação. Viver tem me sido um esforço demasiadamente grande para a minha pequena mente distorcida. O simples ato de acordar e me ver sendo obrigado a viver mais um dia me deixa irado. Não queria mais um dia. Não queria levantar cedo e ouvir sermões por culpa de coisas que estão além da minha responsabilidade. Não quero receber cobranças impossível de se cumprir. Não queria ouvir as risadas de crianças que não entendem outra coisa senão a ilusão de uma vida decente. Não queria me humilhar e me arrastar pelas ruas e escadas, sem a mínima força para erguer sequer um copo de veneno, quanto mais para ser altivo, produtivo e sociável.

Meu adágio lamentoso não é mais do o balbucio de uma criança que chora sem conhecer o mundo ou a vida, pode ser verdade, mas o que já vi deste mundo não é mais do que a absoluta decadência. A virtude, a bondade, a perfeição alcançada pelo homem em partes pela arte, só existe verdadeiramente no hiper urânio, aquele sobrecéu onde habitam as formas perfeitas contempladas pelo mestre ateniense. Me envergonho inclusive, de me queixar tanto assim. Sei bem que muitos aguentam situações incomparavelmente piores, mas eu não suporto. Não passo de um erro, um ser humano incompleto. 

Cada minuto do meu dia, afora os instantes de solitude em meu quarto escuro, são uma tortura excruciante. Já estou cansado dos meus olhos marejados pelas palavras frias dos estranhos, cansado de me sentir incompreendido, mesmo sabendo que ao meu redor alguns sentem as mesmas angústias ou até mesmo piores do que as minhas... 

Mas eu olho para onde estou e só consigo enxergar uma figura caquética, presa em sua decrepitude. Anos de estudo, e continuo numa empresa medíocre, dependendo do caridade dos meus pais que, bendito seja Deus por eles, cuidam de mim quando já deveriam ter me enxotado de casa há muito tempo, como foi com meus irmãos. 

Uma vez mais eu contemplo uma figura no espelho, e o que vejo não sou eu, não me reconheço, senão que vejo um homem fracassado, chafurdando no lamaçal da miséria humana, completamente entregue aos caprichos e desejos mais lascivos e primitivos das bestas. 

Não sou homem, apenas um arremedo de homem. Uma casca vazia que, por algum capricho sadomasoquista do destino, ainda vaga por aí sem rumo. 

Dizem que qualquer caminho serve para quem não sabe onde quer chegar. E eu não sei sequer o que estou fazendo hoje, quem dirá onde quero chegar. Eu não sei o que quero de minha vida, eu não sei mais nada! Sei, no máximo, aquilo que não quero. 

Não quero ser comandado por pessoas incompetentes, que destilam sobre mim seu veneno megalomaníaco, fruto de um complexo napoleônico que ainda não diagnosticaram e não tratam. O meu diagnóstico, no entanto, sequer me dá um norte para onde devo seguir. 

Transito entre a depressão e a mania quase psicótica. Uma bicha maníaco depressiva com diplomas que de nada servem para além de arrancar lisonjas tão vazias quanto as palavras que neles estão escritas. Se eles provam que sei de algo, eu discordo repetindo: eu não sei mais nada.

E ainda sinto meu cérebro sendo esmagado por essa realidade. Fugindo dos confrontos, chorando escondido de meus colegas e amigos. Trancafiado, quando não no meu quarto, na minha própria realidade etérea de músicas e símbolos. É como se minha mente aos poucos se dissolvesse, e com ela meu corpo. Dores, manchas, cansaço extremo, nervosismo afetado, descontrole total... Tudo reflexo da névoa de sangue que respiro desde o amanhecer até quando eu me deito.

Estou apodrecido por dento, exalando cheiro de carne semidevorada pelos vermes das ruínas que tanto me espreitaram. Abandonado num jardim que se tornou árido, onde as únicas flores são as rosas diabólicas reais de Afrodite que me impregnam os sentidos, deixando um gosto de veneno e morte em minha boca. 

O sono, antes meu único refúgio, é agora um mundo assustador, onde imagens de monstros e demônios me perseguem e me torturam, não com açoites e cutelos, mas com as mesmas palavras de aço frio que me cortam todos os dias. 

Os pés descalços sob brasas, os braços antes ensanguentados pela esperança de que a dor física aplacasse a dor espiritual. Essa é minha única realidade. Não há sequer uma luz no fim do túnel, ou melhor, uma luz acima do poço. 

Estou cansado, do meu trabalho, dos meus amigos, da minha família, de mim mesmo, cansado de tudo. Já não sei mais o que fazer, senão pensar em desistir. Do trabalho, dos amigos, de tudo. Será esse meu fim? Depois de tantas dúvidas, de tantos questionamentos dialéticos, retóricos e metafísicos, cair no niilismo de uma vida sem razão e sem sentido que se esvai no tempo como cinzas ao vento? Depois de tudo isso me restará apenas esperar que metam um punhado de terra em minha boca? O que me resta senão aguardar os últimos golpes do destino, aqueles que de uma vez por toda porão fim a essa existência miserável, me arrebatando depois de uma coda inequivocadamente trágica. 

Quid sum miser tunc dicturus?
Quem patronum rogaturus
Cum vix iustus sit securus? 

domingo, 15 de dezembro de 2019

Da metamorfose


Não queria escrever sobre coisas pessimistas depois do último texto que publiquei, mas como fugir dessas experiências humanas tão ricas de significado que nos deixam marcas tão profundas que até o tempo encontra dificuldade em superar? 

Hoje me senti sozinho, como já esperava. Sentado esperando por todos que, ao chegarem, não me deram mais do que olhares frios e vazios. 

Como as coisas chegaram a esse ponto? Como esquecemos as risadas e conversas infindáveis noite a dentro, para nos tornamos estranhos, odiando cada suspiro, cada olhar que o outro dá em nossa direção? 

O mundo, em seu imparável ímpeto transformador continuar metamorfoseando as coisas ao nosso redor, fazendo com que tudo permaneça inconstante. Nossas amizades, amores, enfim, nossas relações humana, repletas de tantos pormenores, de tantas nuances, é talvez a coisa mais transformadora do mundo. O beijo que se transforma numa violenta cusparada sob a face. A mão amiga que crava uma faca no profundo do peito, sem dó e sem aquela clemência e doçura que outro dia impregnara o ar. É mesmo uma constatação terrível. 

Como não encher-se então de uma profunda desesperança? Algumas pessoas me olharam hoje e, mesmo maquiado, diziam que estava com cara de morto. Não sabem elas que há muito já me sinto assim e que meu exterior apenas está exalando o que há dentro de mim. Uma casca vazia, putrefata, uma sombra daquilo que era. E qual a razão disso? A transformação do mundo que turvou a água cristalina de minha vida num lamaçal malcheiroso, onde agora minha existência chafurda sem esperança de um dia escapar dali. 

Do servir


Um breve, e indigno, testemunho de amor a Santa Eucaristia.

Acordei de maneira desagradável, depois de uma noite em que não consegui dormir direito, inquieto e sem ar, acometido de uma incômoda crise alérgica. Minha garganta fechada, a coriza e a dor de cabeça bem fortes. 

Precisava servir o altar na primeira Missa da manhã, e não podia pedir que outro fizesse no meu lugar pois já estava bem em cima da hora. Me levantei com dificuldade, tomei um banho rápido e me forcei a comer mesmo sem apetite. Sentia uma fraqueza, e uma vontade voltar a cama, resultando da melancolia que me acomete sempre que caio doente, o que acontece com certa frequência. 

Cheguei a igreja com certa dificuldade, meu corpo protestava contra o esforço. Cada fibra dos meus braços e pernas ansiava por um descanso desmedido. Como poderia estar cansado depois de uma noite inteira de sono? Mesmo que não tenha sido da melhor qualidade ainda era um descanso. 

Mas eu precisava servir a missa. Mesmo depois de ter confessado ainda não tinha conseguido comungar e, nos últimos tempos, tenho travado uma batalha difícil contra alguns pecados em particular. 

A luxúria tem feito de mim seu escravo e com frequência sou açoitado pelos seus violentos algozes. Contra ela tenho travado uma luta constante, caído diversas vezes, e me sentindo fraco sempre, um traço comum do demônio que costuma nos enfraquecer por meio da concupiscência da carne para nos afastarmos cada vez mais da graça. Há muito não comungava, não me sentia arrependido de meus pecados, que formavam como que um muro entre mim e a graça. Muito embora estivesse sempre à um passo do augusto sacramento não podia tocá-lo e nem recebê-lo em meu coração. Tornara uma morada suja.

Por isso não podia deixar de ir, precisava fazer esse esforço. Foi com certa dificuldade que preparei as coisas para a missa. Sozinho pois os ministros ainda não haviam chegado. Preparei os livros, a credência e me paramentei para a Missa. A celebração foi igualmente difícil, e tive de dividir a minha atenção entre minhas próprias dores, que a esta altura me atingiam as articulações e dificultavam cada movimento, e a saúde debilitada do padre que, mais uma vez, não estava das melhores. Como medo que ele se sentisse mal novamente durante a missa precisava ficar com atenção redobrada sobre ele.

Mas esse esforço valeu, ao fim de tudo. Finalmente, depois de longos meses, pude comungar do Corpo de Cristo. Retornando como o filho pródigo a casa do Pai, que me recebera de braços abertos. Com uma alegria singela. O diabo imprimira em meu coração uma satisfação em apenas servir, sem dele comungar. Sabia dessa tentação, sabia e fingia não saber, preferindo as recompensas imundas de meus desejos lascivos. 

Voltei aos braços do Amado, que me provocara a suportar a aridez da noite escura, me convidando a encontrá-lo naquele jardim secreto, por entre as açucenas olvidado, onde repousa o verdadeiro amor. Oh que ditosa ventura, sair de minha casa pela manhã e receber o augustíssimo sacramento, a maior prova de amor, de um tão indigno servo, tão inclinado aos desejos primitivos da carne como eu. 

sábado, 14 de dezembro de 2019

Da faísca que se acendeu


Um breve relato de uma experiência feliz:

Há muito eu sentia um certa tristeza cada vez que tinha de cantar. Era como se o fizesse por obrigação, ou pior, se o que eu fizesse parecesse obrigar os outros. Sentia que isso tirou toda aquela magia da música para mim, e eu adoro cantar! Todas as vezes que cantava parecia que as notas saiam automaticamente, sem aquele coração que transforma uma musica numa verdadeira obra de arte... Parecia, para todos os efeitos, que a luz que havia em minha música havia se apagado.

Mas hoje foi diferente. Vozes diferentes, músicas diferentes e uma sensação diferente. Enquanto cantava, a plenos pulmões, desgastando sem dó as minhas cordas vocais, eu senti que aquela pequena faísca que aos poucos se apagava se acendeu novamente, tornando a música num fogo abrasador mais uma vez. Cantei, com a alma e o coração aquelas notas que antes pareciam chatas e enfadonhas. Arrisquei algumas brincadeiras, fiz um solo, fui até a segunda voz, terminei a última e derradeira nota com toda a força, cantei com alegria, enfim, estava bem reencontrando a música que havia perdido por entre aqueles olhos frios de antes. 

Talvez não fosse a música que havia morrido para mim. Talvez a música que morreu para os outros estivesse me afetando de tal modo que já não via mais brilho nos meus compassos. Cantar com outras pessoas me fez perceber isso. O novo trouxe luz aquela partitura empoeirada de antes, que já não encantava ninguém, senão que era como um instrumento quebrado, incapaz de fazer um belo som e tocar o coração. 

Fico feliz, muito feliz, em ver que a música não morreu, mas que ainda repousa graciosamente dentro de mim, esperando o momento certo de, assim como nesta noite do 3° Domingo do Advento, ser despertada e fazer-se brilhar uma vez mais, contagiando a todos com aquele mesmo amor que só os grandes músicos conseguem para tocar os corações. 

Vou agora dormir, sorrindo alegre, sabendo que a voz cansada que sinto, foi resultado de uma música maravilhosa, que despertou em mim o que há muito havia perdido. 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Noite de impressões


Impressões profundas e emergenciais. Talvez eu devesse ter posto-as em letras quando as tive mas, quando finalmente pude me recompor, os raios de sol já começavam a despontar na minha janela e a quantidade um pouco maior de álcool no meu organismo me dizia que era melhor que fosse dormir. Bom, infelizmente com isso acabei perdendo um pouco daquela crueza que as impressões têm quando se vêm com tamanha força numa roda de música e vodka. Terei de me contentar com a descrição poética que ora transcrevo aqui, culpa de minha pouca resistência para virar a noite em devaneios.

Pois bem, não adiemos o enterro. E sim, enterro, essa é a impressão que tive na noite. Era como se houvesse ali uma amizade enterrada. As pessoas não queriam estar ali, e nem sequer disfarçavam seu desgosto. Não sei então por qual razão ainda insistem nisso, se é algo que faz a todos infelizes. 

Eu estava profundissimamente incomodado, com a falta de ânimo e interesse, com os olhares frios e distantes direcionados a mim. É como se minha exclusão fosse a solução de tudo. Mas é bem por isso que disse tratar-se de um enterro. É uma amizade que faleceu aos poucos, minguando entre os dedos orgulhosos dos homens que traçaram para si outras prioridades.

E tudo bem! As pessoas mudam, como quase tudo nesse mundo, e vão aos poucos descobrindo o que querem de suas vidas. Alguns tem a sorte de encontrar uma razão, um sentido na existência, seja ao lado de amigos ou de suas famílias. Ainda que, ao meu ver, seja um sentido irreal e vazio ainda é um sentido e, bom, movendo aquele que o detém para algum lugar não me interessa muito saber se é ou não verdadeiro. 

Mas e quanto a mim, que ainda não sei o que quero mas já sei o que não quero viver, tomei no meu íntimo uma decisão: a de enterrar ali qualquer chance de ir atrás dessas pessoas que encontraram em si mesmas a razão de seu ser. Continuarei a buscar, sozinho que seja, as minhas respostas noutra freguesia. Me deram motivo para partir e assim eu o farei. Não há porque continuar a insistir aqui. 

Interessante notar que, antes de a noite acabar, quando a maioria dos olhares vazios foram embora, ainda ficou um no qual me encontrei de maneira singela. 

Partilhamos experiências enquanto bebíamos, a conversa flui de nós até universos distantes, levada pela mesma linha que conduz as notas numa partitura. A música foi o fio condutor de nossa noite que, em meio a risadas e lágrimas de saudade e pesar, nos fez perceber muito da condição humana: solitária, assustada, em busca de um algo que lhe dê sentido e de como buscamos esse sentido nos outros, tentando trazê-los para perto de nós, tentando imitá-los, agradá-los enquanto desagradamos a nós mesmos.

Falamos sobre como éramos unidos e como o tempo se encarregou de levar cada um ao seu próprio caminho. Ainda que nos sintamos perdidos. Sobre como crescemos e progredimos, apoiando um ao outro mas logo abandonamos isso, caindo todos na mais patética mediocridade. De irmãos partilhando a mesma comida a completos estranhos que sequer se olham nos olhos uns dos outros.

Foi um encontro ímpar e isso fez daquela noite, que começou com um ensaio sem graça onde os participantes ali estavam por pura obrigação, numa agradabilíssima experiência humana. Não pensava ainda ser possível me conectar a alguém, ainda que brevemente, com tanta profundidade. Nossas frases se completavam e ao menos o sentido mais superficial de nossa linguagem parecia ser de comum compreensão. Foi sim um momento de rara conexão. Talvez fosse a magia da música que permeava o ambiente, o brilho dos acordes, a tessitura da voz, sincera e profunda. Essas coisas me tocaram, e acho que consegui por um instante me abrir ao outro e, quem sabe, olhar também o que havia dentro do outro, atrás daquele escudo que erguemos entre nós e o mundo que nos cerca. 

Bom, de fato um noite de impressões profundas. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Daquilo que habita


Minha infância, na escola, não foi fácil. Não era como as outras crianças, sempre rodeadas de amigos brincando na rua até tarde. Eu nunca brinquei fora de casa, e nunca tive muitos amigos. Tive de me acostumar a me virar sozinho, embora detestasse isso, e a me contentar com a companhia de meus primos, quando podiam ficar algum tempo comigo. Foi assim até que eu me acostumasse, a ficar sozinho, a me divertir e me distrair sozinho, enfim, a ser sozinho. 

Eu fui crescendo, e comecei a fazer algumas poucas amizades. Algumas pessoas que me marcaram foram ficando, e com elas eu me sentia bem. Podia, com elas, falar sobre quase qualquer coisa, sorrir, brincar, enfim, ter contato com o outro. Foi aí que eu descobri o que era o outro. Foi aí que eu comecei a entender o quão grande é o mundo e o quão variadas são as experiências que as pessoas têm. De fato é algo fascinante, perceber o quanto o mesmo mundo pode ser visto de tantas perspectivas diferentes, e quantas perspectivas um de nós pode ter. Foi a abertura para uma constelação de experiências. Mas ainda assim eu percebo, agora, que se tratou de uma experiência comedida. Mesmo fazendo alguns amigos eu não cheguei a ter tantos amigos quanto as pessoas parecem ter a minha volta. Ainda era, mesmo assim, uma experiência um tanto quanto solitária. Como uma única pessoa, deitada na relva observando as miríades de estrelas no céu. 

Depois de um breve período de minha vida, rodeado de pessoas e amigos, me vejo uma vez mais sozinho. Todos se foram e alguns eu mesmo deixei. Eu cansei, de todo aquele barulho ao meu redor. E o mais importante de tudo, fui abandonado. Claro, acho que se pudesse escolher teria preferido continuar rodeado de pessoas pois, mesmo ainda estando vazio, ainda conseguia abafar um pouco os gritos que vinham deste mesmo vazio. 

Mas isso já não é mais uma opção. Fui novamente largado nesta ilha deserta, tendo como única companhia a solidão. Agora escuto com precisão cada grito que vem da profunda escuridão do meu próprio coração. 

Poucas, ou quase nenhuma, são as pessoas que me perguntam como estou. Menos ainda são aquelas que se interessam de verdade pela resposta, senão que perguntam pela educação que dita que é de bom tom perguntar algo assim antes de pedir algum favor. Poucas são as que conseguem perceber o cansaço que sempre estampa meus olhos fundos e frios. Poucas são as que percebem o desespero por trás da minha voz e das minhas piadas. A verdade é que ninguém, além de mim, sabe o desespero que é acordar todos os dias e saber que continuo nesta existência patética e sem propósito.

Meu telefone continua cheio de mensagens, a maioria delas de pessoas que querem algo de mim, me pedindo favores ou me informando sobre coisas que eu devo fazer. Não há nada ali de verdadeiramente humano. Não há confissões de pecados, e nem declarações de amor. São mensagens vazias, cheias apenas de desejos egoístas e de uma vista nublada sobre quem sou. Poucas são as pessoas que, além de meus pais, se preocupam de verdade comigo. Poucas também são as pessoas com que me preocupo de verdade. Todo esse processo me deixou deveras egoísta. Ou talvez tenha apenas me despertando para uma preocupação maior comigo mesmo, em detrimento daquela que sempre dava aos outros. 

A verdade é que passei tempo demais olhando as estrelas. Tempo demais tentando entender as pessoas que estavam tão distantes de mim, e acabei esquecendo de cuidar de mim mesmo. Agora experimento a verdade amarga de estar rodeado de pessoas e perceber que, na verdade, todas estão há universos de distâncias, embora estejam ao alcance de minhas mãos. 

Não tenho mais nenhuma vida social, no sentido de que não tenho mais alguém com quem possa abrir as pétalas mais fechadas de minha alma. Não há alguém para quem possa mostrar o vazio que há em mim sem que a pessoas não regurgite tudo em profundo desprezo. E não tenho mais vontade de buscar alguém para me abrir. Não tenho mais vontade de nada além de ficar deitado no quarto escuro, ouvindo música e esperando a morte finalmente chegar. Há alguma vontade de viver em mim?

A minha verdade é que não. Muito embora eu saiba que tenha de cuidar de mim agora, eu ainda acho isso perda de tempo. Um esforço em vão que só pode culminar, e que só vai, culminar na morte, Ao fim de todo esforço está a morte. Então qual a razão por detrás do esforço?  Há apenas aquele instinto primitivo de preservação, que luta violentamente contra minha falta de vontade. Essa batalha é o único movimento que há em mim. E é dessa batalha que fluem as letras de sangue carmesim que escrevi aqui. O que faço todas as vezes que escrevo não é outra coisa senão isto, um testamento da vontade e do vazio que habita meu âmago. 

sábado, 7 de dezembro de 2019

Mais do nada


O silêncio de um dia triste e vazio. Nem sei por qual razão ainda me incomodo, todos os dias são vazios. Talvez não sejam os dias, apenas o meu próprio âmago, repleto de nada. E de novo cá estou eu, num dia frio, falando do vazio. Não fosse a centésima vez que me sento para falar do vazio não poderia dizer que, do vazio, eu entendo com profundidade. 

E essa pode ser a única coisa da qual entendo. Eu não sei mais nada, não entendo nem ao menos os compassos densos da música que toca ao fundo. Trata da noite, do mistério, da solidão, mas isso é tudo, todo é resto me é como um mistério inexpugnável. A vida não é outra coisa senão isto, um mistério que nos faz buscar por respostas sem cessar para, no fim de tudo, jogar- nos um punhado de terra em nossas bocas e dar-nos como alimento às ruínas. 

Olhei o céu, cinza, triste, e nada me veio. As folhas das arvores estavam paradas, nem mesmo brisa havia para lhes movimentar um pouco. E assim foi meu dia, numa frialdade parecida com aquela que vejo nos olhos das pessoas. 

Olhei-me no espelho e, dessa vez, me reconheci. Um rosto lânguido, macilento, uma expressão vazia. O olhar tão cheio quanto uma tela em branco de um pintor que já falecera. Nem um brilho senão o da oleosidade produzida por meus poros descontrolados. Destes poros não saem outra coisa senão óleo e sangue, vertido pela dor de viver em a uma humanidade tão baixa, tão mesquinha, tão fechada em si mesmo que torna todo monte de terra num horto das oliveiras onde chora o pobre inocente, incompreendido até por aqueles que o cercam.

Meu coração se encheu de ímpetos numa busca por algo que completasse esse vazio. Mas para onde quer que olhasse, nada parecia ser capaz disto. Queria beber, me embriagar, mas lembro-me que a sensação de vazio é ainda maior na ebriedade. De que adianta então fugir para uma breve sensação de torpor para logo ser lançado novamente num deserto de incertezas? 

Fugi então para debaixo de meus sentidos mais baixos, mais humanos. Mas o gosto dos doces não era capaz, tampouco, de me desviar desse verme que corrói as entranhas. É com um sorriso irônico no rosto que eu digo, então, que esta deve ser minha condenação por algum pecado: viver a contemplar o abismo de uma existência em que sou incapaz de enxergar uma razão de ser. 

Tudo o que vejo é decadência. Uma sociedade que desistiu de buscar sua completude nos altos ideais e desceu até o mais imundo dos lamaçais, chafurdando na imundície como animais, travestidos de razão. As luzes da razão não lançam raios por sobre nossas trevas, senão que apenas tornam mais visíveis as nossas misérias, cada uma de nossas feridas podres, exalando um cheiro forte de carne estragada, carcomida pelos bichos. 

E quem de vós há de me dizer aquilo que procuro entender? Se ao que busco saber nenhum de vós me responde não há razão para insistir. Melhor morrer no frio, sem a dor dos espinhos, lentamente matando o ouriço de Schopenhauer. Lentamente matando a vontade do coração corrompido do homem de preencher o vazio com o outro, que também não é muito mais do que uma casca vazia. 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Sobre esperar


Eu só espero que não venha mais ninguém, pois hoje prefiro a minha solidão. Prefiro a música alta e o efeito anestésico do álcool e dos benzodiazepínicos... Isso porque a companhia humana se tornou gasta demais para mim. A incompreensão, as dificuldades, a distância que separa duas pessoas mesmo estando lado a lado é algo que eu já não consigo suportar. 

É como se a todo momento uma marcha fúnebre tocasse em minha cabeça, celebrando a morte daquele útero primitivo que perdemos há muito tempo atrás, quando a confusão entrou no coração do homem e fomos lançados, do alto da torre de Babel, para o abismo da ignorância, para a lixeira da miséria humana. 

Até quando poderei viver me isolando do mundo? Não sei bem, mas é certo que já não quero mais me abrir aos outros. Não quero mais me derramar em jarros fechados, lançando ao chão o meu amor. Não quero mais ser incompreendido. Desejo apenas ficar aqui, sozinho, ao som de Mahler e seus acordes densos. Aqui ninguém vê as minhas lágrimas, isso é certo, mas fora as pessoas também não notam nada da dor umas das outras, então que diferença faz?

Mesmo isolado aqui a minha alma não pára. Meu coração está rodopiando ao vento como farrapos. Mas tudo o que faço é pensar no mundo ao meu redor e lamentar, lamentar o quanto perdemos em nossa confusão. Como seria bom se as pessoas se entendessem, se pudéssemos completar uns aos outros aquilo que falta a cada um de nós. 

Sinto aquele vazio dentro de mim. Mas não é uma simples sensação de que me falta algo. É a sensação de que me falta o principal, e que essa minha existência não passa de um simulacro, algo que deveria ser mas não é. É o vazio que existe bem no âmago da minha existência. O vazio de não saber quem sou, nem o que desejo, nem o que será de mim, o vazio de ser apenas uma pluma flutuando por aí, sem direção. 

Há em mim esse abismo, que há muito me observa, e que às vezes dele saem alguns demônios. É assustador não saber o que há lá. É assustador não saber o que será de mim. E mais assustador ainda é olhar ao meu redor e não saber o que se passa com as pessoas que estão ao alcance de minhas mãos...

Por isso eu espero que não venha mais ninguém, só assim posso ficar aqui, na solidão do meu quarto, evitando ao máximo a dor que é ir ao encontro do outro. E isso eu já não posso mais suportar. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

De um assassino


O sangue ferve como se brasas incandescentes tivessem sido colocadas dentro dele. A boca espuma em ódio, há veneno correndo pelas suas veias. A destruição torna-se um sonho doce. Os gritos, choros de pavor, o desespero que assola o coração dos impiedosos quando se deparam com a ira do deus Dragão. O olhar de aceitação do fim da vida. Um consolo para o apetite do carrasco, sedento de medo e sangue. 

O matador chora, lágrimas de sangue. Suas costas e pés estão em carne viva. Mas ninguém sente a sua dor... Não, a sua dor não importa. Importa que mate, que cumpra seu serviço. Importa que tenha em suas mãos o sangue quente de suas vítimas inocentes. 

Ele sonha, então, não com a dor daqueles que é obrigado a matar, por contrato satânico que lhe corrompera a alma, mas com aqueles demônios que o usam para fazer seu trabalho sujo. Tirar a vida que Deus lhes dera. Não passa disso: um monstro, uma ferramenta de terror nas mãos dos demônios mais baixos, mais sujos do inferno. 

É uma espada, suja com o sangue de seus inimigos, e com seu próprio sangue da muitas vezes que tentara se matar. No entanto é uma espada quebrada que, embora ainda mate, sente o fio destruído cada vez que corta a carne com a precisão de um bárbaro. Em sua boca o gosto de metal enferrujado e terra. Suor, furor, a emoção de mais uma vítima esconde sua dor por trás de uma gargalhada maligna. É o diabo que ri, é o diabo que o guia. 

Mas ele não era assim. Não havia ódio em seu coração. Era apenas uma criança sorridente mas, conforme crescia, ele via-se confuso com a tristeza e com a frieza do coração dos homens que o cercavam. Seu coração quente foi aos poucos sendo apagado pelo frio. Why they're so cold? Ele se perguntava, e não tinha nenhuma resposta. Aos poucos foi percebendo que estava sendo contaminado por aquele ar cheio de veneno, e que seu próprio sangue vertera-se em ópio. O único calor que sobrou nele foi o furor de sua ira implacável, sua sede insaciável que fora despejada como ferro derretido sobre a pele dos infantes. 

Seu lugar não é mais aqui, entre homens. Mas entre as feras que devoram as outras sem piedade. Lá, entre feras de todos os tamanhos ele se encaixa direitinho... Talvez entre as feras e monstros ele encontre seu lugar. Aquele que vive entre feras sente a inevitável vontade de também ser fera. 

Esse breve relato é um retrato do ódio que há em meu coração. É a confissão, não de um pecado, mas de uma infâmia que há em mim. O desejo do fim de meus inimigos, a angustia, a raiva arraigada em minhas entranhas até o tutano. Tudo isso faz de mim não um príncipe, mas apenas um homem vil, no sentido mais infame e mesquinho da vileza. A confissão de que matei, um a um, cada um de meus sonhos mais puros. Todos os meus objetivos pereceram ante a espada quebrada do destino. Até mesmo a vontade mais primitiva do homem, a de existir, foi consumida pelo aço frio que perfurou o meu ser.

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Contra o meu peito


A luz da lua entrou delicadamente sobre as fretas da janela de meu quarto e eu ergui os olhos para o céu. Pude sentir algumas pequenas gotinhas de água beijarem o meu rosto. Aquela lua brilhante me fez lembrar do seu olhar e eu pensei que, se você aparecesse na minha frente agora, eu ficaria feliz em ir até o dia clarear... Não sei, mas se você estivesse aqui, eu ficaria por horas e horas, falando sobre qualquer coisa, ou cantarolando alguma música, quem sabe simplesmente deslizando meus dedos pelo seu corpo, explorando suas linhas, cada canto, até conhecer cada centímetro de você... 

Infelizmente parece que a luz da lua não traz mais do que algumas lembranças, despertando desejos e apetites que eu preferia não sentir longe de você. O barulhinho delicado da chuva no telhado do vizinho e o efeito do Lexotan no meu organismo são um convite ao sono profundo, mas antes do sono sempre me vêm a mente aquelas imagens, aquelas sensações... E a parte mais estranha disso é que todas essas coisas tem a sua imagem, o seu cheiro, o seu olhar, o seu toque... Tudo que eu penso, é em você. 

Enquanto a chuva cai o saxofone toca, com uma delicadeza que reflete bem os meus sentimentos. É um lamento. Ele também chora, como em meu coração me derramo em desejo ardente. Para uma noite como essa tudo o que eu queria era você aqui comigo, me envolvendo com seus braços fortes e seu hálito em meu pescoço. Dizendo que me ama, dizendo que ficará comigo pra sempre... 

Eu aperto o seu braço contra meu peito. Posso ouvir o som da sua respiração, e as batidas de nossos corações entraram no mesmo compasso. No meio de tanta gente eu consegui encontrar você, notar seu sorriso tímido e seu jeito simples. E eu que achava que nunca mais iria me apaixonar me vejo aqui, deitado pensando em você. Mesmo com tudo dando errado para mim, parece que, se fosse com você, tudo estaria certo. Por isso eu peço: por isso não vá embora, por isso não me deixe nunca mais!

Sei bem que, ao olhar no fundo dos meus olhos você encontra um abismo. Esse abismo assusta a todos, e a mim também. Mas eu peço que não se perca nesse meu infinito particular. Meu infinito é feito de miríades de constelações, de mistérios, de auroras boreais e tempestades impetuosas. Mas é meu infinito e, se souber ver da maneira certa, tenho certeza que vai gostar da profusão de cores que há em mim. 

Essas cores, essa profusão, é a parte mais óbvia de mim que, no entanto, ninguém parece observar. É o lado que mostro quando me excito agitando a batuta na frente da televisão regendo uma orquestra imaginária até me derramar em suor e lágrimas. É o que mostro quando me reviro na cama ouvindo uma cantata ou ouverture, me imaginando naquela sala de concerto de décadas atrás, experimentando pela primeira vez essas obras fantásticas. São as cores que explodem em meus olhos quando olho pela janela do meu quarto e vejo a chuva caindo sobre o teto do vizinho, e penso em como seria se você visse essa paisagem comigo. Você a acharia bonita? E a paisagem de meu coração, ela te agrada ou te assusta, te atrai ou te faz sentir-se perdido ao entrar em meu infinito particular? 

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Desentendimentos e abismos

Qual a razão de uma outra reflexão acerca da solidão? Acho que, como a estação das chuvas, ela sempre se renova e sempre faz presente na alma de cada um, sendo portanto uma experiência que não finda completamente, senão que apenas se metamorfoseia em outra coisa temporariamente. 

Talvez a solidão seja uma das poucas verdades absolutas da vida. Não conheço ninguém que não sofra com esta jovem dama de alguma maneira. Até mesmo as pessoas que estão sempre rodeadas por outras parecem sofrer com ela, com o desespero de ver-se precisado de muitas vozes para não ouvir o próprio coração gritar em desespero ao contemplar o próprio vazio. 

No coração dos homens há sempre momentos de tempestade e calmaria. A solidão que, como uma pantera, mostra-se forte, violenta e silenciosa, aguardando pacientemente o momento certo de cravar seus dentes fortes na carne de suas presas. 

Há momentos em que apreciamos o silêncio da solidão, e em outros somos esmagados por ele. A solidão que liberta é a mesma que aprisiona os seres numa jaula de aço, donde observamos as pessoas livres em suas ilusões viverem alegremente. 

Não, isto está errado. Acho que a chuva tem um significado triste apenas para mim que, apesar de sempre rodeado de pessoas, estou sempre confinado na cela da solidão. Sempre almejando pela liberdade de voar ao lado de alguém que almeje um céu tão alto quanto eu. Uma cobra que rasteja pelo chão só pode sonhar em voar no alto céu como o falcão. 

Mas já não vejo a companhia dos outros como uma graça que me foi negada. Vejo como algo impossível ao ser humano. Ser sozinho, embora viva em sociedade, é uma característica do homem, condenação comum a todos nós que carregamos o fardo desta espécie.

A diferença não está em ser ou não solitário, mas ter consciência ou não desta solidão. Aqueles que se dão conta desta realidade sofrem mais, isto é verdade, mas os outros também vivem uma existência de medo, sem saber donde vem aquele pavor que lhes sobe a espinha cada vez que se voltam para o abismo que há em seus corações. 

Alguns tem consciência do vazio que há bem no âmago de seu ser, e o quão apavorante isso é. Estes não conseguem disfarçar o pavor e andam sempre com um semblante abatido e combalido. É a experiência de contemplar o abismo. Outros, no entanto, não sabem de onde vem o vazio e o medo que sentem, e buscam a todo modo preencher esse vazio. 

Bebidas, sexo, festas, companhias desregradas. Os solitários conscientes de sua sina não se dão a qualquer divertimento pois sabem que nada pode completá-lhes a parte que lhes falta. Acabamos por aumentar nossa própria condição pois não aceitamos qualquer companhia. As conversas fúteis, brincadeiras frívolas, as risadas vazias, muito embora sejam prazerosas, só aumentam a sensação de vazio quando findam. É como o embriagar-se que faz desejar-se sempre mais e mais. As companhias passageiras fazem com que nos sintamos felizes por um breve período e, com isso, passamos a desejar mais e mais, até que passamos a sacrificar até mesmo quem somos em razão delas. 

Alguns de nós já decidiram por não abandonar quem somos. Não em razão de outros tão vazios e desgraçados quanto nós. Mas a solidão é como um vazio que vai nos consumindo de dentro para fora e, mesmo sozinhos, temos a sensação de que já não somos quem éramos. Isso porque como as chuvas que vêm e vão conforme as estações, também nós mudamos, embora pareça que ainda somos os mesmos. Algo de nós muda e algo de nós permanece, mas é bem difícil perceber os elementos fixadores nessa nossa alquimia de vida. 

Talvez seja então a solidão o único elemento fixo em nossa condição humana. Alguns solitários em quartos escuros, absortos em arte, ópio ou benzodiazepínicos. Outro, solitários nas rodas de amigos em meio a conversas e risadas. Cada um solitário a sua maneira, mas todos parte do mesmo rebanho de condenados a esta existência patética de desentendimentos e abismos. 

domingo, 1 de dezembro de 2019

Do fruto e da troca

As coisas iam bem, o mundo girava normalmente em seu eixo, o sol nascia e se punha como de costume e tudo estava como deveria ser. As pessoas viviam em paz e harmonia, numa alegre simbiose. Cada um dava o que tinha, o melhor de si, para o bem de todos. Cantavam a todos então essa alegria, contagiando-os de sincera felicidade. 

Mas então alguém resolveu que isso não era suficiente, alguém decidiu que vivia de maneira incompleta e preferiu buscar um algo a mais. A antiga perfeição já não era mais suficiente. E tudo mudou. Sentiu-se um vazio e começou-se a buscar algo que preenchesse esse vazio. Sentiu que deveriam buscar alguém que preenchesse esse vazio. 

O primeiro homem então disse aos outros, que a vida que levavam era infeliz e incompleta, e que no horizonte, em cima de um monte, vislumbrava uma árvore cujos frutos poderiam mudar essa realidade. Os olhos de todos se encheram de graça, o desejo pela perfeição os hipnotizou. Não viveram até ali, sem perceber, numa completa incompletude? Eis que chegara o momento de se satisfazerem com os frutos da completude. A felicidade. 

Galgaram então em direção ao monte onde a tal árvore prometia a felicidade. Ali subiram e se fartaram com os frutos da completude. Frutos que, tendo forma humana, pareciam conter em si a tão almejada alegria. Já não mais sentiam o vazio, que nunca existira, agora sentiam-se completos. A música que saia de seus corações era uma música de exultação, entoada alegremente e jubilosamente em diferentes tonalidades, num crescendo que enchia e elevava o espírito de todos. Um allegro maestoso que causava inveja a todos os homens que os ouvia.

Pela primeira vez viram miríades de cores numa profusão de sensações que os engrandecia de dentro para fora. O mundo tornou-se um lugar feliz, colorido, de inebriantes experiências. Mas nada pode ser obtido sem algum tipo de sacrifício e, para obter aquela felicidade eles sacrificaram algo de grandiosa importância. Sentiram, pela primeira vez, o prazer da embriaguez. 

No entanto, eram pessoas demais aproveitando da felicidade e, alguns, acharam que nem todos eram merecedores dessas doces alegrias. Se menos pessoas aproveitassem da felicidade talvez sobrasse mais e, sobrando mais, talvez fossem ainda mais felizes, ainda mais completos. Desejavam aquela embriaguez mais e cada vez mais. É o vazio novamente, assustando os homens em sua busca incessante e gananciosa. Mas quem escolheriam para excluir da felicidade? 

Eis que o primeiro homem, aquele que decidira dar aos outros o fruto, foi tido como o que menos precisava daquela felicidade, e em assembléia decidiram que dela seria ele excluído. 

Aos poucos foram privando-o da felicidade. Seus olharem tornaram-se frios e distantes, e guardavam apenas maldade e ambição. Ele sabia. Sabia e fingia não saber. Até que a traição se consumara. Aos poucos foram envenenando-o de tal maneira que já não conseguia mais entoar alegremente os cantos de antes. O veneno o deixara doente, e ele foi ficando cada vez mais sozinho, cada vez mais excluído e, os outros, cada vez mais foram alimentando-se daquela alegria que ele uma vez sentira. Para ele, o tudo voltou ao nada. Por fim, deram-lhe o golpe com um punhal pelas costas. Com um poderoso olhar de indiferença na face.

E então a alegria dos outros se tornou maior. Extasiaram-se com aquilo que roubaram de seu companheiro e refestelaram-se às suas custas. Tudo então mudou. O canto de idílio que ele cantava emudeceu. Só havia um silêncio sepulcral e ventos que traziam o cheiro podre de corpos da guerra. Os outros, continuavam sentindo os aromas das comidas e das bebidas. A embriaguez tornou-se sua única alegria. Também já não cantavam mais, senão que apenas chafurdavam nos próprios prazeres, sendo tomados pela ganância e pela gula de tal modo que esqueceram o quanto um dia foram felizes. Eis o que perderam: aquela completude que tinham antes de passarem a crer que eram incompletos. 

E mudança não assustou a todos, embriagados demais para notar. O único que percebeu foi aquele que, excluído da embriaguez se tornou capaz de observar na sobriedade as mudanças que ocorriam nos seus antigos companheiros. Sua cerviz tornou-se dura, seu olhar frio e vazio. Observa, de longe a alegria que sentem sem ele. Percebeu que, na vida, há uma corrente de transformações que, de tempos em tempos, tudo muda. A felicidade transmuta-se em dor, a dor por sua vez torna-se resiliência, a resiliência se muda em uma terna alegria, e o ciclo se reinicia. 

Este ciclo, por sua vez imutável, é o elemento fixador na alquimia da existência, feita de decomposições e recomposições. Destruição e recomposição. Mas o que ele conseguirá receber desta troca equivalente? Transforará sua solidão em companhia, agora que os dias quentes se foram e as noites escuras o assustam? O fruto proibido que comeram tornou-se causa de queda e destruição para todos. Foi o preço pago pela troca equivalente. Deram a Ele agora estão cegos demais para perceberem que se encontram na lama de sua ebriedade. O outro, mesmo sendo capaz de ver o que se passou, também se encontra na lama, da solidão, sendo chapinhado pela chuva grossa que o faz sentir falta da época em que o calor dos outros lhe bastava. 

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O caos e o torpor

Senti-me no direito de me recompensar, marcando eu meu próprio corpo um símbolo da persistência, por estar ainda insistindo nessa existência. Assim como todas as minhas outras tatuagens essa foi feita de modo a marcar uma fase. Mas essa não é uma fase boa, essa mostra que eu sobrevivo em meio ao caos, não foi feita após a tempestade mas durante a própria tempestade. 

Aos poucos eu vejo o pouco de ordem se esvaindo novamente de minhas mãos. Mais uma vez olho no espelho e vejo o descuido se manifestando outra vez mais... Meu cabelo está sem forma, oleoso, feio. Meus lábios estão rachados mesmo que eu tenha uma dezena de produtos para cuidar deles. Minha pele continua seca e escura, muito embora boa parte do meu armário esteja ocupada com cremes. Não tenho, no entanto, forças para usar nada disso, e continuo comprando na esperança de que algo mude, de que consiga ser um pouco melhor... É sempre assim, a minha autoestima cai e eu paro de me cuidar, por parar minha aparência fica cada vez pior e isso detona ainda mais a minha já combalida autoestima. É um ciclo vicioso. 

Minha cama está por arrumar há semanas, a poeira cobre as minhas coisas e até mesmo as atividades do curso eu deixo todas para a última hora. Minhas obrigações do trabalho estão todas atrasadas, e não consigo me importar em corrigir nenhuma delas, tenho sido nada mais do que um professor relapso. Se resolvo fazer algo, sinto sono. Se deito para dormir me perco em pensamentos sem nexo algum. Meus dias tem sido monótomos e repetitivos, mas isso não faz com que eu tenha vontade de mudar. Não tenho forças para ser diferente. É um torpor absoluto. Não consigo me empolgar com nada além de algumas poucas sinfonias grandiosas, mas temo que até mesmo elas percam seu brilho com o passar do tempo. 

Como chafurdar na lama eu me sinto cada vez mais sujo, cada vez mais distante dos meus ideais e cada vez mais absorto em meus próprios pecados. Muito embora a minha lascívia tenha se esvaído como fumaça no vento eu ainda me sinto preso num mundo de luxúria bruxuleante. 

Me sinto sendo lançado numa água revoltosa que me sugou todas as forças, que me cansou de tal modo que já não consigo mais nadar. Vivo uma vida ao vento. Sem rumo, mudando a cada momento. Sem ordem alguma, apenas indo para todos os lados. Suportando as ondas e golpes mortais do destino. Suportando os abandonos, as risadas, as maledicências. Mesmo sem saber até quando conseguirei suportar, até quando farei valer o simbolo que agora estampa minha barriga. 

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Da Insensatez


"[...] todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer, até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso, mas tudo é dele, uma vez que ele detém um direito incontestável não apenas sobre nossas posses e nossos ganhos, mas também sobre nossos braços e pernas, nossos olhos e nossos ouvidos, e até mesmo sobre nosso nariz o centro do rosto."
Arthur Schopenhauer

Insensatez, querer compreender esse mundo hostil que nos cerca. Insensatez pensar que nós, seres fracos, cuja vida mais longa não dura mais do que algumas décadas terminando na completa senilidade e decrepitude, nós, incapazes de nos entendermos, podemos fazer alguma coisa de grande valor. 

Quando essa era passar, nada do homem restará para o universo, seremos esquecidos como poeira ao vento. Quantos séculos durarão nossas construções? Por acaso nossa filosofia existirá quando tudo for destruído pelo tempo? 

Os homens são brinquedos nas mãos de uma criança chamada destino, que nos molda a sua vontade e nos abandona à revelia. Nada dominamos. Antes disso, somos dominados sem que sequer percebamos. O pouco livre arbítrio que nos resta é usado com a malícia que habita a profundidade obscura de nossos corações, lançando para fora aquela bestialidade que ousamos dizer que nos diferencia dos outros animais. 

Esperança é a maior ilusão que pode haver nessa vida, talvez até mesmo maior que o amor. 

O outro me entenderá, 
o outro me amará, 
o outro me fará feliz, 
eu conhecerei a felicidade
gozarei do amor

A esperança pode fazer-nos ver o amor, felicidade, onde na verdade não há. Trata-se, talvez, da mesma coisa, usando capas diferentes para nos enganar. São as mil faces do mesmo destino que, vestindo desta ou daquela maneira, torna a querer nos torturar para seu simplório deleite num teatro cósmico de proporções existenciais. 

As destruições que experimentamos nada mais é do que a demonstração de seu poder infinitamente superior. Se nós nada controlamos e nada dominamos, o destino nada deixa escapar, e até a menor centelha de esperança é por ele extinta numa tempestade impetuosa e destruidora. E quanto a nós, nada entendemos. 

Apenas andamos em círculos, como macacos, na palma da mão do destino.

E quanto a mim, eu só queria que as músicas que me tocam tocassem os outros também. Só queria compreensão. Mas ninguém parece ouvir, ninguém parece se importar. É como se a música existisse só na minha cabeça. É como se o mundo existisse só no meu coração. E, os outros, bem, os outros são o cataclismo que ameaça destruir toda a existência. 

A Bailarina

Um violino solitário, soando ao longe uma doce melodia, um andante moderato, embalando os passos de uma pequena bailarina torta que dança despreocupadamente com seu cabelo ao vento e seu vestido longo. As folhas do outono desprendem-se das arvores e se esvoaçam ao redor da moça, com seus de laranja e ocre contrastando com o tecido vermelho e os cabelos castanhos sob o sol... Ela dança e dança, sorrindo feliz por um instante.

Pássaros voam ali perto, e peixes nadam na água fresca e cristalina do riacho que corre ao lado da vila. Algumas crianças brincam correndo e um ou dois cachorrinhos as seguem. E a bailarina dança. Dança porque compete a bailarina dançar como compete as crianças brincarem e aos pássaros voarem. É o que ela sabe fazer e é o que ela faz para sobreviver. 

O violino ainda toca e, aos poucos, a música se torna triste, é como se a bailarina chorasse, seus passos são lentos e pesados e seus olhos estão marejados. O violino lhe traz à tona lembranças de um tempo que fora feliz, de um tempo que dançava por amor, que dançar era tudo para ela. Um tempo que agora parece tão distante, tão cinza, tão coberto de poeira... 

Uma corda se partiu e a música mudou mais uma vez. O violino entrou num frenesi para compensar a corda que se foi, o desespero toma conta da bailarina que agora salta em desespero e euforia. Seus pés doem, mas ela não pode parar de dançar e o violino não pode parar de tocar. 

As pessoas começam a se reunir a sua volta, sorrindo e aplaudindo, mas ninguém percebeu que a corda estourou e que a bailarina chora de dor por seus pés. Todos riem e pedem que eles toquem e dancem mais e mais, a apresentação não pode parar. Uma criança observa uma lágrima por entre o sorriso da bailarina escorrer e desaparecer na cambraia rubi. 

A música se cansa, e volta aquele adágio lamentoso de antes. Os pés ensanguentados já não querem mais dançar. Tudo o que a bailarina deseja é parar, mas não pode. Aqueles que a rodeiam acham que aquelas lágrimas fazem parte da encenação. 

As luzes se acendem conforme o sol desaparece, morrendo silenciosamente no oeste. Um cheiro de comida sendo preparada preenche o ar, e alguns trouxeram bebidas para se divertir enquanto assistem a bailarina e seu violino solitário. 

A música, agora metódica e sem vida, faz os transeuntes e camponeses dançarem, e assim se distraírem. Eles dançam ao redor de uma fogueira grande, e bebem e riem e brincam sem notar que a jovem afasta-se cada vez mais da música. Seu coração silenciou-se. Sente apenas os pés dolorosos e o violino em seu pescoço. 

Outras pessoas começaram a dançar e, o que era o show da bailarina torta virou uma festa de toda a vila. Todos estavam sorrindo contentes quando o som do violino morreu em meio aquelas conversas e a bailarina jogou-se ao fogo, sem gritar, pois a dor maior ela já sentira quando fora obrigada a tocar e dançar, pois era a única coisa que sabia fazer, sem que ninguém percebesse que cada nota de cada música era um grito pedindo por socorro, que alguém a livrasse daquela maldição solitária. 

O fogo ouviu suas preces e, consumindo a madeira do instrumento e a dor que um dia fora sua sina. Sem mais música, sem marchas fúnebres, sem obrigações a pesar por sobre as costas. Tudo consumido pelo fogo, e a derradeira nota sumindo no ar sem que ninguém percebesse...