segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Daquilo que habita


Minha infância, na escola, não foi fácil. Não era como as outras crianças, sempre rodeadas de amigos brincando na rua até tarde. Eu nunca brinquei fora de casa, e nunca tive muitos amigos. Tive de me acostumar a me virar sozinho, embora detestasse isso, e a me contentar com a companhia de meus primos, quando podiam ficar algum tempo comigo. Foi assim até que eu me acostumasse, a ficar sozinho, a me divertir e me distrair sozinho, enfim, a ser sozinho. 

Eu fui crescendo, e comecei a fazer algumas poucas amizades. Algumas pessoas que me marcaram foram ficando, e com elas eu me sentia bem. Podia, com elas, falar sobre quase qualquer coisa, sorrir, brincar, enfim, ter contato com o outro. Foi aí que eu descobri o que era o outro. Foi aí que eu comecei a entender o quão grande é o mundo e o quão variadas são as experiências que as pessoas têm. De fato é algo fascinante, perceber o quanto o mesmo mundo pode ser visto de tantas perspectivas diferentes, e quantas perspectivas um de nós pode ter. Foi a abertura para uma constelação de experiências. Mas ainda assim eu percebo, agora, que se tratou de uma experiência comedida. Mesmo fazendo alguns amigos eu não cheguei a ter tantos amigos quanto as pessoas parecem ter a minha volta. Ainda era, mesmo assim, uma experiência um tanto quanto solitária. Como uma única pessoa, deitada na relva observando as miríades de estrelas no céu. 

Depois de um breve período de minha vida, rodeado de pessoas e amigos, me vejo uma vez mais sozinho. Todos se foram e alguns eu mesmo deixei. Eu cansei, de todo aquele barulho ao meu redor. E o mais importante de tudo, fui abandonado. Claro, acho que se pudesse escolher teria preferido continuar rodeado de pessoas pois, mesmo ainda estando vazio, ainda conseguia abafar um pouco os gritos que vinham deste mesmo vazio. 

Mas isso já não é mais uma opção. Fui novamente largado nesta ilha deserta, tendo como única companhia a solidão. Agora escuto com precisão cada grito que vem da profunda escuridão do meu próprio coração. 

Poucas, ou quase nenhuma, são as pessoas que me perguntam como estou. Menos ainda são aquelas que se interessam de verdade pela resposta, senão que perguntam pela educação que dita que é de bom tom perguntar algo assim antes de pedir algum favor. Poucas são as que conseguem perceber o cansaço que sempre estampa meus olhos fundos e frios. Poucas são as que percebem o desespero por trás da minha voz e das minhas piadas. A verdade é que ninguém, além de mim, sabe o desespero que é acordar todos os dias e saber que continuo nesta existência patética e sem propósito.

Meu telefone continua cheio de mensagens, a maioria delas de pessoas que querem algo de mim, me pedindo favores ou me informando sobre coisas que eu devo fazer. Não há nada ali de verdadeiramente humano. Não há confissões de pecados, e nem declarações de amor. São mensagens vazias, cheias apenas de desejos egoístas e de uma vista nublada sobre quem sou. Poucas são as pessoas que, além de meus pais, se preocupam de verdade comigo. Poucas também são as pessoas com que me preocupo de verdade. Todo esse processo me deixou deveras egoísta. Ou talvez tenha apenas me despertando para uma preocupação maior comigo mesmo, em detrimento daquela que sempre dava aos outros. 

A verdade é que passei tempo demais olhando as estrelas. Tempo demais tentando entender as pessoas que estavam tão distantes de mim, e acabei esquecendo de cuidar de mim mesmo. Agora experimento a verdade amarga de estar rodeado de pessoas e perceber que, na verdade, todas estão há universos de distâncias, embora estejam ao alcance de minhas mãos. 

Não tenho mais nenhuma vida social, no sentido de que não tenho mais alguém com quem possa abrir as pétalas mais fechadas de minha alma. Não há alguém para quem possa mostrar o vazio que há em mim sem que a pessoas não regurgite tudo em profundo desprezo. E não tenho mais vontade de buscar alguém para me abrir. Não tenho mais vontade de nada além de ficar deitado no quarto escuro, ouvindo música e esperando a morte finalmente chegar. Há alguma vontade de viver em mim?

A minha verdade é que não. Muito embora eu saiba que tenha de cuidar de mim agora, eu ainda acho isso perda de tempo. Um esforço em vão que só pode culminar, e que só vai, culminar na morte, Ao fim de todo esforço está a morte. Então qual a razão por detrás do esforço?  Há apenas aquele instinto primitivo de preservação, que luta violentamente contra minha falta de vontade. Essa batalha é o único movimento que há em mim. E é dessa batalha que fluem as letras de sangue carmesim que escrevi aqui. O que faço todas as vezes que escrevo não é outra coisa senão isto, um testamento da vontade e do vazio que habita meu âmago. 

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