terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Sobre quem deveria ter sido


Considero de um simbolismo ímpar, a chuva forte nesta tarde do último dia no ano. O ar se encheu de umidade, o cheiro da terra molhada perfumando o mundo. Gosto disso. Gosto ainda mais do efeito que a chuva tem em mim. Alguns deve saber que me sinto especialmente reflexivo sob o som das gotas nas telhas e janelas, o som dos trovões e as belíssimas luzes dos raios. 

A chuva tem esse poder sobre mim pois ela me torna consciente de minha imensa pequenez. Gosto disso, ela afoga violentamente qualquer traço de orgulho e ganância que possa haver em meu coração. Ao nos deparamos com uma coisa tão grandiosamente poderosa quanto uma tempestade nós percebemos, que não somos nada e que nada que possamos conquistar se equipara as forças titânicas da natureza. Essa beleza não me assusta, antes disso, me faz perceber a beleza do imenso universo ao qual pertenço.

Pois bem, o último dia do ano. A reflexão, uma certa nostalgia e ansiedade pelo que vêm por aí são inevitáveis. Vários problemas podem aparecer, afinal é época de todos compartilharem as suas melhores experiências, criando em nós uma sensação de que nos é necessária uma vida perfeita, de sorrisos, praias e brindes. Quando nos damos conta de que isso é apenas um trecho ínfimo da existência, apenas uma parcela fugaz da nossa cota de felicidade, acabamos caindo no desespero. 

Desespero, naquele sentido que tinha Kierkegaard de que buscamos quem somos de verdade, e ao deparar quem somos com quem gostaríamos de ser mas ainda não chegamos lá, caímos em sofrimento. 

Por isso as festas de final de ano não têm para mim um significado muito elevado. Não vejo o ano novo como uma grande mudança além das assinaturas nos documentos oficiais e nos dias dos feriados, descansos merecidos em meio as exaustivas rotinas de trabalho. O ano novo não tem poder de ser um novo ciclo pois, quando bate a meia noite o mundo não se transforma. Apenas alguns números no calendário se modificam. Não acredito muito em mudanças mágicas. A mudança é um processo contínuo, de amadurecimento, conhecimento, e também uma parcela de transformações randômicas vindas do universo. A mudança é um processo, lento e contínuo, que os brindes e abraços do ano novo não parecem perceber.

Passadas as comemorações e, diga-se, a ressaca, percebemos que nenhuma mudança substantiva aconteceu. Se encaramos o ano como um ciclo, ótimo, que um reinicio signifique mudanças, passos, novas noções e decisões, mas é bobagem pensar que os fogos estourados nas praias trarão alguma coisa por eles mesmos. 

Não obstante há sempre mudanças que não podemos controlar. Forças superiores, vontades do coração do outro... Isto está fora de nosso alcance. No mais, termino o ano bem diferente do que o comecei. Consciente de minha solidão, abandonado por alguns de meus amigos mais próximos e abraçado por outros. 

Ciclos, mudanças. 

Aquele rio que nunca pára de fluir. 

Pantha rei

Minha virada de ano contará com os sorrisos de meus pais, num esforço de tornar nossa noite mais agradável. De minha parte, a gratidão pelas mudanças que conquistei, por saber que hoje sou forte e não mais aquele homúnculo débil de meses atrás. Gratidão imensa por aqueles que ficaram, que me consolaram, que me fizeram rir, que pediram minha ajuda fazendo com que melhorasse. Gratidão por esse amor, ainda misterioso mas, que de alguma forma me aquece o coração. De minha parte, um sorriso por saber que, mesmo sozinho me sinto bem e, um sorriso por ver que ser abandonado por aqueles que na verdade me odeiam não é tão ruim assim. 

Pois bem, sei que ao acordar amanhã não haverá nenhuma mudança mágica. Mas sei que continuarei nesse processo de, aos poucos, me tornar quem eu sempre deveria ter sido: Gabriel! 

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