domingo, 1 de dezembro de 2019

Do fruto e da troca

As coisas iam bem, o mundo girava normalmente em seu eixo, o sol nascia e se punha como de costume e tudo estava como deveria ser. As pessoas viviam em paz e harmonia, numa alegre simbiose. Cada um dava o que tinha, o melhor de si, para o bem de todos. Cantavam a todos então essa alegria, contagiando-os de sincera felicidade. 

Mas então alguém resolveu que isso não era suficiente, alguém decidiu que vivia de maneira incompleta e preferiu buscar um algo a mais. A antiga perfeição já não era mais suficiente. E tudo mudou. Sentiu-se um vazio e começou-se a buscar algo que preenchesse esse vazio. Sentiu que deveriam buscar alguém que preenchesse esse vazio. 

O primeiro homem então disse aos outros, que a vida que levavam era infeliz e incompleta, e que no horizonte, em cima de um monte, vislumbrava uma árvore cujos frutos poderiam mudar essa realidade. Os olhos de todos se encheram de graça, o desejo pela perfeição os hipnotizou. Não viveram até ali, sem perceber, numa completa incompletude? Eis que chegara o momento de se satisfazerem com os frutos da completude. A felicidade. 

Galgaram então em direção ao monte onde a tal árvore prometia a felicidade. Ali subiram e se fartaram com os frutos da completude. Frutos que, tendo forma humana, pareciam conter em si a tão almejada alegria. Já não mais sentiam o vazio, que nunca existira, agora sentiam-se completos. A música que saia de seus corações era uma música de exultação, entoada alegremente e jubilosamente em diferentes tonalidades, num crescendo que enchia e elevava o espírito de todos. Um allegro maestoso que causava inveja a todos os homens que os ouvia.

Pela primeira vez viram miríades de cores numa profusão de sensações que os engrandecia de dentro para fora. O mundo tornou-se um lugar feliz, colorido, de inebriantes experiências. Mas nada pode ser obtido sem algum tipo de sacrifício e, para obter aquela felicidade eles sacrificaram algo de grandiosa importância. Sentiram, pela primeira vez, o prazer da embriaguez. 

No entanto, eram pessoas demais aproveitando da felicidade e, alguns, acharam que nem todos eram merecedores dessas doces alegrias. Se menos pessoas aproveitassem da felicidade talvez sobrasse mais e, sobrando mais, talvez fossem ainda mais felizes, ainda mais completos. Desejavam aquela embriaguez mais e cada vez mais. É o vazio novamente, assustando os homens em sua busca incessante e gananciosa. Mas quem escolheriam para excluir da felicidade? 

Eis que o primeiro homem, aquele que decidira dar aos outros o fruto, foi tido como o que menos precisava daquela felicidade, e em assembléia decidiram que dela seria ele excluído. 

Aos poucos foram privando-o da felicidade. Seus olharem tornaram-se frios e distantes, e guardavam apenas maldade e ambição. Ele sabia. Sabia e fingia não saber. Até que a traição se consumara. Aos poucos foram envenenando-o de tal maneira que já não conseguia mais entoar alegremente os cantos de antes. O veneno o deixara doente, e ele foi ficando cada vez mais sozinho, cada vez mais excluído e, os outros, cada vez mais foram alimentando-se daquela alegria que ele uma vez sentira. Para ele, o tudo voltou ao nada. Por fim, deram-lhe o golpe com um punhal pelas costas. Com um poderoso olhar de indiferença na face.

E então a alegria dos outros se tornou maior. Extasiaram-se com aquilo que roubaram de seu companheiro e refestelaram-se às suas custas. Tudo então mudou. O canto de idílio que ele cantava emudeceu. Só havia um silêncio sepulcral e ventos que traziam o cheiro podre de corpos da guerra. Os outros, continuavam sentindo os aromas das comidas e das bebidas. A embriaguez tornou-se sua única alegria. Também já não cantavam mais, senão que apenas chafurdavam nos próprios prazeres, sendo tomados pela ganância e pela gula de tal modo que esqueceram o quanto um dia foram felizes. Eis o que perderam: aquela completude que tinham antes de passarem a crer que eram incompletos. 

E mudança não assustou a todos, embriagados demais para notar. O único que percebeu foi aquele que, excluído da embriaguez se tornou capaz de observar na sobriedade as mudanças que ocorriam nos seus antigos companheiros. Sua cerviz tornou-se dura, seu olhar frio e vazio. Observa, de longe a alegria que sentem sem ele. Percebeu que, na vida, há uma corrente de transformações que, de tempos em tempos, tudo muda. A felicidade transmuta-se em dor, a dor por sua vez torna-se resiliência, a resiliência se muda em uma terna alegria, e o ciclo se reinicia. 

Este ciclo, por sua vez imutável, é o elemento fixador na alquimia da existência, feita de decomposições e recomposições. Destruição e recomposição. Mas o que ele conseguirá receber desta troca equivalente? Transforará sua solidão em companhia, agora que os dias quentes se foram e as noites escuras o assustam? O fruto proibido que comeram tornou-se causa de queda e destruição para todos. Foi o preço pago pela troca equivalente. Deram a Ele agora estão cegos demais para perceberem que se encontram na lama de sua ebriedade. O outro, mesmo sendo capaz de ver o que se passou, também se encontra na lama, da solidão, sendo chapinhado pela chuva grossa que o faz sentir falta da época em que o calor dos outros lhe bastava. 

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