sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Isso é tudo

É meio difícil chegar ao último dia do ano e não parar pra fazer um balanço geral dos meses que se passaram, o que significou a mudança das estações, o que reservou a sucessão dos acontecimentos na minha vida. 

Foi, sem sombra de dúvidas, um ano dificílimo: desemprego, crises sucessivas de depressão e pânico que me deixaram prostrado sob o peso dos meus próprios pecados, amigos que me deixaram, amizades que eu decidi encerrar, crise familiar, e tudo isso somado a crise mundial que, de um modo ou de outro impacta em mim, seja na compreensão pessimista do quadro geral ou na íntima constatação de que o universo parece cada vez mais hostil. 

E é partindo dessa expressão que eu começo, a de que o universo soou nesses últimos meses como um ser de hostilidade ímpar, decidido a me destruir. Mesmo eu sabendo que o universo é completamente indiferente a mim, essa foi uma experiência que eu não posso negar que senti a todo momento.

As dificuldades foram tantas que eu tive até mesmo de me afastar da igreja, mais precisamente da pastoral, por não conseguir mais conciliar as minhas obrigações com as minhas crises pessoais. Foi uma decisão dura, mas foi necessária e eu pude sentir uma leve melhora. Agora, eu me sinto menos pressionado do que quando era responsável por todas as celebrações da igreja sozinho. 

Foi o ano que eu me vi completamente dependente de remédios pra tudo, seja os que o psiquiatra passou pra me ajudar a me reerguer ou aqueles que eu uso pra fugir da realidade, sem medo de assumir que é isso que eu faço.

Sempre que tomo remédio para dormir, pouco antes do efeito sonífero começar, eu sou tomado por uma súbita onda de energia, e muitas vezes acabo até fazendo ou falando alguma bobagem no calor do momento, mas eu gosto de me sentir assim. É como se eu finalmente acordasse brevemente, antes de cair no sono profundo e desejado. É um breve piscar de uma chama, logo desaparece num oceano de enevoado dormir, é meu prêmio tão esperado, meu momento, minha supernova. É pra esse momento, e apenas para ele, que eu existo. Para me entregar ao deleitoso não ser, para não sentir, não sonhar, apenas isso, um momento de negação de tudo aquilo que poderia ser, um momento de revigorar o que foi cansado pelos dias, de adormecer lentamente enquanto a música toca ao fundo, como um hino aos mortos, cantado em meu próprio leito ao lado de carpideiras. É uma imagem incerta, admito, mas é uma imagem que me agrada. Eu me assumi um covarde que aprendeu a fugir de tudo e de todos. 

Mas e as coisas boas? Não posso dizer que no meio desse turbilhão de crises emocionais não houve nada de bom. Houveram momentos sim em que eu tive esperança, em que eu me senti bem, em que eu me senti vivo. A quase totalidade deles foi enquanto acompanhava as histórias de amor que, nesse ano, foram as minhas companhias mais fiéis, estando comigo quando eu não queria ou não podia estar com mais ninguém. Quando não estava com elas estava em companhia da solidão, mesmo em meio a multidão. Foram essas histórias as responsáveis por manter acesa a pequenina chama que ainda há dentro de mim, e cada cena, cada personagem, cada beijo ou toque carinhoso, foram pouco a pouco me devolvendo a alegria que me foi roubada. A música não parou de tocar, nem por um momento sequer, e preencheu o vazio que havia em meu coração, abafando os gritos da minha alma inquieta. 

Quantas dúvidas eu tive em meu coração. Não sabia quem sou e nem os motivos de ser, a existência ainda me parece um mistério muito maior do que a minha consciência é capaz de abarcar, e em todos os dias elas me encheram de incertezas, incerteza sobre o amanhã, sobre o que eu posso ser, sobre o que eu devo fazer. Dúvidas que ainda deixam a minha mente sem controle, desesperada, tomada pelo pavor, todas as noites. 

Não estou completamente só, como muitas vezes dei a entender, mas a cada ano o número dos meus amigos se reduz pela metade, e eu sou grato aos que ficaram, preferindo esquecer e ressignificar os que se foram. Tenho hoje, mais do que nunca, a consciência de que somos mundos diferentes que nunca vão se encontrar, não havendo Instrumentalidade capaz de desfazer as barreiras que nos separam uns dos outros. 

Não tenho perspectivas de futuro, isso morreu em mim há muito tempo, e vou vivendo apenas um dia de cada vez, sem esperar nada de ninguém ou, no máximo, esperando o pior de todos, e assim vou, acordando a cada dia com um ceticismo no meu peito e a certeza de que nada vai dar certo, de que as coisas são uma porcaria e isso é tudo. 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Do mesmo

Autoconhecimento é, ao mesmo tempo, um grande passo rumo a caminhos mais elevados e uma constante fonte de preocupações. É impossível voltar o olhar para si mesmo e não perceber o quanto somos falhos e o quanto ainda precisamos melhorar. Percebo isso desde uma conversa casual com  minha mãe até mesmo em exames mais profundos sobre as minhas atitudes e a minha forma de contemplar o belo, de buscar o que é bom, justo e verdadeiro. 

Quantas pequenas imperfeições que, ao fim das contas, deixam o todo com aparência desfigurada? O meu ser se encontra deformado pelas pequenas falhas que eu vinha ignorando e que, somadas, se mostraram grandes falhas. 

Fiquei na cama um dia por não me sentir bem, e adiei o que precisava fazer por um tempo, meses depois eu vejo que isso me dominou e hoje eu já não consigo mais me levantar sozinho. Talvez se tivesse insistido um pouco lá atrás hoje eu não estaria assim tão debilitado. 

E minha forma de amar? O conceito que tenho de amor, aprendido nas histórias que me dão o sentido da possibilidade humana me ensinou o que é o amor de forma correta? Eu sinto que sou capaz de amar, mas tenho medo de que o que sinta não seja amor e somente egoísmo, que eu apenas esteja num culto de mim mesmo. 

Essas histórias me ensinam o que é o amor? Parece-me que sim, mas eu tenho medo, parecendo que a semente da dúvida foi plantada no meu coração. 

Mas esse é o único amor que eu conheço, esse que chega de repente, sem interesse, a arrebata o ser por completo. O amor que não se explica, que vem de onde menos esperamos, esse amor é o amor que vem do nada e de repente se torna tudo. 

Quero ser capaz de amar, apenas isso, e progredir no amor, progredir melhorando a cada dia, e que esse amor seja genuíno, que não seja um arremedo, que não me deixe cair na mentira e nem que me faça me perder em mim mesmo. 

Nisso também vejo o quanto preciso melhorar, o quanto preciso me doar mais ao amor, o quanto ainda tenho de percorrer nessa longa estrada. 

Ainda há muito a se fazer. Muito a melhorar, um longo caminho a aperfeiçoar cada passo. Isso me assusta ao mesmo tempo que me impele a desejar o maior e melhor. Eu não quero e não posso ficar apenas na superficialidade de um amor que se contenta com qualquer coisa, eu quero intimidade, quero verdade, quero encontro da alma com o amado e a transformação que vem desse encontro. Eu não quero mais ser o mesmo. 

Eu quero amar, mas não amar no sentido comum do termo, não quero esse amor que apenas pinta-se nas postagens da internet nos bons momentos e que logo depois arrefece, não, eu quero um amor de verdade, presente na clareza dos dias felizes e nas trevas da noite escura, tanto no mar quanto no deserto, eu quero amar e ser amado sem barreiras, sem limites, eu quero conhecer o amor de verdade, aquele que habita no profundo do jardim cercado, que repousa no infinito, sendo, ele próprio, infinito.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Aforismos

Todas as noites eu me obrigo a fechar os olhos e dormir, me obrigo pois se permanecer acordado eu vou ver o que não quero e isso pode me assustar e, se assim for, despertar o pânico que constantemente dorme nos profundos recessos da minha mente. E então é melhor que ele permaneça adormecido, ou então não terei paz, ou então serei carregado para o profundo inferno, onde verei os piores tormentos, as piores torturas por um tempo sem fim. Por isso ao fechar os olhos eu obrigo a minha mente a se desligar, mas algo permanece acordado, pois ao amanhecer, o meu corpo continua cansada e minha mente como que se tivesse se mantido em pleno funcionamento, desgastante ao extremo, durante toda a noite. Mesmo quando amanhece eu só vejo escuridão. Isso porque ele não me deixa dormir de verdade, esse pânico que habita o profundo da minha alma. Quando ele há de me deixar? Quando ele irá embora? Ou ele vai terminar de, um dia, me devorar por completo

X

E eu não vejo solução no meu horizonte. Não me vejo encontrando alguém, não me vejo trabalhando, senão que me vejo sendo mais e mais esse homem solitário e inútil, que veio ao mundo sem saber o motivo e não encontrou nada que pudesse fazer. Me vejo numa mesma cama quente, incomodado com o sol batendo sob meu rosto, um calor infernal, o cheiro de podridão vindo da minha própria pele. E assim se acaba a vida, uma vida miserável. O calor é mesmo um incômodo. 

X

Talvez eu queira me entregar a alguém nessa noite, num assomo de luxuria, e deixar que me sujem, que me deflorem, fazer o possível pra que me tirem desse torpor, desse vazio melancólico. Deixaria que fizessem o que quisessem comigo, já não tenho amor próprio ou escrúpulos contra nada. Apenas quero reagir, quero deixar de ser esse homem que deita sem esperança de levantar e que chega mesmo a desejar que não acorde mais. Quem sabe alguém poderia me despertar desse estado de completa alienação. Mas eu sei que isso não resolveria nada, e nem meu corpo conseguiria reagir. Me refugiei tão no fundo de mim mesmo que já não sei mais o que pode ser profundo o suficiente para me alcançar. Será que ainda há o que ser salvo? 

X

O caos se instaurou, e sabe-se lá quanto tempo ainda vai demorar pra que as coisas voltem ao mínimo de ordem. Não gosto disso, já basta a bagunça no meu interior, não queria ser obrigado a viver também no caos completo, mas parece que os planos do universo são justamente esses. Lástima. 

Eu sabia que no dia da mudança propriamente dita eu estaria no ápice, ou melhor, no fundo do poço. A depressão veio com força tremenda, me deixando sem reação, atônito, sem conseguir concatenar nada dessa vida. E isso no dia que eu mais precisava de força, de diligência, de poder me mover e ajudar. Mas eu fui reduzido ao nada, e o nada nada pode fazer. 

X

A força veio, de onde eu não sei dizer, mas ela veio, e eu consegui erguer do chão mais peso do que jamais imaginei ser capaz. Me senti forte, capaz de enfrentar leões, e durante todo o dia eu consegui me manter como uma pessoa "normal", carreguei móveis e caixas, arrumei ambientes, enfim, tudo o que precisava para sobreviver a este dia. 

Agora finalmente posso descansar, as coisas já um pouco arrumadas, começando então o cotidiano de arrumação, que deve levar ainda algumas semanas. 

Mas agora, é aquela hora em que a fadiga e o cansaço resolvem cobrar uma taxa do nosso corpo, e me sinto exausto. Talvez volte para o torpor de antes, por sorte consegui sobreviver, mas consegui fazer o que precisava e isso é o que importa. Uma vitória. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

Que se perdeu

Cheguei cedo, depois de ter saído mais cedo ainda, e me deitei. A alergia escolheu um dia e tanto pra me atacar, me fazendo ficar na cama por metade do dia, a depressão como boa companheira que é se encarregando do restante do dia. Me levantei apenas por alguns minutos pra encaixotar alguns livros, minha família ainda em clima de mudança à prestação, metade da casa um caos completo, a outra casa aos poucos ganhando nossos contornos mas ainda sendo um castelo de paredes brancas e frias que pouco me lembram um lar, o teto desconhecido. 

Minha cama é um dos poucos lugares que ainda não foi afetado pela mudança, e talvez por isso eu prefira ficar nela e fechar os olhos pra tudo o mais. Não quero comer e nem tampouco conversar, apenas contemplar a minha solidão e a escuridão do meu coração, no silêncio do meu próprio caos. Eu não pedi por essa mudança, acho que é apenas um pretexto pra um cansaço enorme e sem propósito. E já me sinto cansado desde já.  

Não eu não me sinto bem, e não sei o que posso fazer pra mudar isso. Tenho estado adiando tudo que posso, não tenho feito compromissos, tenho dormido mais do que o necessário apenas pra viver menos cada dia, e cada dia é um peso e nada mais, essa mudança é um peso e nada mais. A música minha companheira inseparável. Os únicos momentos de prazer genuíno que tenho são os breves instantes em que assisto alguma série, os BLs sendo meu único refúgio nesse mundo que eu tanto desprezo, mas até eles me afetam negativamente, criando em mim a esperança de um futuro impossível. 

Estou num fim de tarde de um feriado em que a alegria está no centro de todas as celebrações e, no entanto, tomar essa champanhe barata com clonazepan é a única coisa que eu fiz hoje, de resto me sentindo apenas morto, por dentro e por fora. O padre disse na homilia que nada deveria roubar a nossa alegria, mas é tarde demais, pensei, a minha já se foi e eu não tenho ideia de onde possa estar para que eu a recupere. E eu nem sequer sei como reagir a isso. 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Ao outro

Ele nem ao menos sonha ser objeto de tanta contemplação minha, não imagina que as minhas tentativas tolas de interação são, na realidade, tentativas de preencher com sua figura o espaço que se abriu no meu peito e que se identifica pelo seu nome. 

Desde que o vi algo se acendeu em mim, não uma paixão baixa, não fruto de desejos feios e abjetos, mas um sentimento de pura contemplação, ele se tornou objeto não de desejo mas sim de um afeto simples e puro. Desde que o vi muito do meu tempo foi dedicado a segui-lo com os olhos, a tentar aprender mais sobre ele, a conservar na memória aquela imagem que, tão logo ele se fora, se esvaíra dos meus sentidos. Por isso meus olhos o seguem e meus lábios imitam palavras que tentam despertar nele o mínimo de curiosidade, que ele perceba a minha existência, como a existência dele se tornou o eixo ao redor do qual eu giro, desde que o conheci. 

Queria ter ido naquele dia, como combinamos, mas eu não consegui sair da cama, e me dopei e passei o resto do dia dormindo, mas nos meus sonhos lá estava ele, altivo, nobre, pacífico, e completamente indiferente a minha existência. 

Mesmo com um sorriso irônico levemente esboçado no meu rosto eu ainda penso nele, sabendo que em nada conseguiria toca-lo, que nada minha existência significa para ele, sendo minha admiração um sentimento de mão única, no entanto, sendo a mais alta admiração que se pode ter por alguém, mesmo um alguém quase estranho, alguém que se viu umas poucas vezes, alguém que só trocou comigo uma meia dúzia de palavras, mas que despertou no meu interior mais do que dezenas de dias convividos com tantos outros. 

X

Ou será efeito apenas da minha carência afetiva que encontrei nele outro objeto de desejo, outro objetivo a ser atingido simplesmente porque já não tinha em meu coração a quem admirar e me sentia sozinho e vazio por isso?

O coração parece sempre buscar a quem admirar, como uma fera procura a quem devorar, e pode ser que ele seja a vítima da vez, uma pobre vítima dos meus desejos luxuriosos manifestada na sua figura misteriosa.

X

Mas o que sinto não tem esse tom luxurioso que normalmente as minhas incursões trazem, mas apenas uma admiração do tipo platônica, ideal. Não o vejo como alguém a quem queira possuir, ou alguém para quem eu queira me entregar, apenas o vejo como alguém de alta nobreza, de grande interesse, de uma superioridade que nem sei dizer de onde vem mas que me encanta de tal modo que não consigo desviar o olhar dele sempre que cruzamos. 

Por mais que sonde o meu interior essas duas visões se entrecruzam, e eu não sei o quê nele me chamou tanta atenção, se foi um encanto genuíno, uma paixão nova e pura, ou apenas um desejo luxurioso, uma necessidade de ter a quem amar, de ter a quem desejar sem nunca poder tocar, um ideal inatingível, um fetiche irremediável de desejar sempre o que não se pode ter. Eu não sei dizer o que é, mas sei que não posso mais ficar indiferente a sua presença. 

X

No fim das contas, ao fim do dia, não importa quem seja objeto de contemplação ou quem se perca em devaneios na beleza do outro, a ansiedade sempre vem pra estragar tudo e, quando ela chega, não tem beleza, não tem paixão, não tem admiração que sobreviva, tudo é demolido, tudo é reduzido às cinzas. Eu sou reduzido às cinzas, tudo retorna ao nada, e tudo que vejo é caos e o desespero tomando conta de mim, pouco a pouco, me consumindo, até que não sobre nada. 

E eu só queria um alguém pra contemplar, sem dar trabalho, sem ser motivo de preocupação para meus pais e amigos, queria ser eu por mim mesmo, mas a cada noite, a cada crise, a cada lágrima derramada de pavor eu me vejo ainda mais distante desse ideal, com medo do amanhã, com medo da morte, com medo de quem eu não fui e deveria ter sido, com medo de quem sou. 

Só me resta ansiar pelo fim, é o meu reflexo, é o que meu ser deseja quando se vê consumido pelas chamas do desespero. Já não há aquela felicidade simples de antes, na beleza do amado, só há lugar para o desejo mórbido do fim. 

"Quando me penso morto o ar fica completamente puro." (Bukowski)

Aforismos

Hoje me veio uma lembrança de você, que há alguns anos não vejo. Você está bem? Lembra de quando virávamos a noite conversando sobre a história daquele anime ou sobre como nos sentíamos sozinhos dentro de casa e queríamos fugir pra um lugar distante? 

Você fugiu, e me deixou aqui, e eu nem sonho onde você pode estar agora, esperando que esteja bem, esperando que tenha encontrado o que te deixava tão inquieto, o que você buscava tão avidamente. Espero que você tenha se encontrado. Mas eu também queria me reencontrar com você. A sua imagem apareceu assim pra mim, com força, e eu não sei o que fazer com ela. Você está bem?

Saudades do seu sorriso, do seu senso de humor único, das suas fotos de patinhos, do brilho doloroso no seu olhar, de ouvir você dizendo meu nome baixinho quando alguma coisa acontecia...

X

E me veio outra tempestade de areia, lançando-se sobre meus olhos e turvando-me a visão, outra onda de desânimo me destruindo, me transformando em cinzas. Eu já esperava que ela viesse, mas é sempre diferente, é sempre como a primeira vez, mesmo não sendo, mesmo sabendo que muitas vezes eu ainda vou sentir isso, mesmo sabendo que essa é minha condenação eterna. 

"A minha vida tem desfalecido com a dor e os meus anos com os gemidos." (Sl 30)

Não conseguirei sair da cama hoje, essas palavras já me doem a sair. Não quero abrir os olhos e não consigo fazer com que meus braços e pernas me obedeçam. Eles adormeceram, já não escutam mais a mim. Estou sozinho na escuridão da minha própria incapacidade, da minha própria mente, as músicas tristes são minha única companhia. 

Assim se vai mais uma semana, ou duas, quem é que sabe? Agora é esperar, que os dias passem, que eu consiga ser útil quando precisarem de mim, que eu não fique totalmente incapacitado, que eu não seja jogado ao lixo, que das cinzas que me tornei possa renascer. E é assim que eu espero, no escuro e entre gemidos, pela minha ressurreição. Por enquanto estou morto, e estas são as palavras que se leem no meu túmulo. 

X

Queria que nada disso estivesse acontecendo, queria poder ficar quieto, e só isso. Nada de mudanças, nada de me obrigar a me mexer, nada de esforço demasiado. Mas ninguém viu isso, e a mudança nem será tão grande assim, somente o cansaço vai ficar, cansaço que eu já sinto antes mesmo de começar e me mexer. 

Queria ter a força e a disposição dos outros. Queria poder me mexer quando quisesse, mas o meu corpo simplesmente não responde como os outros, eu não consigo seguir, eu não consigo ser como os outros, eu estou irreparavelmente quebrado por dentro e por fora e nem sei dizer exatamente o que isso significa, só sei que eu não consigo acompanhar, não consigo correr ou voar como os outros. Eu só sei ficar aqui, esperando uma luz, esperando a minha ressurreição. 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Insegurança

Hoje fechamos o contrato para uma nova casa, numa tentativa de buscar condições melhores, um pouco mais confortáveis, de morar. Acontece que a casa onde estamos foi um grande erro, e só viemos pra cá porque tínhamos pressa em achar uma casa que conseguisse abrigar tanta gente e essa foi a primeira que achamos em condições de morar, mas a situação da infraestrutura é péssima, e isso vem incomodando-nos há nove meses já. Achamos uma um pouco melhor, um pouco distante, é verdade, mas grande o suficiente pra nos abrigar com mais folga. 

O projeto é favorável, a ideia foi promissora e a casa realmente é um achado, no entanto, o que me incomoda é que ela vem justamente numa fase de transição minha, e eu temo que esteja em crise nos dias da mudança, já que ainda hoje parece-me que estou saindo da hipomania. Tenho realmente medo de não estar bem o bastante no dia, de estar incapacitado, o que só vai tornar tudo ainda mais difícil porque não há como fugir do trabalho que vai ser por pelo menos uma semana. 

Me sinto um inútil, a mercê da vontade invisível de uma roda que gira sem controle, mudando meu humor e minha força completamente alheia a minha vontade. 

Meu tratamento tem dado certo resultado: não tenho ficado tão incapacitado quanto estava meses atrás. As crises também tem se espaçado mais, e eu não tenho ciclado mais três vezes numa única semana. Agora, poder fazer compromissos à longo prazo, poder me comprometer a fazer coisas que exigem tanta disposição assim, ainda está longe da minha realidade, não estou em condições de lutar no mundo ainda, visto que estou ainda lutando contra mim mesmo. 

E é uma luta cujo findar eu ainda não consigo enxergar, o tratamento psiquiátrico não parece ser algo que funciona rapidamente. 

O que eu precisava mesmo era de um emprego, algo que me movimentasse, que contribuísse pra minha rotina, rotina é algo que o bipolar precisa com urgência e eu sinto realmente que preciso para mudar. Mas o medo de entrar numa dessas e não conseguir cumprir com minhas obrigações é grande, eu não tenho conseguido encarar muitos compromissos nem mesmo na igreja, onde tenho fugido. 

Queria não depender tanto assim de um ciclo tão incerto, onde estou bem hoje e à noite já entro em depressão. Queria não ser essa bomba relógio, não depender tanto do meu humor, queria ser como os outros, que podem se obrigar a fazer algo, meu corpo, pelo contrário, às vezes simplesmente não responde, e nem eu aceito isso. O que me resta é apenas uma prece:

"Piedade de mim, ó Senhor, 
porque clamo por vós todo o dia!
Animai e alegrai vosso servo, 
pois a vós eu elevo a minh’alma."
(Sl 85)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Instintos

Lidando com as dificuldades que vêm com os instintos mais baixos do meu eu. Meus sentidos impuros cada vez mais se mostram eficazes em humilhar a minha vontade, em arrastá-la pela lama. E eu fico então a gemer, prostrado e arrependido, pelos meus pecados. 

Mas pior ainda são aqueles dos quais eu ainda não consegui me arrepender, e que mancham a minha alma e meu coração. Aquela mancha de rancor que insiste em reaparecer, que faz meus olhos arderem em chamas e transformam meu sangue num veneno mortal, essa mancha custa a sair e tem se mostrado impregnada em mim, turvando as águas de minha alma como um rio agitado, cuja ondas impetuosas destroem aqueles que se atrevem a aproximar-se. 

Olhar para eles é despertar a minha ira, e as minhas virtudes, que já são poucas, são todas encobertas por tal ira, e eu perco o controle de mim, quando vejo já estou amaldiçoando, lançando as piores ofensas, ainda ferido, ainda aberto depois do golpe que levei e ansioso pela vingança que me fará fará justiça. E eu não deveria pensar em nada disso, já deveria ter perdoado em meu coração, mas continuo com essa ferida, continuo sangrando. 

Meus olhos também me levam ao lado oposto do qual eu queria trilhar. Não é preciso muito para me ver desejando, para ter os pensamentos mais depravados com o outro, não é preciso muito para acender a minha criatividade luxuriosa e então mergulhar nas fantasias mais podres e infelizes que a mente humana pode conceber. 

Isso me traz a pergunta: será que meus olhos então me levam ao caminho oposto ou eles só revelam o caminho que, no meu íntimo, eu desejo trilhar? E se essa baixeza não for um traço do meu ser mas for o que eu sou realmente? E se em mim não houver rastros de bondade, grandeza ou santidade, apenas a baixeza animalesca de uma fera guiada pelos seus instintos mais baixos? 

Queria eu ter poder descritivo o bastante para dizer o quão baixo são esses instintos, ficando eu apenas numa larga alusão, numa proximidade, minha alma, no entanto, experimentando com força as realidades que aqui eu só consigo me aproximar. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Aforismos

"Tu não temerás os terrores noturnos, nem a flecha que voa à luz do dia, nem a peste que se propaga nas trevas, nem o mal que grassa ao meio-dia." (Sl 90)

Será que algum dia as noites serão mais fáceis? Será que um dia a incerteza do amanhã vai diminuir? Será que eu conseguirei deitar sem me preocupar com o que serei, com o que farei? Será que é irreal sonhar com esse dia visto que essa incerteza é algo que todos os homens têm? Será que algum dia esse medo vai me abandonar finalmente? Será que conhecerei a paz de uma noite naturalmente tranquila? Sem remédios, sem me forçar a dormir? Eu só queria a sorte de uma noite tranquila, sem ansiedade correndo nas minhas veias, sem pânico me fazendo tremer os joelhos e as mãos, sem lágrimas, sem a absoluta certeza de todo o horror que pode se abater sobre mim. Algum dia eu poderei cantar que não temo o terror que vem a noite e o mal que vem ao meio-dia?

X

A minha solidão, mesmo auto imposta, é às vezes dolorosa. Ver certas coisas, certas pessoas, ainda dói um pouco, mas precisa ser assim. Se eu quero trilhar o caminho da verdade, o caminho que eu escolhi pra mim, as coisas precisam ser assim. Eu preciso suportar, e pra isso recorrer as armas que foram dadas pra enfrentar essa situação, uma música que me ajude a esquecer, uma história de amor pra ocupar a minha mente e meu coração, enfim, algo que ponha em suspenso as lembranças que se forçam a vir, e eu imponho sobre elas a razão de que as coisas precisam ser assim, que eu não posso voltar a viver de mentiras, a implorar por migalhas, a rastejar por afeto. Eu preciso ser só, por mim mesmo, por saber que eu não mereço me sujeitar aquilo como antes, como por tanto tempo eu me sujeitei apenas por medo de não ficar sozinho. E agora, aqui no escuro, na mais absoluta solidão, eu medito sobre essas verdades, e elas se marcam em meu coração. 

X

Estamos todos tentando melhorar um pouquinho, e isso eu vejo claramente, todos querem crescer em algo, se destacar em algo um pouco mais. Por um lado é bom ver esses esforços e por outro é um pouco deprimente ver tantas tentativas que não vão dar em nada, mas talvez a graça e o sentido esteja em tentar melhorar e não em conseguir, e eu sei bem que dizer isso é o mesmo que não dizer nada, e que isso é o que dizem os medíocres para justificar a própria mediocridade, mas agora talvez seja isso que eu precise ouvir porque, olhando meu reflexo no espelho, eu vejo que esse é o melhor que eu posso ser hoje, e que só posso me desculpar por não ser melhor ainda, ou melhor, por não ser bom o suficiente. Isso é tudo o que tenho e sou, e isso é o melhor que tenho a oferecer, e só lamento profundamente não ser o suficiente. Não ser bom o bastante pra paróquia, pros meus amigos, pro garoto que eu gosto, pros meus pais e, principalmente, por não ser bom o suficiente pra mim mesmo, mas isso é tudo que eu sou. Queria poder fazer mais, oferecer mais, ser mais, mas isso é tudo o que eu sou. E por hoje basta. 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Histórias Irreais X Ela

Na companhia de tantas histórias de amor é difícil não se ver sonhando acordado com uma companhia especial. Um meio riso se esboça no meu rosto ao escrever essas palavras pois eu sei bem que as histórias que assisto nunca se tornarão realidade, se tratam apenas de uma narrativa possível, mas não é provável e nem verossímil que aconteça comigo. O clima chuvoso, em que fico mais quieto, mais melancólico e reflexivo também propicia que esses pensamentos aumentem. Mas não, as coisas não são como nas histórias de amor, homens perfeitos não aparecem num momento de necessidade, como se o destino trabalhasse pra fazer o encontro de dois corações uma obra de aparente acaso. Homens perfeitos não se oferecem para ajudar, não cruzam o caminho de repente, não se apaixonam perdidamente pela personalidade. Homens não são doces e compreensivos, não querem conversar por horas e te ouvir contar as suas dificuldades, prontos a ajudar. Não, as coisas não são assim, ao menos não pra mim. Se o destino trabalha em algo na minha vida é para ver a minha completa loucura, e apenas isso. Homens perfeitos não existem senão na ficção pra nos fazer felizes justamente porque, não existindo na realidade, ali nos dão um pouco de esperança, nesse mundo que já não merece esperança alguma. 

X

"A minha dor está sempre diante de mim." (Sl 37)

Estava tudo bem, eu me sentia tranquilo quando ela chegou arrombando a porta. Será que estava tudo tranquilo mesmo? Ou eu já vinha sentindo durante todo o dia que ela chegaria e só não quis aceitar? Eu não sei direito, não sei se ela já estava ou se chegou de repente eu sei que estava tudo mais ou menos bem e, pronto, o silêncio, chegou trazendo consigo a ansiedade que me travou a garganta, que me apertou a respiração, que me jogou ao chão e pisou com força, me esmagando com fria crueldade. E, de repente, não estava mais tudo bem, porque eu via ante meus olhos tudo o que de errado pode acontecer comigo, e todos esses cenários, onde eu morro sozinho e abandonado em cada um deles, é um cenário de horror para mim. E então, esse horror estava já comigo, adormecido, mas acordou para me matar, esse horror decidiu que eu não devo passar dessa noite, decidiu que é me paralisando que ela vai dar cabo de mim. E ela vai crescendo, dentro de mim, e parece que eu vou explodir e depois desaparecer. Toda noite parece a última quando ela vem. Será que eu conseguirei sobreviver a essa também? 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Do próprio vazio

Clarice Lispector disse, certa vez em uma entrevista, que o adulto é triste e solitário. Ela mesma passava por um período difícil de tormentos após o término de uma obra, esperando um desabrochar ou, nas palavras dela, um renascer numa nova obra. Estou falando de meu túmulo, terminava ela a entrevista, com a cerviz séria e semblante cansado. 

Compartilho dessa sua visão, um tanto quanto pessimista do homem que se sente triste e solitário, com efeito sendo essas duas das sensações que mais profundamente estão gravadas no meu peito. Por um lado é bom que o homem sinta-se assim, pois o impele a vida a buscar verdadeira alegria e companhia de qualidade, mas por outro pode levar muitos à perdição de se enganar em prazeres fúteis e aumentam ainda mais a sua sensação de solidão e tristeza. 

Trata-se aqui de uma tristeza profunda, que parece vir do vazio que há no âmago do coração do homem e que ele tenta desesperadamente preencher. Ele pode sentir esse vazio na melancolia de um dia chuvoso e escuro como hoje ou num dia alegre e claro, em nada encontrando companhia, nem mesmo no mundo que o rodeia, estando situado num universo que lhe é plenamente hostil. 

E essa consolidou-se como a minha visão do mundo: pessimista em relação a tudo que esse mundo pode oferecer, ficando a cargo do homem, que dificilmente se esforça para ser o contrário, a tarefa de fazer algo de bom, belo ou justo e mudar a indiferença do universo na atenção do homem individual ao seu próximo.

Mas constantemente estamos ocupados demais para nos importarmos com o outro. A dor que cada um traz consigo é grande demais para ser ignorada e o vazio de cada um clama desde as profundezas para ser preenchido. 

O homem é então um animal solitário, que vive em busca de preencher o seu vazio, raramente encontrando no mundo algo que consiga lhe satisfazer as aspirações mais profundas, não achando razão para ser mas enganando-se nos divertimentos, nas conversas infindáveis sobre qualquer coisas, coisas que silenciem o seu coração angustiado que ardentemente deseja ser preenchido. 

Essa é minha visão, de um mundo que nos é absolutamente indiferente e cujos iguais se tornam tão ou mais indiferentes quanto, na ânsia de cada um preencher seu vazio, vazio esse que é incomunicável e incognoscível ao outro. Estamos isolados em nós mesmo, por isso tristes e solitários, e a única abertura que nos há para mudar nisso é nos abrindo a uma realidade, transcendente, que nos abarca completamente e é capaz de preencher esse vazio. Mas podemos alcançar por nós mesmos essa verdade metafísica? Como não cair de desespero no abismo de nosso próprio vazio?

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Entrada

"Saturada de males se encontra minha alma, e minha vida já se aproxima da região dos mortos." (Sl 87)

Eu nem sequer aproveitei direito a pequena porção de luz que recebi em minh'alma e já recebo pesado golpe do destino. Fui obrigado a ficar cara a cara, novamente, com a verdade inconveniente da minha perspectiva de futuro. Foi um golpe baixo e cruel, que não só me desestabilizou como me lançou de volta para a escuridão da qual eu, com tanta alegria, começara a sair.

Não se trata de outra crise, mas de uma notícia que recebi e que me afetou, que quase me matou, não descartando ainda essa possibilidade, de que ela possa me matar a qualquer dia. 

É o olhar lançado sobre o amanhã, que veio para me assustar. Um amanhã sozinho, difícil, cruel. No entanto é um amanhã que todos enfrentam mas que eu, por algum motivo, não consigo senão tremer diante de sua visão. 

Parece que eu não mereço a felicidade, a tranquilidade nessa vida, senão que minha alma não se aquieta nem por um instante: ela se inflama vivamente de amor e de pavor, simultaneamente, e chega a quase explodir. 

O caminho que quero seguir é o caminho tortuoso, o caminho das rosas, crescer por entre os espinhos. Mas eu sou tão pequeno e fraco que não posso nem mesmo colocar os pés nesse caminho que já me deparo com as dificuldades. 

A primeira delas é o sentido da completa ausência de Deus, provocada pelo meu apego ao pecado que sufocou a Palavra que havia em mim. Me vejo então sozinho, num vale escuro, tentando encontrar alguma luz, mas sentindo apenas o peso da solidão, do medo e do abandono. É como se toda e qualquer presença do divino tivesse se extinguido e eu, pobre, que farei? Que patrono invocarei? 

Me coloco à entrada da Primeira Morada, e tento entrar, enquanto meus próprios pecados me puxam na direção oposta. Enquanto essa secura que sinto não me permite sentir presença nenhuma, senão que sou tomado pelo medo, assomado pelo desespero diversas vezes, clamando por ajuda e exclamando em alta voz:

"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Na contramão

Foi uma segunda preguiçosa, com o céu ameaçando despencar em chuva a qualquer momento e enfim se entregando as vias de fato no fim da tarde, tarde que chegou depois de longas horas regadas de tédio e vontade. Uma segunda marcada pela chegada de um novo ciclo, um pouco de energia circulando timidamente pelas minhas veias. 

Impossível não permitir que os pensamentos voem e desapareçam no ar, sem se deter em nada em particular, lançando apenas sobre a consciência lampejos de sentimentos, como uma pitada de carência, sentida no escuro do quarto na companhia de músicas doces que falam sobre amor ou sobre qualquer experiência boba que foi musicalizada por um jovem cheio de inspiração irrefreável resultando em melodias assim sem formas. 

É como me sinto, aliás, disforme, meio sem caber em mim mesmo. Pensando que sim, uma companhia agora ia bem, bem acompanhada dessa música e dessa chuvinha batendo na janela. Mas também está bom aqui, deitadinho sozinho no escuro, vendo no nada as notas se misturarem com as gotas e comporem uma nova experiência. É, isso é bom. 

Tentei ler um pouco mas quase nada prendeu a minha atenção. Uma resenha da última temporada de uma série e alguns editoriais sobre filosofia política foram as únicas coisas a segurarem, todo o resto escorrendo rua abaixo como a água da chuva que cai lá fora. 

Na contramão dos dias escuros que passaram estar no escuro agora não é assustador ou angustiante, apenas é. E isso é bom, conseguir deixar os fantasmas atrás da porta por um tempo, um pouquinho longe de mim. 

Mas também é bom estar sozinho, mesmo querendo uma companhia. É bom poder escrever sobre tudo e qualquer coisa, imitando em partes os pensamentos de diversas cores que pululam em miríades na minha cabeça. É, isso é bom. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Aproximação

Ele vai se aproximando, muito lentamente. Começa bem ao fundo, como um ressoar de sinos ao longe, uma pequena procissão no fim da rua, um crescendo que começa com um violino solitário, quase imperceptível, mas que vai aumentando, aumentando até conquistar espaço, até soar como uma orquestra inteira, seção por seção, aumentando, até não haver mais espaço, até não me deixar mais respirar, até prender os meus sentidos todos, até me prender completamente, me tornando cativo, prisioneiro de um calabouço de onde não dá pra escapar. Por fim, ao atingir o seu ápice, ele me transforma, me ateia fogo, me faz correr, correr como se fugisse de algo, correr até ficar arfante, tomado, possuído. E, na verdade, eu fujo, fujo desse sentimento que nasce no meu peito e se esparge por meu corpo inteiro, que me transforma em cinzas, me faz ao retornar ao nada. Ele é o desespero, que me consome, que me mata lentamente, que me toma por completo, que me torna ao nada. 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Tormenta e Calmaria

Não consigo sequer explicar o quanto eu queria poder ser e fazer mais, e o quanto sou incapaz de corpo e de mente. 

Dois dias atrás eu tive um ataque de pânico dos mais graves, e eu nem sei o que motivou isso, e acabei ficando em péssimo estado, e pior, deixando minha mãe ainda mais preocupada comigo. Além de uma crise depressiva que já dura algumas semanas eu ainda dou esse tipo de trabalho, no meio da noite, com a minha idade. Eu jamais terei técnica literária suficiente pra descrever o quanto isso é patético e deprimente. 

Além de fazer tudo nessa casa ela ainda arruma tempo pra se preocupar comigo, e deixa de dormir pra vigiar o meu sono com medo de que eu tenha outra crise. 

Agora eu me sinto a pior pessoa do mundo, por estar matando aquela que é a mais importante pra mim, por ser como um parasita que só é capaz de destruir. Eu sou um monstro. 

E nem mesmo depois dessa constatação eu consigo fazer alguma coisa, me tornando ainda mais impassível, deitado, entorpecido, enquanto ela se preocupa com o que eu vou comer. 

Não existe estado humano mais abjeto, ninguém poderia descer tanto assim, mas eu o fiz, não sendo mais digno nem mesmo de ser chamado homem mas sim verme, um verme que rasteja na podridão da própria existência, que não tem sentido no ser, que só serve pra sugar a vida daqueles que ama e nem mesmo é capaz de dar alguma coisa com esse amor, tão pífia é sua maneira de ser. 

O que mais eu poderia sentir de mim mesmo além de nojo? Que gostaria de sair de mim e dar eu mesmo uma cusparada na minha carranca? Não sei como me aceitam ainda andando entre os homens como se fôssemos iguais quando eu notadamente estou muito abaixo de qualquer existência!

X

As histórias de amor têm sido o único alento dessa alma atormentada, o único refrigério que meu espírito em agonia recebe nessa existência miserável, nessa baixeza sem igual. As histórias de amor são a única coisa que vale a pena aqui nesse abismo onde vivo desterrado, absorto em toda sorte de maldades, chafurdando na lama. O sorriso doce dos enamorados, os beijos apaixonados, os toques simples cheios de significado, essas coisas, essas pequenas grandes coisas são as únicas a alimentarem essa pobre carcaça que me tornei. Se alguma coisa vale a pena nesse mundo certamente é o olhar dos que ainda amam nesse paraíso corrompido. São esses casais que ainda trazem um lance de luz nessa escuridão, uma brisa que sopra fresca acalmando os nossos ânimos, nos dando um pouquinho de esperança nessa vida tão absurdamente fétida, nesse universo tão hostil, nessa humanidade tão inviável. 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

De relações

"Eu sou eu! Eu me tornei eu mesma com o auxílio dos laços e relacionamentos que existem entre mim e os outros. Sou formada pela interação com os outros. Eles me criaram como eu os criei. Esses relacionamentos e interações servem para moldar os padrões do meu coração e minha mente. 

Isso são laços? 

- Isso, esse é o nome para aquilo que compartilho com aqueles que criaram a coisa conhecida como Rei. Isso é o que continua me moldando."
(Neon Genesis Evangelion)

É fim de manhã, o sol começa a dar sinais de que vai diminuir um pouco a sua ira causticante e a tarde será um tanto mais fresca, ou talvez seja só uma impressão minha, tirada do fato de que estou quieto no meu quarto, janelas bem abertas, sentado abraçando as pernas ouvindo alguma banda de j-rock, com suas melodias doces e vozes coloridas. 

No meu celular um amigo reclama da falta de profundidade nas conversas com outros, parece que todos só sabem falar de sexo e nada mais, conquanto ele busca uma relação mais profunda onde, mais do que sexo, se faz necessária uma conexão mental e afetiva que transcende e muito o contato carnal, senão que o ratifica e lhe confere significado. 

Ainda que sinta vontade de prosseguir com esse assunto, por concordar inteiramente com a sua queixa, eu me sinto ainda sozinho e eu mesmo experimento da sensação de não conseguir falar com ninguém. Sinto-me só, mesmo sabendo que não estou e que existem pessoas verdadeiramente preocupadas comigo. Mas ainda me sinto excluído dessa existência, não consigo ver o mundo como as pessoas veem e elas não enxergam nisso problema quando eu me afoito: é um grande problema pois onde elas enxergam a ordem natural, ou ao menos imutável e inquestionável das coisas, eu vejo um caos que deve ser organizado por um esforço intelectual, por uma força que só vir do intelecto humano mas que é ignorada em todas as suas esferas. 

Por isso as conversas partem sempre do imediatismo sensível, as pessoas falam de sexo porque é uma sensação forte, mas é a única que conhecem. Não conhecem a profundidade de outras experiências humanas, como o amor em um gesto de caridade ou a dor da solidão expressa num romance ou mesmo vivida na pele, não conhecem nem mesmo a maldade humana, mesmo que já a tenham visto por aí. Mas, para perceberem essas coisas elas deveriam se livrar de seu imediatismo, e este parece ser forte demais para ser ignorado. Não entendem nem mesmo as profundas consequências que um contato carnal pode trazer. 

Todas as minhas experiências fracassadas de tentar criar um vínculo verdadeiro me foram tão frustrantes que eu terminei aqui, com os braços ao redor das pernas, admirando sozinho o laço forte que unem as pessoas das obras que leio e assisto, laços que são mais fortes do que o imediatismo físico puro e simples. Por isso os inúmeros amigos que antes frequentavam a minha casa, e que brincávamos e conversávamos por horas, hoje não olham na minha cara, e se riem e se divertem sem mim, enquanto eu continuo buscando uma relação verdadeira. Ah, quem me dera nessa vida conhecer pessoas de verdade, pessoas de carne e osso mas também de coração, pessoas que sentem, que se dão e que, mesmo que seja triste, pessoas que se vão. Em nome disso é que prefiro me exilar na solidão. 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Demora

É, tem sido uma crise depressiva que demora a passar. Eu a sinto a todo momento, seja deitado, quieto, sem conseguir me mexer, seja mesmo quando consigo andar um pouco, e nem o vento fresco no meu rosto consegue amenizar o que sinto. 

Trata-se de uma sombra, um peso, uma constante sensação de torpor, de que algo está errado, de que algo se aproxima. É uma constante ameaça, insegurança, um imenso vazio que parece crescer sem limites, um sufoco, uma imperfeição fundamental, algo que rouba as minhas forças, um alguém que segura um punhal contra minhas costas. É o querer dormir, sentir sono o tempo todo mas não conseguir assim que me deito. É sentir tudo, e não sentir nada ao mesmo tempo. São meus óculos sujos, a minha pele oleosa, minha vontade de não fazer nada. E é uma coisa que vem e permanece, às vezes por semanas, como têm sido. 

E parece que não terá fim, mesmo sabendo que logo essa depressão dará lugar a uma hipomania e depois a outra depressão. Mesmo sabendo que a qualquer dia tudo pode mudar, eu não sinto isso dentro de mim. Buscando em profundidade no meu ser eu só encontro a escuridão. Por vezes um pouco mais clara, apenas uma vontade de ficar deitado por uma hora mais, outras vezes com o lançamento do meu ser no abismo mais escuro, de onde não parece haver saída, de onde me torno incapaz de mover um braço sequer, onde parece que encontrarei o meu fim na próxima vez que fechar os olhos. 

Tem ainda as crises de pânico que pioram nessa época, o mundo que parece que vai se abrir sob meus pés e me engolir, num abismo sem fim. E assim, como diz o filósofo, parece que meu próprio ser torna-se um abismo, um grande vazio, como se pudesse engolir o mundo ou, ao menos, me engolir ao ver meus próprios olhos num espelho. Quanto mais demora a depressão, piores ficam as crises de pânico, e mais dependente de remédios eu me vejo preso a esse inferno, num ciclo sem fim de medo e vazio. Até mesmo eles, que deveriam me libertar, reforçam a ideia de prisão nesse calabouço infinito que é meu próprio coração. 

Só espero que ela passe logo, ou que diminua, que me deixe viver um pouco, sentir um pouco de alegria, que não seja tão incapacitante assim. É só o que posso pedir, que viva um pouco, antes do fim inevitável. 

Três Experiências

Como ela pode ser tão forte? De onde essa mulher tira tanta força? Como pode ela, mesmo doente, ter mais força do que eu nos meus melhores dias? Ela faria inveja a homens como Hércules e Atlas, ela carrega não apenas o seu mundo nas costas mas também o meu. Queria saber de onde vem essa força, queria ter essa força! Queria ser tão forte quanto ela, aguentar tanto quanto ela. Mas o quão distante eu estou disso? A cada dia parece que eu fico mais e mais fraco, meu corpo definha, minha mente estremece, e ela continua firme, impassível, mesmo com a idade avançando sem parar, mesmo com os problemas se multiplicando a cada dia ela não se deixa paralisar. Como eu posso ser filho dela e ser assim tão fraco? Como ela sendo tão forte pôde gerar a mim, assim tão fraco? 

X

Gosto quando posso me dar ao luxo de me desligar, de dormir por horas, de fingir que minha existência não ultrapassa os umbrais do meu quarto. Parece que só nesses momentos a minha vida tem algum sentido: quando sinto que eu não sou, quando suspendo toda a credibilidade no meu ser, quando morro sem morrer, vivo sem viver em mim. E tão alta vida espero, que morro para o mundo, vivendo para dormir profundamente sem viver em mim. E eu canto, como vou cantar ao sair deste mundo: eu morro de amor! E durmo pelo mesmo motivo, mas por não suportar o peso de tanto sentir que é melhor não sentir nada. E então, fora mas sem sair de dentro de mim eu consigo sentir como se nada houvesse aqui dentro, mesmo que nada haja fora de mim, mas uma leveza de quem consegue conviver com os próprios pesos, e morrer sem morrer é uma graça, sem outra igual para mim que sente demais.

X

O que eu queria é que hoje fosse como ontem, que eu pudesse não ser, que eu pudesse dormir, que eu pudesse fugir e me esconder. Queria poder sentir sempre essa sensação, de que não existo, de que o mundo pode acabar e eu continuarei dormindo.  Queria poder ignorar tudo e todos ao meu redor. De todos os dias esses dias são os melhores, nem se comparam com os dias de animação, de hipomania, são dias que sinto posso ser eu mesmo, não sendo nada, não sendo ninguém Uma demonstração clara da minha incapacidade de ser alguma coisa, mas que traz paz ao meu ser. 

Claro que eu sei que isso é só o efeito viciante dos meus remédios, que me prendem cada vez mais a eles como correntes invisíveis prendendo minha mente distorcida aos efeitos soníferos que tanto me acalentam. Mas eu realmente queria poder dormir tão profundamente que não mais acordasse, seria feliz se isso acontecesse.  Me perder pra sempre num mundo onírico de descanso e escuridão, onde não houvesse cansaço do corpo e da mente, onde não houvesse cansaço, onde não houvesse pressão, onde só houvesse a infinita escuridão e o silêncio reconfortante da paz. 

domingo, 5 de dezembro de 2021

Do Ser ideal

Meu corpo dói, reclamando do esforço demasiado depois de dias parado numa longa crise depressiva. Fiquei dias na cama, sem conseguir me mexer e, o pouco que saia, era sempre por breves instantes, antes de voltar pro torpor. Quando consegui sair desse torpor e agir um pouco, transformando, por mais mínimo que seja, o mundo ao meu redor, o corpo logo reclama. Mas eu também sentia dores enquanto só ficava deitado, não tendo força pra me levantar, e agora dói porque levantei, de qualquer forma há dor. 

Eu queria ser mais resignado nesse ponto. Não ser tão melancólico a ponto de reclamar tanto das minhas dores. Queria suportar silenciosamente mas, eu simplesmente não consigo, eu preciso falar, preciso exorcizar esses fantasmas de algum modo ou vou explodir. E a sensação de estar prestes a explodir é algo que conheço bem, e sei o quão assustadora ela pode ser. Queria eu ser um herói capaz de suportar com altivez as dificuldades, como foram os grandes santos, mas eu sei bem que minhas dificuldades são mínimas e até delas eu reclamo. 

Sou dado às murmurações, aos lamentos, sou dado a me perder em devaneios, em sonhar com refrigérios e recompensar, a me iludir em delírios de onipotência. Qualquer barulho é demais pra mim e se torna uma grande confusão aqui dentro. Sou uma mente fraca com um coração e um corpo mais fracos ainda. E já seria mais forte se suportasse minha fraqueza sem dela reclamar, se sorrisse enquanto colhia rosas e espinhos, mas se os espinhos me ferem eu logo me ponho a chorar, pela gota de sangue que eles me tiraram, como se tivesse sido transpassado por uma faca ou apunhalado pelas costas. 

Sou dado aos exageros, e isso não é bom, é como se nunca visse o mundo como ele realmente é, sempre coberto por um véu de melancólica névoa. Queria ser mais realista, conseguir enfrentar as coisas com mais coragem, saber enxergar a verdade e não fugir dela como sempre faço. Mas, o que mais um covarde sabe fazer senão fugir e se esconder? 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Moinho

Eis a confirmação! Depois de um dia horrível me mantendo acordado e sendo atormentado por diversos fantasmas eu finalmente tive paz! A paz de uma tarde inteira de sono profundo, a paz de adormecer nos braços de uma divindade que me deu nova energia para suportar um novo dia. Acordei disposto, feliz até, com energia o suficiente pra suportar os caprichos das pessoas que me rodeiam. Antes disso eu sequer conseguia me suportar de pé, a diferença é gigantesca. Assim, agora, me sinto mais vivo do que antes, minha mente não tão pesada pela sombra dos demônios que me atormentam, embora eles não tenham ido embora. É a confirmação, íntima, de que me obrigar a viver todos os dias, embora pareça belo dizer que enfrentei cada dia bravamente, não é a solução. Preciso do meu tempo para repor as energias, para me fechar em mim mesmo, para descansar a alma que há tanto se agonia. Sinto-me revigorado, e a sensação é ótima de, mesmo durante uma crise depressiva, conseguir me alegrar um pouco que seja após uma boa dose de relaxantes e soníferos, um preço a se pagar para ter paz num mundo de caos. 

X

Minha mente vaga sem rumo, o que não é nenhuma novidade. Já estou acostumado a dias que passam em branco, sem nada especial. E eu nem me importo mais, alguns dias apenas são, e eu me contento com isso. Não tenho mais grandes expectativas quanto a nada. 

Os dias? Chatos e intermináveis. As noites escuras e assustadoras. O garoto novo? Não está interessado em mim. Nada muda e o mundo continua a girar absolutamente indiferente a mim. E é com um semblante quase sorridente que eu digo isso, um sorriso sarcástico, de quem ri do próprio túmulo sendo cavado, numa ironia mortal. Não espero nada da vida porque nada que ela ofereça pode me encantar. A verdadeira felicidade não se encontra aqui. Tudo o que posso desejar é morrer desprezado e ignorado na esperança de uma vida melhor do outro lado, daqui já não espero mais nada. 

Queria muito que isso se parecesse com um tratado teológico sobra a santidade ascética, como muitos místicos o fizeram, e que desejavam realmente morrerem desprezados por todos para assim chegarem ao altar da santidade. Mas não é o caso. Eu só espero o desprezo porque vejo que é só isso que a vida tem a me oferecer. Eu não sou um grande espírito capaz de suportar dores e penúrias pela santidade, eu sou fraco e melancólico, resmungo por qualquer coisa e sou incapaz de grande feitos. Não tenho grandes esperanças, apenas queria poder morrer em paz e no mínimo estado de graça possível. Não posso desejar mais do que isso porque aprendi da vida que ela é um moinho que tritura qualquer sonho, então que eu sonhe moderadamente para que, quando eles forem destruídos, a decepção não seja tão grande. 

E assim eu vou vivendo meus dias, sem esperar muito na esperança de que a decepção não seja muito grande. Assim, quando a vida reduzir as minhas ilusões a pó eu não vou sofrer tanto. 

X

Eu nem sei mais dizer o que há de errado. Tá tudo assim tão estranho, vazio, sem contorno. Tudo meio sei lá, sem sentido, meio sem propósito. Eu vou apenas vagando, dia após dia, como um corpo sem alma, sem nada dentro, mas eu continuo sentindo, e sentindo muito, e ao mesmo tempo sem sentir nada. Me sufoco com meus sentimentos e pensamentos ao mesmo tempo que um vazio me oprime e me esmaga. Essa ambivalência me corta e, ao mesmo tempo, é a única coisa que atesta que eu ainda estou vivo. É solitário, mas eu gosto do silêncio, ainda que doa. Em alguns dias eu sinto que flores crescem do meu peito, que eu me encontrei sem precisar de ninguém mas, em outros dias, é como se ervas daninhas crescessem a ponto de me sufocar. 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Sobre manter-se acordado

É sempre uma tortura ficar acordado o dia todo, e o tenho dito muitas vezes, e hoje uma vez mais se grava no meu corpo essa verdade. Meu ser clama pelo silêncio e pela escuridão calma do sono, daquela dopada candura a que tantas vezes me recorro para fugir desse mundo. Mas por qual razão me mantenho acordado hoje, se tudo o que quero é desaparecer num sonho profundo? Talvez por medo de destruir ainda mais o meu corpo com os remédios, talvez por perceber que que fugir não é a solução. Mas qual é o ponto de ficar acordado? Eu realmente não sei. Dormir, não ver o mundo, não falar com as pessoas é muito melhor, então por qual motivo me obrigo a viver esse dia? Eu não quero ver esse sol claro, não quero ouvir as vozes ao meu redor, não quero lembrar que estou vivo e que não sei nada do mundo. Meu corpo entra em agonia, meus vizinhos gritam, minha irmã liga aparelhos barulhentos, crianças chorando, mensagens para responder. É como enlouquecer lentamente, sentindo cada gota refinada de agonia sendo extraída dos ponteiros do relógio e dos números que nunca avançam senão para maior desespero do homem. É sempre uma tortura ficar acordado o dia todo.

Mas eu me obriguei a ficar o dia todo acordado, e para que? Para sentir tédio, frustração, pra sentir meu corpo pedir por clemência, pra sentir o meu ser querer voltar ao nada, voltar a inexistência. Para me torturar numa roda que eu mesmo girei, para me fazer passar por um dia inteiro de pensamentos ruins, como se uma nuvem cinza pairasse sobre a minha cabeça, com todo azar, com toda maledicência, com tudo que há de ruim nesse mundo pairando com ela sobre mim. Não vi nada de bom, nada de belo, nada digno de ter ficado acordado, não vi nada que não fosse mil vezes melhor dormir do que ser obrigado a ver assim, sentindo que estou vivendo por obrigação, preso a esta vida por uma vontade que não é minha. E enquanto isso a minha vontade é humilhada, arrastada na lama, sonhando em voar alto no céu. Consegue sentir o peso dessas palavras como esse dia foi pesado para mim? Como foi pesado levantar da cama e comer, como foi pesado mover o meu corpo gordo pra andar um pouco e ver algo além das paredes do meu quarto, e ainda assim nada bom o bastante pra ser visto. Apenas a mesma feiura de sempre. É sempre uma tortura ficar acordado o dia todo, e não sei por qual razão me obriguei a isto. 

E agora sinto cada vez mais que enlouqueço pouco a pouco, aqui nesse quarto escuro, longe de tudo e de todos, numa penumbra, onde parece materializar-se apenas o meu fim diante de mim. Parece que pouco a pouco me aproximo do meu fim, aqui nesse quarto escuro, a música triste que nunca cessa, que não acalma meu coração mas torna angustiada a minha alma. Me sinto abandonado aqui, esperando a morte chegar, mas ela não chega nunca, e os dias se prolongam, e as noites nunca têm fim, e ninguém pode me salvar de mim mesmo, que tento morrer e tenho medo ao mesmo tempo, numa ambivalência covarde de existência patética. E eu sinto o meu eu espreitar no meu não desperto intangível, e me assustar, magro e esquálido, a imagem da morte, mas da morte que ameaça sem nunca se cumprir. Pra mim a morte seria alívio, o fim dessas noites infindáveis, desses dias horríveis, desses momentos de terror, dessa eterna noite escura de amor em vivas ânsias inflamada num infeliz ventura. Eu não sou um santo, sou um monstro condenado a viver num corpo humano, sendo torturado dia após dia nessa vida sem fim. 

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Pequeno

Tentando não enlouquecer dentro da minha própria mente, com tantos pensamentos, tanto medo, tantas incertezas, tantas dúvidas sobre o mundo. Em contato com pessoas mais experientes eu vejo o quanto eu conheço pouco do mundo, o quanto sou fechado em mim mesmo, o quanto sou limitado ao meu próprio universo particular, tão mínimo, um grão de areia. Me senti pequeno, rebaixado mesmo, ante eles que, saindo de perto dos pais, que viajando, que trabalhando fora, conseguiram crescer e se tornarem independentes enquanto eu continuo aqui, paralisado de medo repetindo todos os dias essa ladainha nessas páginas. 

O mundo é tão grande e ainda há tantas coisas que você não sabe e que ignora completamente, quando deveria saber muitas já a essa altura da vida. 

Até quando se contentará com essa mediocridade? Até quando? Até quando Gabriel você vai insistir nisso? Até quando vai continuar sendo um inútil, sustentado pelos pais, com medo da noite?  

Olhe como você é pequeno, um nada! Olhe como você só sabe admirar aquilo que não pode ter e que só pode sonhar em voar pelo céu enquanto rasteja pelo chão! Olhe como as pessoas aprendem mais no próprio mundo do que você da sua cama acredita aprender! 

Você não aprende nada, continua medíocre, continua pequeno e insignificante, e vai morrer assim, sozinho, infeliz e pequeno. Esquecido. 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Prece

Uma das preces dos fiéis da liturgia de hoje dizia o seguinte: "Pelos que, pela dor e desilusão, já não esperam nada e nem ninguém, para que acreditem nas promessas do Senhor, oremos." E, no instante que foi lida eu senti um choque pois as palavras caíram como uma espada sobre mim. 

Como num estalo eu percebi, naquele momento, que eu não espero por nada, que eu não espero por ninguém, que minha vida é completamente vazia de esperança no amanhã e que eu não tenho absolutamente nenhuma perspectiva de futuro. 

Isso me desceu com um gosto amargo na boca. E essas palavras da prece reverberaram em mim durante todo o dia, num contraponto interessante com o otimismo que eu senti ao ver os últimos episódios de uma série coreana que estava acompanhando, Hometown Cha Cha Cha, cuja mensagem final foi justamente "viva a vida intensamente, aproveite cada dia, sonhe e realize seus sonhos pois há muita coisa boa pra ser vista". 

Essas duas visões se mesclam no meu ser. A visão que não crê, não espera e não vê no mundo nada de bom e a visão que enxerga numa história como essa motivos pra me levar às lagrimas. Ou talvez eu tenha chorado justamente por encontrar lá a esperança que não encontro em mim mesmo, o que falta em mim, o vazio absurdo que consome meu peito. 

Como podem duas realidades tão distintas coexistirem assim dentro de mim? É como água e óleo, não podem misturar-se e, no entanto, estão ao mesmo tempo, embora em proporções distintas, mas colidem e coabitam, como serpentes que tentam se devorar. E elas lutam eternamente, uma ganhando a cada dia mas a outra ressurgindo novamente e reiniciando o ciclo infinito. 

Viver a vida, uma bênção, um dom divino. A existência é só dor e caos e não há sentido algum em todo o sofrimento que passamos. Há beleza para ser vivida, esperanças que valem a pena, sonhos que merecem ser sonhados e realizados. Há apenas a morte como libertação dessa imensa roda de ódio em que estamos presos. Há uma vida eterna no fim de tudo isso que faz valer a pena. Não há nada que possa trazer sentido a essa existência miserável. Há beleza. Há o caos. Há um fim nisso tudo. Tudo é apenas morte, o desespero é a única realidade. 

E tem a mim. Pobre. Perdido no meio dessas visões, é onde me encontro, e minha alma está em agonia.

"Preces meae non sunt digne, sed tu, bonus, fac benigne, ne perenni cremer igne."

domingo, 28 de novembro de 2021

Em cima da cama

Mais um dia que não saí da cama, mais um dia resumido a me revirar de um lado a outro, mais um dia que passou sem que eu o vivesse e, pior ainda, mais um dia que passou e eu fiquei consciente dele todo o tempo. Não quero apelar tanto aos remédios, que já precisam de uma alta dose pra me apagar, e então alguns dias eu sou obrigado a ficar acordado, vendo o tempo passar lentamente, olhando pro teto, esperando alguma coisa acontecer.

Parece irreal, se pensar quantas coisas uma pessoa faz num dia, e eu ter passado o dia todo deitado, com a mente vagando em qualquer lugar, ouvindo incontáveis músicas as quais não prestei atenção, o calor incomodando, o barulho incomodando, mas nada capaz de me tirar dali. 

As pessoas se empolgaram com uma partida importante de futebol no final da tarde, pude ouvir desde as pessoas da minha casa até os vizinhos gritarem empolgados, felizes por alguma realização, e enquanto os ouvia eu pensava que nada no mundo poderia me deixar tão empolgado. E foi uma constatação difícil.

Minha mãe ainda aposta no meu tratamento. Eu só tomo os remédios na esperança de que não piore, muito. Mas já não acredito que possa levar uma vida normal. Me vejo como alguém quebrado, com um defeito, uma imperfeição fundamental que me torna um pária. 

"Tudo há seu tempo" repetem sem parar, e eu vejo que para os outros isso é verdade, quantos já não conquistaram o mundo aos 26 anos? Eu conquistei receitas médicas com prescrições de remédios psiquiátricos e já não sou capaz de fazer o que antes fazia bem, as poucas coisas que fazia bem. 

Já não sou capaz de ficar no altar sem uma crise de pânico na noite anterior, já não dou aulas ou palestras, já não sou insubstituível. 

Como as coisas chegaram a esse ponto? Como fui ficar gordo, irreconhecível, e sem ânimo pra sair da cama durante dias inteiros? 

Eu sei que fazer alguma coisa poderia me ajudar, arrumar um trabalho poderia ser um bom começo, mas eu penso, e quando vier a primeira depressão e eu não conseguir levantar? Quem vai entender? E então eu torno a ficar paralisado, como num circulo vicioso, infernal, um ourobouros. 

Ainda me assusto ao pensar em como fiquei, e mais assustado ainda em perceber que não conheço solução. E, porca miséria, ainda mais assustado em imaginar que isso pode ser assim pro resto da minha vida. 

E quando meus pais não estiverem mais aqui? Isso pode acontecer amanhã mesmo, eles podem nem sequer acordar. E quando ninguém puder pagar minha terapia? E quando ninguém mais comprar comida pra casa? Eu vou continuar sem forças ou ali eu vou descobrir como é que todas as pessoas conseguem sobreviver nesse mundo terrível? 

A possível resposta a cada uma dessas questões é mais apavorante do que as próprias perguntas. E eu prevejo que ficarei mais dias paralisado por elas. 

sábado, 27 de novembro de 2021

O que aconteceu

Não aconteceu nada, não é como se alguém tivesse dito algo que eu não gostei, ou como se algo que fiz não tenha dado certo. Eu simplesmente não quero esse dia, não quero ficar acordado, não quero conversar, não quero nada além de ficar deitado, além de não pensar, além de não ser. A experiência de suspensão da minha consciência tem sido minha única experiência válida. A única coisa que tem feito meus dias valerem a pena, além das histórias de amor, são os momentos que não preciso ser, que posso apenas dormir, sem pensar em mais nada. 

E queria que fosse sempre assim, que eu não precisasse ver o amanhecer de outro dia, de outro dia terrível, ou o anoitecer de uma noite de pesadelos e pânico. 

Também queria que tivesse em mim alguma energia, mas parece que há muito eu venho operando na bateria reserva. Eu vejo belas maquiagens na internet e gostaria de melhorar, tentar reproduzir, mas eu não consigo, me vem um desânimo total e eu não consigo erguer um pincel sequer, quem dirá reproduzir algo complexo, mas belo, que me deixaria contente pelo esforço. Eu não consigo. 

Quantos livros ainda faltam ser lidos? Mas em alguns dias eu sequer consigo entender umas poucas frases e logo largo de lado aquelas páginas tão cheias de ideias que já não consigo entender, a mente ocupada demais perdida em devaneios, perdida no vazio. Eu não consigo. 

Eu me sinto vagando num mundo de névoa, sem conseguir enxergar, sem saber para onde ir, eu vivo buscando ajuda, procurando, olhando de um lado para outro, mas eu não vejo ninguém. 

Todos perguntam o que aconteceu. Mas nada aconteceu. É como se uma chavinha fosse virada no meu cérebro e eu simplesmente fico assim. É sempre assim. E de repente tudo muda, tudo se torna opaco, e até sair da cama se torna um suplício. 

Quantas vezes eu já falei sobre isso, e nada muda, exorcizo esses fantasmas mas eles logo voltam pra me assustar. Eles continuam me rodeando como o leão procura a quem devorar. E eu me sinto lentamente devorado, minha carne estraçalhada, meus ossos reduzidos a pó. Pó. Eu sou pó e ao pó voltarei, sendo melhor ser pó e rodopiar ao vento como farrapos do que viver, ou melhor, do que subsistir em cima de uma cama, sem vida, sem vontade, sem forças. Padecendo o tempo que passa sem conseguir agir. Sendo apenas vítima inerme do tempo. Vítima. Apenas vítima. Passível. 

Por mais que eu sinta que o tempo passa de modo desperdiçado quando faço isso, dormir o dia todo, eu não consigo deixar de pensar o quanto é bom acordar e ver que não precisei passar a tarde toda inventando um pretexto pra ficar sóbrio. Eu prefiro fugir e sei que as consequências disso são desastrosas pra minha saúde. Mas eu simplesmente não consigo me forçar a ficar acordado todos os dias. 

Ainda que desperdice meu tempo é mais fácil do que viver cada dia, sendo cada dia uma tortura, é melhor não viver. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Estações

Eu sinto o tempo passar, como se as estações de mais um ano passassem ao meu redor na velocidade de um raio. Sinto o tempo passar e a responsabilidade que eu deveria carregar aumenta, mas eu não a carrego, outros a levam por mim. E eu vejo as estações passarem e eu envelhecendo sem a honra de crescer conforme passam o anos. Continuo fraco, continuo dependente, continuo medíocre.

E o tempo não cessa de girar, o faz de forma vertiginosa, já sinto os anos na minha pele mas não consigo ser o que esperam de mim. Isso é mais do que deprimente, isso é paralisante, me causa vergonha, me causa nojo de mim mesmo. 

E eu continuo aqui parado, enquanto o tempo passa, enquanto as estações giram ao meu redor, enquanto meu pai levanta de madrugada pra trabalhar e complementar a renda, enquanto minha mãe faz tudo dentro de casa, enquanto eu não faço nada além de virar de um lado para o outro tentando aliviar o calor. É patético de se ver. 

Para quê tanto tratamento? Para quê tantos remédios para recuperar a vitalidade de alguém que já morreu? Não mereço viver, eu sou menos do que um homem, eu sou um inseto, alguém que merece ser esmagado, apagado da existência. 

Eu me envergonho de quem sou, mas não tenho comigo forças para mudar. Eu vejo o tempo passando ao meu redor mas não consigo me mover, não consigo levantar a mão, não consigo dar um passo. 

Consegue imaginar o quanto isso é deprimente? Perceber que sua existência não tem valor, que você é apenas um desperdício de espaço, que você faria mais bem a todos se simplesmente deixasse de existir? 

É assim que eu vejo o tempo passar. E eu me vejo cada vez mais distante. 

Um continente de distância, um universo inteiro. Distante da beleza verdadeira daqueles que são meu ideal, distante do amor, distante da independência, distante de tudo que possa fazer algum sentido nessa vida. Distante de me sentir vivo, distante, enquanto passam as estações. 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Aforismos

Eu tenho uma palestra logo mais a noite, e estou me perguntando como vou conseguir falar para pessoas formadas sobre um assunto que elas conhecem se eu mesmo não consigo nem mesmo me mexer direito. Desde cedo eu não consegui sair da posição em que estava na cama, nem o chamado das pessoas me despertou, tudo o que sinto é um peso enorme em todo o corpo, como se correntes me prendessem a cama. 

Como eu vou conseguir daqui? Como eu vou falar assim? Como fazer os outros entenderem que não é porque eu não quero mas porque eu simplesmente não tenho de onde tirar forças pra fazer nada? Como eu vou conseguir um trabalho assim? Como eu posso assumir a liderança da família sendo fraco desse jeito? Onde consigo forças? E agora eu, pobre, que farei, que patrono invocarei? 

X

Minhas perguntas continuam sem respostas. Perdi o sono na noite escura e fresca. Uma faísca que só eu vi, só eu senti, como sempre, algo que só aconteceu na minha cabeça. É assim que me sinto. Vivendo um mundo que não é o meu. Não me encaixo aqui, onde quer que esteja me sinto deslocado. Para onde quer que eu olhe é como se imaginasse num mundo distante. Sinto que nasci no universo errado, vivendo num exílio perpétuo. Não sei qual é o meu lugar nesse mundo, se é que há lugar para mim, de todo modo eu sinto que não pertenço a lugar nenhum. Minha alma está inquieta, meu ardente coração quer dar-se sem cessar, minha mente está perdida. 

X

Meu corpo dói, minha mente dói, e eu nem sabia que isso era possível. É um tipo de cansaço em que já não consigo mais pensar em coisas novas, raciocinar com novos elementos, é como se tivesse chegado ao limite do quanto posso pensar em alguma coisa, qualquer coisa. 

X

As pessoas me olham e me dizem que engordei, em tom elogioso, mas elas não percebem que isso não é elogio. Eu engordei por causa dos remédios pra depressão que tomo e da minha má alimentação, e isso só piora como me sinto, cada vez que olho no espelho. E eu queria que parassem de dizer isso como se fosse um elogio porque não é. Isso me faz querer ficar dias sem comer, me faz querer arrancar minha carne com as minhas próprias mãos. Eles não sabem disso, mas como podem pensar que eu estou mais feliz assim, sendo que a imagem que eu vejo no espelho me causa repulsa de mim mesmo? 

X

Sinto-me carente, o que me faz querer tomar decisões questionáveis. Reinstalar aquele aplicativo, voltar a me encontra com aquele garoto... Todas decisões que não podem me trazer nenhuma felicidade, são apenas reflexo de uma luxúria profunda mas que não pode ser cessada, não há conforto em lutar para satisfazer esse impulso, tudo o que vai haver depois é o silêncio e o vazio, vazio de quem não sabe o que quer, vazio de quem não pode ser preenchido com a presença de desconhecidos, vazio e mais vazio. Às vezes sinto que minha vida é feita apenas de vazios a serem preenchidos sabe-se lá com o quê, Eu queria me sentir completo, pelo menos uma vez, queria me sentir pleno, sem que faltasse uma parte importante, imprescindível. Parece-me que meu fardo é me sentir vazio, é não me contentar com nada nessa vida, nesse mundo, é almejar coisas tão elevadas que esse mundo perde a cor diante delas, tornam-se opacas. O que fazer quando tudo o que se sente é o vazio, te consumindo, te devorando, te fazendo desaparecer pouco a pouco?